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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 04/06/2019 CJUD O CONTRATO DE SEGURO Padronização (...) – fala inaudível ou ininteligível ... – fala incompleta ou interrompida Projeto Horizontes do Conhecimento O CONTRATO DE SEGURO: PERSPECTIVAS NO DIREITO BRASILEIRO E NO DIREITO COMPARADO Painel 1, 04-06-2019: Nova Lei de Seguros: Projeto de Lei n. 29-2017 DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK Bom dia a todos. É uma satisfação, em nome do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça, acolher o público tão interessado, os estudiosos e principalmente os palestrantes, que dão um brilho especial a este Seminário O Contrato de Seguro: Perspectivas no Direito Brasileiro e Comparado. Vamos ser breves aqui na abertura. Eu vou desde logo convidar os painelistas, Dr. Ernesto Tzirulnik... Eu perguntei qual a origem, o Dr. Ernesto disse que é ucraniano, mas não está em conflito com a Rússia, não é? O Dr. Bruno Miragem já está aqui, e o Dr. Ney Wiedemann eu convido, que é o coordenador de fato. Eu sou o coordenador de direito, mas quem fez tudo... Eu agradeço desde já. Vou começar pelo nosso da casa. O Des. Ney é Desembargador aqui desde 2008. Atua na 6ª Câmara Cível, que julga Seguros também. É especializado no julgamento de processos 1

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O CONTRATO DE SEGURO

Padronização(...) – fala inaudível ou ininteligível... – fala incompleta ou interrompida

Projeto Horizontes do Conhecimento

O CONTRATO DE SEGURO:PERSPECTIVAS NO DIREITO BRASILEIRO E NO DIREITO COMPARADO

Painel 1, 04-06-2019:Nova Lei de Seguros: Projeto de Lei n. 29-2017

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Bom dia a todos. É uma satisfação, em nome do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça, acolher o público tão interessado, os estudiosos e principalmente os palestrantes, que dão um brilho especial a este Seminário O Contrato de Seguro: Perspectivas no Direito Brasileiro e Comparado. Vamos ser breves aqui na abertura.

Eu vou desde logo convidar os painelistas, Dr. Ernesto Tzirulnik... Eu perguntei qual a origem, o Dr. Ernesto disse que é ucraniano, mas não está em conflito com a Rússia, não é? O Dr. Bruno Miragem já está aqui, e o Dr. Ney Wiedemann eu convido, que é o coordenador de fato. Eu sou o coordenador de direito, mas quem fez tudo... Eu agradeço desde já.

Vou começar pelo nosso da casa. O Des. Ney é Desembargador aqui desde 2008. Atua na 6ª Câmara Cível, que julga Seguros também. É especializado no julgamento de processos envolvendo Direito de Seguros; Magistrado desde 1989; graduado pela UFRGS, com mestrado pela Fundação Getúlio Vargas do Rio; professor em cursos de pós-graduação em Direito e em cursos da Escola da Ajuris e da Escola Judicial do Rio Grande do Sul.

O Dr. Bruno Miragem é doutor em Direito pela UFRGS; mestre em Direito também pela UFRGS; professor adjunto da Faculdade de Direito da mesma universidade nos cursos de graduação e pós-graduação; advogado e parecerista. Já foi Procurador-Geral do Município.

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O Dr. Ernesto Tzirulnik é advogado em São Paulo; graduado pela PUC-SP; doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da USP; Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Direito do Seguro; coordenador da comissão de juristas e técnicos que elaborou os projetos de lei de contrato de seguro apresentados na Câmara dos Deputados e do Senado – hoje o Projeto de Lei da Câmara n. 29/2017 –; fundador do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; autor de diversos livros sobre contrato de seguro.

Saúdo a todos e passo a palavra desde logo ao Dr. Ernesto.

DR. ERNESTO TZIRULNIK – Muito obrigado, bom dia a todos. É realmente uma felicidade para mim estar de novo em Porto Alegre. Porto Alegre é a cidade que mais debate o Projeto de Lei de Contrato de Seguro neste País, sem sombra de dúvida. Nós estivemos discutindo com a Ajuris já em São Paulo antes, quando o projeto ainda era uma minuta, e era um evento a que comparecia a Ajuris e a Escola Paulista da Magistratura. O Rubén Stiglitz foi para lá falar sobre o capítulo do Código Civil brasileiro a respeito do contrato de seguro, e havia uma missão de Desembargadores gaúchos e paulistas para estimular o debate, apresentar casuística e transformar aquilo em uma experiência mais viva. Nós nunca registramos uma falta da Ajuris. Registramos um sem-número de faltas do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, enfim, mandava mensagens dizendo que acompanharia o Relator. Então, a Ajuris está nesta história desde o ano 2000.

Eu tenho uma responsabilidade muito grande, porque estou sentado ao lado do Des. Umberto, que é uma mistura de bom vinho com boa comida. Ele é Guaspari, que é o melhor vinho de São Paulo, e ele é Sudbrack, uma das melhores chefs do Brasil no Rio de Janeiro. Então, imagina a responsabilidade que, só por aí, já tenho.

Eu queria cumprimentar o Prof. Bruno Miragem, que tem sido um dos maiores divulgadores e debatedores do Projeto de Lei de Contrato de Seguro. Também saúdo o Des. Ney Wiedemann Neto, que vocês todos conhecem. É sem sombra de dúvida o mais mobilizado dos Desembargadores brasileiros em torno do contrato de seguro. Ele está em todos os eventos, participa de tudo, discute e, não sem razão, tem a sua produtiva atuação como Juiz de Tribunal, Desembargador, aqui no Rio Grande do Sul. Eu queria

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agradecer também à Luiza Petersen, que fez parte deste convite. Finalmente, saúdo a Prof.ª María Fabiana Compiani; a Prof.ª Andrea Signorino, que é da minha segunda pátria; o Prof. Felipe Aguirre, da Argentina, que eu acho que ainda não está aqui, mas estará conosco, e finalmente o Prof. Pablo Medina, que veio do México e vai estar, eu creio, amanhã com vocês.

O tema é o Projeto de Lei de Contrato de Seguro, em termos de perspectivas e direito comparado. Embora muitos aqui já conheçam bem o projeto, porque eu os reconheço das atividades anteriores, eu vou falar um pouco sobre o projeto e, como não estão aqui os peruanos, eu vou pincelar um pouco da lei peruana, que é uma lei recente, assim como a lei uruguaia, de 2018, a Lei Especial de Contrato de Seguro, mas vou falar um pouco sobre o projeto dentro desse cenário de prospectivas.

Em primeiro lugar, o projeto é fruto de uma cooperação entre juristas, gente da área do Direito do Seguro. Eu; o Dr. Paulo Piza, que vai estar com vocês na próxima palestra; o Flávio Queiroz Cavalcanti, que já faleceu, do Pernambuco; Werter Faria, que foi Desembargador aqui e que tem o melhor texto sobre apólice de seguro no Direito brasileiro; o Athos Carneiro, que também já se foi; o Ovídio Baptista da Silva, que também já se foi – nós estamos perdendo gente de muita importância ao longo do processo – e a Judith Martins-Costa participamos desde o início. Não só eles, o Prof. Voltaire Marensi também está presente nas nossas atividades desde o princípio, com a ideia de formular um texto que pudesse representar avanço na dogmática brasileira sobre o contrato de seguro. Na produção desse texto, nós procuramos, desde o princípio, contar com alguns cooperadores. Eu vou mencionar apenas alguns que atuaram ou no nascimento, ou logo em seguida, ou depois de algum estágio, porque é um projeto que já tem uma vida de 15 anos, praticamente, então houve tempo de haver uma série de filtros e cortes, e muita gente contribuiu. Além dos gaúchos que estavam na origem, para falar dos estrangeiros, Rubén Stiglitz, da Argentina; Pablo Medina, do México; os Professores José Carlos Moitinho de Almeida, João Calvão da Silva e Maria Inês de Oliveira Martins, de Portugal; os italianos Luigi Farenga, Alberto Monti, Aurelio Donato Candian; os franceses Hubert Groutel, Luc Maillot e, mais recentemente, a Prof.ª Anne Pélissier. Quer dizer, existe um sem-número de pessoas que... Na Espanha, enfim... Foi muito profícuo o projeto. É um projeto que foi muito discutido em programas de pós-graduação. Talvez o mais

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participativo, o que mais vezes esteve no Brasil e o que mais contribuições mandou tenha sido o Prof. José María Muñoz Paredes, catedrático de Oviedo.

Então, é um projeto que nasceu com um diálogo com o mercado segurador, em uma época até que eu vejo... Um senhor fundamentalista lá atrás participou bastante, o Márcio Malfatti, quando estava no Sindicato das Seguradoras de São Paulo. Depois, o projeto tomou uma cara de que era um projeto contra o mercado segurador e ele passou a sofrer alguns problemas de enfrentamento. De forma que é um projeto que nasce no IBDS, nasce na discussão com o mercado, mas em um determinado momento o então Presidente da Federação Nacional das Seguradoras, a então Fenaseg, disse: “Olha, o Código Civil é muito novo,” – o que nós não achávamos – “e o projeto vai ter que nascer dentro do sistema segurador,” – que é o que considerava mais adequado – “e nós não vamos apoiar. Nós vamos confrontar”. Então, ele nasce com um confronto com as entidades de liderança dos seguradores e dos corretores de seguros, a Federação Nacional dos Corretores de Seguros, que sempre quis que a palavra “agente” jamais aparecesse na lei, porque o único intermediário ou interveniente que poderia aparecer era o corretor de seguros, ao mesmo tempo em que não queria que aparecesse a formação do prêmio, ou a estrutura do prêmio, ou a composição do prêmio, para que não fossem de divulgação fácil os comissionamentos, que nós bem conhecemos aqui no Brasil como são, às vezes, tão avantajados.

Ele começa com essa característica. Quem o apoia são pessoas individualmente. Então, no mercado segurador, (...), o Wady Cury, o Paulo Marraccini, mas individualmente; as lideranças, não. Ele ganha o apoio desde o início do Brasil com... e do Idec, um órgão de representação de consumidores. Depois, ele ganha o apoio da FIESP e ganha o apoio da CNI, Confederação Nacional das Indústrias. Finalmente, em 2015, depois de muitas batalhas, de muitos outros números de projetos de lei que vieram para ressuscitar o projeto de 2004, aparecem no cenário, de uma forma bastante proativa, a Confederação Nacional das Seguradoras, a CNseg, e a Federação Nacional dos Corretores de Seguros, a Fenacor. Com base no pacto que veio a ser celebrado com essas duas, que eram as duas entidades que ofereciam conflito ao projeto, nós conseguimos rapidamente que o projeto se transformasse em projeto de lei da Câmara, que é o 29-2017, que está aí na tela.

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O tempo é muito pouco para falar sobre o projeto, o projeto tem muita coisa, mas eu gostaria, em primeiro lugar, de ressaltar que é um projeto que tem qualidade reconhecida internacionalmente. Quem for à exposição de motivos da lei portuguesa vai encontrar menção aqui a apenas dois projetos de lei, foram utilizados para a produção de um novo regime jurídico do contrato de seguro de Portugal de 2007 e são eles: o projeto alemão, que já virou lei, e o Projeto n. 3.555/2004, que é o projeto brasileiro. Foi um projeto muito discutido. Na Universidade de Buenos Aires, o Prof. Felipe Aguirre fez por dois anos cursos específicos sobre o Projeto de Lei de Contrato de Seguro, e muitos autores latino-americanos e europeus escreveram a respeito desse projeto. Na agenda brasileira, ele ficou muito contido, eu diria, mas fora dela ele prosperou mais do que por aqui.

Finalmente, também em 2017, nós tivemos o comparecimento, com apoio e um discurso muito enfático, da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Hoje o projeto está na CCJ, na Comissão de Justiça e Cidadania do Senado Federal. O Relator é o Senador Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais. Eu acredito que deva receber o projeto parecer realmente favorável muito rapidamente, nas próximas semanas.

Princípios Fundantes. Um dos princípios fundantes, um dos focos com que se elaboraram as regras desse projeto é considerar o seguro como um contrato sujeito ao sistema de direito obrigacional e trazer unicidade de linguagem. É interessante notar que as primeiras críticas havidas ao projeto quase que sistematicamente diziam que o projeto fala uma língua diferente da língua do mercado segurador, mas essa era uma intenção do projeto. Ele queria falar a língua do Direito Privado. Então, para não criar categorias com outras denominações, ele usa de propósito a palavra “estipulante” para ser aquele que estipula, e não só o estipulante do seguro grupal de vida e acidentes pessoais. Ele procura trazer uma unidade de linguagem e uma unidade de disciplina. Ele também traz a unidade dogmática, o mesmo regime para todos os seguros.

Eu acho que é de 2012 a lei peruana, não é? Em 2012... E esta é uma crítica que se faz muito ao projeto: ele é um projeto de lei de contrato de seguro para todos os seguros, ele só ressalva o seguro saúde. Seguros de grandes riscos, seguros de massa, todos têm o mesmo regime. Se nós formos

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verificar as legislações que existem em qualquer continente, vai ser praticamente impossível encontrar regimes distintos. O que fazem as leis é, em determinados casos, para determinados efeitos, estabelecer parâmetros um pouco distintos – “seguros de valores até determinado... vai ter uma trava aqui”; “seguros de vida têm uma trava aqui”, “no regime do agravamento de risco, vai ser diferente” –, mas nunca tratar os seguros, os microsseguros e os megasseguros como coisas distintas. Tem que ter uma unidade de disciplina. Isso o projeto fez também. O do Peru vem em 2012 e diz o seguinte: “Art. 1º - A presente lei se aplica a todas as classes de seguro e tem caráter imperativo, salvo que admita expressamente o contrário na própria lei. Não obstante, entender-se-ão válidas as estipulações contratuais que sejam mais beneficiosas para o segurado”. É o mesmo que nós dizemos no Projeto de Lei de 2004. Seu art. 9º prevê que o contrato de seguro se aplicará a todos os negócios securitários, em suas distintas modalidades, sendo de incidência exclusiva quando forem contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil; quando o segurado ou proponente tiver residência ou domicílio no País; quando no Brasil situarem-se os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos ou sempre que os interesses garantidos recaírem sobre os bens considerados relevantes para o desenvolvimento da infraestrutura brasileira.

Então, só por aí se pode ver que o projeto procura ser, como a lei peruana, uma norma cogente que se aplica a todas as classes de seguro e ele dá uma certa atenção especial para a questão da superação do subdesenvolvimento. Ele fala: “O Brasil é um país diferente dos demais. O Brasil não é um país que tenha grande cultura sobre o contrato de resseguro, o Brasil não é um país que tenha grande cultura sobre o contrato de seguro”. O contrato de seguro ficou fora da agenda jurídica por muitos anos. O Brasil não tem operações amadurecidas, ainda mais quando ele passa por 70 anos de monopólio de resseguro, e o monopólio de resseguro formulava tanto o conteúdo das garantias quanto as liquidações, até mesmo dos sinistros. A regulação e liquidação do sinistro era competência do IRB. O sistema era um sistema tutelar maravilhoso, porque todos os riscos deveriam ser aceitos pelo IRB, exceto os que contrariassem a segurança nacional e os que contrariassem a possibilidade técnica de asseguramento em si mesmo, ou seja, isso não é passivo de asseguramento.

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O CONTRATO DE SEGURO

De repente, muda, quebra o regime do monopólio, sem lei de contrato contemporânea, com poucas regras. O mercado se desorganiza, começam a existir seminários e seminários de um assunto chamado riscos declináveis, ou seja, o apetite dos resseguradores estrangeiros e dos resseguradores locais não era o mesmo apetite de resseguro de que o Brasil precisava e com o qual estava acostumado, então a questão das colocações já começou a ficar difícil. O padrão dos clausulados mudou, quer dizer, talvez para muitos aqui falar em propriedade tangível seja uma coisa muito íntima, mas nós falávamos coisas no Direito Civil, direito das coisas, não é direito da propriedade tangível. Essa expressão veio da experiência anglo-saxã, estabelecendo-se nas apólices brasileiras. De repente, os interesses sobre os bens, que é o que se garantia... E com isso se garante muito mais do que apenas danos físicos às coisas. A perda da utilidade da coisa, por exemplo, é uma lesão magnífica ao interesse sobre a coisa, mas não é um dano físico necessariamente. Então, nós perdíamos conteúdos e, ao mesmo tempo, nós importávamos expressões, linguajares que não se coadunam com o nosso direito privado, com o nosso direito obrigacional também.

Um outro ponto: hoje, nós temos uma medida provisória que saiu recentemente, a da liberdade econômica. Eu não conheço a opinião dos senhores, mas a minha é a pior possível. Lá se fala agora em contratos empresariais. Contratos empresariais teriam um regime distinto. Nesse projeto não há contratos empresariais nesse conceito de contratos empresariais que está tentando se colocar naquela medida provisória. Todo contrato de seguro é um contrato de adesão. Ninguém dos que participaram das diversas comissões jamais teve qualquer dúvida a respeito disso. Eu sei que existem autores que falam em contrato semiadesão. No seguro não existe isso. Hoje, depois da abertura de mercado, então, os padrões vêm de fora. Nós temos seguros de obras de infraestrutura brasileira que mencionam testemunhas da Rainha na apólice, na abertura da apólice, que têm a marca d’água lá embaixo: Civil Law Latin-American Country. É assim que as coisas acontecem. Muitas vezes – hoje a coisa mais comum é isto; se for falar em grandes riscos, então, não há uma exceção sequer – as seguradoras trazem o clausulado que os resseguradores lhes determinam. Senão, elas não têm resseguro. Então, falar que a megaempresa não seguradora, segurada, tem igualdade na formação da apólice de seguro é um absurdo. Não tem igualdade na formação, não é ela

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que emite, não assina o documento. O documento vem depois, inclusive, do início de vigência. Bom, então todas essas questões foram atentadas.

Ainda com o seguro como instrumento de desenvolvimento, o projeto brasileiro prevê, nos arts. 1º e 2º, que o importante dos efeitos, não só normativos, como também didáticos... que a atividade seguradora será exercida de modo que se viabilizem (I) os objetivos da República; (II) os fins da ordem econômica e (III) a plena capacidade do mercado interno, nos termos dos arts. 3º, 170 e 219 da Constituição Federal, para mostrar que contrato de seguro não é uma coisa que está apartada do sistema jurídico brasileiro como um todo, integrando-se na atividade seguradora, além dos contratos de seguro, também os contratos necessários à sua plena viabilidade, como o resseguro e a retrocessão.

Há pontos em que resseguro e retrocessão são fundamentais para o funcionamento do seguro, e não é possível o legislador ignorar isso. Seguro como direito humano até. Em uma sociedade plena de riscos, aqueles que conseguem se assegurar ganham uma nota de cidadania. As empresas, nem se diga. Elas são excluídas dos seus mercados se não conseguem, mas as pessoas também, qualquer pessoa. Existe lá uma regra que diz o seguinte: “Os critérios comerciais e técnicos de subscrição ou aceitação de riscos devem promover a solidariedade e o desenvolvimento econômico-social, sendo vedadas políticas técnicas e comerciais conducentes à discriminação social ou prejudiciais à livre iniciativa empresarial”. É o art. 52, no seu § 5º.

Proteção dos consumidores. A proteção dos consumidores se dá não só fazendo referência à concorrência de incidência do Código de Defesa do Consumidor, como também por meio de regras específicas. Eu vou dar o exemplo do art. 95, que diz o seguinte: “Na hipótese de sinistro parcial...” A famosa cláusula de rateio. A cláusula de rateio, Desembargador, é uma cláusula que surpreende todo o mundo. O sujeito fez o seguro do prédio dele por um milhão, pegou fogo, queimou tudo, ele vai lá, a seguradora fala: “Olha, você só tem 200 mil”. Ele fala: “Isso é um absurdo”. Não entra na cabeça, a pessoa não espera. “É porque a declaração do valor do interesse no momento da contratação do seguro foi inferior ao real valor. Você declarou 20% lá no início, quando contratou o seguro, então você vai receber 20% agora.” Porém, isso não é conversado, não é tratado. Isso causou muita surpresa, a ponto de o

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Supremo Tribunal Federal, há décadas, haver considerado nula a cláusula de rateio.

Depois, no Código de 2002, que na realidade foi escrito lá pelos anos 50, 60, veio a regra em que o mercado segurador tinha conseguido colocar no Código Civil um instrumento de pacificação: “Vale a cláusula de rateio”. Foi uma conquista. Engraçado, porque, naquele momento, o rateio já não existia mais em quase todas as operações de seguro brasileiras. Nós tínhamos aprendido que a cláusula de rateio era uma cláusula polêmica, no mínimo, e nós passamos a desenvolver seguros sem rateio. Deixávamos o rateio para os grandes seguros industriais, para coisas muito especiais. Mas a pequena empresa, a média empresa, as pessoas físicas conviviam com cláusulas sem rateio. Quando veio o Código, voltou a ter o rateio como princípio na regra recente. O mercado voltou a operar o rateio e voltou a ter o problema do conflito. Então, o que faz o projeto? Ele vai dizer: “Na hipótese de sinistro parcial, o valor da indenização devida não será objeto de rateio em razão de seguro contratado por valor inferior ao do interesse, salvo disposição em contrário. §1º Quando expressamente pactuado o rateio, a seguradora exemplificará na apólice a fórmula para cálculo da indenização”. Ou seja, tem que ser negociado especificamente e tem que mostrar o que aquilo vai gerar no momento do sinistro, para que a pessoa compreenda bem: “Olha, vai receber 200. Não vai receber 500, nem 300, nem 450, nem 1 milhão”. “§2º A aplicação do rateio em razão de infrasseguro superveniente, ou seja, quando o valor do interesse se tornar maior, ao longo da execução do contrato de seguro, durante a vigência do contrato de seguro, será limitado aos casos em que for expressamente afastado na apólice o regime de ajustamento final de prêmio, e o aumento do valor do interesse lesado decorrer de ato voluntário do segurado.”

Então, duas coisas: se o valor do interesse descola do valor do bem ao longo da vigência do contrato, primeiro, tem que estar previsto na apólice que poderá gerar um efeito. Não poderá ser apólice que tem um regime de ajustamento final de prêmio, porque muitas apólices têm uma cláusula dizendo que no final se apuram os prêmios devidos durante a vigência, se houver alguma distorção. Então, não faz sentido. (...) vai se apurar o prêmio devido. Se houve um descolamento do valor do interesse, então que faça esse cálculo e mantenha o contrato sempre válido. E mais, que esse

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aumento do valor do interesse tenha sido um ato voluntário do segurado, ou seja, o segurado quis fazer benfeitorias ou quis mudar a destinação do uso do bem e, por isso, ele vai ter que sofrer o rateio.

Transparência é um outro ponto do projeto. Um dos pontos mais problemáticos nos negócios, especialmente nos negócios de massa, é a transparência. Eu sempre elogio muito o Rio Grande do Sul, mas agora vou fazer uma crítica. Eu era professor na Faculdade de Direito da Getúlio Vargas e fui chamado para dar um prêmio para uma seguradora, que ganhou um concurso de sinistralidade. Lembra, Paulo? A sinistralidade dessa seguradora era zero. Ela operava aqui no Sul créditos consignados. Só aposentados velhinhos celebravam aquele seguro. Não tinha cobrança continuada de comissão, era uma vez só. Não existiam as palavras prêmio, seguro, capital segurado e apólice. Assim, ninguém sabia o que era aquilo, e a sinistralidade dela foi zero, então ela estava sendo prestigiada pela excelente gestão de sinistralidade. Aí você ia ver a composição daquele seguro, o que tinha de atravessadores era uma coisa incrível. A seguradora, mesmo se fosse pagar indenização, ia ter prejuízo, porque tinha muita comissão perdida no meio do caminho.

Então, o que faz o nosso projeto? Fazemos uma invasão pelo direito privado ao direito... Porque vai dizer o art. 56: “A sociedade seguradora é obrigada a entregar ao contratante, no prazo de 20 dias contados da aceitação, documento probatório do contrato, de que constarão os seguintes elementos: o número de registro no órgão fiscalizador competente do procedimento administrativo, em que se encontra o modelo do contrato e as notas técnicas e atuariais correspondentes”. Não é aprovar, mas tem que ter um depósito disso junto à Administração Pública, então logo a Administração Pública vai ser obrigada a recepcionar. “O nome, a qualificação e o domicílio de todos os intermediários do negócio.” Todo o mundo que participou da intermediação. Depois, eu diria que esta foi a regra mais discutida do projeto até hoje, “o valor, o parcelamento” – e estava – “e a composição do prêmio”. Para haver o acordo e sair o projeto de lei da Câmara, alterou-se para “e a estrutura do prêmio”. Os interlocutores disseram: “Depois nós brigamos para discutir o que é estrutura, e estrutura não é composição, e assim por diante”.

Enfim, há seguros de bancos no Brasil em que – todos sabem – chega a 60, 70, 80%, às vezes, o custo comercial. A seguradora, todo o

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sistema, vive com 20% disso. Depois, quando dá desequilíbrio, vai ter que tirar do bolso dos segurados. Ninguém vai voltar para trás, recuperando comissão. Isso, por exemplo, no projeto peruano, não chegou a tanto. Ele chegou apenas a propor que sejam destacados o prêmio líquido e os tributos, mas comissão não, e estava no projeto original.

Sobre seguro como instrumento de liberdade, eu teria muitas coisas para falar para vocês, mas não vai dar tempo. Seguro não pode ser uma camisa de força nem para as pessoas, nem para as empresas. Todos nós sabemos que inovação, que desenvolvimento tecnológico, que desenvolvimento empresarial dependem de iniciativas, com a criação de novas regras da arte, às vezes contrárias às próprias normas técnicas. Existe um livro muito interessante de uma autora francesa chamada Anne Penneau, que é Règles de l'art et normes techniques. Ela mostra que existe um primado da regra da arte sobre as normas técnicas, porque estas são mais estáticas, elas demoraram para virar normas e quando o desenvolvimento já chegou com coisas novas.

No Brasil, virou o lugar mais comum do mundo se falar em agravamento de risco. Além do não asseguramento de novas tecnologias, que às vezes está explícito nas apólices, também tudo virou agravamento de risco, toda conduta. Ora, assim nós não vamos para frente. Eu não vou me estender mais, porque meu tempo já está esgotado, só vou contar uma rápida história de uma Desembargadora do meu Estado, que, em um colóquio como este... Ela tinha doutorado em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Ela disse o seguinte: “Olha, Dr. Ernesto, eu tenho o meu carro. Eu dirijo o meu carro no Jardins. Eu moro no Jardins, meu clube é no Jardins, as lojas que eu frequento são no Jardins, as minhas amigas todas moram no Jardins. Jardins é um lugar bacana de São Paulo. Se um dia, por qualquer razão, tiver que visitar, excepcionalmente, a minha empregada, que mora na periferia, e eu resolver adotar o comportamento insano de ir com o meu carro, é natural que eu tenha que avisar a seguradora”. Imagina como essa mulher, ao contratar seguro... É que ela nunca ia visitar a empregada, mas, se ela um dia tomasse isso como hábito, ela teria sempre perdido a sua cobertura ou então estaria a se comunicar com a seguradora quase que diariamente: “Olha, hoje, eu estou indo a uma festa lá no Centro de São Paulo. O Centro de São Paulo começou a ser recuperado, então vou a uma festa lá no Centro de São Paulo”.

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O CONTRATO DE SEGURO

Enfim, o projeto vai ter muitas regras para dar liberdade em vários sentidos, seja na regulação do sinistro, trazer transparência, aí dá mais liberdade, seja na apresentação do risco, na formação do contrato, no regime de declarações, que, por exemplo, vai condicionar a aceitação, e o regime de declarações vai estar vinculado aos questionários que lhe forem feitos. Ele tem que informar tudo que for relevante, mas observando os questionários que lhe forem feitos pela seguradora.

É um projeto que nós acreditamos que já passou por muitos filtros. É claro que nós, que estamos na origem, gostávamos dele mais lá para trás – não bem no início, no meio do caminho – do que hoje, mas, comparando com os diplomas em geral, ainda considero um projeto de vanguarda, um projeto moderno, um projeto com soluções justas, um projeto que leva em conta situações absurdas como a que vivemos hoje.

Vocês todos conhecem os dois grandes acidentes de Brumadinho e de Mariana. Vocês sabem quanto já foi pago em indenizações, quanto já saiu do mercado segurador, ainda que para medidas de salvamento, em razão dessas duas catástrofes? Nem um centavo. Zero. Algo de errado existe aí. Quando nós formulamos as nossas apólices (...) dizendo que, se a acusação for de dolo, não terá cobertura... Temos aqui representantes do Ministério Público. Quem vai perder a chance de fazer a acusação de cometimento de ato doloso em primeiro lugar? Se não for doloso, foi culposo. É uma técnica. Então, praticamente, as pessoas não terão cobertura nunca, jamais. As preocupações que estão por detrás do projeto são essas, e nos seguros de massa, nem se diga. Não se discute mais se o prêmio foi pago ou não foi pago, tem que haver notificação para constituir em mora o segurado. O segurado que está hoje na rua sofrendo um acidente tem o mesmo direito que aquele que foi até o STJ para receber esse direito, em termos definitivo, dizendo que, como não foi notificado da mora no pagamento do prêmio, não houve a suspensão da cobertura. Essas conquistas que o Judiciário conseguiu desenvolver no Brasil em torno do contrato de seguro foram transformadas ali em regras, sempre com um pequeno plus, algo a mais, para que a lei também não chegasse como uma camisa muito justa e não permitisse o desenvolvimento das operações.

Muito obrigado. Peço perdão por me exceder.

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04/06/2019

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DR. BRUNO MIRAGEM – Muito obrigado. Bom dia a todos. É uma satisfação estarmos neste evento. Cumpre, neste início, agradecer a parceria, a possibilidade, a abertura do nosso Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por intermédio do seu Centro de Estudos – Des. Umberto, Des. Ney Wiedemann –, pela oportunidade de fazermos este evento nesta parceria tão frutífera com a nossa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o nosso Núcleo de Estudos em Direito e Sistema Financeiro, Direito Bancário de Seguros e do Mercado de Capitais. Há algum tempo já estamos fazendo um esforço para trazer a atenção da universidade, da academia e da nossa Faculdade de Direito aos temas pertinentes ao nosso Núcleo de Estudos, dentre os quais o contrato de seguro, dada a importância do contrato de seguro, da atividade securitária, assim como das outras atividades em que se insere o sistema financeiro e que contrastam com a pouca atenção desses temas na academia brasileira.

Pouco se estuda sobre o Direito dos Seguros, pouco se estuda sobre o Direito Bancário, pouco se estuda sobre o Direito do Mercado de Capitais nas Faculdades de Direito, em que pese a importância óbvia e cada vez maior dessas atividades, seja no sistema econômico, seja na vida cotidiana das pessoas. Em relação ao contrato de seguro, mais ainda. Eu sempre recordo disso quando temos uma disciplina na Faculdade de Direito que não é para os alunos do Direito, é para os alunos das Ciências Atuariais e da Contabilidade, chamada Legislação de Seguros, que eu ministro há alguns anos com a parceria da Dr.ª Luiza Petersen e também nossa doutoranda, que estará conosco amanhã. Fora essa disciplina, os estudantes de Direito – eu sempre digo – estudam o contrato de seguro possivelmente, com muito lucro, em uma aula, na disciplina de Contratos em Espécie. Com muito lucro, em uma aula, porque por vezes o tipo contrato de seguro já é dado em conjunto com outro tipo contratual para a sequência da disciplina. Daí a importância de estimularmos encontros como este. Essa reflexão tem sido a nossa preocupação ao longo dos anos. Na oportunidade deste evento, especialmente, há a possibilidade de discutirmos sobre o futuro do contrato de seguro. O futuro do contrato de seguro – nós temos firmado esta convicção já há algum tempo – está indiscutivelmente atrelado ao projeto de lei que nós trouxemos à discussão nesta manhã.

Nesse projeto, vale ressaltar a importância, a liderança do Dr. Ernesto Tzirulnik, a quem eu tive o prazer de conhecer há alguns anos e que

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me ligou, sobretudo, além de amizades comuns, o entusiasmo com esse texto. Na verdade, ele é um texto de evolução do Direito, que nos faz refletir – nesta brevíssima introdução, eu gostaria de fazer este registro – sobre o próprio papel da legislação nos tempos de hoje.

Hoje temos, talvez até por legislações equivocadas que tivemos e que temos, um certo temor da legislação. O que de mais atual, contemporâneo, que se vê em discursos aqui e acolá é justamente a ideia de fugir da legislação, fugir da lei, fugir muitas vezes do Poder Judiciário. Por quê? Porque demora, porque é formal. As críticas se somam. Que, portanto, nós temos que ter mais flexibilidade, nós temos que ter mais velocidade, nós temos que ter mais agilidade, como se fossem valores necessariamente contraditórios, e não são. No nosso sistema de Direito, o Dr. Ernesto pontuou isso no princípio, civil law, no Direito Continental, a lei é a garantia da segurança jurídica. Não há garantia de segurança jurídica fora da lei. Essa ideia em relação ao contrato de seguro não é uma novidade brasileira. Ao contrário. Se nós formos fazer o exame em todos os sistemas jurídicos que nós utilizamos para comparar, no mundo, sejam de países mais desenvolvidos, sejam de países em estágio de desenvolvimento semelhante ao do Brasil e até menos desenvolvidos que o Brasil, praticamente todos eles têm uma legislação de contrato de seguros, mesmo países cuja tradição, muitas vezes, não é a tradição de direito de legislar. Vale dizer, talvez aqui um exemplo mais óbvio, o do Reino Unido, que não é um país de tradição de direito legislado, mas que, em matéria de seguros, inclusive um dos berços do contrato de seguro e da atividade securitária, há uma lei de contrato de seguro. Isso tem uma razão de ser, isso tem um porquê. É porque justamente, em primeiro lugar, um contrato de seguro tem algumas características, obviamente, do seu tipo, outros tipos contratuais também o terão, mas que o que faz diferente de outros tipos contratuais tradicionais.

Em primeiro lugar, vou dizer o óbvio, especialmente pregando aqui a convertidos, muitos: a própria multiplicidade das posições contratuais. A ideia de que há sempre dois polos contratantes e dois interesses, que, em um primeiro momento, nós estudávamos mais as experiências contrapostas, que hoje se vê, não são mais contrapostas... Não. Em um contrato de seguro temos, várias posições. Nós temos o tomador de seguro, nós temos o segurador, nós temos o beneficiário, nós temos eventualmente o estipulante,

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temos terceiros, que poderão ter interesse. Isso leva a que a reflexão mais profunda sobre contrato de seguro em qualquer lugar do mundo – me refiro aqui especialmente ao Direito alemão, pelo qual tenho especial carinho – sempre perceba – e é um pouco o que o Dr. Ernesto comentou quando falou em interesse público, em ordem pública – a ideia de que o contrato de seguro tem duas grandes dimensões ou, como dizem os alemães, duas grandes funções: uma função individual, que é óbvia, de garantir o interesse do titular do interesse, e uma função geral, comunitária, ou seja, como um instrumento de prevenção de riscos de um benefício econômico dessa prevenção de risco a toda a sociedade, ao sistema econômico como tal.

Há um autor alemão que eu gosto muito, que é o (...). Ele usa justamente essa ideia da oposição e complementação entre a função individual do seguro e a função geral do seguro. Se quiséssemos aqui falar... O Dr. Ernesto também trouxe a notícia da medida provisória. Esta expressão hoje não está muito em voga nos legisladores atuais, mas, se quiséssemos falar de uma função social do contrato de seguro, que é da nossa tradição jurídica a noção de função social, (...) uma função social do contrato de seguro, que é justamente esse benefício à comunidade e esse benefício a terceiros. Essa visão é que vamos construindo no sistema brasileiro de uma forma muito particular. Vale dizer que nós temos, por razões óbvias... Nossa tradição jurídica nos faz bastante devedores do Direito português, que teve uma tradição desde o século XVI, XVII, especialmente, de uma participação direta do Estado nas contratações de seguro em geral – A Casa dos Seguros Portuguesa, a primeira Casa dos Seguros, a segunda Casa dos Seguros –, na intermediação estatal.

Na legislação brasileira, já no Brasil independente, o nosso tipo contratual de seguros nasce – sabemos todos – com o seguro marítimo no Código Comercial de 50 e depois no Código Beviláqua. Porém, o Código Beviláqua, na verdade, se inspira fortemente também em um projeto um pouquinho anterior, de 1893, do Coelho Rodrigues, que, por sua vez, veio a trazer a inspiração dele no Código Civil do cantão de Zurique, também do séc. XIX. Entre o projeto original de Beviláqua, 99, passando pelas críticas ao projeto, projeto revisto e o texto do Código Civil de 1916, objeto de diversas críticas... Críticas às vezes mais preciosistas, outras críticas mais, digamos assim, razoáveis, mas razoáveis aos olhos de hoje, não aos olhos da época,

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referência que o Dr. Ernesto também colocou: ninguém faz seguro pensando necessariamente em não falhar. Justamente as pessoas fazem seguro porque as pessoas falham. À época, no Código de 1916, havia lá – todos os que trabalhavam à época lembram – a ideia de que não se fazia seguro para cobertura de atos ilícitos. Aí nós tínhamos aquele desafio interpretativo: ato ilícito é o ato ilícito doloso e o culposo. Então aqui, na verdade, quando se diz que não se faz seguro sobre atos ilícitos, eram os atos ilícitos dolosos, naturalmente. A própria ideia do dolo, da intencionalidade... É um tema que até hoje desafia os intérpretes e os tribunais: o que é a intenção de agravar o risco, o que é a intenção de promover o sinistro. Essa discussão naturalmente não se esgota na lei, mas a lei pode ajudar e muito.

Há uma percepção de que legislar de menos muitas vezes também gera insegurança, porque legislar de menos, especialmente em um contrato como o contrato de seguro, tratando ele, como é o caso, como um tipo contratual dentre outros tantos, faz com que as vicissitudes, os detalhes, os aspectos característicos desse tipo contratual não sejam, muitas vezes, enfrentados pela legislação, sob a suposta expectativa de que a regulação administrativa possa fazê-lo, ou ainda de que as partes possam fazê-lo. Eles não vão fazer, pelo menos não vão fazer em uma linguagem comum – de novo, como disse o Dr. Ernesto –, em uma linguagem técnica, em uma terminologia que seja própria do Direito brasileiro, da nossa tradição.

Aqui há outro elemento importante: o entusiasmo com a hiperinformação – esse acesso à informação do mundo todo, esse acesso a obras jurídicas, a pensamentos jurídicos do mundo todo – nos faz, muitas vezes, importar soluções, importar conceitos, importar até instrumentos contratuais com as suas expressões, mas que sejam expressões pelo menos divorciadas da nossa tradição jurídica. Faz com que nós tenhamos mais problemas do que soluções. Em um primeiro momento, até pode ter um certo charme você invocar o Direito estrangeiro, você invocar expressões, você ter um esforço até dogmático de explicar como esses conceitos, esses institutos vêm para o Direito brasileiro. Mas, do ponto de vista prático, da sua utilidade pelo intérprete e pelos tribunais, é mais esforço e com um risco de insegurança maior, porque naturalmente nós todos somos falhos, somos humanos, e cada um vai ter a sua interpretação de acordo com a sua escola de pensamento, com as obras que leu, com o pensamento que lhe sustenta. Então, a lei ainda é

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o grande ponto de encontro do nosso sistema jurídico brasileiro. No caso do contrato de seguro, uma lei especial, como o mundo todo tem.

O projeto de lei que discutimos aqui, cujos aspectos fundamentais o Dr. Ernesto introduziu, tem algumas características que só por elas já mereceria a nossa aprovação, sem prejuízo de se pontuar alguns aperfeiçoamentos aqui ou acolá, alguma interpretação.

Para todos nós, aqueles que trabalham mais com contrato de seguro, aqueles que estudam contrato de seguro, aqueles que já ouviram sobre o contrato de seguro, ainda que não em uma atuação permanente, uma das primeiras ideias sobre contrato de seguro que vem é justamente que no contrato de seguro vige a boa-fé, aquela ideia de boa-fé. Se quisermos aprofundar, são contratos de máxima boa-fé, naquela classificação mais tradicional. O que significa isso, do ponto de vista prático? A boa-fé dos contratos de máxima boa-fé do contrato de seguro, nós sempre dizemos, já se dizia isso muito antes de nós cogitarmos, seja no Direito brasileiro, seja no Direito estrangeiro, da boa-fé objetiva. Contrato de seguro como contrato de máxima boa-fé ainda é, na sua origem, a velha boa-fé romana: não faltar à verdade; não ocultar intenções; não agir intencionalmente no sentido de frustrar o contrato, de obter uma vantagem indevida.

Com a transição... E não é uma transição de significado, é uma transição de sentido, uma transição de compreensão, mesmo, da relação contratual como um todo e que vai afetar o contrato de seguro, que é feita pela boa-fé objetiva, no nosso caso brasileiro, fenômeno absolutamente datado. Estamos falando aqui dos anos 60 para cá e na jurisprudência do final dos anos 80 para cá, muito, inclusive – sempre é preciso referir e homenagear – fruto de julgados deste Tribunal. O início desta conversa na jurisprudência brasileira é fruto da reflexão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mas essa transição de significado muitas vezes não é bem compreendida, seja pelo intérprete, seja por quem vai examinar textos legais e vai examinar muitas vezes a expressão boa-fé como se sempre tivesse sido aquela boa-fé objetiva, ao contrário, (...) ela continua sendo a boa-fé subjetiva. Não. Historicamente, os contratos de máxima boa-fé eram, lá no princípio, boa-fé declaração, boa-fé falta de má intenção, boa-fé de veracidade. Vem em uma transição que é própria do Direito das Obrigações, contratos em geral, vem para o contrato de seguro e nos exige: “Não, agora boa-fé é boa-fé objetiva”.

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O que significa boa-fé objetiva? “Ah, são deveres.” Aquela fórmula que todo o mundo conhece e repete, que tem quase de ouvido: “São deveres que se constroem a partir dos princípios, que não precisam estar expressos no contrato, não precisam estar expressos na lei. São deveres de lealdade, cooperação, respeito às expectativas legítimas da outra parte”. Porém, essa noção de boa-fé não existe concretamente, efetivamente, se eu não tenho nas relações contratuais uma outra visão, que é a visão justamente dessa estrutura da relação contratual como – quero usar uma expressão nossa que é também uma expressão alemã, trazida muito por influência do Rio Grande do Sul – a obrigação como processo.

O que é a obrigação como processo? É uma obrigação que justamente toma a ideia, no caso do contrato, mesmo antes de ele ter sido celebrado, nas tratativas, na ideia da troca de informações, na construção das expectativas, no comportamento concludente antes da celebração do contrato, nas informações que são dadas antes da celebração do contrato. Passa por uma fase de execução que, no contrato de seguro, é decisiva. Boa parte dos exemplos que deu o Dr. Ernesto e tantos outros que nós conhecemos muitas vezes é um problema de contratação, mas é sobretudo também um problema de execução do contrato.

O contrato de seguro é celebrado, sabemos todos, com o desejo genuíno de todos os contratantes de que não seja necessário executar a garantia, que não ocorra o sinistro. Porém, uma vez ocorrendo o sinistro, exemplos – como ele deu – de sinistralidade zero demonstram justamente a frustração da própria razão de ser do contrato, tecnicamente – poderíamos dizer – da própria causa do contrato. Garantia não há, porque, se não há sinistralidade, das duas uma: ou o risco não existe, que não é o caso especificamente deste exemplo, ou há dificuldades inerentes na execução do contrato para o cumprimento da garantia, para a execução da garantia, para a satisfação do interesse legítimo do segurado nessas situações.

Dito isso, o que faz o projeto? Como eu disse no início, este talvez é o seu mérito fundamental: ele procedimentaliza. Até agora, se nós formos pensar, o que nós temos de procedimento? Alguma regra muito específica do Código Civil de 2002, que mesmo assim não fala em prazo, diz: “tão logo saiba” – aquelas expressões mais abertas –, “assim que”. No projeto, há a construção de procedimentos. Esse é um aspecto fundamental, porque dá

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segurança. Quem informa o que, quando informa, como informa: isso é decisivo. É decisivo para todas as partes: para o segurado, para o segurador. Dá segurança a todos.

Sobre a ideia de que a fase pré-contratual é fundamental no contrato de seguro, como todos nós repetimos – é quase um mantra para quem trata do contrato de seguro –, ele é um contrato mais complexo do que os outros, mais difícil, tem elementos novos. Então, nesse tipo de contrato, sempre vai existir de um lado um expert, que é o segurador, que exerce essa atividade profissionalmente, com a sua expertise, com a sua inteligência, com o seu preparo técnico; de outro lado, não necessariamente um expert. Quem deve prestar as informações? Quem deve perguntar, como disse, o regime de declaração de risco, que é um dos méritos do contrato de seguro? Quem deve perguntar é quem sabe as perguntas certas a serem feitas: o segurador. E quem deve responder – e aí, se não responder, ou se falsear a resposta, ou se omitir informações... – é o tomador do seguro.

Esse procedimento tem em vista justamente a ideia de preservação do interesse legítimo dos contratantes. Isso é boa-fé também. É um procedimento que – outro mérito do projeto – consagra entendimentos que a jurisprudência brasileira já consagrou há muito tempo. Um exemplo que foi dado aqui: a questão da mora do prêmio. A jurisprudência brasileira já consagrou o seu entendimento há, seguramente, mais de uma década. Não vou arriscar no detalhe do precedente do STJ, mas seguramente há mais de uma década. Pois volta e meia não estão nos Tribunais ainda as mesmas discussões sobre esse tema? Será que isso é um problema necessariamente do contrato em si? Ou muitas vezes é: “Olha, como não há lei e como a jurisprudência não está vinculando, eu vou lá e vou” – perdão pela expressão mais popular – “empurrar com a barriga. Não vou pagar a indenização e vou deixar a ver quantos vão ingressar em juízo, quantos não vão. Aqueles que ingressarem em juízo vão levar tanto tempo para receber a decisão definitiva”?

Com isso, eu, de alguma maneira, não estou aqui homenageando a segurança jurídica. Ao contrário, estou me servindo da insegurança, questões que estão consagradas. Qual a melhor estratégia se não trazer essas questões já consagradas – e essa da mora do prêmio é uma delas – para a lei? Definindo um procedimento. E definindo um procedimento também, na hipótese de mora, para a resolução do contrato – ou rescisão, na

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expressão do projeto –, para a resolução por inadimplemento, porque também, é óbvio, não há que considerar que o segurado que não pague o prêmio permaneça com o seguro. Óbvio que não, mas tem haver um procedimento com segurança para que o sujeito, em primeiro lugar, tenha a possibilidade de purgar a mora, se for o caso, e, se não purgar a mora, a resolução do contrato, como qualquer outro contrato, mas um procedimento que dê – de novo – segurança, que dê previsibilidade.

Outro aspecto fundamental do projeto, que também tem a ver com procedimento, com nós procedimentalizarmos a boa-fé, é a questão pertinente à regulação do sinistro. Talvez seja um dos grandes pontos desse projeto, porque a rigor, se eu falar, por exemplo, com uma pessoa que não seja iniciada na área de seguros – que nunca tenha visto seguros, que vá se apropriar da matéria de seguros a partir da legislação do Código Civil – e referir a ela sobre a regulação do sinistro, a resposta que virá pode ser a mais diversa possível. Regulação do sinistro, que regulação é essa? Qual é a norma da SUSEP que trata do tema? Não. Regulação de sinistro como um momento típico da execução do contrato de seguro, que tem a ver justamente com a identificação do evento, a subjunção desse evento ao sinistro contratado, e a própria ideia de liquidação desse sinistro, quanto custa, qual foi o dano, qual será a indenização. É o momento típico do contrato de seguro, mas que não está na legislação. E porque não está na legislação, não raras vezes é onde nós temos, do ponto de vista dos litígios estabelecidos em matéria securitária, os maiores litígios. Uma vez que não está na legislação, há alguma coisa em matéria regulatória, obviamente as condutas das partes, que devem ser de acordo com a boa-fé e em que deve haver cooperação e lealdade entre as partes... Mas, concretamente, qual é essa cooperação? Qual é esse comportamento? O que eu preciso fazer para agir com cooperação, com lealdade? Esses elementos não estão postos. Porque não estão postos, vão ser discutidos onde? No Judiciário, na Arbitragem, onde vai se discutir se agiu ou não corretamente, de boa-fé – “ah, mas eu informei”; “não informei”; “informei a tempo”; “não foi a tempo”; “informei com todos os elementos que eu tinha conhecimento”.

Há regras no projeto que, em alguma medida, alguns poderão considerar até um pouco óbvias, mas, por serem óbvias, têm que estar na lei. Os documentos – aquela regra de que eu gosto muito, já conversei com o Dr.

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Ernesto sobre ela – relativos à regulação do sinistro são documentos comuns às partes. Essa é uma regra... Seria óbvio se eu dissesse que a execução do contrato é cooperação. “Olha, o documento a que você tem acesso para verificar se vai ou não cumprir, pagar a indenização, é o mesmo documento a que eu tenho que ter acesso para verificar se as suas razões estão corretas ou não.” Isso está na lei. Mais uma vez, eu digo: procedimento, transparência – como disse o Dr. Ernesto –, documentos comuns, a própria ideia – voltando um pouquinho na formação do contrato, que é um tema difícil... Difícil do ponto de vista prático, não do ponto de vista jurídico, com o perdão daqueles que entendem o contrário, mas o próprio papel do corretor de seguros. Perdoe-me também quem já me ouviu falar sobre isso dezenas de vezes, mas às vezes temos que falar dezenas de vezes. “O corretor de seguros, na legislação do corretor de seguros, é um representante do segurado em relação ao segurador.” Nos contratos de massa, nós sabemos que não é assim. Nos contratos de massa, um corretor de seguros é um membro da cadeia de fornecimento. Ele está ganhando com aquilo. Então nós continuarmos: “Ah, mas a legislação diz isso...” Não, mas não pode. A legislação de 64 pode dizer isso, mas o mundo mudou, a estrutura desses negócios mudou, e esse corretor tem, sim, uma responsabilidade perante o seu segurado, seja em relação... não está no nosso projeto, e o Dr. Ernesto antecipou, até de negociação política.

As legislações avançadas do mundo todo, naquele Código Francês enorme sobre seguros, na lei alemã, na lei italiana, o corretor não faz só a intermediação. Ele faz aconselhamento também. Aí eu posso dizer que, se ele faz aconselhamento, ele está mais ao lado. “Olha, não faça esse seguro, faça aquele.” “Olha, o seu interesse está mais bem contemplado dessa forma, não daquela.” “Tem as características tais ou quais’”. Ele não faz só aquela intermediação tradicional de dizer quais são as coberturas, o valor do prêmio proporcional, o que entra, o que não entra, mas não é aconselhamento propriamente dito. É modernizarmos a própria relação securitária com esse intermediário, o corretor de seguros, e não simplesmente continuar dizendo que ele é o representante do segurado.

A mesma coisa, uma regra interessantíssima do projeto relativamente ao estipulante... Aqui é o estipulante no seguro de grupo propriamente dito, não um estipulante em gênero, como disse o Dr. Ernesto. É justamente dizer assim: “Ah, o estipulante” – todos nós sabemos, isto é dito,

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está lá no decreto que regula o Sistema Nacional de Seguros Privados, isto é uma obviedade – “é representante dos segurados perante o segurador”. Não há dúvida sobre isso. Agora, também é preciso dizer que essa representação é uma representação – e aí é mérito do projeto – que também se dá no plano processual. Não adianta eu ser representante para comunicar, para receber comunicado, para intermediar comunicações, e, do ponto de vista processual, não poder representar. O projeto deixa isso absolutamente claro, absolutamente expresso.

Da mesma forma, sobre o sinistro, do ponto de vista conceitual, há também aqui uma ideia de conceituar, definir o sinistro, o que é o evento sinistro. Isso é relevante também em matéria – vai ser discutido aqui – do agravamento intencional do risco. Há o agravamento intencional do risco e há a realização dolosa do sinistro. Não são necessariamente a mesma coisa. São tratados rigorosamente pela jurisprudência, muitas vezes, e pela doutrina, muitas vezes – a doutrina menos até –, como a mesma coisa, e não são. E nos vieram aquelas discussões intermináveis sobre os comportamentos, que são justamente essa ideia do princípio da liberdade de que falava o Dr. Ernesto. Olha, a ideia é você fazer um seguro especialmente atentando à garantia de riscos predeterminados, de riscos ordinários, (...) de relações, mas não em uma ideia de autocontenção absoluta da vida, porque tudo pode ser caracterizado como agravamento intencional. Essas definições técnicas do projeto auxiliam também no sentido de nós aperfeiçoarmos, e aperfeiçoarmos não do ponto de vista apenas de segurança jurídica, mas sobretudo do próprio mercado.

Eu não poderia me furtar de fazer, ao final, uma analogia – talvez seja a melhor expressão – entre o que esse projeto traz em matéria de contrato de seguros e o que nós tivemos, por exemplo, com o Código de Defesa do Consumidor, quando editado no Brasil. Àquele tempo se dizia: “Nenhuma empresa do Brasil vai sobreviver ao Código de Defesa do Consumidor”. Era o discurso corrente. O que se viu na realidade da vida? Que a lei também é um fator de promoção de uma maior eficiência do mercado, porque deveres que são deveres óbvios, muitas vezes, como eu disse, mas que são deveres que, por não estarem na legislação e, portanto, não contarem com sansões jurídicas próprias, não são necessariamente introduzidos no procedimento das empresas. E porque não são introduzidos nos procedimentos das empresas, obviamente aquelas empresas não vão adotá-las

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espontaneamente, sob um problema até de concorrência. Se eu tenho custos na introdução de certos procedimentos, e os meus concorrentes não têm esses mesmos custos, porque não lhes são exigidos, se eu os adotar, eu vou ter um custo a mais e vou ter um problema concorrencial. Se vem a lei e define um padrão, define uma régua elevada – para usar a expressão que hoje está muito animada também – de deveres, de procedimentos, e isso vale para todos, isso indiscutivelmente caracteriza... E o Código do Consumidor demonstrou isto, dentre outras legislações. Estou tratando do Consumidor porque estou puxando a brasa para a minha sardinha. Então, entre outras legislações, nós estamos elevando a própria eficiência, a qualidade do mercado. Em termos de concorrência, também, permitindo que os bons, aqueles que se adaptam, aqueles que querem muitas vezes trazer a sua expertise no sentido de oferecer melhores serviços e melhores produtos possam também se servir da legislação para não serem punidos, muitas vezes, por uma concorrência desleal daqueles que não cumprem padrões de qualidade na sua prestação.

Dito isso, eu gostaria mais uma vez de agradecer ao Tribunal; de cumprimentar os amigos estrangeiros que estão aqui conosco, que se dispuseram a palestrar nestes dois dias; de cumprimentar muito especialmente o nosso Dr. Marco Aurélio, que se irmanou na organização deste evento, e a nossa Dr.ª Luiza, que não está agora, por razões bastante importantes, mas que também foi a grande artífice deste nosso encontro. O Rafael, que é o esposo da Luiza, pode levar a ela os nossos cumprimentos por esta oportunidade. Agradeço mais uma vez, Desembargador, e cumprimento a todos pelo evento.

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Antes de passar a palavra ao Des. Ney, queria me penitenciar por não ter referido na abertura a participação da UFRGS. Desde que assumi o Centro de Estudos, substituindo o Des. Ney, sempre me preocupei em fazer atividades, particularmente com a UFRGS, que é a nossa melhor Faculdade de Direito aqui no Rio Grande do Sul.

DES. NEY WIEDEMANN NETO – Bom dia a todos. Vou procurar ser breve em razão do calendário do evento. Em seguida temos o intervalo do coffee break e o segundo painel da manhã.

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Eu quero saudar o Des. Umberto e o Dr. Bruno Miragem, que coordenam este evento, nesta parceria entre o Centro de Estudos e a UFRGS. Agradeço especialmente ao Des. Umberto por todo o apoio que tem dado para que os eventos aqui se realizem, na parte operacional também, como o Prof. Bruno destacou. Ademais, elogio o Dr. Marco Aurélio Mello Moreira, que foi um artífice para que o evento acontecesse, contando com palestrantes da Argentina, do Uruguai, do México, do centro do País.

Como debatedor, eu tinha pensado em fazer uma intervenção sobre um aspecto, mas o Prof. Bruno esgotou. Eu ia fazer uma provocação, um questionamento sobre: será que realmente nós precisamos de uma lei de seguros? Não que eu não acredite que nós precisemos, mas seria uma provocação, porque o Poder Judiciário até hoje se saiu muito bem – acredito eu – sem a lei. Nós usamos o Código Civil; o Código de Defesa do Consumidor; aquele decreto de 76; os atos regulatórios da SUSEP; resoluções; circulares da SUSEP, que às vezes não são muito consultadas, mas existem, estão ali à disposição, e o contrato, principalmente, que é lei entre as partes. Então, eu ia fazer esta provocação inicial: fomos tão bem até agora, será que realmente precisamos da lei? Mas acho que o Prof. Bruno convenceu a todos, foi muito claro do ponto de vista de que a lei é bem-vinda.

Eu me preocupo um pouco porque, no Brasil, às vezes a lei se descola do texto positivado e adquire uma vida própria, até pela interpretação que lhe emprestam os tribunais – até mesmo o STJ. Eu sou um magistrado que julga processos envolvendo contrato de seguros. Até creio que nós não nos descolamos muito da interpretação literal da lei no caso do contrato de seguros, mas tenho uma experiência na Lei n. 11.101, que é a Lei de Falência e Recuperação Judicial, especialmente na parte da recuperação judicial. Hoje, na construção da jurisprudência interpretando a Lei n. 11.101, nós temos muitas decisões que são o oposto. Nós temos decisões contra legem até do STJ sobre essa questão. Então, na questão da segurança jurídica, da proteção do consumidor, do insuficiente, eu me preocupo um pouco, porque, mesmo com lei, as coisas continuam inseguras no Brasil.

Isso tem sido destacado como um fator preocupante com relação aos nossos parceiros estrangeiros, os investidores internacionais, até nessa questão que eu falei da Lei de Recuperação Judicial. Nós precisamos às vezes do capital estrangeiro para alavancar o empreendedorismo, a atividade

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empresária no Brasil. Isso é um fator de inibição, de preocupação. Mesmo tendo uma boa lei, às vezes não se pode acreditar que o que está escrito nela é o que se pratica.

Espero que todos os artigos que se apresentaram neste projeto, que parece tão bom e que agora encontrou um ponto de equilíbrio... Até me parece, Prof. Ernesto, que um dos motivos pelos quais não se tornou lei até hoje é que estava desequilibrada a balança dos interesses do fornecedor e do consumidor, do segurado e do mercado segurador. Os conflitos e a força política às vezes inibem que essas questões se realizem. Como o senhor até mencionou em um outro evento em que nós estávamos juntos na OAB, parece que agora nós estamos chegando ao ponto de equilíbrio.

Como a minha provocação sobre a questão – se precisamos de uma lei – o Prof. Bruno esgotou, eu faria apenas ao Prof. Ernesto, até como uma contribuição ao debate, dois pequenos questionamentos da pesquisa que fiz sobre aqueles que escreveram analisando a lei e seus pontos fracos, questões mais frágeis que poderiam ser mais bem apresentadas. Eu pincei, Prof. Ernesto, só duas.

A primeira é sobre a prescrição. Há várias hipóteses no art. 124, mas vou pontuar só para o segurado: “Prescreve em um ano, contado o prazo da ciência do fato gerador, a pretensão do segurado para exigir a indenização” – aí o final diz – “após a recepção da recusa expressa e motivada da seguradora”. Então, algumas pessoas que fizeram críticas e que publicaram artigos analisando a lei ficaram confusas. Afinal, prescreve em um ano a contar da data do sinistro, ou somente o termo inicial começa a contar da recusa expressa e motivada da seguradora, determinando, então, claro, a obrigatoriedade da fase administrativa, que se procure primeiro a seguradora... Mas e se a pessoa procurar a seguradora vários anos depois do sinistro? Alguns pontos ficaram um pouco confusos.

O outro questionamento que faço é sobre a arbitragem. O Brasil é signatário da Convenção de Nova Iorque, uma interpretação bastante ampla e participativa da arbitragem. Mas aqui, no final da lei, coloca-se que a competência da Justiça brasileira é absoluta e que a seguradora, a resseguradora, para a arbitragem... Tem que haver tudo no Brasil. O foro é no domicílio do Brasil. Portanto, a arbitragem só pode ser feita do Brasil e com a

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lei brasileira. Alguns críticos disseram que isso é muito restritivo e que colide com a Convenção de Nova Iorque, de que o Brasil é signatário.

Essa é a minha contribuição de debatedor. Eu devolvo a palavra e agradeço.

DR. ERNESTO TZIRULNIK – Muito obrigado, Des. Ney. São dois pontos bastante nevrálgicos. Poderia ter caprichado menos.

Com relação à prescrição, hoje nós dizemos que o que prescreve é a pretensão. Quando surge a pretensão? Quando o direito é violado. É o sistema do nosso Código Civil. Nasce a pretensão quando há a violação do direito. Será que, na técnica jurídica, seria possível falar em sinistro como violação de direito? Choveu, alagou. Isso é uma violação de direito? Se for, contra quem nós exerceríamos a pretensão? Contra São Pedro? Se a pretensão nasce com a violação de direito, a pretensão indenizatória fundada no contrato de seguro nasce com a violação do direito. Qual é a violação do direito? É a apresentação de uma negativa por parte da seguradora. Aí fica muito claro.

Hoje nós temos dois regimes convivendo, que não combinam: o regime do Código anterior, que gerou aquela súmula da suspensão da cobertura, e o regime do novo Código, que exige a violação do direito para que surja a pretensão. Esse é um primeiro ponto. O que diz a norma? Que tem que haver a violação do direito, ou seja, a seguradora tem que negar. Ela tem que fazer essa violação do direito para nascer a pretensão de forma clara e inequívoca. Até porque o projeto também vai dizer que ela não pode inovar posteriormente o argumento para recusar a indenização. Se a seguradora encontrou um determinado argumento para recusar o direito pretendido pelo segurado, ela deve se armar com aquele argumento. Ela não pode depois, quando o segurado vai a juízo, falar: “O real motivo da minha negativa é outro”. Não pode, a menos que surjam fatos novos. Surgiu fato novo, tomou conhecimento de um novo fato – não é o fato ser novo, mas o conhecimento pela seguradora ser posterior –, então ela pode trazer esse novo argumento.

Agora, como isso casa com um sistema segurador que também não pode ficar eternamente à mercê? Acho que o sistema se protege. Vou dizer como. Em primeiro lugar, existem provisões que os seguradores fazem, as chamadas IBNRs. Elas vêm do inglês Incurred But Not Reported. São aqueles

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fatos em que a seguradora não tem conhecimento se aconteceram ou não. Um bom regime de fiscalização da solvência do sistema segurador tem que levar isso em conta, tem que fazer com que as seguradoras tenham algumas provisões para o desconhecido. Se isso for bem feito, ajuda. E tem que ser bem feito. Afinal, seguro não é só colocar no banco um gerente e dizer que ele é um preposto, ficar com 60% ou 70% da comissão no sistema e liberar 20% ou 30% para estar sujeito aos ônus da atividade seguradora. Seguro é muito mais do que isso. Então, se a técnica seguradora for respeitada no exercício da empresa seguradora, se as autoridades cuidarem disso, já existe aí um primeiro ponto.

A outra coisa é: (1) O segurado, ao tomar conhecimento do sinistro, tem que comunicar. Aí nós fizemos um regime. O projeto está todo com dois regimes. Houve culpa ou houve dolo? Se ele não comunicou por dolo, ele não tem direito à indenização. O fundamento é outro, não é a prescrição. (2) Se ele agiu com culpa, e a demora trouxe prejuízo de verdade para o segurador, então esse prejuízo para o segurador manda o projeto descontar. Aquilo que você causou de prejuízo para o segurador você vai receber a menos quando o segurador for cumprir a obrigação dele. Com esses contrapesos se resolve, na origem, o projeto, que estaria desbalanceado. Eu até acho que não. Eu acho que ele estava muito mais pró-segurador lá para trás do que ficou no final. Por acaso, mas acho.

Existia uma regra de decadência. Nós debatemos com a CNseg e com a Fenacor artigo por artigo. Eu me lembro que eles tinham acho que 88, 89 artigos que eles glosavam 100%. Depois, nós terminamos com 8 artigos modificados apenas. Não é que bem negociado, é que realmente existia um preconceito. As pessoas olhavam com uma outra visão: “Eu quero que diga que em espécie é em gênero”. Nós falamos: “Olha, em espécie, no Direito, é uma coisa; em gênero é outra”. “Ah, mas no mercado não se usa.” “O mercado vai ter que aprender a falar o Direito, não o Direito aprender a falar o mercado.” Foi tirado. Quem propôs tirar a regra da decadência foi a CNseg, que achou que realmente a mão era muito pesada. Nós concordamos, porque achávamos, e levamos essa preocupação. Falamos: “Acho que aqui nós fizemos uma coisa que virou um monstro”. Tiramos. Então, acho que o sistema controla isso. Você pode negar pelo dolo, você pode reduzir a prestação pela culpa, no caso de não informação.

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A outra questão é a da arbitragem. Uma das características do projeto é ter raiz. Ele foi escrito por pessoas que viviam o mercado segurador. O Paulo vive há 25 anos; eu, há uns 37, 36 – enfim, é muito tempo –; o Flávio Queiroz, também. Assim, cada um dos que cooperou tinha uma experiência que brotava do chão e que tinha suas perplexidades. Por exemplo, o nosso projeto diz que, se o interesse segurável for possível no momento da celebração do contrato, o contrato é válido. A lei peruana de 2012 veio nesse mesmo sentido. Fala se for actual o contingente. A do Uruguai, não. Na do Uruguai, tem que existir o interesse no momento da contratação. Acho que a solução mais acertada é a solução peruana, a solução do projeto brasileiro. Por quê? Eu posso contratar o seguro de dano direto – de incêndio, por exemplo – a mercadorias que estarão dentro do depósito que eu empreendo, em prédio meu. Eu faço seguro do incêndio garantindo o prédio e garantindo o conteúdo, que será conteúdo de terceiros. Esses terceiros podem sequer existir ainda. Podem ser sociedades que serão constituídas na semana que vem, que irão começar a produzir daqui a 90 dias e que, então, terão as suas mercadorias para lá depositar. Esse interesse era possível. Então, o projeto volta sempre para o Código Civil. O Código Civil diz que é válido o negócio jurídico cujo objeto for possível, e é nulo o que for impossível. Faz esse diálogo.

Na arbitragem não será diferente, de forma alguma. Entendo que o projeto prestigia a arbitragem, porque prevê a arbitragem. Que cuidados o projeto toma? Eu venho de um seminário em Portugal, em que eu ouvia várias críticas de operadores do Direito português ao regime jurídico deles, porque diz o seguinte: “a menos que a apólice preveja de forma diferente”. Eles reclamaram que as apólices são instrumentos de poder tão grandes como o Legislativo, porque o Legislativo traz um regime, mas as apólices podem excepcionar o regime. A arbitragem tem esse risco. Nós temos uma lei para resolver as questões de conflitos de contratos de seguro. Essa lei tem que incidir. Agora, quando eu a fizer incidir por meio de arbitragem, eu tenho que tomar cuidado para não deixar que Direito outro incida; senão, o caso que for para arbitragem naturalmente sairá, porque o mercado vai querer assim, para práticas outras, para critérios outros – legislações, o que quer que seja. Nós queremos que incida. O regime tem que ser implantado. Essas é uma das razões. A segunda é que tem que divulgar. Não pode haver aquela confidencialidade absoluta e absurda, que está em extinção no planeta, mas

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aqui ainda é dogma. Tem que divulgar qual foi o conflito e qual foi a solução, para que a experiência jurídica não se perca. Isso está previsto no projeto.

Depois, há a questão da jurisdição. O projeto adotou a orientação de que contratos de seguro, como disse o Prof. Bruno Miragem, repercutem para a sociedade como um todo. Mesmo os grandes contratos de seguro... Vamos imaginar o contrato de construção de Itaipu Binacional. Há riscos de engenharia, riscos operacionais. Ele está garantindo uma pluralidade de segurados, que vai desde o grande empreiteiro, desde o dono da obra – a União Federal Brasileira e o Estado do Paraguai – até eletricistas locais que prestam serviços. Como pode cláusula de arbitragem remeter esses caras para culturas, leis e, pior, sede de arbitragem no Exterior? Londres? Onde se discute hoje Brumadinho? Onde se discute hoje Mariana? Só para dar os dois últimos exemplos mais trágicos. Discute-se em Miami, a portas fechadas. Ninguém sabe o que está acontecendo. A sociedade não sabe. Por que não aqui? Tem que ser aqui. É importante, o Brasil precisa. O Brasil não pode abrir mão de desenvolver sua cultura jurídica sobre contrato de seguro e sobre contrato de resseguro. É o sonho dos estrangeiros.

Eu li um autor de 1910... Eu já não recordo o nome, mas está em Seguro de Riscos de Engenharia e Instrumentos do Desenvolvimento, que foi minha tese de doutoramento. Dizia que o que mais almejam os resseguradores é ter regras próprias e sedes próprias. Quando clientes meus, empresários brasileiros, falam que lhes foi proposto fazer uma arbitragem lá na (...), eu não gosto, eu não quero. É muito mercado ressegurador inglês e europeu. Então, é natural que as pessoas que estarão ali sejam muito mais próximas da cultura, tenham a boca torta para fazer... Como nós. Quantas vezes não temos? Suicídio é outro exemplo do projeto, seguro de vida. Eu era um grande contratante de seguro de vida, eu paguei prêmio de seguro de vida a minha vida inteira. Chegou um dia em que decidi não mais pagar. Eu não sou um abstêmio. Eu adoro tomar um vinho, comemorar. Nós comemoramos quando ganhamos e lamentamos quando perdemos com um copo de vinho no almoço e outro no jantar. Eu corria o risco de estar dirigindo, morrer, e falarem que eu estava embriagado – porque o grau de embriaguez é uma coisinha de nada –: “Não tem cobertura de seguro de vida”. O projeto foi ver. Na raiz, isso é um problema. Eu não contratava mais seguro, parei de contratar. É preciso que se resolva isso. O que fazem os outros países? Há países que dizem que

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não há agravamento de risco em contrato de seguro de vida. Essa foi a nossa opção. Vamos deixar esse seguro “morreu, pagou”.

Com relação à arbitragem, eu ouço muito criticarem. Mas, quando existe, já no STJ, um seguro de responsabilidade civil automobilística, que depende de apuração de culpa e em que a apuração de culpa é nuclear, há ação direta da vítima contra o segurador apenas exigindo o litisconsórcio passivo do segurado, quem diz que não vai evoluir a nossa jurisprudência para se tocar que, nos seguros de responsabilidade civil em geral, há ação direta e, se a responsabilidade for objetiva, não precisa nem do litisconsórcio passivo, porque não tem que discutir a culpa de ninguém?

O projeto leva em conta isso. Eu não posso colocar a arbitragem lá fora ou com regras desconhecidas quando há vítimas; terceiros prejudicados, com pretensões; quando há eletricistas, dois irmãos lá de Jirau; quando há centenas de subcontratados... o pintor e todo o mundo que trabalha em uma obra, que é muito mais do que aqueles dois grandes figurantes – o dono da obra e o empreiteiro principal –, com interesses. Eu não posso mandar os dois eletricistas lá de Jirau irem para a Inglaterra, para Miami, para Nova Iorque, para Zurique, enfim.

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Queria só responder que concordo com a sua última posição, mas que a jurisprudência, pelo menos do nosso Tribunal, tem flexibilizado muito essa cláusula da embriaguez, que perde o seguro. Inclusive, eu participei de uma decisão sobre um rapaz que estaria sob efeito de maconha. Considerou-se que a maconha permanece no organismo por vários dias e que não dá para ter uma postura, digamos, positivista, no sentido de reconhecer. Existe a necessidade da relação de causalidade, que não basta estar embriagado. Isso o senhor reconhece?

DR. ERNESTO TZIRULNIK – Sem sombra de dúvida. Existe esse tempero, mas o problema é pior. Quantos aqui já tiveram ou conhecem alguém que já teve depressão? Pode falar em nome de terceiros, levanta a mão.

Alguns estão escondendo o jogo, mas a maioria já viu. Quem tem que tomar antidepressivo vai estar em uma situação, muitas vezes, muito pior do que a nossa, da taça de vinho. Não pode fumar a boa erva, não pode

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beber o bom vinho, também não pode tomar nenhum remediozinho para diminuir a dor profunda que está sentindo.

O seguro não pode servir para transformar a sociedade em algo que ela não é. Ele tem que atender às necessidades, porque os acidentes vão acontecer, as vítimas vão estar aí.

DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK – Agradeço a todos. Teremos um coffee break.

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Painel 2, 04-06-2019:Resseguro no Projeto de Lei n. 29-2017

DR. CESAR SANTOLIM – Bom dia a todos. Peço que se acomodem para que possamos dar início ao nosso segundo painel. Convido de imediato a integrar a mesa o nosso palestrante, o Prof. Paulo Piza, e os debatedores, a Dr.ª Ana Rita Petraroli e o Dr. Geraldo Nogueira da Gama, para que integrem, juntamente comigo, a presidência do painel número 2, intitulado Resseguro no Projeto de Lei n. 29-2017.

Os meus agradecimentos, em meu nome pessoal e em nome do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFRGS, que tenho a honra de coordenar, ao palestrante e aos debatedores. Cumprimento também os organizadores do evento. Tive oportunidade de acompanhar um trecho do primeiro painel e pude ver a qualidade – o que, aliás, era de se esperar – dos trabalhos já apresentados.

Eu me sinto na incômoda posição de, estando na presidência da mesa, considerado o adiantado da hora, ter que fazer um pedido um tanto deselegante aos componentes deste painel, para que, na medida do possível, reduzam um pouco os tempos que originariamente foram designados a cada um. Nesse sentido, peço ao palestrante e aos debatedores que abreviem suas intervenções, tudo com o propósito de, já que este painel deveria se iniciar às 10h45min e está se iniciando às 11h45min, com uma hora de atraso, não impactar nosso primeiro painel da tarde. Minha preocupação também é no sentido de permitir que, pelo menos no início da tarde, o horário seja retomado. Mais uma vez agradeço a todos.

Destaco que o nosso palestrante, Dr. Paulo Piza, é advogado, sócio do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia. É formado pela Faculdade da USP, onde também obteve suas titulações de mestre e doutor. Concluiu MBA em Risco Financeiro e Atuarial na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, também na USP. É sócio-fundador e 1º Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. Lecionou Direito Civil, Direito Internacional Privado e Direito do Comércio Internacional na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Atualmente, restringiu sua atuação docente à Fundação da Escola Nacional de Seguros. É autor de diversos ensaios, artigos e

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da consagrada obra O Contrato de Resseguro, que – eu não sabia – está em segunda edição, em breve lançamento. Muito bom para todos.

Os nossos debatedores também são amplamente conhecidos do público na área. A Dr.ª Ana Rita Petraroli é advogada formada pela PUC-SP, especialista na área securitária pela FGV-SP, árbitra, especialista em Responsabilidade Civil e Contratos do Código de Defesa do Consumidor pela PUC. É especialista também em Direito Penal pela PUC-SP e em Direito Digital; Diretora e catedrática da Academia Nacional de Seguros e Previdência; sócia-fundadora da empresa conceito FraudEnemyGroup®, especializada no combate à fraude em seguros, e sócia de diversas instituições internacionais na área.

O nosso também debatedor Dr. Geraldo Nogueira da Gama é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS e em Ciências Contábeis pela UFRGS, com pós-graduação em diversas instituições – FGV, Harvard University, Georgia University –, além de palestrante na área de Seguros. Foi Vice-Diretor da Universidade Ritter dos Reis, Vice-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Ritter dos Reis e professor de Direito Civil dessa mesma instituição e da PUC-RS, onde, inclusive, temo que tenhamos sido colegas em um longínquo ano de 1990, por aí.

Agradecendo, mais uma vez, e destacando a presença de tão significativas figuras, passo a palavra de imediato ao nosso palestrante, Dr. Paulo Piza.

DR. PAULO PIZA – Bom dia a todos. Eu gostaria de agradecer, na presença do presidente da mesa, o convite formulado para estar aqui com vocês e dividir algumas sugestões e algumas informações que me parecem importantes a respeito do tema do resseguro no Projeto de Lei da Câmara n. 29-2017. Eu trouxe aqui umas apresentações de que vou me dispensar para que possamos avançar mais rapidamente sobre a matéria.

O primeiro ponto que sempre gosto de ressaltar quando falamos em resseguro é que as palavras têm algo de demiúrgico. A palavra resseguro é uma delas. O prefixo “re” sempre dá ideia de que estaríamos falando em um segundo seguro, ou que o resseguro cobriria o mesmo risco que o contrato de seguro cobre ou a mesma área de risco, se preferirem, o que não é verdade.

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Como já se esclareceu no âmbito da técnica e da doutrina jurídica, o resseguro é um contrato que dá uma proteção ao segurador. Prefiro, inclusive, não falar nem mesmo em seguro do segurador, mas falar em uma proteção do segurador, porque há por detrás dessa discussão todo aquele debate acerca da natureza ou da qualificação jurídica do negócio ressecuritário, se se trata de um seguro de dano, de um subtipo de seguro de dano, ou não. Essa discussão tem que ser encaminhada atentando-se para a função econômico-social do negócio de resseguro. O contrato de resseguro é um contrato que tem por escopo a estabilização técnica e financeira das sociedades seguradoras.

Como todos sabem, a seguradora, o contrato de seguro apoia-se na mutualidade. Nós poderíamos dizer, por exemplo, que, com base em estudos estatísticos e na história pregressa, de cada mil edifícios na Cidade de Porto Alegre, três vão se incendiar no próximo ano. Poderíamos, inclusive, antecipar o valor total dessas perdas. Sobre esses cálculos estatísticos e atuariais, influem diversos fatores. São os chamados desvios e desequilíbrios atuariais, que fazem que essa matemática, em tese, perfeita não seja tão perfeita assim.

Esses fatores são caracterizados, especialmente pela doutrina alemã quando ela fala como o ressegurador vê o risco da seguradora, a partir de quatro aspectos. O primeiro aspecto que se ressalta é a chamada flutuação aleatória. Podemos estabelecer que, no próximo ano, vão se incendiar três edifícios; que, nos próximos dois anos, vão se incendiar seis edifícios, e assim por diante. Mas pode acontecer de, no próximo ano, não se incendiarem apenas três edifícios, mas se incendiarem seis edifícios, nove edifícios, doze edifícios. Os valores que a seguradora terá recolhido a título de prêmios para cobrir essa sinistralidade, em tese, não serão suficientes, porque ela ainda não veio a recolher o prêmio referente àqueles sinistros que ocorreriam em outras vigências futuras. Então, um dos riscos, por assim dizer, que o ressegurador corre é o risco de flutuação aleatória.

Outro risco que o ressegurador corre é o chamado risco de erro ou risco de mudança, inclusive mudança na interpretação jurisprudencial das apólices de seguros. Um exemplo claro é o que sucedia com as apólices de responsabilidade civil antes da Constituição de 1988, em que não se podia, ao mesmo tempo, determinar uma indenização por danos materiais e danos

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morais. A partir da Constituição de 1988, isso passou a ser possível. Esse é um fator, é um exemplo apenas, apto a gerar um desequilíbrio nas contas do segurador, por assim dizer.

Um terceiro risco que o ressegurador corre é o chamado risco de catástrofe. Temos que entender catástrofe em sentido técnico. Não é necessariamente um furacão, um grande evento, mas é todo evento suscetível de fazer dispararem diversos sinistros no âmbito de diferentes apólices. A queda de uma aeronave, por exemplo, vai suscitar o seguro de casco da aeronave, de pessoas da tripulação, dos diversos passageiros, dos imóveis ou veículos atingidos pelos destroços e assim por diante. Então, um só evento dispara várias apólices. Imaginem que todas essas apólices estejam em uma só seguradora – para caricaturar um pouco a questão. Esses fatores fazem que toda aquela previsão atuarial, estatística, saia de cena, não se confirme. Ou seja, a seguradora, se não se proteger, corre o risco de quebrar. É o chamado, na técnica, risco de ruína do segurador.

É exatamente o risco de ruína da seguradora que o ressegurador cobre. Depois vamos dizer de que maneira ele cobre esse risco de ruína. Antes eu quero apenas salientar o seguinte, especialmente as doutrinas espanhola e latino-americana dizem que o ressegurador cobre o risco de um indébito patrimonial da seguradora, quer dizer, de a seguradora não ter capacidade de responder por suas reponsabilidades.

Particularmente, entendo que é um pouco mais do que isso, ou um pouco menos, dependendo do ponto de vista. Vou me explicar melhor. O ressegurador tem um determinado patrimônio que dá lastro a suas operações. Com base no resultado semestral, no seu balanço semestral, existem cálculos que determinam qual é o limite operacional de um ressegurador, ou seja, quanto ele pode assumir de responsabilidades em uma determinada carteira de seguros. A partir do cálculo desse limite operacional se estabelece o chamado limite técnico, ou seja, quanto o ressegurador pode responder sozinho, autonomamente, por um risco isolado.

Esse limite técnico determina a capacidade de retenção da seguradora por risco. Se ela assumir sozinha um risco de expressão superior a esse limite técnico, ela está correndo o risco quebrar o sistema. Quando ela não tem capacidade de assumir um risco sozinha, ela tem que distribuir, como

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se diz na técnica, esse risco, por meio do cosseguro ou fundamentalmente por meio do resseguro.

Agora, uma seguradora pode decidir diminuir, por exemplo, o seu limite técnico. Vamos ilustrar. Uma seguradora de incêndio tem um limite técnico de cinco milhões de reais. Então, ela pode assumir sozinha qualquer risco cuja importância assegurada seja equivalente a cinco milhões de reais. Mas ela pode, por uma decisão dela, seguradora, trabalhar não com cinco milhões de reais, mas trabalhar com três milhões de reais. Por quê? Porque ela quer se assegurar mais nessa carteira e quer empregar os recursos que ela disponibiliza em outra área, em outros riscos, em outras modalidades, em outros ramos. Então, na realidade, não é propriamente um indébito patrimonial, é o risco de ela operar abaixo de um determinado nível patrimonial que ela decidiu operar. Isso são filigranas.

Tudo isso para mostrar o seguinte, embora às vezes se fale resseguro incêndio, resseguro responsabilidade civil, isso não existe. O ressegurador não cobre o risco de incêndio que a seguradora cobre. Ele cobre a seguradora, capacitando-a para assumir responsabilidades superiores a seu limite de retenção. Perante o segurado, como isso é uma regra já conhecida de todos e objeto de lei hoje, também isso está presente no Projeto de Lei, a seguradora responde isoladamente. Ainda que se trate de um grande risco em que ela tenha uma retenção de 1% ou menos, ela responde em 100%, porque só ela se compromete perante o segurado. O ressegurador e a seguradora mantêm uma relação diversa dessa, independente e autônoma. O ressegurador está protegendo a seguradora da incapacidade dela de cumprir os seus compromissos ou de operar abaixo de determinado nível patrimonial.

Outra confusão que muitas vezes se verifica decorre do fato de as pessoas pensarem no resseguro como sendo o chamado resseguro facultativo, ou resseguro individual, ou resseguro autônomo. Ou seja, o resseguro que é contratado tendo em vista a sujeição da segurada a responder, por exemplo, por um grande risco. Isso é pontual na indústria. A maior parte dos contratos de resseguro, ou a maior parte da proteção da seguradora, se dá por meio dos chamados tratados de resseguros ou contratos gerais de resseguro. A expressão “tratado de resseguro” é uma expressão que está adotada na prática. Todo o mundo fala em tratado de resseguro, mas essa

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expressão “tratado” vem do inglês treaty. É uma tradução (...) do inglês treaty, no sentido de algo foi tratado, foi contratado.

O tratado de resseguro é um contrato geral de resseguros que usualmente cobre uma carteira da seguradora, por exemplo, a carteira incêndio. O ressegurador já se compromete a proteger a seguradora de eventual exposição para além da sua capacidade de responder por todos os sinistros ou todas as responsabilidades que ela assume no âmbito de uma determinada carteira. Todos os negócios, todas as operações de seguros dessa carteira que a seguradora for realizando estão automaticamente incluídos, estão automaticamente sob a abrangência dessa proteção que o ressegurador dá à seguradora.

Os tratados de resseguro estabelecem uns limites. A exposição da seguradora estará abrangida por esse tratado de resseguro, desde que os negócios, as operações de seguro que ela celebra, tenham uma determinada importância segurada. Se ela tiver uma importância segurada superior a essa, não está automaticamente incluída nesse tratado. Essa operação, digamos assim, excepcional, poderá vir a ser incluída nesse tratado de resseguro, mediante consulta à seguradora. Caso não seja possível a sua inclusão nesse tratado de resseguro, aí sim se contrata um resseguro específico para proteger a exposição da seguradora contra os possíveis efeitos diversos da ocorrência de um sinistro no âmbito dessa operação específica de seguro de um grande risco que não cabe no tratado de resseguro.

O que temos em mente, em geral, quando falamos em resseguro é um resseguro de uma operação, mas a realidade é outra. A esmagadora maioria das operações que uma seguradora realiza gera uma exposição, para essa seguradora, que é coberta por meio de tratados de resseguro. Então, fazemos essa distinção, que é importante e vai se refletir nas disposições presentes no Projeto de Lei, entre resseguro facultativo e resseguro automático ou por tratado.

Outra coisa muito importante é termos em conta que os resseguros são basicamente de quatro modalidades. Sem que se altere a estrutura e a função do contrato de resseguro, ele veste, digamos assim, quatro diferentes modalidades. Ele pode ser um seguro de cota-parte e um seguro de excesso de responsabilidade. Esses são os chamados resseguros

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proporcionais, que são aqueles que as pessoas têm na cabeça, em geral, quando se fala em resseguro.

Mas existem ainda duas outras modalidades de resseguro que são o resseguro por excesso de danos e o chamado stop loss, o resseguro que cobre a seguradora quando a sinistralidade geral, ou pelo menos em um grupo de negócios, atinge um determinado patamar. Quero ressaltar que essas modalidades de resseguro não proporcional – que são mais recentes e vêm ganhando cada vez mais terreno – nem podem ser vinculadas a uma operação específica. No caso do stop loss, nem mesmo há uma carteira, um ramo da indústria securitária em particular. É mais um seguro de balanço: a seguradora não atingiu determinados resultados e está coberta pelo resseguro, dentro de determinadas condições contratuais.

Quando falamos em resseguro, não podemos levar em conta apenas o resseguro individual nem apenas o resseguro proporcional – aquele em que, em tese, tecnicamente falando, figurativamente falando, o ressegurador participa de uma cota de responsabilidade ou de uma fatia de responsabilidade assumida pelo segurador. Temos também de pensar nos tratados de resseguro e nos resseguros não proporcionais.

Acho que com isso já começamos a perceber que o seguro e o resseguro são coisas não tão parecidas. São dois tipos contratuais, na minha opinião, distintos. Uma coisa é o tipo contratual seguro, outra coisa é o tipo contratual resseguro. Eles têm um certo parentesco? Têm. Agora, o tipo contratual resseguro, na minha opinião, é um negócio socialmente típico, porém atípico do ponto de vista legal, porque ele não encontra na lei um conjunto minimamente sistematizado de disposições disciplinando essa realidade contratual, essa realidade negocial. Podemos dizer que não é um tipo contratual legal, mas um tipo contratual social amplamente praticado.

Existem diversos tipos contratuais cujos principais elementos o legislador ainda não recolheu e trouxe para o âmbito do ordenamento do direito positivo. Entendo que os contratos de hedge, os contratos de swap... Por muito tempo, o arrendamento mercantil foi uma realidade dessas. Ele ainda não havia sido recolhido pelo legislador e passado a ser um tipo contratual legal. Mas nada impede, desde que se obedeça ao chamado direito objetivo, a prática de negócios que não estão previamente regrados em diplomas legais. É o caso do resseguro, que é um contrato antigo. Para vocês terem ideia, existe

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uma definição de resseguro no art. 687 do Código Comercial de 1850. Ele é muito esquecido e se justifica esse esquecimento, porque ele revela uma concepção ainda incipiente de resseguro, anterior ao desenvolvimento da lei dos grandes números, que vem do séc. XV, uma definição que está no Guidon de la Mer, que foi um documento elaborado por comerciantes e pelo pessoal do setor marítimo. Em Rouen, na França, elaboraram um documento, um conjunto de regras, e lá havia uma definição de resseguro como sendo aquele seguro que é feito quando o segurador original se arrepende do negócio. Já estamos a séculos de distância dessa concepção.

Estou dizendo isso tudo, porque o Projeto de Lei da Câmara em questão traz poucos artigos em matéria de resseguro. O primeiro artigo que ele traz, o art. 64, traz uma definição do negócio do resseguro. Os artigos seguintes – 65 a 69 –, nenhum deles disciplina o contrato de resseguro. Não é disciplinado o contrato de resseguro no âmbito dessa lei. Mas por que um capítulo para o resseguro no âmbito dessa lei?

Antes de mais nada, a questão da definição do que é resseguro. Se entra em vigor uma lei sobre contrato de seguro no ordenamento jurídico atual, vamos certamente ver a doutrina e a jurisprudência repetindo que o contrato de resseguro é um contrato de seguro. Recentemente, ao tratar da questão da prescrição no contrato de resseguro, foi o que disse o STJ. Se for feita uma busca na literatura jurídica internacional – porque a literatura jurídica nacional é muito... ou quase nada desenvolvida –, 70%, pelo menos, dos autores vão dizer que o resseguro é uma espécie de seguro. Justamente para demarcar as diferenças entre contrato de seguro e de resseguro e evitar esse tipo de interpretação é que o Projeto de Lei traz uma definição sobre contrato de resseguro.

Outra razão é aquela proximidade entre um negócio de seguro e um negócio de resseguro. São dois contratos que garantem interesses expostos a risco. Mas o que diferencia fundamentalmente o contrato de resseguro é que só uma pessoa pode ser ressegurada e é uma entidade com características muito peculiares, que é uma sociedade seguradora – que trabalha com base atuarial, como já dissemos, tem que constituir provisão, como foi dito no painel anterior pelo Dr. Ernesto, e está sujeita a uma série de regras a que as sociedades mercantis, de maneira geral, não estão sujeitas.

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Essa especificidade do risco da seguradora é que é ressaltada pelo Projeto de Lei, quando ele diz, no art. 64, que, pelo contrato de resseguro, se garante “o interesse da seguradora...” – ou seja, de uma pessoa em particular, um tipo de empresa em particular – “... contra os riscos próprios da sua atividade...” – aqueles riscos de flutuação aleatória, mudança, erro, catástrofe e assim por diante, aquele risco de ruína ou de ela ter que operar em um padrão diferente daquele que foi por ela previamente definido. De certo modo, evita-se com essa definição uma identificação do contrato de seguro com o contrato de resseguro, mas, ao mesmo tempo, são dados os parâmetros para a interpretação analógica das regras sobre contrato de seguro em sua aplicação sobre o contrato de resseguro.

Alguns ordenamentos jurídicos nacionais – como, por exemplo, o Direito alemão, o Direito suíço e, até certo ponto, o Direito francês – dizem que o contrato de resseguro não está sujeito à lei de seguro. Basta-lhes dizer isso. Naquele contexto social, legal e de direito positivo, isso, a princípio, é suficiente. De certo modo, também na Itália se diz isso. Especialmente a doutrina italiana esclarece que, quando se está diante de um contrato atípico e surgem conflitos que não são resolvidos pelas regras do contrato nem pelas regras obrigacionais – que estão lá na parte geral do Código, aquelas regras gerais sobre os contratos – e se precisa buscar um padrão para decidir determinado conflito mais específico, pode-se usar a analogia entre tipos contratuais diferentes. Já houve quem estudou, por exemplo, os contratos de hedge e swap e chegou à conclusão de que a esses contratos, quando necessário, se aplicam as regras da permuta, que estão previstas no Código Civil. Invariavelmente, quando surgir um conflito em matéria de contrato de resseguros, pensar-se-á na aplicação analógica das regras do contrato de seguro em matéria de resseguro.

Temos que ver que nem todas as regras sobre contrato de seguro casam com o tipo contratual ressecuritário. Algumas, sim. A regra, por exemplo, da boa-fé especialíssima em matéria de contrato de seguro se aplica, você pode aplicar analogicamente ao contrato de resseguro. Porém as regras que tratam do prêmio em matéria de contrato de seguro não têm nem como serem aplicadas no contrato de resseguro. Em um tratado de resseguro, em um contrato geral de resseguro, em um resseguro de uma carteira de negócios de uma seguradora, por exemplo, na gestão desse contrato, desse tratado de

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resseguro existe uma espécie de conta-corrente – movimento operacional, como se dizia antigamente – entre seguradora e ressegurador em que são levados a crédito e a débito sinistros e prêmios. Ao final de um período, em geral trimestral, se verifica se houve um ingresso maior de prêmios do que de pagamentos de sinistros. Nesse caso, o ressegurador recebe um determinado montante. Se houve um saldo positivo de sinistros, o segurador vai receber o montante correspondente. Quer dizer, onde está o princípio da anterioridade do prêmio, previsto em matéria de contrato de seguro, o princípio da integralidade do prêmio? Você não tem como aplicar as regras de prêmio em matéria de seguro ao negócio de receber. Então, ao se definir o resseguro distinguindo-o do seguro, você dá os parâmetros para, inclusive, essa aplicação analógica das regras do seguro ao contrato de resseguro.

Passando agora aos demais dispositivos, como já mencionei, nenhum deles trata da disciplina contratual do contrato de resseguro. Quer dizer, de certo modo, segue-se o modelo alemão e suíço e, ainda mais, o modelo francês. Essas regras, entretanto, tratam do que um autor espanhol, Broseta Pont, chamou de relações externas. Prefiro falar, talvez, em pontos de interferência, aquelas situações em que, em função do relacionamento do segurador com o ressegurador, a esfera jurídica de interesses do segurado acaba sendo afetada, quando não deveria.

Um princípio bastante antigo em matéria de contrato de resseguro, já mencionei aqui, é a independência e autonomia entre os dois contratos. O resseguro é res inter alios acta para o segurado, é coisa estranha para o segurado. Então, o que se passa na relação entre segurador e resseguradora não pode repercutir sobre os direitos do segurado. Essa é uma regra antiga, um costume antigo, uma regra presente em diversas legislações, quando o resseguro é tratado no âmbito legal, e de extrema importância. Isso está no art. 65 do Projeto de Lei Complementar.

Essa regra começou, entretanto, especialmente nos Estados Unidos, a ser um pouco matizada, flexibilizada, se quiserem. Peguei uma vez um parecer sobre esse assunto – divulgado em sites, na internet – de um escritório americano muito voltado a mexer com resseguros, de 15 anos atrás, dizendo que é plenamente autônomo e independente o resseguro do seguro. Mais recentemente, o mesmo escritório divulgou outro artigo dizendo quase o contrário. Talvez isso seja algo que decorra da própria cultura e do sistema

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jurídico da common law, embora mesmo lá haja quem diga que há exagero nesse tipo de interpretação.

Aqui também se verifica, em relação a um outro princípio que decorre disso, que decorre dessa independência entre os dois contratos, da distinção entre esses dois contratos, que é o chamado princípio follow the fortunes. Segundo esse princípio, toda vez que a seguradora se vê sujeita a um determinado pagamento e, para que ela possa efetuar esse pagamento ou para que ela pudesse ter assumido esse risco, ela precisou de resseguro no âmbito de uma carteira ou de um resseguro individual facultativo, o ressegurador não pode discutir se ela tem que pagar ou não. Não cabe ao ressegurador. Ele não ressegura o risco de incêndio, de responsabilidade civil, de automóvel, de vida, de geadas... Não. Ele ressegura a seguradora que não pode ter uma exposição acima do seu limite técnico ou do seu limite operacional. Então ele segue a sorte, ou seja, o sinistro que acontecer e a seguradora tiver que pagar, se isso gerar uma exposição da seguradora sujeita a resseguro, ele tem que recuperar a seguradora. Em princípio, ele não pode nem discutir. Só poderia discutir, conforme o princípio de direito das obrigações, em caso de a seguradora ter atuado dolosamente e danosamente contra os interesses do ressegurador, por uma questão de direito próprio, nada relacionado com o cumprimento do contrato de seguro.

O Projeto de Lei dá a abrangência que a doutrina sempre deu ao chamado princípio follow the fortunes, ou seja, o ressegurador segue a sorte, as ações e as decisões do segurador. Não é ele – importante, em princípio – quem decide se um determinado sinistro tem de ser pago ou não pela seguradora. É a seguradora, perante o segurado, que decide. Isso tem causado muita controvérsia, não só no Brasil, mas em diversos países, já não é de hoje, em função das chamadas cláusulas de controle ou cooperação na regulação de sinistro nos negócios de resseguro.

Essa cláusula, já perante o Direito atual – também aconteceria isso uma vez aprovado esse projeto de lei –, pode ser considerada ilícita à medida que ela entregue ao ressegurador a decisão sobre se um sinistro deve ou não ser pago. É claro, o ressegurador pode cooperar na regulação de sinistro, passar a sua experiência para a seguradora. Imaginem um sinistro que atinja uma grande turbina, um grande empreendimento comercial, ela tem experiência sobre esse tipo de risco em outro canto do mundo, ela pode

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cooperar, mas ela não pode impor à seguradora. Ainda que ele, ressegurador, discorde e a seguradora resolva pagar, ele tem de acompanhar a seguradora, porque ele protege a seguradora. Se a seguradora, ao decidir, não atuou dolosamente nem danosamente, ele não teria, portanto, por que reclamar.

Sabemos que, na realidade prática do dia a dia, não é bem isso que acontece. O ressegurador fala: “Se você resolver pagar, eu não te recupero. Você vai ficar com 100% da responsabilidade ainda que você tenha assumido 0,1%”. Evidentemente, diante disso, o segurador vai recear efetuar qualquer pagamento nesse nível. A seguradora pode, claro, pleitear contra, exercer uma pretensão em face do ressegurador, mas, como sabemos, isso leva tempo, mesmo no âmbito de uma arbitragem, e o segurado precisa da sua indenização prontamente. Como se disse aqui anteriormente, a função social do seguro é repor as economias individualizadas, as forças de produção e as forças de trabalho o mais rapidamente possível para que a sociedade continue a se desenvolver e se recupere dos efeitos dos acidentes a que todos estamos sujeitos.

Então, a abrangência que se dá ao princípio follow the fortunes no Projeto de Lei é a abrangência necessária para um país que, como é um mandamento constitucional, tem de se desenvolver, tem de superar o subdesenvolvimento. Não podemos nos dar ao luxo de ficarmos sujeitos a decisões de fora do País. O sinistro de um porto, de um aeroporto ou de um grande empreendimento importante para a economia brasileira tem de ficar sujeito a decisões dentro do próprio País.

Por exemplo, um grande grupo siderúrgico indiano pode ser sócio controlador de uma grande resseguradora estrangeira, acontece um sinistro no âmbito siderúrgico no Brasil – a sua principal concorrente no âmbito mundial –, e a resseguradora de quem ele é sócio diz: “Não, não se vai indenizar o sinistro que ela sofreu”. Temos que pensar que por detrás de todo negócio jurídico há um ajuste de poder. Uma maneira de fazermos com que as coisas andem direito é parametrizar isso de forma bastante interessante, importante para o País, correta e dentro da política de seguros, que é uma política de estado prevista no Decreto Lei n. 73/1966. O seguro tem de servir ao segurado e ao desenvolvimento nacional.

Nessa mesma tônica, existe uma regra que eu queria destacar também do Projeto de Lei Complementar que se refere aos adiantamentos.

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Quando a seguradora já reconheceu um sinistro como coberto, já apurou parte das perdas, ela tem o dever de fazer um adiantamento ao segurado. Não é uma mera faculdade ou um mero ônus da seguradora. Ela tem o dever de adiantar, para que o segurado sofra menos com o sinistro. Ele pode, por exemplo, não ter cobertura de lucros cessantes, então, se demorar a ser paga a perda de dano material, vai aumentar o prejuízo de lucros cessantes dele. Então, ela tem que atuar rapidamente na regulação de sinistro, liquidar, ou seja, apurar os valores das perdas e efetuar esse pagamento o quanto antes possível. Se ela já tiver apurado parcialmente e for demorar um pouco a apuração que resta fazer, ela tem de fazer esse adiantamento.

O ressegurador, por sua vez, com o qual a seguradora vai se recuperar ou no qual ela vai buscar esse dinheiro para poder fazer esse adiantamento, tem também de prestar esse adiantamento. Existe uma regra exatamente nesse sentido no Projeto de Lei Complementar. Vejam, não são disposições disciplinando o negócio ressecuritário, mas, sim, os pontos de interferência entre a atividade da seguradora e a atividade do ressegurador.

Outra disposição diz o seguinte: “O ressegurador abrangerá a totalidade do interesse ressegurado, incluído o interesse da seguradora relacionado à recuperação dos efeitos da mora no cumprimento dos contratos de seguro, bem como as despesas de salvamento e as efetuadas em virtude da regulação e liquidação dos sinistros”. Todas essas despesas a que a seguradora se vê sujeita, todas essas perdas a que a seguradora se vê sujeita, elas decorrem, também, do sinistro. São dívidas que a seguradora assume por meio do contrato de seguro. A seguradora não está exposta apenas a responder pelo valor da recomposição de um bem, por exemplo, de um edifício ou de um veículo. Ela tem, em alguns casos, despesas enormes de regulação de sinistro. Isso são despesas com que ela arca, em função de existir aquele contrato que é ressegurado naquela carteira que é ressegurada, que impactam as suas contas e a sua exposição.

O ressegurador não pode restringir a recuperação de resseguro apenas ao valor da recomposição de um bem, por exemplo. Ele tem que abranger todas essas despesas que não são despesas ordinárias do segurador, embora comuns.

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Vou parar por aqui, tendo em vista o horário. Vou dar mais espaço aos demais debatedores. Qualquer coisa, estou à disposição para esclarecer algum ponto que interessar. Muito obrigado.

DR. CESAR SANTOLIM – Obrigado, Dr. Paulo. De imediato, passo a palavra à Dr.ª Ana Rita para que faça as suas considerações em caráter de debatedora. Peço encarecendo, mais uma vez, em nome da organização que, se possível, abrevie o tempo para que possamos manter o nosso horário no painel da tarde.

DR.ª ANA RITA PETRAROLI – Vou tentar ser bem rápida. Na pessoa do senhor, cumprimento o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por essa atitude de convidar a universidade, na pessoa de quem cumprimento o Dr. Bruno Miragem, e permitir que nós, advogados, participemos deste encontro. Na pessoa do Marco, cumprimento todos os meus colegas hoje aqui presentes. É só por meio da discussão que conseguimos crescer em determinado assunto.

Em relação ao seguro, há muito tempo discutimos esse projeto de lei, há muito tempo discutimos possibilidades de criar regulamentos. Com relação ao seguro, até acredito que algumas normas vão, de fato, funcionar, trazer certa pacificação e diminuir a judicialização.

No resseguro, tenho um pensamento um pouco mais liberal com relação a normas. Duvido um pouco de que a existência de alguma norma, dentro de um país, vincule as operações de resseguro em nível mundial. Isso porque, no meu ponto de vista, o resseguro é uma prática que adota comportamentos. Se falávamos antes em julgamentos baseados na experiência, nos costumes, nos usos, o resseguro é um desses contratos. É por isso que muito contrato de resseguro vem com sua cláusula arbitral e, entre as partes, é estabelecida toda uma gama de procedimentos de como devem ser resolvidos os conflitos.

Então, tenho a impressão de que, quando se fala em criar regramentos, mesmo que seja para explicitar... O Paulo me deu aula de resseguro, algum tempo atrás, na GV. Quem sou eu para discordar do que ele acha útil? Mas acredito que, quando se fala em uma matéria de Direito Internacional, que envolve partes globais que tratam de assuntos globalizados,

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sem interferência alguma de tribunais, não me parece adequado. Em raríssimos casos se ouve falar de questões levadas aos tribunais. Para anular alguma decisão arbitral, ouvimos falar, sim, de discussões em tribunal. Mas não me parece que o legislador brasileiro esteja preparado para isso, até porque há uma dissonância enorme entre o tempo que a lei percorre dentro das nossas casas legislativas e a utilidade que ela vem a ter quando passa a ser publicada. É tanto tempo entre a apresentação do projeto e a aplicabilidade daquela lei que, quando ela chega, é preciso que venha ao tribunal para adequá-la ao momento em que ela foi publicada. É preciso que o tribunal legisle.

Hoje, o Judiciário, vocês sabem, é principal personagem da história do nosso País. As nossas grandes decisões acabam todas onde? No tribunal. Isso não é sinal de uma sociedade saudável. Isso é o contrário de uma sociedade desenvolvida e civilizada. O Tribunal existe para resolver conflitos sérios que aquele cidadão não resolve por si só. Hoje, qualquer conflito, do papagaio do vizinho que grita a uma discussão complexa, é levado para o tribunal decidir. Então, me parece que trazer para a legislação a figura de uma legislação que envolva resseguro, sendo que o mundo já está estudando... O Banco Mundial apoia um movimento, foi tratado agora na Universidade de Zurique de se criar um linguajar, umas regras comuns aos contratos de seguro mundiais. Todos poderiam se referenciar a essa regra. Mas nem aí, nem essa regra seria vinculativa.

Como posso querer que o Brasil crie uma legislação, que vincule um comportamento de resseguro mundial, quando sequer a regra mundial que está sendo criada para ele vincula o contrato a esse regramento? Então, desculpem-me, mas me permito discordar da necessidade e, mais ainda, da utilidade da existência desse regramento de resseguro dentro do nosso regramento jurídico.

DR. CESAR SANTOLIM – Obrigado, Dr.ª Ana Rita. Não sou debatedor nem palestrante, sou só presidente de mesa, mas faço eco às palavras da Dr.ª Ana Rita, porque essa também é uma preocupação que tenho quanto... Muitas vezes, há o fetiche do operador do direito com a criação da norma, na expectativa de que a norma jurídica seja capaz de resolver problemas, quando, muitas vezes, ela é apenas geradora de novos problemas.

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Dr. Geraldo, mais uma vez agradecendo, com a palavra para suas considerações.

DR. GERALDO NOGUEIRA DA GAMA – Muito obrigado. Tenho uma satisfação muito grande em participar deste evento, promovido pelo nosso sempre atuante Tribunal de Justiça e pela Universidade Federal, com a participação de pessoas que vêm há muito tempo formando aquilo que sabemos chamar de cultura do seguro, que é exatamente o que diz a Ana Rita Petraroli, minha querida amiga: “Antes de regrar, nós devemos cultuar”.

O que se faz no mundo inteiro? Promove-se aprimoramento da cultura do jurídico. O aprimoramento da cultura já é o que acaba funcionando. Se vocês prestarem atenção, procurarem, por exemplo, nos tribunais de todos os Estados, no STJ, não vão encontrar jurisprudência sobre resseguro, litígio entre seguradoras e resseguro. Vão encontrar questões processuais. Questão substantiva acho pouco provável que encontre alguma. Isso vem, ou advém, do fato de termos tido, até mais recentemente, o monopólio estatal do resseguro pelo Instituto de Resseguros do Brasil, como muito bem referiu o Prof. Ernesto. Naquela época, não se discutia nada, era tudo automático. O IRB assumia e acabou, era assim que funcionava. E muito bem, funcionava muito bem, por sinal. Aí se resolveu que o bem não era tão bem, resolveram então alterar e se criou a abertura do mercado, resseguradoras brasileiras, as admitidas, as eventuais, etc., que passaram a atuar no Brasil. Vai provavelmente surgir algum problema disso, mas os tribunais estão aí para trabalhar em torno dessa matéria.

Parece-me que esse regramento, até pela simplicidade que ele foi (...), acho que é um mérito do projeto não ter se alongado na especificação da regra de resseguro. Eu comungo com a Ana Rita, acho que realmente não haveria necessidade. Aceitando um pouco o que diz o Dr. Paulo, o projeto procurou não fugir dos institutos que cercam o mercado segurador. O resseguro evidentemente tem essa função. Diferentemente do que detesta o nosso amigo Paulo, o resseguro é o seguro do seguro. Enfim, esses são os entendimentos.

O que acontece? Temos nesse regramento algumas questões que eu gostaria, como debatedor, de trazer à colação e à consideração. Uma delas é no tocante ao fato de o Projeto prever o pagamento direto pelo

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ressegurador em caso de inadimplemento da seguradora, caso de insolvência. Aí se cria um problema. Isso seria só para os resseguros facultativos, aqueles resseguros diferenciados, ou valeria também para os automáticos? É uma indagação que não é minha, que eu vi e achei muito interessante. Como também estou aqui participando, eu devo ser um certo porta-voz dessas aflições, eu trago essa questão.

A outra questão é a que diz que, no momento em que a seguradora é citada para uma demanda, deverá notificar o ressegurador para que esse possa atuar como assistente simples. Aí estamos invadindo a seara do Direito Processual. Seria bom isso? Essa é a segunda indagação que eu deixo.

A terceira é esta: uma vez que temos a Lei Complementar n. 126/2007, que trouxe esse regramento básico e já sofreu várias alterações por outras leis complementares, não seria mais fácil colocarmos essas alterações, essas medidas, essas novidades, dentro dessa lei complementar que ali está, está cumprindo o seu papel e regra a atuação do resseguro de uma maneira comedida, de uma maneira responsável, de uma maneira correta? Também deixo essas questões para o nosso palestrante.

DR. CESAR SANTOLIM – Muito obrigado, Dr. Geraldo, por essa bem atenta sequência de observações. Devolvo, então, agora a palavra ao nosso palestrante, para que ele tenha a oportunidade de fazer as suas considerações sobre os temas suscitados pela Prof.ª Dr.ª Ana Rita e pelo Prof. Dr. Geraldo Nogueira da Gama.

DR. PAULO PIZA – Agradeço as argumentações e os questionamentos levantados. Com relação às considerações da Dr.ª Ana Rita Petraroli, eu gostaria de complementar que o resseguro não necessariamente é um contrato internacional, do ponto de vista jurídico. Muitos contratos de resseguro são contratos nacionais, contratos domésticos, celebrados entre seguradoras e resseguradores aqui sediados, aqui autorizados a operar ou credenciados para operarem aqui, com os riscos de seguradora. Aliás, é um costume internacional de resseguro, é um princípio jurídico em matéria de resseguro que, em relação aos contratos internacionais de resseguro, prevalece sempre a lei da seguradora cedente ou do ressegurador cedente, na

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hipótese de retrocessão de resseguro. Ou seja, falar em uma lex mercatoria ressecuritária internacional – acho que é isso que a Dr.ª Ana Rita quis referir – talvez seja um pouco mais ilusório do que se pensa.

Em matéria de comércio internacional, só conseguimos algum avanço mesmo com a Convenção de Nova Iorque sobre compra e venda. Em diversos outros planos negociais, não conseguimos gerar nem mesmo um direito uniforme ou algo assim. É interessante termos em conta também que o resseguro nasceu, do ponto de vista da sua grande exploração econômica, basicamente, na Alemanha e na Suíça, na segunda metade do séc. XIX, com total apoio do estado alemão e suíço, sujeitando todas as questões de resseguro celebradas por resseguradores daqueles países ao direito local e à jurisdição das cortes locais. Por quê? Tendo em vista a importância para o desenvolvimento econômico e social como um todo. Vejam quem são os dois maiores ou estão entre os cinco maiores resseguradores mundiais – a Munich Re, alemã, e a Swiss Re, suíça – criados dessa forma.

Temos que ter em conta também que saímos de um monopólio estatal doméstico e caímos em um monopólio – ou oligopólio, se preferirem – internacional. Os seis maiores resseguradores mundiais detêm mais de 50% do mercado de resseguro. Todos os negócios ressecuritários – às vezes, até alguns costumes ressecuritários – obedecem a regramentos que existem, regramentos costumeiros ou não, ou contratuais, ou em matéria de contract law, de regras de cláusulas contratuais oriundas desses países e da Inglaterra, que são países cujo direito tende a proteger os fornecedores desses grandes serviços em escala mundial. Temos que sempre ter em conta que aquelas cláusulas que estão lá, aqueles usos e costumes que estão lá e que não são tão arraigados assim, são usos e costumes vinculados, têm uma origem vinculada a uma jurisdição e repercutem um direito que tende a favorecer os grandes prestadores daquela atividade econômica daqueles países. Isso, quando o resseguro é um contrato internacional. Mesmo sendo um contrato internacional, o resseguro estará sempre sujeito a um direito territorial doméstico nacional. As regras do Direito Internacional Privado existem para isso, para serem resolvidos os conflitos de lei. Em geral, é a lei da cedente.

Você pode optar, segundo o Direito brasileiro, do ponto de vista do Direito brasileiro, quando a questão está sujeita a arbitragem, pela aplicação de um direito estrangeiro, desde que não ofenda a ordem pública.

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Matéria de seguros, assim como matéria bancária, são matérias sujeitas à ordem pública. São matérias que são objetos de uma grande preocupação do legislador em regular não só o contrato – muitas vezes, no caso bancário, não tanto no de resseguro, mas, sim, no de seguro e, no de resseguro, não por conta dos nossos anos de monopólio estatal –, mas também a própria atividade das resseguradoras. Há todo um conjunto de normas impositivas das quais você não pode fugir.

Os contratos de resseguros celebrados por resseguradores locais, eventuais ou admitidos, são contratos que têm que se sujeitar inclusive às normas da SUSEP. Então, não existe essa coisa de contrato global. Claro, vamos respeitar, sim, todos os usos e costumes. As arbitragens que forem realizadas têm de respeitar, desde que esses usos e costumes estejam em conformidade com a ratio do ordenamento local, do ordenamento nacional aplicável, desde que não discrepem, não afastem a abrangência que se dá, por exemplo, no Direito brasileiro, ao princípio da boa-fé – se pensarmos em boa-fé objetiva –, que gera direitos conexos, anexos, instrumentais, como se queira denominar. Não estão normalmente previstos no texto contratual, mas acabam se integrando na relação jurídica.

Isso tudo, em complemento ao que você mencionou, tem que ser levado em consideração, inclusive porque, embora grande parte dos... Existem muitos litígios entre seguradora e ressegurador, mas grande parte é decidida no âmbito da arbitragem. Há, inclusive, estudos de outros países. Por exemplo, na Inglaterra, cada vez mais estão indo às cortes judiciais do que às arbitragens, tendo em vista os vícios que as arbitragens internacionais muitas vezes trazem. Você está sujeito a uma arbitragem que vai contar com árbitros, que pertencem a um clube fechado. Lembro um caso brasileiro, era de seguro, não era propriamente resseguro, mas que se levou para Londres, com aplicação do Direito brasileiro, mas se levou à London Court of International Arbitration. A parte brasileira quis indicar um árbitro. Os advogados ingleses disseram: “Puxa, ele pode ser” – esse professor espanhol – “o que mais entende do assunto, mas ele vai ser escanteado pelos árbitros”. O chairman vai ser essa pessoa, tem que ser alguém com quem ele se dá bem. Então, o mundo da arbitragem também não é um mundo das mil maravilhas. Temos sempre que ter isso presente.

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Com relação às observações do Dr. Geraldo, se ainda me recordo delas, uma delas é a questão da assistência simples. Por que isso está previsto, segundo o meu entendimento, aqui no âmbito do Projeto de Lei Complementar? Como foi bem-dito, se percorrermos a jurisprudência do País, não vamos encontrar quase nada em matéria de resseguro, a não ser e fundamentalmente a discussão sobre a qualidade da intervenção do ressegurador nas lides de seguro, por força, enfim, de uma regulamentação da época do monopólio.

Entretanto essa discussão continua presente hoje. Eu participo de diversas questões, inclusive de seguro garantia, em que se pede, não a citação, mas a denunciação da lide do ressegurador como litisconsorte ou como assistente litisconsorcial. Embora o ressegurador, em função daquela independência e autonomia a que eu me referi, tenha, quando muito, interesse meramente econômico no resultado da lide de seguros. Então, é uma regra que vem para diminuir a judicialidade, a litigiosidade nesse ponto. Assim fica esclarecido e ninguém mais levanta essa questão. A seguradora informa: “Esse resseguro é facultativo, a minha exposição é muito grande, eu tenho uma retenção muito pequena, então estou avisando. Se você quiser intervir como assistente, colaborar no andamento processual, fique à vontade”. É isso, acho que é uma regra de prudência, antes de mais nada.

A regra do pagamento direto é uma regra que, além de constar já na lei complementar, costuma constar também do clausulado dos contratos de resseguro e, em particular, dos contratos de resseguro facultativo. Agora, é verdade, o Projeto de Lei Complementar dá uma abrangência maior ao que dá a lei complementar, mas convive com a lei complementar. Você pode, a partir da leitura do Projeto de Lei em questão, estender essa obrigação do ressegurador, em caso de quebra do segurador, de aportar aquele valor em benefício de segurados de contratos automáticos, de tratado de resseguro também. Como? A SUSEP pode vir a regulamentar. O Conselho Nacional de Seguros Privados pode vir a regulamentar, existem meios. Só que colocar esses meios no âmbito dessa lei, já seria trazer coisas que não interessam, aqui, diretamente, que podem ser regulamentadas com muito mais facilidade na extensão do poder regulamentador desses órgãos a que me referi.

Acho importante ter isso em conta, porque o ressegurador, assim como o segurador, também constitui provisões. Essas provisões

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funcionam como uma espécie de patrimônio separado. No Direito italiano, a temos essa figura de patrimônio separado. Provisões são destacadas do balanço e têm uma destinação específica. É justamente isso que acontece, embora não com esse regramento contábil, em matéria de resseguro. Então, por que não pegar esses valores e saldar as dívidas de seguro? Isso é mais importante para o desenvolvimento econômico social, que é um imperativo constitucional, do que colocar no âmbito de um procedimento de recuperação judicial e ficar discutindo qual é a prioridade, se a prioridade seriam sempre os credores tributários, trabalhistas, etc. Para isso você tem o restante do patrimônio da seguradora, a responsabilidade do sócio, etc. Parece-me de muito bom tom e um incremento muito importante para o desenvolvimento da indústria do seguro no país.

Muito obrigado.

DR. CESAR SANTOLIM – Muito obrigado, Dr. Paulo, mais uma vez, por essa brilhante análise. Posso perceber que a riqueza do tema permitiria que o debate seguisse. Tenho certeza de que seria muito interessante. No entanto, por razões de logística, vamos encerrar aqui o nosso painel da manhã, convidando a todos para às 14 horas retomarmos as atividades. Muito obrigado.

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Painel 3, 04-06-2019:Contrato de Seguro no Direito do Uruguai e do México

Palestrantes – Dr.ª Andrea Signorino Barbat e Dr. Pablo Medina Magallanes.Debatedores – Dr.ª Paula Müller Cauduro e Dr.ª Shana Fensterseifer Gulart.

Painel 4, 04-06-2019:Contrato de Seguro no Direito da Argentina

Palestrantes – Dr. Felipe Aguirre e Dr.ª María Fabiana Compiani.Debatedor – Dr. Marco Aurélio Mello Moreira.

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Painel 1, 05-06-2019:

Contrato de Seguro e Lei Geral de Proteção de Dados

DR. MARCELO BARRETO LEAL – Muito bom dia a todos. Gostaria de reiniciar os trabalhos deste belo evento mencionando a parceria entre o Centro de Estudos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e o Programa de Pós-Graduação da UFRGS, a qual prestou apoio e protagonismo, por assim dizer.

Primeiro, gostaria de agradecer a presença do público, de todos os participantes. Nós temos aqui advogados, integrantes das assessorias dos gabinetes e magistrados, nas figuras dos Desembargadores Ney Wiedemann e Luís Augusto Coelho Braga, a quem agradeço a homenagem da presença, do testemunho.

Quero agradecer o convite do Des. Umberto Sudbrack, nosso Diretor do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça; Prof. Bruno Miragem, Coordenador do evento, representando o Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e fazer uma saudação, Desembargador, como Presidente da Comissão de Seguros e Previdência Complementar, ao nosso Presidente da OAB, Dr. Ricardo Breier, que transmite as suas festivas saudações à Casa. Também, como professor da UniRitter, saúdo os professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que ajudaram a organizar este evento.

De pronto, passo ao início dos trabalhos, sem mais delongas, até porque estamos aqui para ouvir um tema bastante interessante e que impacta muito o mercado securitário, vários mercados regulados, mas especialmente o mercado segurador, que é o tema da Lei Geral de Proteção de Dados. A exemplo da lei europeia, por incrível que pareça, ainda que estejamos em um sistema de common law, vários Estados Federados dos Estados Unidos adotaram, praticamente replicaram a Lei Geral de Proteção de Dados à diretiva europeia, que foi, talvez, a precursora.

Eu me lembro de um case muito interessante. Assim que houve a publicação da diretiva europeia, o Estado Federado da Califórnia, imediatamente, para que os negócios não fossem afetados, especialmente em relação à manutenção de dados, ao processamento de dados, replicou a

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diretiva europeia, em uma demonstração de boa-fé, em uma demonstração de apaziguamento, para um ambiente de negócios. Nós temos, no Estado da Califórnia, a maior matriz de desenvolvimento em inovação do ponto de vista tecnológico.

Então, é interessante o movimento. Cada vez mais o sistema romano-germânico e o sistema da common law se aproximam, se tocam. O sistema romano-germânico cada vez mais adota a força dos precedentes, e o sistema da common law cada vez mais positiva algo que não era do seu feitio, que não era da sua cultura – um mundo cada vez mais, com o perdão da expressão surrada, efetivamente global.

Para falar sobre esse tema, com muita qualidade, com muita propriedade, estão aqui dois palestrantes e uma debatedora, que vai dar a sua opinião com um viés de mercado. Eu passo, de pronto, a apresentação da nossa primeira palestrante, a Dr.ª Luiza Moreira Petersen.

A Dr.ª Luiza, advogada militante, conhecida de todos nós que trabalhamos e laboramos no mercado segurador, é doutoranda e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação do Prof. Bruno Miragem. É especialista em Direito de Seguros, pela Fundação Escola Superior do Ministério Público e autora do livro O Risco no Contrato de Seguro. E, também, hoje, secretária da comissão jovem da Associação Internacional de Direito de Seguros, da seção brasileira da AIDA.

Dr.ª Luiza, é um prazer recebê-la aqui e dividir o painel com a colega. A palavra é toda sua.

DR.ª LUIZA MOREIRA PETERSEN – Obrigada, Marcelo. Inicialmente, eu gostaria de cumprimentar os integrantes da mesa, o nosso lounge de debates: o Dr. Marcelo Barreto Leal, que gentilmente aceitou o convite; a Dr.ª Deborah Sperotto, que também aceitou o convite para participar como debatedora; o meu querido amigo, o Dr. Thiago Junqueira, doutorando pela UERJ, que vai nos brindar também com a sua palestra sobre o tema.

Também cumprimento a todos, estudantes, servidores, magistrados, advogados presentes. Vejo na plateia muitos amigos. Em especial, agradeço à pessoa do Des. Ney Wiedemann Neto o apoio e a parceria com o Centro de Estudos do Tribunal de Justiça para a realização deste evento em conjunto com o nosso Núcleo de Estudos em Direito e Sistema Financeiro

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da UFRGS, que justamente tem como objeto a análise dos contratos de seguro, do Direito de Seguro, assim como o Direito Bancário e o Direito do Mercado de Capitais.

Eu faço essa saudação a todos, cumprimentando também o Marco Aurélio, que é meu tio e que participou também da organização deste evento. Então, é uma alegria, uma satisfação muito grande poder estar com vocês aqui no Tribunal falando sobre o tema do Contrato de Seguro.

Eu também gostaria de justificar a minha ausência ontem ao evento. Infelizmente houve uma coincidência de datas, e eu estava prestando prova para o concurso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul para professor temporário. Encerrado o certame, aqui estou plenamente para os nossos trabalhos.

O tema que me coube hoje falar é sobre o Seguro e a Lei Geral de Proteção de Dados. A Lei de Proteção de Dados foi sancionada pelo Presidente Michel Temer, em 2018, e entrará em vigor em 2020. A proposta do painel é justamente analisar os impactos dessa lei no setor de seguros, na atividade de seguros, no contrato de seguro. Será, digamos assim, um grande desafio a interpretação e a aplicação dessa lei, não apenas dentro do Direito de Seguro, mas em todos os campos do Direito. Vai abarcar muitos setores. Todos teremos que nos adaptar a essa nova realidade. É um novo marco que se instaura no Direito Brasileiro.

A Lei de Proteção de Dados inaugura no Brasil um sistema geral de proteção de dados. Ela se inspira no modelo europeu, no regulamento europeu de proteção de dados. Até então, não havia no Brasil uma lei sistemática, unitária e geral, aplicável para todos os setores, seja público ou privado. Antes dessa lei, o que se verifica são normas setoriais, normas especiais, como o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet, que regulam algumas questões pontuais sobre o tema, mas não de forma completa. Em relação à atividade de seguros, também não havia uma regulamentação específica. O tratamento de dados pelo segurador se dava de forma livre, sem uma regulamentação. A Lei de Proteção de Dados vem em um momento muito específico da sociedade de informação, vem como uma resposta ao fenômeno do intenso fluxo de dados a que nós todos estamos submetidos. Está presente na nossa vida nas situações mais simples do dia a dia.

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Nós temos dados coletados, informações coletadas sob diversas formas, desde o momento em que chamamos o Uber – o aplicativo registra o nosso trajeto – até a utilização do Waze, e smartphones possuem uma tecnologia que capta o som do ambiente. Atualmente se fala também em brinquedos inteligentes, que têm a capacidade de captar esses sons. Quem nunca se colocou na situação de falar alguma coisa perto do telefone, e logo em seguida ser ofertada uma publicidade, alguma coisa nesse sentido, no Facebook, na internet? Vejam, isso ocorre a todo momento.

Como nós iremos proteger, então, a privacidade, a liberdade do cidadão nesses casos? Qual é o limite da coleta no tratamento dos dados? Além disso, esse intenso fluxo de informações, de dados, vai dar margem justamente para práticas discriminatórias, para eventuais práticas abusivas que discriminem consumidores, com a fixação de preços diferenciados, sem um motivo legítimo. Enfim, uma série de desafios que a lei vem para abarcar, no sentido de tutelar o indivíduo nessa nova realidade.

A lei é ampla, pois tem aplicação universal tanto para setores públicos quanto para setores privados. O setor de seguros certamente será um dos mais afetados pelo surgimento dessa lei, justamente porque a atividade securitária é uma atividade típica de tratamento de dados. É da essência do seguro o tratamento de dados. O segurador tipicamente, por excelência, para o exercício da atividade de gerenciamento do risco, trata os dados.

Antes de avançarmos, é importante nós termos presente uma distinção. Há aqueles dados tratados pelo segurador que são necessários ao exercício da atividade de seguros, ou seja, são necessários para a execução do contrato, para o cálculo do prêmio, para regulação do sinistro. E há, de outro lado, aquele tratamento de dados que não necessariamente é pressuposto do contrato de seguro, um tratamento que o segurador realiza para outras finalidades que não propriamente a execução do contrato. Exemplo: publicidade, tomada de decisão.

A proposta da palestra é analisar justamente o tratamento dos dados necessários à execução do contrato. O tratamento de dados do segurado é importante para o seguro, porque decorre de uma relação íntima existente entre dados do segurado – ou seja, informações subjetivas do segurado, como sexo, idade, profissão, comportamentos, hábitos, prática de esportes, consumo de cigarro – com a dimensão do risco coberto. Essas

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características pessoais do segurado interferem na probabilidade de sinistro, que, tradicionalmente, são coletadas pelo segurador através da declaração inicial do risco, que é o método, por excelência, de coleta de dados no seguro para a mensuração do risco e cálculo do prêmio.

Além disso, o tratamento de dados no seguro não para aqui. Na verdade, ele se dá de forma contínua durante toda a execução do contrato, tanto na fase pré-contratual quanto na fase de execução. Na fase de execução, a própria regulação do sinistro implica processamento de diversos dados do segurado: boletins de ocorrência que contenham informações do sinistro, laudos médicos para apuração da invalidez e também as próprias alterações na vida do segurado que provoquem alterações no risco, como mudança de endereço. Por isso nós temos que compreender o tratamento de dados no seguro como um processo contínuo e dinâmico, que inicia na fase pré-contratual, mas também perdura durante toda a relação contratual.

Feita essa breve introdução sobre a importância dos dados no seguro, sobre a importância da nova lei, passo então a abordar alguns aspectos que eu selecionei como mais interessantes da lei, para que nós possamos discutir com os colegas, em uma perspectiva mais ampla, o contexto geral da lei. Depois, o Dr. Thiago Junqueira irá adentrar em pontos específicos, como a própria discriminação no seguro.

Sobre o âmbito de incidência da lei, já falamos que ela se caracteriza pela generalidade e unidade, então se aplica a diversos setores. Agora, alguns questionamentos. Em que medida ela será aplicada nos contratos de seguro? O segurador realiza tratamento de dados? Quais dados tratados pelo segurador são protegidos pela lei? Em quais relações securitárias incide a nova lei?

Nós temos que analisar o conceito de tratamento de dados previsto no art. 5º da Lei Geral. O artigo conceitua o tratamento de dados como “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”. Ou seja, tudo.

Fica muito claro que o tratamento de dados realizado pelo segurador, seja na coleta dos dados, seja no próprio processamento... Ou seja,

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à medida que o segurador transforma os dados pessoais pela probabilidade e estatística e aplicação da lei dos grandes números, transforma os dados individuais dos segurados em informações úteis e os dados dos segurados em probabilidade e estatística. Não há dúvidas, então, que o tratamento realizado pelo segurador é um tratamento de dados.

Agora, quais são os dados tratados pelo segurador que são protegidos? Aqui entra especialmente o conceito de dado pessoal, previsto no art. 5º, inc. I. Dado pessoal é a “informação relacionada à pessoa natural identificada ou identificável”.

Em relação aos dados subjetivos do segurado, como sexo, idade, profissão, nós percebemos que é bem fácil o seu enquadramento enquanto dado pessoal. Mas a pergunta que podemos fazer é em relação aos dados do bem segurado: a residência, o automóvel. São dados pessoais? Porque esses dados também são coletados pelo segurador. O segurador precisa, para avaliar o risco, saber o ano, o modelo, a marca do veículo do segurado. Nesse caso, a orientação legislativa é que, a priori, se essa informação permitir a identificação do segurado, seria um dado pessoal. Daí um colega, na aula passada sobre seguros, levantou o seguinte questionamento: “Luiza, mas talvez nem todo objeto seja um dado pessoal”. Sim, não é todo objeto que é um dado pessoal. Um par de óculos é um dado pessoal? Depende. Ele permite a identificação da pessoa? Ou o correto seria interpretar que dado pessoal seriam apenas aquelas informações relacionadas à personalidade do indivíduo? Esse é um dos desafios que se coloca na interpretação da lei nos contratos de seguro.

O outro aspecto, também sobre a incidência da lei, diz respeito a quais relações de seguro incide essa proteção. A pergunta é: incidiriam sobre as relações empresariais? Porque os dados coletados são da pessoa jurídica, e o conceito de dado pessoal é informação relacionada à pessoa natural. Agora, podem ser dados da pessoa jurídica, mas, se esses dados permitirem a identificação de uma pessoa, de um empregado ou da pessoa por trás da pessoa jurídica, um sócio, daí se tornam dados pessoais. Podemos ter campos de incidência. Em alguns setores, em alguns contratos pode incidir a lei relativa a alguns dados e a outros, não. Isso vai ser uma análise muito minuciosa no caso diante do seguro em questão.

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Eu gostaria de destacar para os senhores que o segurador trata dados, é da essência da atividade, é um pressuposto necessário à execução do contrato. Agora, o que ele precisa fazer para legitimar esse tratamento? O que vai legitimar esse tratamento e quais são as hipóteses em que haveria uma violação da proteção de dados e que estaria fora da lei, que não satisfaria os requisitos legais?

Temos que avaliar essa questão da legitimidade do tratamento, se legítimo ou não, especialmente sob dois aspectos. O primeiro é a partir do art. 7º da lei, que trata das hipóteses que autorizam o tratamento de dados. O segundo, a partir dos princípios que regulam o tratamento de dados – art. 6º. Claro que poderíamos recorrer também aos direitos básicos reconhecidos para o titular dos dados, mas, digamos, essas duas normas são o núcleo que vai nos guiar para a decisão sobre a legitimidade do tratamento.

Ressalvo que há dois principais regimes de tratamento de dados na lei mais relevantes para o seguro. O primeiro é o regime geral, aplicável a todos os dados pessoais, cujas hipóteses autorizativas estão no art. 7º. O segundo regime é justamente o regime dos dados sensíveis, que está previsto no art. 11. Por que esse regime é relevante para o contrato de seguro? Porque na categoria dos dados sensíveis estão justamente os dados de saúde, que, como os senhores sabem, são muito relevantes, especialmente nos seguros de vida, de acidentes pessoais e de saúde, planos de saúde.

A disciplina dos dados sensíveis é uma disciplina especial, que prevê um maior rigor nas normas, um maior extender a ser atingido pelo controlador dos dados, pelo segurador, para que esse tratamento seja legítimo.

Iniciando pelo regime geral, nós temos no art. 7º diversas hipóteses que vão autorizar o tratamento de dados. A primeira delas é justamente o consentimento, que decorre do princípio da autodeterminação informativa dos dados, da ideia de que o titular deve ter o poder de decidir sobre o uso dos seus dados. Por trás dessa hipótese, está justamente o princípio da liberdade, a liberdade do indivíduo. “Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: I – mediante o fornecimento de consentimento pelo titular.”

Agora, esse consentimento tem requisitos. O art. 8º da lei dispõe que o consentimento deverá ser fornecido por escrito ou por outro meio que demonstre a manifestação da vontade do titular. O § 1º: “Caso o

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consentimento seja fornecido por escrito, esse deverá constar de cláusula destacada das demais cláusulas contratuais”. O § 4º: “O consentimento deverá referir-se a finalidades determinadas, e as autorizações genéricas para o tratamento de dados pessoais serão nulas”.

O consentimento deve ser específico, deve ser para uma finalidade determinada. O segurador deve indicar por que aquela informação é relevante. É para o cálculo do prêmio? É para a regulação de sinistro? Não basta um consentimento genérico para todo e qualquer tipo de informação, mas a questão que eu gostaria de trazer em relação ao consentimento, para problematizar mais com os senhores, seria justamente que um dos requisitos do consentimento é que ele seja livre.

Então, em que medida podemos falar em consentimento livre no seguro se os dados coletados pela seguradora são necessários para a execução do contrato? Em que medida podemos falar em consentimento livre se o segurado não informar os dados? Haverá uma recusa da proposta porque a seguradora não vai admitir aquele seguro? Essa é a primeira dificuldade.

A segunda dificuldade é que no próprio consentimento, dentro da ideia de consentimento livre, está a ideia de que consentimento pode ser retirado a qualquer momento pelo segurado. Se pode ser retirado a qualquer momento, como fica o contrato de seguro? E se o segurado quiser retirar o consentimento? Ocorreu o sinistro. Ele retira o consentimento. Como é que a seguradora vai regular? O segurador se torna, a partir de então, impossibilitado de cumprir sua prestação pelo exercício de um direito por parte do segurado.

Vejam, o consentimento valoriza a liberdade, a autonomia privada. Agora, ele talvez não seja o mais adequado para o contrato de seguro ou talvez para aqueles dados que são relevantes para a execução do contrato. Podemos falar em consentimento para publicidade ou para tomada de decisão por parte do segurador. No que pertine à execução do contrato, eram essas duas questões que eu gostaria de ressaltar.

Quais seriam as outras hipóteses que autorizam o tratamento de dados? Justamente, há um inciso que me parece que se enquadra bem. Claro, a lei não foi feita para os contratos de seguro, certo? Nós temos que pensar qual melhor se amolda, qual é aplicável, considerando as características desse meio, considerando as características e a necessidades do seguro. No art. 7º, o inc. V diz: “Quando necessário para a execução de

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contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular, a pedido do titular de dados”. Então, quando necessário para a execução do contrato.

Nós vimos que o tratamento de dados é condição para a existência do contrato de seguro, então essa me parece que é uma importante hipótese. Há também o próprio interesse legítimo do controlador, que poderia justificar também o tratamento desses dados. Agora, é um conceito mais aberto, que requer uma ponderação, inclusive do interesse do próprio segurado titular dos dados. É uma hipótese mais difícil, requer um ônus argumentativo maior por parte do intérprete.

Mas não basta apenas o enquadramento, nós conseguirmos enquadrar o contrato de seguro, o tratamento dos dados do segurado em uma das hipóteses tem que observar, tanto na fase de execução como na fase pré-contratual, uma série de princípios. Eu vou destacar os que mais me chamam a atenção.

Princípio da finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades. Houve o consentimento do segurado para o tratamento, para uma finalidade, para o cálculo do prêmio, para a regulação do sinistro. Não pode o segurador utilizar aqueles dados para a publicidade, não pode o segurador compartilhar esses dados com outro integrante do grupo econômico. Autorizou a Caixa Seguradora, não permitiu o compartilhamento, não pode compartilhar com o banco, com a Caixa-banco. Então são alguns cuidados.

Princípio da adequação: compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular. A finalidade informada é compatível com o tratamento realizado?

Necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades. O princípio da necessidade é de extrema relevância no contrato de seguro, na medida em que ele impõe certo padrão de racionalidade no uso de dados. Ele veda aquele modelo praticado no mercado por alguns seguradores que perguntam tudo da vida do sujeito – são tantas perguntas que isso se torna até um excesso de informação. Tem que ser necessário para o cálculo do prêmio, tem que ser necessário para o cálculo do risco. E a quem incumbe a prova dessa necessidade? Ao segurador.

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Também gostaria de destacar os princípios do livre acesso e da transparência que vão ter, digamos assim, um papel central especialmente na execução do contrato, no momento em que os dados foram coletados e estão sendo geridos e tratados pelo segurador. O livre acesso garante aos titulares a consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento – a qualquer momento o segurado pode solicitar essa informação ao segurador. E o da transparência garante informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento.

O contrato de seguro tradicionalmente iniciou com o regime da declaração inicial e depois, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, com informações relativas ao serviço prestado. O dever de informação se agrega justamente ao tratamento de dados. É uma informação que deve ser prestada não só na fase pré-contratual, mas também na fase de execução do contrato e pós-contratual.

Por fim, abrindo o tema sobre a vedação à discriminação, que é um dos princípios da nova lei de seguros, para o Dr. Thiago Junqueira tratar, dispõe a lei: “Não discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos”.

Vejam, o segurador sempre tratou dados pessoais. Tradicionalmente ele trata dados pessoais: sexo, idade. São fatores relevantes especialmente no seguro de vida, de automóvel. Agora, a Lei de Proteção de Dados traz à tona o debate sobre a discriminação no contrato de seguro, e esse debate pode ser travado por meio de duas perspectivas principais.

A primeira é se falar em discriminação na recusa da contratação. Eu mencionei esses dias em uma palestra, no Escritório Müller & Moreira, que um amigo foi pegar um financiamento para comprar um imóvel. O banco exigiu o Seguro Prestamista, e a seguradora negou. Por quê? Porque ele preencheu o questionário e disse que tinha diabetes, e a seguradora negou por causa disso. Esse meu amigo me disse: “Luiza, foi a primeira vez na minha vida que eu me senti discriminado”. Então, quais são os limites da recusa? Esse é um dos principais desafios – o Dr. Thiago está trabalhando o tema na sua tese – no Direito de Seguros.

Claro, é inerente ao contrato de seguro a seleção do risco. Nós temos que preservar a seleção do risco. Agora, temos que fixar critérios

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também para diferenciar distinções discriminatórias, ilegítimas e distinções legítimas, na medida em que fundadas em um fator de justificação.

O segundo aspecto, em que nós também podemos tratar a questão da discriminação, é justamente em relação ao método de cálculo do prêmio, a eleição de certos fatores subjetivos do segurado como método atuarial. Na Europa, na União Europeia, há uma diretiva que veda – está em vigor – a distinção dos segurados em função do sexo para fins de precificação do seguro. Então esse é outro desafio que nos é colocado frente ao regime da Lei de Proteção de Dados.

Eu gostaria de ter tratado também dos dados sensíveis, mas o meu tempo já se esgotou. Deixo, então, para os nossos debates. Na sequência, vamos poder falar sobre esse tema. Passo a palavra, de imediato, para o Dr. Marcelo Barreto Leal. Muito obrigada.

DR. MARCELO BARRETO LEAL – Dr.ª Luiza, meus parabéns pela densa exposição, própria de quem se dedica, há alguns anos, não só à labuta, à militância na advocacia, mas também que tem uma obra de peso, fruto da sua dissertação de mestrado recente. Nós acabamos de citar o seu currículo, o seu livro, fortemente recomendado para quem trabalha no mercado e para quem se interessa pelo tema – leitura obrigatória. Parabéns pela qualidade do livro e pela qualidade da exposição.

O que move a ciência não são as respostas, o que move a ciência são as dúvidas. E a Prof.ª Luiza – tenho orgulho de chamá-la de professora, porque verdadeiramente se tornou uma professora em razão de sua forte dedicação à Academia – demonstrou a importância das inquietações que temos hoje.

Temos um colega de mercado em comum que cita várias vezes essa frase, é da sua autoria, que é cada vez mais pertinente nas nossas realidades: “O que foi certo ontem talvez não seja mais certo hoje. E o que é certo hoje provavelmente não será correto amanhã”.

As realidades mudam, as demandas da sociedade mudam e mudam hoje muito rapidamente. O acesso às novas tecnologias, o incremento das novas tecnologias, com a aceleração de demandas por parte da sociedade e a mudança de valores por parte da sociedade – é uma sociedade que tem mais o ter do que o ser – formam esse caldo de cultura que nós estamos

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vivendo hoje. Essa sociedade pós-moderna, a sociedade contemporânea, que tem tantas inquietações e tantas novas demandas.

A questão que a colega comenta me chamou muito a atenção em relação ao consentimento, conceito que nós trabalhamos lá no séc. XVIII, no séc. XIX, que vem nos trazendo até hoje e nos serviu até hoje. Talvez agora já não nos sirva mais no seu modelo clássico, no modelo que foi elaborado pelo Código Napoleônico, que serviu de base para todos os códigos civis do sistema romano-germânico e que, de certa forma, influenciou a legislação do séc. XX e do séc. XXI também. Nós não mudamos muito, não estamos muito diferentes – não sei se os colegas concordam – daquelas propostas de solução do ponto de vista legal, legislativo.

Estamos hoje diante de um novo marco regulatório em relação ao mercado de seguros: novas demandas, novas necessidades e novas necessidades de soluções também. Esse é o desafio hoje do jurista contemporâneo.

Parabéns, Dr.ª Luiza, pela sua exposição. Eu insisto, ficaram muitas dúvidas aqui, mas dúvidas de quem está em sintonia com as novas demandas da sociedade.

Sem mais delongas, porque o meu papel aqui é pura e simplesmente passar a bola de forma redonda – com o perdão da brincadeira – aos palestrantes, temos outro colega, que eu tenho prazer de dizer que é meu amigo, o Prof. Thiago Junqueira, doutorando em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro; mestre pela Universidade de Coimbra; professor do IDS América Latina e da Escola Nacional de Seguros; pesquisador visitante do Instituto Max Planck de Direito Internacional Privado e Comparado em Hamburgo, na Alemanha, e nosso colega, advogado, que vai tratar também do tema com tanta qualidade quanto tratou a nossa colega Luiza.

DR. THIAGO JUNQUEIRA – Bom dia a todos. É um prazer muito grande estar aqui hoje com vocês. Cumprimento o nosso presidente de mesa, Dr. Marcelo, um amigo mesmo, é sempre bom revê-lo. Prazer muito grande também compor este painel com a minha querida amiga, Prof.ª Luiza, que facilitou muito o meu trabalho, vocês podem verificar. Também é um prazer estar aqui com a minha amiga Dr.ª Deborah. Um cumprimento muito especial ao Prof. Bruno Miragem, mestre de todos nós. É sempre uma honra estar aqui

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bebendo um pouquinho da fonte, professor, obrigado mesmo. Uma saudação especial ao Des. Ney, obrigado. É um prazer estar no Tribunal. Dr. Marco Aurélio e todos os amigos presentes.

O tema de hoje é – como já foi dito – Seguro e Lei Geral de Proteção de Dados. Eu preparei um pequeno slide, se me permitem. Acho que ficará melhor utilizar aqui. O tema que está na ordem do dia, esta frase é bem conhecida no âmbito do Direito de Proteção de Dados: “Confiamos em Deus. Para as outras pessoas, para as outras coisas, por favor me tragam dados”. Curiosamente, essa frase foi dita na década de 70. Vejam que não é uma coisa propriamente nova, mas atualmente ela ganhou um relevo. Vivemos em uma sociedade movida a dados, e essa sociedade traz três principais desafios. Quais seriam esses desafios?

O primeiro é o controle dos dados em si, a privacidade, a questão da autodeterminação informativa, as decisões tomadas por algoritmos – e aqui estamos em um Tribunal de vanguarda. Nos Estados Unidos, têm começado a ocorrer decisões, como, por exemplo: análise de progressão de regime, no âmbito penal, a utilização de alguns algoritmos, que já foram provados discriminatórios. A questão da raça tem vários relatos em relação a isso. Outro exemplo de discriminação muito citado é no âmbito do Direito do Trabalho, na questão da contratação. Por exemplo, sabemos que infelizmente a sociedade ainda é um pouco machista. Geralmente, quem está no topo da empresa são homens. Então, se abre uma vaga, o algoritmo, analisando aqueles dados, mesmo que ele seja bem programado, a tendência é que ele escolha um homem. Isso é uma coisa que tem de ser problematizada e, no âmbito do seguro, isso traz reflexos claros.

Também a própria manipulação das pessoas, colocando até mesmo a democracia em risco – eleição dos Estados Unidos geralmente é citada em relação a isso. Não vou poder entrar nos detalhes em relação a todos os slides. O nosso tempo é curto, mas acho que vai ser possível dar um panorama geral do que está em análise. Uma brevíssima contextualização: o surgimento do direito à privacidade em uma perspectiva do direito a ser deixado só. Um artigo clássico publicado na Universidade de Harvard, em 1890. Atualmente, já há uma perspectiva um pouco diferente, uma perspectiva da autodeterminação informativa, de uma perspectiva estática, negativa: “Quero ficar só, não me atrapalhe”. O direito de ser deixado em paz, com uma

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perspectiva positiva, dinâmica: “Quero ter um controle em relação aos meus dados”.

A evolução do quadro normativo, bem rapidamente também, como evoluiu aqui no Brasil? A própria Constituição protege a privacidade. O Código Civil também traz um regramento específico sobre o direito à privacidade. No CDC há o art. 43, relativo aos bancos de dados. Já tínhamos algumas fontes que não eram muito utilizadas. O setor de seguro praticamente não era utilizado. Há um artigo muito interessante do Prof. Mario Viola, em que ele defende a aplicação do art. 43, traz um direito à correção, à análise dos dados que estejam nos bancos de dados dos seguradores. Existiam também algumas outras fontes normativas, como a Lei de Cadastro Positivo de Crédito. A LGPD veio para trazer um sistema geral, ela se articula em torno de cinco eixos principais – e aqui estou utilizando um artigo do Prof. Danilo Doneda e da Prof.ª Laura Mendes, publicado na Revista do Direito do Consumidor. O primeiro ponto fundamental: unidade e generalidade de aplicação. Então vai ser aplicado tanto no âmbito público quanto no âmbito privado, inclusive no setor de seguros, obviamente. A necessidade de legitimação para o tratamento de dados, então, as hipóteses autorizativas, a Prof.ª Luiza trouxe bem. Os princípios e os direitos do titular. Obrigações dos agentes de tratamento de dados e responsabilização dos agentes. Basicamente, esses são os eixos principais da Lei de Proteção de Dados.

Há uma tensão, que já fica patente logo no art. 2º da lei, que é em relação à proteção da pessoa por trás dos dados, ou seja, da privacidade, inviolabilidade da intimidade, autodeterminação informativa. Por outro lado, um fundamento da lei também é a livre iniciativa, o outro é a livre concorrência, o desenvolvimento tecnológico e a inovação. Há uma clara tensão em relação à proteção da privacidade e a utilização da tecnologia, utilização de dados para uma evolução à livre iniciativa.

Uma pergunta que retrataria bem o que estamos tentando debater seria exatamente esta: quais dados pessoais deveriam ser considerados pertinentes, proporcionais, não excessivos e não ensejadores de uma discriminação ilícita ou abusiva, sendo, portanto, aptos a serem tratados pelo segurador? É uma pergunta impossível de ser respondida no estágio atual, dificilmente será respondida. Obviamente, tem que ser uma análise em concreto. Até vou falar um pouquinho mais para frente sobre a questão dos

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dados pessoais e dos dados sensíveis. Existe uma perspectiva um pouco estrutural do que seria um dado sensível, e essa perspectiva, a meu ver, está incorreta. Não poderemos trabalhar assim, principalmente no âmbito do contrato de seguro.

Então, utilizando novamente todo o conhecimento que a Prof.ª Luiza já passou, quais são as principais bases legais para o tratamento pelo segurador? Em relação aos dados pessoais, o art. 7º traz algumas hipóteses autorizativas. Eu separei algumas que talvez se encaixariam melhor no que estamos debatendo. Eu acho que basicamente estes são os três principais: necessidade por execução do contrato, interesses legítimos do controlador, do segurador e o consentimento dado pelo titular. Eu separei mais dois que talvez poderiam ser utilizados: cumprimento de obrigação legal regulatória e exercício regular de direitos em processo judicial. Quando nós vamos para os dados sensíveis, olha que curioso, necessidade por execução do contrato não pode, a lei não traz essa hipótese. Interesses legítimos, a lei não traz essa hipótese como autorizativa. Então, necessitaria de um consentimento dado pelo titular de forma específica para aquele tratamento ou, quando for indispensável, não havendo consentimento, mas, quando for indispensável, cumprimento de obrigação legal, exercício regular de direitos, garantias de prevenção à fraude. O segurador provavelmente vai utilizar um desses argumentos para o tratamento de dados sensíveis, e isso traz, obviamente, vários problemas.

Especificamente sobre a ideia de dado sensível, o conceito de dado sensível, o art. 5º traz esse conceito, levando em conta alguns dados que historicamente causaram mais discriminação na nossa sociedade: origem racial, convicção religiosa, opinião política, dados referentes à saúde. O curioso é que no art. 11, § 1º... E aqui utilizando novamente o conhecimento do Prof. Danilo Doneda, que deu uma palestra recentemente, pudemos debater um pouquinho. Ele foi um dos autores da lei e afirma que houve a convalidação de uma tese que ele defende há muito tempo: que essa ideia de dado sensível talvez devesse ser reanalisada para uma ideia de tratamento sensível de dados, ou seja, aplica-se o disposto relativo aos dados sensíveis a qualquer tratamento de dados especiais e que revele dados pessoais sensíveis e que possa causar dano ao titular, ressalvado o disposto em legislação específica.

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Vocês querem ver um exemplo paradigmático do que eu estou tentando falar? Na Inglaterra recentemente houve um escândalo em que as seguradoras estavam utilizando o nome do candidato assegurado para discriminar, para precificar de uma forma totalmente diferente. Por exemplo, uma pessoa que se chamava Mohamed foi cobrada até 900 euros a mais do que outra pessoa que tinha um nome qualquer – John, um nome tradicionalmente britânico – e os outros dados todos idênticos, modelo do carro e endereço. Foi claramente uma questão ligada ao nome, que remete talvez à religião, talvez à etnia. Olhem o tamanho do desafio, a importância da análise desse tema e a dificuldade de dar uma resposta definitiva.

No universo do contrato de seguro, falta um diálogo muito claro entre o setor segurador e os estudiosos de proteção de dados, de tecnologia. Geralmente, eles citam como exemplo a precificação do prêmio, mas eles nunca analisam a fundo o que está de fato no contrato de seguro. Por outro lado, a doutrina tradicional securitária, para falar a verdade, ignora essa questão de tratamento de dados, ignora essa questão de discriminação. Fala muito reflexamente sem uma análise tão apurada, salvo honrosas exceções.

Então, o que podemos trazer de contribuição? Eu procurei na palestra fazer esse recorte. Quais são os aspectos positivos e os aspectos negativos para uma ampliação da utilização de dados? O que o segurador vai trazer de benefício para o consumidor? Porque sempre esta postulação: “Nós fazemos em benefício do consumidor”. O que o consumidor vai ganhar com a utilização dos dados, dispondo os dados? Por outro lado, quais são os riscos, quais são as armadilhas envoltas?

Circular SUSEP n. 251, de 2004, traz a possibilidade de recusa de contratação pelo segurador, desde que justificada. Aí entramos nessa discussão, porque na prática ela fala que não aceita, que o candidato a segurado não está dentro dos critérios analisados ou utilizados pelo segurador, então isso seria uma justificação ou não. A princípio, o segurador tem, sim, essa legitimidade de recusar a contratação, uma coisa que no âmbito do Direito do Consumidor não é muito bem aceita – o Prof. Bruno sabe muito bem.

A apólice. Art. 759 do Código Civil: “A emissão da apólice deverá ser precedida por proposta escrita com a declaração dos elementos essenciais do interesse a ser garantido e do risco”. O art. 766 traz um dever de declaração inicial do risco. Percebam que o contrato de seguro já traz inúmeros

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deveres informativos por parte do candidato a segurado e do segurado, tanto na fase pré-contratual, se houver um agravamento do risco, o aviso do sinistro. Isso tudo, no limite, são dados pessoais. Então, temos que analisar qual é a amplitude desse dever.

Percebam bem como o nosso estudo do Direito de Seguros vai sair da ideia de o segurado ter que cumprir um dever de informar para uma ideia de que um segurador não pode buscar aquelas informações. A meu ver, esse vai ser o principal desafio no tratamento do contrato de seguro, porque nós sabemos quais dados eram utilizados pelos seguradores e quais dados poderão ser utilizados pelos seguradores. Provavelmente, daqui a 10 anos, o segurador vai ser capaz de saber mais do que o próprio segurado em relação aos riscos, a tudo que ele faz, aos hábitos, aos passos que ele dá no dia, aos sites que ele pesquisa na internet, às fotos que ele curtiu no Facebook, às pessoas que ele decidiu adicionar. Isso tudo é facilmente analisado via internet e vai trazer uma simetria informativa muito grande.

Qual vai ser a resposta do Direito em relação a isso? Tradicionalmente, são utilizados dados como sexo, estado civil – nacionalidade já é um pouco mais questionável, mas muito utilizado – orientação sexual, idade, hábito, histórico de sinistro, doenças preexistentes, endereço, profissão. No seguro do automóvel, podemos colocar multas e outros dados relativos ao bem em si. Quais seriam esses novos dados que eventualmente poderão ser utilizados pelos seguradores? As atividades on-line. Você buscou alguma coisa no Google, por exemplo, você está pesquisando sobre terrorismo. Se não colocarmos um limite, o segurador vai poder analisar essa informação. Também o que você compra on-line.

Aqui abrindo um parêntese, na verdade, o mercado segurador e as seguradoras estão apavorados, porque eles estão vendo as big techs, as grandes companhias tecnológicas, entrando no setor segurador. A própria Amazon e o Google estão investindo. Então, se eles não fizerem nada, eles vão perder essa hegemonia. Toda essa transformação que está ocorrendo aí no Direito de Seguro, nas seguradoras, na verdade, é muito influenciada por esse medo de perder o espaço para as insuretechs, para essas grandes empresas que já captam uma quantidade muito grande de dados e conseguem vários insights em relação a isso.

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Só fechando esse parêntese, sobre a utilização de redes sociais, até em Nova York, recentemente o Estado mandou uma carta ao mercado trazendo algumas balizas para os seguradores utilizarem as redes sociais para precificação. Então é uma coisa que já está sendo feita. Uma matéria do New York Times fala mais ou menos assim: “Poste foto correndo, não poste foto fumando”. Como as fotos que as pessoas publicarem no Facebook poderão ser analisadas pelos seguradores? Vamos começar a deixar de postar coisas porque isso pode influenciar o prêmio no seguro. E o direito ao livre desenvolvimento da personalidade? O direito à liberdade de associação?

Eventualmente, você tem um amigo no Facebook que foi preso, a seguradora vai poder utilizar esse dado? “Olha, essa pessoa não é tão confiável.” Se a pessoa vai dormir muito tarde, ela pode utilizar o dado do WhatsApp? Porque geralmente as pessoas que dormem muito tarde podem ser associadas a um maior risco. Qual vai ser o espaço de autonomia existencial para a pessoa? Essa é uma discussão que está na ordem do dia e que nós que atuamos no mercado precisamos ter. Precisamos tomar consciência disso, porque é muito fácil defender a justiça atuarial, o mutualismo. Mas o que está em jogo realmente? Acho que temos que tomar esse cuidado, porque essa questão de justiça atuarial também tem uma discussão muito forte.

A formação do perfil geralmente levava em conta poucos dados e trazia uma generalização muito grande. Um dos principais argumentos em relação à proibição do sexo na Europa foi no sentido de que não é o sexo em si que traz essa diferença tão grande entre a expectativa de vida. São os hábitos geralmente relacionados àquele sexo: a profissão, o fato de fumar ou não, o fato de fazer um exercício físico ou não. Só que para o segurador é muito mais fácil utilizar o sexo, é muito mais cômodo e, de alguma forma, se adapta bem.

A ideia seria mais ou menos a de que um bem pode ser um indicativo de precificação, mas não necessariamente deva ser utilizado. De uma forma geral, no âmbito do Direito, temos combatido muito a discriminação, mas, no âmbito de seguro, há uma licença para discriminar, baseada nessa ideia de justiça atuarial. Quando vamos ver a fundo, percebemos que há uma generalização, há uma confusão de causalidade com correlação. Agora, na época do big data, isso vai ficar muito mais claro, porque vamos parar de nos preocupar tanto com causalidade. Por exemplo, com o fato

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de que, por você ser jovem, indicaria uma relação maior de você causar um sinistro no âmbito do seguro do automóvel.

Para uma ideia de correlação, existia uma seguradora que estava utilizando e chegou à conclusão de que no seguro residencial o fato de a pessoa cozinhar em casa e, mais especificamente, o fato de ela comprar uma determinada erva chamada funcho seriam o maior indicativo de que ela não tem um risco alto. Vejam que correlação é essa, não faz o menor sentido. O fato de a pessoa comprar no supermercado uma erva não significa que ela representaria um risco menor para o segurador, mas o segurador não está preocupado em trazer causalidade, provar. Ele está preocupado em ter um risco menor. E isso vai poder ser utilizado ou não? Daí a importância da análise da proteção de dados e tudo o que está envolvido em relação a esse tema.

O uso de inteligência artificial. Aí os aplicativos são muito comuns, também no carro trazer essa telemetria. Dados financeiros oriundos de uso de cartão de crédito, entre outras coisas, como hábitos de compra, renda e o score de crédito. Recentemente, o STJ teve uma decisão falando que não poderia haver recusa de contratação em virtude da situação financeira, de uma restrição de crédito em relação ao segurado. Por outro lado, ele falou que poderia ter, sim, um aumento da precificação.

Nos Estados Unidos já há uma discussão bem avançada de utilização de dados. Por exemplo, para algumas seguradoras americanas, importaria mais o fato de a pessoa ter um score de crédito baixo do que ela já ter sofrido várias multas. Então, percebam como há uma discriminação muito grande por trás disso. O fato de a pessoa não ter uma condição financeira boa, para a seguradora, é um indicativo de que ela tem maior chance de ter o sinistro ou de cometer uma fraude. Ela não está preocupada se a pessoa tem cuidados com o carro, se a pessoa dirige bem, se a pessoa nunca tomou uma multa. Ela está preocupada com quanto que ela vai ter que despender, qual a expectativa de despesa do segurador. Por isso teremos que analisar. Você vai poder utilizar o CEP, por exemplo? Quem mora na favela? Geralmente são os negros. Você vai poder utilizar o CEP para precificar? Até que ponto? Qual o peso que você vai poder dar para esse fator atuarial? Isso tudo está em discussão, ainda muito em aberto.

Impactos em todas as fases negociais, a Prof.ª Luiza já falou também, desde a pré-contratual, marketing, subscrição. Contratual:

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monitoramento de risco e regulação do sinistro. Pós-contratual: armazenamento e compartilhamento de dados.

Há um debate muito grande na Europa em relação à otimização da regulação do sinistro, e aqui há um eufemismo dessa otimização. O que é isso? É muito comum quando vamos comprar uma passagem aérea. Dependendo do período, o preço vai estar diferente. As companhias estudam se você é uma pessoa que vai correr mais atrás de comprar com desconto, se você é uma pessoa mais relaxada que vai comprar de qualquer forma. Algumas seguradoras europeias estavam utilizando esses dados pessoais para negociar na regulação do sinistro. “Essa pessoa tem uma tendência maior a entrar com um processo, a fazer uma reclamação, a não aceitar um acordo na regulação de sinistro, então eu vou pagar o valor integral.” “Não, essa pessoa é um pouco desleixada, então eu vou propor um valor abaixo para ela.” Isso, no fundo, vai prejudicar justamente os mais pobres, os que têm menos condições, menos advogados.

Então, essa questão da otimização da precificação do contrato de seguro sem levar em conta elementos relacionados ao risco, só levando em conta elementos relacionados à procura de uma melhor oferta do seguro e também na regulação do sinistro... Para mim é mais abusivo ainda você levar em conta características da pessoa para propor um acordo melhor ou pior e não estar preocupado em trazer o valor real, o valor contratual.

Novamente um parêntese rápido, o Projeto de Lei de Conversão n. 7/2019, que está para ser sancionado pelo Presidente Jair Bolsonaro, efetivando a Lei de Proteção de Dados em relação a essa diferenciação, em relação à aplicação da Medida Provisória, traz no art. 11, § 5º: “É vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o tratamento de dados de saúde para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneficiários”. Percebam que é só nos planos privados de assistência à saúde. Então teremos que debater isso em relação ao seguro saúde, em relação ao seguro de vida e a outras modalidades.

Quais são os aspectos positivos e os aspectos negativos relacionados a essa ampliação do uso de dados? Seguros feitos sob medida, pay as you use, a ideia de que você vai poder contratar o seguro apenas durante uma viagem, pagar para ter o seguro automóvel durante essa viagem.

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Novas modalidades de riscos seguráveis. O risco cibernético é o exemplo mais comum, mas talvez novos insights venham dos dados e seja percebido que o segurado precisa mais de determinado seguro. Então, a criação de outra modalidade de risco segurável.

Nos Estados Unidos, algumas insuretechs estão dispondo de uma agilidade abismal para o segurado na contratação e na regulação do sinistro, um benefício extremo. A pessoa baixa um aplicativo, em menos de dois minutos ela contrata um seguro. Se acontece o sinistro, existem relatos de em três segundos haver o pagamento da indenização. Então, realmente, a comodidade do segurado é muito grande. Existe esse aspecto positivo, o candidato segurado não vai ter que preencher nenhum documento, todos os dados são colhidos da internet e tudo é muito mais fácil. O segurador consegue ver se há uma fraude ou não muito mais rapidamente. Então, há um combate mais efetivo a fraudes.

Incentivos na melhora de comportamento dos segurados, que seria, por exemplo, no caso de o segurado estar dirigindo o carro rapidamente. Ele recebe uma mensagem falando: “Você está acelerando muito, você está freando muito em cima da curva”. Haveria ali um incentivo a uma melhora de comportamento. Ou, por exemplo, no caso de um seguro de vida: “Essa semana você está comendo muito mal, você não praticou exercício”.

Por outro lado, vemos os aspectos negativos. Existem estudos que estão demonstrando que isso tem causado muita ansiedade e depressão em algumas pessoas. Imagine que você está em casa, tranquilo: “Nossa, trabalhei muito”. Aí você recebe uma mensagem: “Hoje você não malhou. Se você continuar assim, o seu prêmio vai aumentar”. O seu dia fica pior ainda. Então é uma coisa que temos que analisar também. Um aspecto positivo muito claro é a diminuição do valor médio do prêmio, principalmente para quem não se encaixa na categoria de alto risco, e também uma queda no número de sinistros.

Trazendo rapidamente os aspectos negativos. Talvez uma individualização excessiva, causando uma inacessibilidade do seguro para as pessoas que mais precisem contratar aquele seguro. Então, isso pode ser prejudicial para a sociedade. Aí vem uma análise também: a relação privada deve ser analisada levando em conta o social também? Porque os lucros

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ficarão com os seguradores, com os acionistas, mas como que isso impacta na sociedade?

Uma discriminação mascarada, por exemplo, a questão do sexo, a seguradora pode programar o algoritmo a não utilizar o fator sexo. Não vai ter essa programação no algoritmo, mas o algoritmo pode chegar à conclusão de que quem procura sutiã na internet tem um risco menor e utilizar esse fator como: “Olha, eu não estou utilizando o fator sexo, eu estou usando o fator quem procura o sutiã na internet”. Até que ponto isso seria legítimo ou não?

Devassa nos dados pessoais dos clientes. Haveria aí o fim da privacidade. Aumento do risco de vazamento de dados sensíveis. Atitudes oportunistas dos seguradores, como, por exemplo, essa otimização da regulação do sinistro. Também a implementação de um modelo opt-out por um monitoramento constante do risco, ou seja, a pessoa teria que optar para não ser monitorada constantemente. Isso faria com que a privacidade retornasse às origens, porque foi criado como um conceito burguês, uma ideia de ser deixado a sós para a elite da sociedade não ser incomodada. Isso provavelmente vai ser replicado: “Se você não quiser dar seus dados, tudo bem, mas o seu prêmio vai ser alto”. Porque, se você não quer dar, provavelmente há alguma coisa errada aí.

Basicamente, já chegando ao fim, o que eu quis retratar aqui com vocês foi falar que realmente tem um aspecto positivo muito alto, muito grande, em relação à utilização dessas novas tecnologias. Uma comodidade muito grande para o cliente. Há grandes possibilidades, porém existem grandes armadilhas e grandes riscos também. É preciso que aceitemos nosso papel e sejamos capazes de tentar contribuir no debate em relação a esse tema.

Aí eu pensei: “Se eu fosse resumir em duas fotos, como eu resumiria a minha palestra de hoje?” Eu cheguei a estas duas fotos, queria mostrar para vocês. A primeira: “Deus me livre, mas quem me dera. Inclusive, eu quero. Porém, depende”. Isto basicamente é o que está em jogo. “Deus me livre”: não quero ser controlado, não quero isso tudo em cima de mim. “Mas quem me dera” ter um seguro que eu não tenha que esperar 15 dias para contratar, 15 dias para receber a indenização. “Inclusive, eu quero” toda essa comodidade, todo esse lado positivo. “Porém, depende.” E a Lei de Proteção de

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Dados vai poder trazer alguns parâmetros mínimos para tentar balancear essa relação, que cada vez mais está assimétrica.

No fim: “A privacidade não está morta, ela está contratando”. Então essa é a mensagem principal que eu queria deixar para vocês. Quando eu uso “contratando”, eu não quero dizer apenas em termos profissionais, mas também está contratando pesquisadores, magistrados interessados, essa atuação essencial do magistrado também. Parabéns de novo aos organizadores do evento, este debate é fundamental. Eu lembro sempre do exemplo da bomba atômica, não é porque nós somos capazes de fazer determinada coisa que: “Espera aí, isto aqui pode acabar conosco, isto aqui pode acabar com a nossa autonomia existencial. Será que devemos dar esse passo ou não? Vamos deixar essa tecnologia nas prateleiras ou nos laboratórios?” Muito obrigado.

DR. MARCELO LEAL – Parabéns ao Dr. Thiago pela exposição sempre inquietante e muito qualificada também. O currículo do Thiago nos diz isso, nos alerta para isso e de forma alguma nos desaponta cada vez que nós ouvimos. Obrigado, Thiago, por compartilhar tua pesquisa, teus conhecimentos. O Thiago, que nós falávamos há pouquinho, passou cinco meses na Alemanha em uma imersão e trouxe de lá provavelmente muitas inquietações. Mais dúvidas do que respostas. Estamos aqui no caminho da construção das respostas. Mais uma vez, muito obrigado.

De pronto, já encaminho para o encerramento do nosso painel, com a participação da Dr.ª Deborah, que é a responsável pelos comentários das nossas duas brilhantes exposições. Incumbe à Dr.ª Deborah Sperotto fazer os comentários, essa difícil missão de agregar valor a palestras tão elaboradas e tão qualificadas.

Apresentando, então, a Dr.ª Deborah, nossa colega, advogada; especialista em Direito do Seguro pela Universidade NOVA de Lisboa; membro da nossa recém-recriada Comissão Especial de Seguros e Previdência Complementar da OAB do Rio Grande do Sul; associada da AIDA Brasil – a Associação Internacional de Direito de Seguros – e membro de seu grupo Regional Sul de trabalho; também membro convidado da Comissão de Assuntos Jurídicos da CNseg.

Dr.ª Deborah, muito obrigado pela sua participação, pela aceitação do convite. A palavra é sua.

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DR.ª DEBORAH SPEROTTO – Obrigada. Bom dia a todos. Eu gostaria inicialmente de agradecer a oportunidade de estar aqui neste painel junto com colegas tão qualificados. Gostaria de agradecer em especial o convite feito pelo Dr. Bruno Miragem, pela Luiza, para essa participação. Desde já, parabenizo o Tribunal de Justiça e a UFRGS pelo desenvolvimento deste evento, na pessoa do Dr. Ney Wiedemann, e pelo êxito já do evento, uma vez que já estamos nos encaminhando para o seu final. Foram debates muito proveitosos de temas muito importantes e palpitantes, assim como é o nosso tema hoje do painel.

Cabe a mim trazer alguns pontos de reflexão, não diferentes do que a Luiza e o Thiago já trouxeram. Eu queria voltar inicialmente a um ponto que é um dos fundamentos legais da Lei Geral de Proteção de Dados, que é a autodeterminação informativa, tão importante e comentada pelos colegas, que também foi selecionada por mim para conversarmos um pouco.

Autodeterminação informativa, como abordado, é um controle pessoal sobre o trânsito desses dados pelo próprio titular dos dados. A lei propicia e entendeu que isso é fundamento muito importante de ser observado, que ele tenha o controle do acesso desses dados. Prevê isso para dar eficácia a esse fundamento, lá no seu Capítulo III, os direitos desses titulares de obter do controlador a confirmação de existência de tratamento de dados, ter acesso à correção, anonimização, bloqueio e eliminação de dados, com consentimento, sem consentimento. É todo esse controle que ele pode fazer ao longo do tratamento de dados, não só no início da coleta, mas ao longo de todo o tratamento de dados que legitima o titular a manter essa autoridade sobre seus próprios dados.

Quando o titular não consegue identificar quais as informações que estão sendo utilizadas, quais os propósitos, a forma como está sendo feito esse tratamento de dado, tem-se aí uma preocupação de distanciamento desse fundamento, de estarmos tolhendo esse fundamento da autodeterminação informativa. Isso por muitas vezes pode ser imperceptível ao próprio titular desses dados. Eu trago aqui então, já lincando com a alteração de seguros, como o mercado vai se comportar em relação a esse fundamento tão importante, como ele vai garantir a observância a esse fundamento legal, no que tange às informações que são gerenciadas pelas companhias de seguro,

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decorrentes das propostas já emitidas, que são mais detalhadas, e depois até das apólices e na regulação também. Como o mercado vai se comportar para garantir a observância desse princípio tão importante, desse fundamento tão importante da LGPD.

Refiro-me especificamente ao fato de que a autodeterminação informativa preceitua que o titular de dados deve ter esse controle do uso dos propósitos de (...), de modo que, sendo necessária a utilização das informações das apólices e até mesmo dos sinistros, para fins atuariais, como nós já comentamos. O gerenciamento dessas informações é a longo prazo, a companhia utiliza de forma atuarial esse dado. Então, como ela vai manter esse controle de informação, de acesso, de obtenção, de correção de dados, algo nesse sentido, de dados já utilizados para fins atuariais. Eu gostaria também de trazer que, ainda em relação à autodeterminação informativa, o preceito de que o segurado – no caso aqui, o consumidor – pode negar o consentimento de fornecer essas informações. O art. 18, inc. VIII, da Lei, prevê a obrigação, a necessidade de que ele seja informado sobre as consequências negativas disso. Então, também acho que é um desafio para o segurador a forma como ele vai apresentar essas consequências negativas, até por uma questão de mercado, uma questão comercial, porque muitas vezes isso pode influenciar. Esse é um ponto que o mercado tem que estar muito atento, e realmente fornecer de forma clara essa informação da consequência negativa do não consentimento. Como o colega falou, é uma informação que influencia diretamente no preço do produto. Esses seriam os pontos sobre autodeterminação informativa.

Outro ponto a que eu gostaria de chamar atenção, que os colegas não abordaram, é o art. 18 da Lei Geral de Proteção de Dados. No seu § 8º, ele prevê que o titular dos dados pode obter do controlador, em relação aos seus dados, confirmação de acesso, correção de dados, anonimização, portabilidade, não só em relação à requisição dessas informações, não só em relação ao agente, à autoridade nacional, mas também em relação aos órgãos de defesa do consumidor. Aqui, nós vemos um ponto de atenção em especial para o mercado de seguros, em função de que o consumidor de seguros é usuário dos órgãos de proteção do consumidor. É uma via corriqueira para o consumidor de seguros, se utilizados os PROCONs, todos os órgãos de proteção e de defesa do consumidor. Não será estranho ele também se utilizar dessa

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via, até porque a lei prevê a possibilidade, no § 8º, de ele fazer as suas requisições, as suas reclamações perante os órgãos de defesa do consumidor e também, concomitantemente, perante a autoridade nacional.

Eu gostaria de trazer este ponto para nós refletirmos: acredito que exista a possibilidade de haver processos administrativos correndo concomitantemente sobre os mesmos pontos, com a possibilidade, inclusive, de uma punição dupla. O art. 52, § 2º, prevê as sanções pela autoridade, mas também diz que essas sanções não eliminam as sanções dos órgãos de proteção e de defesa do consumidor. Logo, existe a possibilidade de haver processos idênticos, dois processos correndo juntos, com decisões conflitantes, o que pode trazer uma insegurança jurídica para o mercado. Além disso, considerando que a lei também fala de inovação – como trouxe o Marcelo no início –, fomenta negócios, e que o mercado internacional já está olhando para isso, talvez esse ponto possa dar um retrocesso no sentido de que ela trará insegurança jurídica e, comercialmente, para os investimentos nessa área, pode trazer um revés. Falo isso para pensarmos um pouco nesse conflito.

Por fim, ainda dentro da parte de contradição, eu faço menção ao art. 55-K, que prevê a aplicação das sanções previstas na LGPD de forma exclusiva para a autoridade nacional de proteção de dados. Ao final e ao cabo, ela diz que é exclusivamente da autoridade nacional da proteção de dados o poder de aplicar essas sanções. Por outro lado, ela prevê que os órgãos de proteção e de defesa do consumidor poderão tratar e que não estarão afastadas as punições desses órgãos em trâmites de processo administrativo em que o titular procurou esse caminho. Aí vamos ter uma situação em que a própria a lei acaba por limitar e trazer essa exclusividade para a autoridade nacional. Então, acho que o mercado vai ter que estar muito atento a isso, a como vai lidar com isso. Eu gostaria de ouvir o comentário dos colegas em relação a esses dois pontos. Obrigada.

DR. MARCELO LEAL – Dr.ª Deborah, parabéns pela sua exposição. Ainda que no caráter de debatedora, fez um bom link, um bom resumo e comentários precisos a respeito das palestras.

Nós pretendíamos estender o debate, acho que era esse o objetivo, mas eu fui alertado aqui pela comissão organizadora de que infelizmente nós já estamos adiantados em relação ao horário. Então,

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precisamos encerrar o nosso painel, até porque no próximo painel teremos três palestras, ou seja, ele vai ser um pouco maior. Já anuncio aqui a Dr.ª Claudia Lima Marques, que se fará presente; o Dr. Adalberto Pasqualotto, nosso professor da Pontifícia Universidade Católica, também aqui presente, e o nosso Presidente da AIDA, Inaldo Bezerra, que também comporá a mesa de encerramento.

Agradeço mais uma vez o convite do Des. Ney Wiedemann, o convite do Prof. Bruno Miragem, o contato do Dr. Marco Aurélio. Parabéns a todos os envolvidos pela coorganização deste evento. Parabéns à Dr.ª Luiza, fortemente envolvida; ao Dr. Thiago e à Dr.ª Deborah, pelas suas participações.

Assim, colegas, vou encaminhando o encerramento deste painel. Nós temos dez minutos de coffee break, depois retornaremos para homenagear os nossos palestrantes finais e acompanharmos na integralidade a possibilidade de ouvir tão qualificados palestrantes sobre um tema que nos é tão caro, o contrato de seguro. Muito obrigado.

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Painel 2, 05-06-2019:Contrato de Seguro e Direito do Consumidor

DR.ª INGRID BING MOREIRA – Prezados colegas, bom dia. Gostaria de agradecer a participação de todos neste nosso último painel, o segundo da manhã. É uma satisfação presidir este painel com nomes tão ilustres, tão queridos: Prof.ª Claudia Lima Marques; Prof. Adalberto Pasqualotto, que foi meu professor na PUC; Dr. Inaldo Bezerra, Presidente da AIDA. Agradeço desde já o convite do Des. Ney para presidir este painel. Em nome da organização do evento, informo que onde está o coffee break existem alguns livros que a FenSeg gratuitamente disponibilizou. Para quem tiver interesse em livros sobre Direito de Seguro, eles estão disponíveis para retirada.

Já vou dar início aos trabalhos, porque estamos com o horário adiantado. Começaremos o painel com o Dr. Inaldo Bezerra, que possivelmente terá que se retirar um pouquinho antes, por motivos profissionais e pelo voo; depois, daremos sequência com a Dr.ª Claudia Lima Marques; em seguida, concluiremos com o Dr. Adalberto Pasqualotto.

O Dr. Inaldo Bezerra é advogado; professor universitário; pós-graduado em Direito Processual Civil; mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP; reconhecido pela Revista Análise Advocacia 500 como um dos advogados mais admirados na área de Direito de Seguros nos anos de 2014 e 2016; membro do corpo docente da Escola Nacional de Seguros; professor convidado da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Presidente da seção brasileira da Associação Internacional de Direito de Seguro (AIDA), gestão 2018-2020; sócio do escritório Pellon & Associados Advocacia Empresarial.

Dr.ª Claudia Lima Marques é advogada; professora titular da Faculdade de Direito da UFRGS, onde também é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito; pós-doutora pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, 2003; doutora em Direito pela Universidade de Heidelberg, 1996; mestre em Direito Civil e em Direito Internacional Privado pela Universidade de Tübingen, Alemanha, 1987; especialista em Direito Comunitário Europeu, pela Universidade do Saare, 1988. Em 2018 recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Giessen, Alemanha. Foi professora visitante da Universidade de Paris, Panthéon-Sorbonne, 2006, e da Universidade de Savoie, Chambéry, França, 2018. Foi professora da Academia de Direito Internacional

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de Haia, 2009. É Diretora da International Association of Consumer Law; Association Internationale de Droit de la Consommation, Bruxelas, Bélgica; chair to Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores, da International Law Association, Londres, Reino Unido. É também Diretora da Associação Luso-Alemã de Juristas, Berlim, Alemanha; membro da Academia Internacional de Detroit. Foi Presidente Nacional do Brasilcon; Instituto Brasileiro de Direito da Política do Consumidor, entre 1998-2000; Associação Americana de Direito Internacional Privado, Paraguai, 2010-2012. Foi Delegada brasileira das negociações para da CIDIP VII sobre proteção dos consumidores e Relatora-Geral da Comissão de Juristas do Senado Federal para a Atualização do Código de Defesa do Consumidor. É Diretora da Revista de Direito do Consumidor, do Brasilcon, publicada pela editora Revista dos Tribunais, São Paulo; coordenadora brasileira da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas do Direito do Consumidor; conselheira titular da OAB, seccional do Rio Grande do Sul. Exerceu funções de assessoramento jurídico no âmbito da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, 1989 e 1990, e do gabinete do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, 1991 a 1994. Conferencista no Brasil e no Exterior.

Agora, não menos importante, o Dr. Adalberto Pasqualotto possui graduação em Direito pela PUC-RS, 1972; mestrado em Sociedade e Estado em Perspectiva de Integração pela UFRGS, 1992; doutorado em Direito pela UFRGS, 2006. Atua principalmente nos temas de Direito do Consumidor, contratos e responsabilidade civil. É professor titular da Faculdade de Direito da PUC, onde leciona nos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu. Desenvolve o projeto Fundamentalidade e Efetividade da Defesa do Consumidor e dirige o Grupo de Pesquisa em Direito do Consumidor.

Desde já, passo a palavra ao Dr. Inaldo Bezerra, iniciando os nossos trabalhos.

DR. INALDO BEZERRA – Bom dia a todos e a todas. Manifesto a minha grata satisfação em compor este lounge com o Prof. Adalberto Pasqualotto e a Prof.ª Claudia Lima Marques, mestres do Direito que tanto nos ensinam. Eu fico extremamente honrado. Depois quero uma foto para mostrar para as minhas filhas e colocar em um quadro. Estou muito envaidecido aqui.

Parabenizo a comissão organizadora nas pessoas do Prof. Bruno Miragem, do Des. Ney Wiedemann, da Luiza e do Marco Aurélio. Parabéns a

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todos os envolvidos na organização deste evento. Na presidência da AIDA, nós acabamos nos especializando na organização de eventos. Então, eu sei muito bem qual a dificuldade que nós temos quando elaboramos um evento, as preocupações para que tudo dê certo, para que as agendas batam, para que os temas sejam de fato palpitantes. E eu quero dizer para vocês que sou testemunha viva de que o objetivo foi atingido. Estou desde ontem aqui presenciando o evento e garanto que eu, pelo menos, saio muito melhor do que cheguei. Portanto, aos Colegas meus parabéns.

Antes de fazer minhas rápidas reflexões, eu quero falar um pouco da AIDA e estender um convite para quem ainda não conhece. A AIDA é a Associação Internacional de Direito de Seguros. Estou Presidente da seção brasileira nesta gestão 2018-2020. É uma associação acadêmica composta por 17 grupos de trabalho no Brasil, que estudam todos os temas do contrato de seguro. Fica, desde logo, o convite para que vocês conheçam o site. Para quem ainda não teve oportunidade, o site é www.aida.org.br. Lá há toda a agenda dos grupos. Para a participação nos grupos de trabalho, não há a necessidade de ser sócio. Para integrar os quadros de sócios da AIDA, de associados da AIDA, é preciso ser de carreira jurídica. Todavia, para que você participe do estudo dos grupos, não há necessidade. É aberto para todos os interessados. Então, fica aqui o convite para que conheçam e nos ajudem a conhecer um pouco mais sobre o contrato de seguro, evoluindo o contrato. É um elemento muito importante para a sociedade, para que nós atinjamos um nível de amadurecimento.

Além disso, o próximo Congresso Nacional da AIDA será em Gramado, em 2020. No último congresso, que foi em Campo Grande, nós lançamos Gramado para 2020. Este final de semana estou em uma visita técnica aos locais. Estamos vendo se vamos fazer na universidade ou em algum hotel, onde ficar melhor. Desde logo ficam todos convidados. Em breve o site do Congresso vai entrar no ar. Combinei com a Luiza também para que em novembro nós façamos aqui um evento preparatório para o congresso de Gramado. Já estendo o convite para os Professores Bruno, Pasqualotto e Claudia. Será um prazer contar com o apoio de vocês e, claro, do Tribunal de Justiça. Mais uma vez, agradeço.

Também já quero me desculpar. Como bem adiantado aqui, hoje eu tenho um compromisso na AIDA também. Nós vamos fazer a entrega

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do Prêmio Personalidade do Seguro ao Dr. Ivan Gontijo no final da tarde, então eu tenho que sair correndo. Não posso em hipótese alguma perder esse voo. Por isso que infelizmente vou ter que me retirar. Peço escusas aos componentes deste lounge. Lamento bastante não poder ficar para ouvir as palavras dos doutores.

Eu trago aqui algumas reflexões, a que cheguei a chamar de desabafo. Sou advogado militante desde o final da década de 80, começo da década de 90, sempre militante na área de Direito de Seguro. Hoje o escritório acaba fazendo outras coisas também, mas a minha formação da advocacia é, eminentemente, o Direito do Seguro. Fui advogado interno de seguradora, depois compus uma banca de advogados para o mercado segurador. Certa vez eu sustentei isso. Ainda menino, disse que eu era advogado de seguradora. Fui alertado por um advogado mais experiente de que na verdade nós não somos advogados de ninguém, somos advogados e ponto. Levei isso para a minha carreira. Então, a visão que nós devemos ter é uma visão isenta, de defensor do bom direito. Mas eu me permito fazer algumas reflexões quando, independentemente de partido, nós enxergamos algumas injustiças que podem ou estão sendo praticadas com um ou outro mercado.

Recentemente, vimos a atuação do Superior Tribunal de Justiça. Eu tenho liberdade para falar sobre isso, porque falei diretamente para o Min. Cueva em uma oportunidade. Dizia que a edição de súmulas para o mercado segurador, que impactava o mercado segurador, sem prejuízo de refletirem muitas delas já o norte que a jurisprudência vinha adotando... Quando se sumula um assunto, por vezes o mercado reage mal. É o que eu chamo, às vezes, de efeito não processual ou efeito negocial da súmula. Claro que nós sabemos que o efeito processual da súmula é, de fato, a redução de processos. Falamos aqui a mesma língua. Na minha visão, não há como um país dar certo com a quantidade de faculdades de Direito que nós temos, com a quantidade de advogados que nós temos e muito menos com a quantidade de processos que nós temos. Eu preferiria um país com mais engenheiros. Falei isso recentemente na OAB de Goiânia e quase morri, quase me mataram lá, mas é a pura verdade. Nós precisamos ser conscientes. Do jeito que estamos, o Judiciário não suporta. Decisões equivocadas sairão, porque é impossível. A vontade de litigar do brasileiro é algo de outro mundo.

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Eu fiz advocacia para um site de comércio eletrônico que tinha acabado de chegar ao Brasil. Ele chegou ao Brasil, a sede era na Argentina, mas a administração ficava no México. No México, eles tinham três ações; na Argentina, eles não tinham nenhuma; no Brasil, em três meses, eles tinham 300 ações. Nós advogamos para esse site durante mais ou menos uns cinco anos. Quando nós entregamos a carteira, porque não dava mais para administrar considerando o valor dos honorários que eles queriam pagar, eles já tinham em torno de 5 mil ações. E o México continuava com as três ações lá, média de três ações. Fica difícil, realmente. Mas quando se sumariza algum assunto, quando se pretende encerrar algum assunto ou alguma pendência por meio da edição de súmula, às vezes o mercado reage mal, e quem paga a conta é o consumidor.

Recentemente, eu peguei algumas súmulas que foram editadas pelo STJ. Foram as Súmulas 616, 620, 632 e 609 – à qual vou me deter um pouco mais. A Súmula 616 diz assim: “A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para suspensão ou resolução do contrato de seguro”. Essa súmula editada, três semanas depois eu recebo uma ação rescisória no escritório proposta por um advogado (...) segurado. Ele propõe a ação rescisória com base na súmula. Há um detalhe nesse caso: ele ficou sem pagar o prêmio do seguro durante 18 anos. Mas a súmula permite que ele entre com ação rescisória. Há lá a fundamentação dele, vamos tentar exercer a defesa.

Não estou dizendo aqui que as questões não devem ser sumuladas ou que a atuação do STJ não seria eficaz, mas, quando se generaliza o assunto, deixa-se de observar as particularidades de cada caso. Isso impacta na administração da seguradora, porque, quando essa ação judicial chega, é feita uma reserva para ela e é feita uma análise de probabilidade de perda. Com base na súmula, a probabilidade de perda dessa ação é alta, quando na verdade não é; ela tem uma particularidade que precisa ser observada. Mas o administrador olha, e hoje não há como administrar qualquer negócio no Brasil se não com o olhar do Direito.

A Súmula 620 diz: “A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida”. Muito se discutiu isso ontem aqui na palestra da Prof.ª Andrea Signorino.

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Aqui há um detalhe: salvo quando a prova do nexo de causalidade... É claro que a prova do nexo de causalidade é responsabilidade da seguradora. Não vou entrar aqui na discussão se o cara pode ou não dirigir embriagado. O meu entendimento é diverso. Já está gravado aí, ponto. Acho que é bom para a sociedade, mas não vamos entrar nessa discussão.

E a Súmula 632, que é a mais recente, diz: “Nos contratos de seguro regidos pelo Código Civil, a correção monetária sobre a indenização securitária incide a partir da contratação até o efetivo pagamento”. Salvo melhor juízo, o STJ estava querendo dizer o capital segurado, e não a indenização. Vocês não têm noção – isso é súmula da semana passada ou retrasada – o barulho que isso está fazendo nas companhias seguradoras na revisão de reservas. Uma coisa é falar de correção de capital segurado, o que é justo. Corrigir o capital segurado desde a data da contratação é perfeitamente justo. Em caso de devolução de prêmio, eu também vou corrigir o prêmio, então que eu corrija também o capital segurado. Mas a indenização é complicadíssima. Primeiro, eu terei dificuldades para interpretar isso no seguro de pessoas e terei ainda mais dificuldade, na minha visão, no seguro de danos quando o valor da indenização for bem diverso do valor do capital segurado. Eu vou pagar uma indenização corrigida da data da contratação, só que é algo que eu nem sabia a quem eu deveria, ou se de fato eu deveria. A título de exemplo, cito os seguros de responsabilidade civil, onde eu tenho um terceiro que será indenizado por um determinado valor, mas vou utilizar, na verdade, como data de correção a data da realização do contrato que foi feito com o segurado. Então, o que o terceiro tem a ver com isso? Na minha opinião, não faz muito sentido. Precisamos refletir um pouco mais sobre essas questões.

Eu queria me ater um pouco à Súmula 609. Diz a Súmula 609: “A recusa de cobertura securitária sob alegação de doença preexistente é ilícita se não houve exigência de exames médicos ou demonstração de má-fé do segurado”. Essa é a redação da súmula. Não tenho dúvida de que estamos diretamente no tema das informações pré-contratuais. Também não estou querendo aqui fazer terra arrasada da súmula. Mas a súmula traz, na minha visão, um problema sério para a interpretação dos casos, considerando, inclusive, que hoje, de acordo com o novo... já se podia antes, mais claro hoje, com o Novo Código de Processo Civil, a ação pode ser encerrada em caso de

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improcedência se o assunto for contrário à súmula. Via inversa, a instrução seguiria.

O fato é que, ao meu ver, de forma equivocada, ao sustentarmos a má-fé do segurado, que está prevista no parágrafo único do art. 766, o mercado segurador acabou atraindo para si o ônus da prova dessa má-fé. Na minha visão, essa prova de não ter agido com má-fé era responsabilidade do segurado, mas eu penso que, na nossa advocacia, na orientação dada aos nossos clientes, acabamos chamando esse ônus da prova e imaginando, talvez, que a prova não seria tão difícil de fazer, posto que demonstraríamos lá que o proponente teria já conhecimento de uma doença preexistente e, mesmo assim, não teria informado na proposta.

É claro que nós temos que particularizar e vamos separar aqui os casos que são contratados sem o famoso preenchimento da DPS – Declaração Pessoal de Saúde. (...) é um risco que o segurador corre e, com certeza, posso garantir para vocês, já está no preço, não há problema. Agora, quando há a DPS e principalmente quando essa Declaração Pessoal de Saúde é feita por alguma seguradora – é verdade que não são todas –, de uma forma bastante minuciosa, de uma forma bastante cuidadosa, contratos de seguros que demoram um mês, dois meses para se contratar, dada a necessidade de entrevistas e de conversas, a situação fica mais complexa, dificultando o entendimento dessa súmula.

Exigir a prova de má-fé por parte do segurador é por deveras complicado, já que estamos lidando, na verdade, com o íntimo do proponente. Penso eu, e já li alguns artigos de gente que pensa de forma semelhante, que não importa se há ou não a má-fé do proponente. A questão na hora da contratação é se houve ou não a omissão de eventual fato relevante que deveria ser declarado para análise do risco. O fato de ele ter agido ou não de má-fé não pode ser um ônus imputado ao segurador. O nosso sistema jurídico é regido pelo princípio da boa-fé objetiva. E no contrato de seguro, mais ainda, a ponto de o legislador, além do princípio da boa-fé já consagrado no art. 422, também inserir no capítulo dos seguros os arts. 765 e 766, que exigem a mais estrita boa-fé. Então, nós temos várias situações.

E aqui eu lanço uma dúvida: deveria o segurado responder a tudo que ele sabe a respeito do risco ou responder apenas ao que seria perguntado pelo segurador? Nós temos entendimento de vários lados, temos

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os posicionamentos também de alguns Estados. Em Portugal, por exemplo, o segurado, o proponente, precisa declarar absolutamente tudo, independentemente de perguntado pelo segurador, enquanto que na Espanha ele é obrigado a responder somente àquilo que foi perguntado pelo segurador. Aqui no Brasil, não temos uma regra clara. O que fica mais próximo são os arts. 765 e 766, que exigem a boa-fé objetiva.

O fato é que, imaginem, o proponente vai contratar um seguro de vida e responde a todos os questionamentos feitos pelo segurador, que serão certamente todos sobre a saúde do segurado, sobre expectativa de vida, problema de saúde e alguma eventualidade que possa interferir naquele risco que será garantido. Mas imagine que o que tenha motivado essa pretensa contratação tenha sido uma ameaça de morte sofrida pelo segurado. Essa pergunta não está no questionário, na declaração pessoal de saúde. Não está nem estará. E aí? Ele precisa declarar? E se ele não declarar e depois se descobrir que havia de fato uma ameaça? Nego? Eu não perguntei, a pergunta não foi objetiva, eu nem estava lá. Eu estaria ou não obrigado? Então, essas questões são complexas.

De qualquer sorte, a súmula e o entendimento da jurisprudência acabam imputando a responsabilidade para o segurador da prova da omissão de má-fé. Então, na minha visão, o que importa para o art. 766 é se há ou não inverdade ou omissão que recaia sobre fato relevante e, portanto, capaz de influenciar na aceitação da proposta e na taxa do prêmio.

Não é importante, na minha visão, se o proponente agiu ou não de má-fé ao prestar declarações pré-contratuais. O importante é saber se as informações foram inverídicas ou incompletas, frustrando a legítima expectativa do segurador. A súmula fala, ainda, em sua segunda parte, na necessidade da realização de exame médico para que o segurador se isente do pagamento. Ou seja, ou faça o exame médico, ou prove que o proponente tenha agido de má-fé ao omitir uma eventual doença.

Como eu disse, penso que seria obrigação do proponente dizer, provar que não agiu de má-fé, enquanto que a realização do exame médico, ao passo que muitos entendem que resolveria a questão, é justamente o contrário. Para que o exame médico seja realizado, é preciso antes uma entrevista, e essa entrevista, para que se faça a anamnese, é feita com base nas declarações do paciente.

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Ora, se ele omitiria alguma coisa, alguma informação quando do preenchimento da DPS, ele poderia da mesma forma também omitir alguma informação para que o médico, daí em diante, solicitasse a realização de um, dois, três, ou a, b, c, d exames. Então, não me parece que favoreça o segurado a realização de um exame médico, na ideia de que o isentaria de prestar declarações verdadeiras e completas sobre o risco que ele pretende segurar.

Então, na minha visão – e aqui já partindo para o encerramento; como eu disse, eram só algumas reflexões sobre este momento que estamos vivendo de sumarização, mais ainda em relação às informações pré-contratuais –, preocupa-me bastante quando eu vejo a advocacia no mercado segurador. Não isentando o Judiciário de algumas interpretações que, na minha visão, são equivocadas, mas eu penso que a decisão do Judiciário, na maioria das vezes, quando equivocada, é porque a responsabilidade é nossa, de levar o assunto forma clara. Se o assunto não é efetivamente defendido pelos princípios que norteiam o contrato de seguro, decisões equivocadas virão, não tenha dúvida.

O que eu vejo nessa questão, principalmente das informações pré-contratuais, é que nós acabamos nos preocupando demais com a prova da má-fé e esquecemos de fazer valer o princípio da boa-fé objetiva, que é o norte do mercado segurador, do contrato de seguro e da sustentação do mercado segurador. Aqui quem fala – pelo menos neste momento, não estou em tribuna – não é advogado de seguradora; estou falando como estudante de Direito de verdade. Os princípios precisam ser respeitados. Eu até brincava ontem, dizia: “Se deixarmos de respeitar alguns princípios, alguns nortes, vamos matar a galinha dos ovos, pode ter certeza”. Para quem não sabe, quem paga a conta somos nós. Não há indenização do mercado segurador paga sem que o segurado ou os segurados contribuam para isso. Lucro não é pecado. Os empresários continuarão tendo lucro, então nós temos responsabilidade social sobre isso. A função social do contrato, tão discutida e debatida, na minha visão, é mais de responsabilidade do contratante – de todos nós, contratantes – pela boa manutenção da relação.

Então, já finalizando – peço perdão pela extensão do tempo –, penso que precisamos, na verdade, valorizar um pouco mais alguns princípios, os princípios norteadores dos contratos, os princípios norteadores das nossas relações, e assumir a responsabilidade que todo consumidor tem. Aqui as minhas rápidas reflexões.

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Eu peço desculpa, mais uma vez, por ter que me ausentar. Gostaria muito de ficar para que pudesse ouvir os comentários desses devaneios que de repente eu tenha feito aqui, mas infelizmente não posso. Agradeço novamente a oportunidade, na pessoa do Prof. Bruno Miragem, do Prof. Ney Wiedemann. A toda comissão organizadora parabenizo e parabenizo a todos por terem tido essa paciência, por se esforçarem, estarem aqui com o objetivo sempre de sair melhor do que entraram. Penso que vamos atingir, sim, esse objetivo. Muito obrigado. Tenham todos um excelente dia.

DR.ª INGRID BING MOREIRA – Prof. Inaldo, muito obrigada. Agradeço pela sua brilhante palestra. Como advogada também atuante, essas questões sumuladas me inquietam, principalmente a questão da boa-fé. Brilham os olhos quando falamos desse princípio, tão primordial a qualquer relação contratual.

Desde já, passo a palavra à Prof.ª Claudia Lima Marques, que muito vai ter a nos ensinar aqui.

DR.ª CLAUDIA LIMA MARQUES – Muito obrigada. Acompanhando o Presidente da AIDA, Dr. Bezerra, gostaria de agradecer o convite, na pessoa dos organizadores, o Des. Ney Wiedemann, o Prof. Bruno Miragem, Dr. Marco Moreira e tantos outros. É um prazer estar aqui para discutir, como afirma o título deste importante movimento do nosso Tribunal, os horizontes. Chama-se Horizontes do Conhecimento, acho isso muito bonito, então parabéns. Parabéns também à AIDA e a toda associação dos colegas por colocar o tema do Direito do Consumidor e do Seguro.

Eu tinha preparado uma palestra sobre o diálogo das fontes, com uma pequena introdução sobre a harmonia, que é um dos princípios do Código de Defesa do Consumidor. Eu acho que aí se pode trabalhar realmente a evolução desse mercado. Deixarei toda a parte contratual para o autor do melhor livro sobre Direito de Seguro, que é o Prof. Pasqualotto. Então, vou falar só sobre o que eu quero. É rápida a minha intervenção, há até um ponto coincidente com a manifestação do Dr. Bezerra.

O ponto que eu destaquei para a harmonia é que nesse mercado eu não tinha pensado justamente na Súmula 309, que advém de uma belíssima jurisprudência do eminente Min. Ruy Rosado, que ganhou fôlego

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justamente em uma época em que havia pouca harmonia no mercado de seguro, entre as expectativas legítimas do consumidor e a prática do seguro. Então, nesse tempo, que talvez tenha sido superado – eu não tenho certeza porque não acompanho assim a movimentação –, era muito necessário combater a presunção de má-fé dos consumidores, que parecia, naquela época, estar muito presente no mercado.

Como a pessoa vai provar a sua própria boa-fé, o seu próprio desconhecimento de alguma coisa? O próprio fato de o consumidor ser um leigo, enquanto o outro é um expert... Por exemplo, chama muito a minha atenção que algumas doenças que eu tenho são crônicas e eu não sabia, porque eu não sou uma médica, obviamente. Então, isso foi uma evolução da jurisprudência que eu acho importante, e me surpreende ter essa visão, que se torna uma espécie de prova de má-fé da pessoa. Eu acho que não. Eu acho que é um risco profissional. Se você trabalha em saúde, você sabe quais são as doenças crônicas, e as perguntas têm que ser dirigidas para que o leigo possa entender. Por exemplo, eu tenho asma. Eu estou falando de asma, não é nada crônico, de que se diga: “Coitadinha”. Não. Eu desenvolvi asma, e é crônico. Eu não sabia. É uma doença preexistente. Perigosíssima? Não, não é. Então, tem que perguntar se a pessoa tem asma. Se não, realmente, se é uma coisa que não sabemos, teria que fazer um exame. Mas eu acho que tem que ajudar as pessoas, e as pessoas geralmente, pelo menos a presunção é esta, estão de boa-fé.

Nessa época de pouca harmonia no mercado, realmente as práticas comerciais das seguradoras eram no sentido de presumir a má-fé das pessoas. Isso sempre foi um problema e nos incomodou muito, os consumeristas. Eu acho que talvez algumas dessas súmulas mencionadas ainda venham dessa época, em que havia essa presunção de má-fé. Até eu vejo na publicidade, que é outro tema de que o Prof. Pasqualotto gosta. Existe uma publicidade de seguradora que eu penso que tinha que ser proibida pelos próprios seguradores. Diz assim: “Nem parece seguradora. Paga”. Aí é demais. Se há uma publicidade nesse sentido, é porque talvez esse problema de harmonia não tenha sido resolvido. Então, esse é o meu primeiro ponto.

O Código de Defesa do Consumidor, no art. 4º da Política Nacional do Direito do Consumidor, prega a harmonia, prega a boa-fé, prega o equilíbrio das relações. Penso que esse é o ponto a que nós todos queremos

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chegar, um ponto de harmonia, de respeito, de saber que o outro é um leigo, que ele precisa de ajuda.

Aqui eu cito outra jurisprudência do Egrégio STJ, sobre a distinção de furto e roubo. A utilização de expressões jurídicas, furto qualificado, roubo qualificado, aquelas coisas de difícil utilização. Epidemia, pandemia... São expressões técnicas. Algumas até são jurídicas – furto e roubo são jurídicas. Esse tipo de utilização sem um glossário, sem uma expressão. Porque o Direito Fundamental do Consumidor é de livre escolha, e ele só pode escolher se ele entender o que ele está contratando. Então, eu acho que há realmente ainda a necessidade de um esforço sobre o entendimento da oferta que está sendo feita pelo fornecedor e do que está sendo contratado pelo consumidor.

O meu terceiro e último ponto nesse detalhe da harmonia tem a ver com os intermediários. Nós estamos nesse mundo pós-moderno em que os intermediários têm cada vez mais tarefas e papel. O papel dos intermediários, hoje, é cada vez mais importante, talvez até mais importante que o papel do fornecedor mesmo. Em matéria bancária, esse agente bancário está super-regulado, mas eu vejo pouca ação das agências. Talvez tenha que vir realmente dos fornecedores um trabalho com os intermediários do seguro. Até proponho à AIDA e a outros que se façam trabalhos ou guias de boas práticas sobre os intermediários de venda. Uma coisa é querer vender, querer fazer uma carteira e tal; outra coisa é a expectativa do consumidor. Eu entendo que pode haver diferença.

A atuação dos intermediários, segundo o Código de Defesa do Consumidor, art. 34, é de responsabilidade dos fornecedores, e às vezes ela oculta muitas coisas, infelizmente. Preenchimento em branco, falta de informação... E agora nós temos este mundo novo da internet. Realmente, eu penso que tem que haver um cuidado especial nas formas de contratação, contratações on-line, contratações por telemarketing, contratações conexas a contratos principais, algumas garantias, por exemplo essa garantia estendida, que é um seguro.

Sempre tentam me vender essa garantia estendida, e eu digo: “O senhor quer me vender um seguro. Eu não quero um seguro”. O vendedor diz: “Não, não é seguro”. Eu digo: “Mas é um seguro”. “Não, mas não é seguro.” Eu digo: “Eu tenho certeza de que é um seguro”. Aí ele fica me

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dizendo que não, que é a mesma coisa. Para saber o que é a garantia estendida, tem que saber o que é a garantia contratual. Não é a garantia legal. Como é um seguro, é um seguro sobre a garantia contratual. Então, você teoricamente teria que saber qual é a garantia contratual para saber o que você está estendendo, porque senão não está estendendo nada. Particularmente, acho que é um serviço, é um seguro, pode ser cobrado, eu não tenho nada contra isso. Também não tenho nada contra corretores, acho inclusive que é um serviço que tem que ser cobrado, não importa. Mas eu penso que precisa trabalhar a harmonia, precisa trabalhar a informação, precisa trabalhar essa relação entre o fornecedor e o intermediário, seja preposto, autônomo ou intermediário simples, corretor de seguros, porque às vezes se impõem a essas pessoas metas a cumprir, isso é parte do salário da pessoa, enfim, ou prêmios. São feitos estímulos errados, quando se deveria premiar a informação, a clareza, a confiança, a boa-fé, como foi dito pelo Dr. Bezerra, e não esses caminhos tortuosos que levam à desarmonia. E uma seguradora fazer publicidade dela mesma como se não fosse seguradora, porque ela realmente paga aquilo que prometeu...

Então, há espaço para avançar. A manifestação do Dr. Bezerra parece que é nesse sentido, e eu concordo. Temos que frisar bem os princípios do Código de Defesa do Consumidor, que são esses de harmonia, boa-fé e equilíbrio nas relações, mas frisando muito o momento pré-contratual e o nível e a qualidade das informações, dos documentos prestados, dos consentimentos assinados, enfim. Há vários tipos de seguros, os senhores é que são os especialistas, não sou eu.

O segundo ponto que eu anotei é essa ligação extrema do seguro com o tempo. Tempo é um elemento muito relevante na vida. O tempo que vai ser coberto, o fim das relações, tudo isso é o tempo. O Código de Defesa do Consumidor tem um artigo especial sobre isso, dizendo que o fim da relação deve ser alternativo – continuo ou não – e a escolha deve ser ao consumidor. Esse momento de fim da relação é muito perigoso para os fornecedores. Foi aí que eu criei, na segunda edição do Contratos no Código de Defesa do Consumidor, a expressão “contratos cativos de longa duração”, porque eu realmente achava e bebia da sabedoria dos colegas argentinos – muitos estiveram aqui – no sentido da obra e do estudo da academia argentina sobre os contratos, que eles chamam de larga duración, longa duração.

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O princípio aqui é que o tempo deve ser a favor do consumidor, e não contra o consumidor. Esses contratos cativos e o seguro, todos eles realmente, apesar de serem renováveis – ano a ano alguns deles –, são tão importantes e quanto mais importantes eles ficarem na sociedade pós-moderna, mais seguros vão ser vendidos. Então, não é uma perda/perda. É uma ganha/ganha, um in situation. Por quê? Porque quanto melhor for a harmonia no mercado, quanto mais prêmios e indenizações de forma justa forem pagos para as pessoas, mais seguro vai haver. Nós vamos evoluir. A sociedade brasileira utiliza pouco ainda os seguros. Há muito potencial para os seguros na sociedade.

Bem, mas sobre essa passagem do tempo, pode-se dar o exemplo dos planos de saúde. É tão importante, que a Lei Especial de Plano de Saúde regula não só a aposentadoria, regula a portabilidade, regula a continuação do desempregado nos seguros. Então, essa continuação do vínculo é de interesse dos consumidores. É um princípio que está no art. 51, § 2º, de manutenção do contrato. É a ideia de que a pessoa quer continuar cliente. Essas cláusulas de fim de vínculo têm que ser muito bem examinadas.

Particularmente, tenho uma certa crítica à atual jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no momento em que não faz as distinções suficientes sobre o tempo. Dez anos podem ser muito tempo, e não são necessários 30 anos para alguma coisa. Eu, que já estou ficando velhinha, sei que estou há 30 anos com alguns contratos, mas nem é todo o mundo que consegue ficar 30 anos com os contratos. Então, penso que não se pode fazer a mesma coisa que fazem com indenização, uma espécie de taxar. Não pode taxar o tempo do consumidor. Tem que ser um exame caso a caso. De qualquer maneira, os contratos cativos de longa duração eram uma tentativa de chamar a atenção para essa necessidade de o tempo ser a favor do consumidor.

O último ponto que eu queria mencionar é sobre o diálogo das fontes. Assim como o tempo hoje é um fator que sempre foi juridicamente relevante na prescrição e decadência, mas era contra o devedor e a favor do credor, temos também a ideia desse novo mundo. Nós temos tantas leis novas... Eu queria mencionar não a lei específica do seguro-saúde, por exemplo, o Código Civil, que traz todos os seguros e todos os contratos, enfim, é a base de tudo, e aqui foi mencionado, mas nós temos também outra lei

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transversal... O Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso também trazem normas específicas sobre alguns seguros. Nós temos outras normas, como a Lei Geral de Proteção de Dados. Esta, especificamente, vai impactar muito as práticas pré-contratuais e pós-contratuais das companhias de seguros em geral. Portanto, tem que ser dada uma atenção especial.

A lei mesma prevê o diálogo das fontes com toda a legislação, especialmente o Código de Defesa do Consumidor, que menciona claramente. Existe um, não sei se é um substitutivo adendo, mas a nova versão da lei ainda menciona três vezes mais o Código de Defesa do Consumidor como uma das leis em diálogo com ela e modifica coisas bastante importantes. Teriam que ficar atentos os eminentes colegas a essa modificação que acontecerá na Lei Geral de Proteção de Dados. Assim como ela está, limita muito a utilização de dados sensíveis, que são os mais procurados, é claro, para estabelecer os riscos da pessoa – sei lá, suas preferências sexuais e outros. A circulação desses dados, a coleta desses dados e a necessidade de autodeterminação desses dados, isso será como da água para o vinho. Logo, eu queria chamar a atenção ao diálogo entre essas fontes.

A teoria do diálogo das fontes é muito útil, mas pressupõe uma orientação constitucional. Nós temos que procurar na Constituição os valores que estão ali protegidos. Sem dúvida, a função social, a visão coletiva, a proteção de dados, a privacidade, a intimidade estão na lista dos direitos fundamentais. São quatro incisos que estão ali. O próprio Código de Defesa do Consumidor também menciona a harmonia entre essa legislação.

No diálogo das fontes com a Lei Geral de Proteção de Dados, vai ser difícil uma utilização muito geral, como é feita no momento pré-contratual, sem coleta de dados, sem necessidade. Depois, temos toda a digitalização dos exames, dessas informações que são plenamente acessíveis pelos médicos, mas também são coletadas e guardadas. Imagina se há uma espécie de divulgação desses dados. Hoje, o que circula nesse verdadeiro scoring – só que médico – da pessoa... Vai chegar ao ponto – e chega, na Lei Geral de Proteção de Dados – de discutirmos se são possíveis exames de DNA ou aquelas previsões de se a pessoa pode desenvolver câncer porque a mãe ou o pai teve.

Esse mundo de dados, que hoje está um pouco mais acessível, vai ser de coleta, de retransmissão muito limitada, ou terá que haver

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cooperação e autodeterminação das pessoas. O valor dado, que também é business ou parte do business das seguradoras, vai ter que ser melhor organizado. Isso é tarefa dos eminentes advogados aqui presentes. Valor é um problema de dinheiro, mas a parte de segurança dos dados, que é um problema de Direito do Consumidor, essa parte de segurança dos dados, essa parte de autodeterminação dos dados e da coleta e compartilhamento dos dados, eu acho que isso vai ter que mudar da água para o vinho. Nesse sentido, eu faria um alerta de que nós temos que estudar muito essa nova legislação. Já estudamos, é claro, o Marco Civil da Internet. Mas agora não, agora é transversal. Vai do Direito Público ao Direito Privado, atravessa todo o Direito do Consumidor e vai fazer um diálogo das fontes, orientado por ela mesmo, fortíssimo de proteção da pessoa humana, que aqui, no caso, é o consumidor, é o proprietário dos dados.

Eu tinha mais algumas coisas para dizer, mas acho que é suficiente. Nós estamos em um momento histórico de mudança e evolução da sociedade. Tomara que se evolua para uma melhor harmonia nas relações de consumo, especialmente nesse importante setor, que tem muito a crescer, que é o dos seguros. Muito obrigada.

DR.ª INGRID BING MOREIRA – Prof.ª Claudia, muito obrigada pela sua palestra. O diálogo das fontes nos soa como uma música. Entrei na faculdade em 95 e comecei a ouvir os seus congressos. Já ouvia a professora falando de diálogo das fontes; o professor, também, o Adalberto Pasqualotto. Então, soa como uma música o Direito do Consumidor se relacionar com o Direito de Seguro, se relacionar com a Lei de Proteção de Dados. Agradeço pela sua palestra.

Passo a palavra, de plano, para o Prof. Adalberto Pasqualotto para sua palestra.

DR. ADALBERTO PASQUALOTTO – Muito obrigado à Ingrid. É um prazer estar aqui mais uma vez ao lado da Prof.ª Claudia. Quero agradecer o convite do Bruno, um agradecimento que faço por cavalheirismo e formalidade, porque, na verdade, ele me botou em uma fria. Cumprimentar o Des. Wiedemann; o Ernesto, que eu não via há bastante tempo e que conheci lá naquele passado em que eu estava mais atento à matéria, por isso que o

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Bruno me colocou nessa fria; a Luiza, que está envolvida também neste evento. Encontrei aqui a Marili, mais uma ex-aluna. São tantos por aí... É uma satisfação estar aqui.

Essa brincadeira que faço com o Bruno tem um fundo de verdade. Por outro lado, talvez eu devesse agradecer pelo fato de que me permitiu revisitar o tema. Quando me perguntava sobre o que eu iria falar, pensei: “Bom, faz uns quatro anos que eu publiquei um artigo, que foi o último que eu publiquei da matéria” – sobre um problema em que agora a Prof.ª Claudia indiretamente tocou, que é o da não renovação dos contratos, a questão do tempo. Digamos que, para ter um pouco mais de segurança, e já que eu fiz uma pequena compilação de jurisprudência, resolvi escrever. Então, vocês vão me perdoar, pode ser que fique um pouco mais chato, mas pelo menos eu não vou perder o fio da meada. Então, eu vou me ater ao papel naquilo que é a diretriz básica.

Vou me dispensar da introdução, porque nós estamos falando basicamente de um tema conhecido, que é justamente o fim do contrato no seguro de vida, mais particularmente, no qual a seguradora informa ao segurado que não tem interesse em manter o contrato, em renová-lo. Na verdade, a seguradora, a teor da jurisprudência do STJ, exerce um direito potestativo, porque o contrato terminou, e ninguém é obrigado a contratar, portanto ela estaria no seu legítimo interesse. Mas como evoluiu a jurisprudência do STJ nesse caso?

Houve uma mudança de perspectiva nessa jurisprudência em 2012. O ponto inicial de exame do percurso jurisprudencial no STJ é o REsp n. 1.073.595, julgado em 23 de março de 2011. Esse REsp tem origem em Santa Catarina. A Segunda Seção defrontou-se com essa pretensão de um segurado, inconformado com a decisão unilateral da seguradora de não renovar o seu seguro de vida, no caso descontinuando um vínculo de trinta anos. Tratava-se de seguro de vida individual. É evidente que a seguradora vislumbrava um agravamento do risco, em consequência do avanço da idade do segurado. O acórdão foi relatado pela Min.ª Nancy Andrighi, que assentou que a decisão da seguradora de não renovar o contrato ofendia a boa-fé objetiva, a cooperação, a confiança e a lealdade.

Se a seguradora se deparava com a possibilidade de prejuízos, segundo o acórdão, deveria estabelecer aumentos graduais até restabelecer o

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equilíbrio da carteira. Dessa maneira, estaria colaborando com o parceiro contratual de tantos anos, dando a ele a oportunidade de absorver esses novos custos ao longo do tempo. Enquanto que também ele, o segurado, colaboraria com a seguradora, aumentando sua participação de forma a, um dia, mitigar os eventuais prejuízos da seguradora. A Min.ª Nancy Andrighi aplicou ao caso o conceito de contratos relacionais e de contratos cativos de longa duração, afirmando que se tratava de uma relação jurídica única, embora renovada anualmente.

Nessa decisão, pelo menos para mim e acredito que é mais ou menos fácil perceber isso, fica uma certa nota de intranquilidade com relação a como se manter o equilíbrio do contrato ao longo do tempo. Houve uma recomendação do acórdão para que a seguradora fizesse uma programação gradual de aumentos, parcelando a taxa necessária de elevação do prêmio ao longo dos anos. Mas esse raciocínio, a meu juízo, esbarra no risco de que o segurado simplesmente morra antes que o equilíbrio seja alcançado. Portanto, nesse caso, será que a boa-fé realmente teria uma função de solução, poderia ser capaz de solucionar o problema? Além do mais, pode não se justificar a invocação da boa-fé em situação de término de vínculo quando não se trata de pós-eficácia do contrato, porque simplesmente o vínculo acabou. Se o contrato se extinguiu sem inadimplemento e sem qualquer violação de direito de parte a parte, os deveres laterais, que são aqueles que decorrem da boa-fé, também se extinguem. Portanto, não se poderia creditar à boa-fé uma pós-eficácia nesse caso. Vou tentar indicar, depois de terminar a análise dos acórdãos subsequentes, qual seria, na minha opinião, uma solução mais adequada.

No ano seguinte, em 2012, a Segunda Seção apreciou o Recurso n. 880.605, do Rio Grande do Norte. O Relator, o Min. Luis Felipe Salomão, invocou o precedente anterior, citando mais três outras decisões das Turmas de Direito Privado naquele mesmo sentido. Fundamentou ainda o seu voto na supressio decorrente da sucessiva renovação do contrato por dez anos, de modo a reduzir a eficácia do direito de não renovar o vínculo, e também mencionou a correspectiva surrectio em favor dos segurados, que pelo decurso do tempo teriam visto nascer o seu direito à renovação. Ainda mencionou o venire contra factum proprium da própria seguradora, porque inopinadamente mudou seu comportamento depois de tantas renovações sucessivas. Ou seja, os fundamentos do Min. Salomão ainda estão na boa-fé.

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Tentando dar solução ao problema prático decorrente da dificuldade de garantir o equilíbrio atuarial sem sacrificar o direito dos segurados, o Min. Salomão sugeriu que a solução estaria em devolver a reserva matemática formada aos segurados – tal como postulavam, nesse caso concreto, os autores da ação –, aplicando-se analogicamente o parágrafo único do art. 796, que efetivamente prevê o caso de resolução por falta de pagamento com essa solução de restituição do capital segurado.

Havia, porém, uma diferença significativa em relação ao caso anterior. É que, nesse caso julgado pelo Min. Salomão, se tratava de seguro de vida em grupo, não mais um seguro individual. Sobre esse ponto, abriu-se a divergência no voto do Min. Massami Uyeda, divergência que acabou vingando. Afastando o precedente do ano anterior, o Min. Uyeda afirmou que o seguro em grupo obedece a bases fáticas distintas do seguro individual. Uma das marcas do seguro em grupo, disse, é justamente a sua temporalidade. Ao contrário do seguro individual, que pode ser vitalício, o seguro de vida em grupo é anual e só pode ser renovado automaticamente uma vez, por isso exige um regime financeiro próprio. Essa característica legitimaria a decisão da seguradora em não renovar o seguro nas mesmas bases, não se podendo reputar esse comportamento de não renovar o seguro como abusivo simplesmente porque isso seria contrário ao interesse do consumidor – ou seja, contrariar o interesse do consumidor era uma incidência do fato, mas não seria abusivo só por contrariar esse interesse –, especialmente, diz ele, quando há uma solução compatível no Código Civil e nas resoluções da Superintendência de Seguros Privados. Desse modo, ficou convalidada a cláusula que permitia a não renovação do contrato, porque essa cláusula era aplicável tanto à seguradora quanto ao segurado e porque a consequência inexorável de obrigar a seguradora a se manter indefinidamente vinculada a alguns segurados do grupo – porque não foi o grupo todo que entrou com a ação, foram alguns segurados – acabaria por tornar inexequível o próprio contrato. Ressalte-se que a ação foi proposta, como eu disse, em litisconsórcio ativo por onze segurados.

Em 22 de fevereiro de 2018 – agora trato de um terceiro julgamento, que é o REsp n. 1.569.627, do Rio Grande do Sul, nesse caso tendo como Relatora a Min.ª Maria Isabel Gallotti –, a Segunda Seção, por maioria, vencido o Relator, o Desembargador convocado Lázaro Guimarães, consolidou o julgamento obtido no REsp anterior, o de número 880.605. Nessa nova

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decisão, nesse terceiro acórdão, a ementa diz o seguinte: “À exceção dos contratos de seguro de vida individuais, contratados em caráter vitalício ou plurianual, nos quais há a formação de reserva matemática de benefícios a conceder, as demais modalidades são geridas sob o regime financeiro de repartição simples, de modo que os prêmios arrecadados do grupo de segurados ao longo do período de vigência do contrato destinam-se ao pagamento dos sinistros ocorridos naquele período. Dessa forma, não há que se falar em reserva matemática vinculada a cada participante e, portanto, em direito à renovação da apólice sem a concordância da seguradora, tampouco à restituição dos prêmios pagos em contraprestação à cobertura do risco no período delimitado no contrato”. A decisão foi além, afirmando que a não renovação do contrato pela seguradora não exige a comprovação do desequilíbrio atuarial financeiro.

O Min. Luis Fernando Salomão, que tinha sido o Relator do caso anterior que comentei, reviu a posição adotada naquele acórdão, aderindo ao voto divergente e afirmando que, ante a alegação da seguradora de desequilíbrio atuarial no caso de renovação do seguro em benefício apenas de um segurado, a este segurado caberia o ônus de provar o contrário, ou seja, que não haveria o desequilíbrio atuarial. A afirmação tinha em vista que a ação foi proposta por apenas um segurado do grupo, com a pretensão de compelir a seguradora a contratar nos moldes anteriores.

Nesse passo, analiso então esse raciocínio do Min. Salomão, seguramente haveria uma inversão do ônus da prova contra o consumidor, contrariando a regra favor debilis do art. 6º, inc. VIII, do Código do Consumidor, que assegura a inversão do ônus da prova em favor do consumidor. O voto da Min.ª Maria Isabel Gallotti entendeu que renovar ou não o contrato é direito potestativo tanto da seguradora quanto do segurado, cujo exercício, por isso mesmo, é imotivado. Daí a desnecessidade, no seu entendimento, de demonstração da inviabilidade do desequilíbrio atuarial. Todavia, a pretensão do segurado em sentido contrário não poderia atrair contra ele o ônus de uma prova de natureza técnica e complexa, cuja existência – é de se presumir – seja do domínio da seguradora, pois teria constituído a razão da sua decisão de não renovar o vínculo. Seria, portanto, fácil expor o desequilíbrio – fácil à seguradora, não ao segurado. Se, para exercer o pretenso direito potestativo, não estava adstrito a demonstrar as razões da sua decisão, não se poderia

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exonerar de fazê-lo na demanda judicial, ou seja, ela poderia alegar ao segurado que haveria desequilíbrio, mas em juízo não poderia manter essa alegação sem a devida demonstração.

Uma terceira decisão no mesmo sentido foi exarada pela Segunda Seção, em 22-02-17, no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 1.298.031, de Santa Catarina, com Relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze. Acolhendo os fundamentos do Tribunal de Santa Catarina, o voto do Relator consignou que a imposição à seguradora de renovar o contrato de seguro nas bases contratadas anteriormente violaria a liberdade de contratar.

A partir desses posicionamentos, pretendo examinar alguns princípios que seriam incidentes, tais como a liberdade de contratar e a própria função social do contrato, além de outro fundamento que me parece que seria invocável quanto à pretensão dos segurados de manter o vínculo. Começo por aquela recomendação do REsp n. 1.073.595, favorável aos segurados, quanto ao procedimento da seguradora. A ementa dizia o seguinte: a seguradora deve “[...] ver o consumidor como um colaborador, um parceiro, que a tem acompanhado ao longo dos anos [...] dando-lhe a oportunidade de se preparar para os novos custos que onerarão, ao longo do tempo, o seu seguro de vida, e o particular também colabora com a seguradora, aumentando sua partição e mitigando os prejuízos constatados”. É claro que, de um ponto de vista teórico, a ementa está corretíssima, porque concretiza o próprio princípio da boa-fé, mas a questão aqui é saber se isso tem efeito prático, de que modo isso na prática se concretizaria, justamente porque, se é para fazer aumentos graduais, essa solução pode falhar no meio do caminho.

Eu faço algumas considerações aqui sobre a boa-fé como regra de conduta, acho desnecessário fazer maiores comentários sobre isso, mas eu gostaria de fixar um ponto apenas que, a meu juízo, pode fundamentar a diferenciação que quero fazer. Parece que, incidindo como incide sobre relações contratuais, nós podemos dizer que a boa-fé é conjuntural, ou seja, ela incide sobre uma conjuntura, a conjuntura do contrato. Funcionalmente ela tem um papel diferente da vulnerabilidade, porque a vulnerabilidade incide sobre a estrutura, ou seja, o mercado. Quem disse isso muito bem foi Ricardo Lorenzetti. A Prof.ª Claudia mencionou há pouco os colegas argentinos. Ricardo Lorenzetti é hoje da Suprema Corte, é um doutrinador reconhecidíssimo, imagino que a grande maioria aqui o conheça. O que ele disse é que a

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vulnerabilidade, a proteção do consumidor existe justamente em razão da debilidade estrutural do mercado.

Então, o que eu acho que deve ser levado em consideração nessa questão da possibilidade ou não de renovação de um contrato que se extinguiu, mas que vem sendo renovado anualmente, não seria propriamente a boa-fé, mas seria a vulnerabilidade. E é dentro dessa perspectiva que me parece que deve ser analisada a decisão da companhia seguradora de não renovar o contrato de seguro de vida em extinção. A razão prática da seguradora, logicamente, é o incremento do risco que advém do avanço da idade do segurado. A tutela do interesse dos segurados, nesse caso, só pode ser atingida se for possível estabelecer à seguradora uma obrigação de contratar.

Embora a regra dominante nos contratos seja a liberdade contratual, em algumas situações, a contratação se torna irrecusável, conforme a situação jurídica que um determinado sujeito ocupa no mercado. Mário Júlio de Almeida Costa enumera alguns casos, tais como: empresas concessionárias de serviços públicos, a respeito dos serviços que prestam; profissionais como os médicos, que em situações de extrema urgência ou emergência só podem se recusar a atender quem necessita do socorro por motivo de força maior; os hotéis, quando não haja outro estabelecimento de hospedaria disponível no local, situação que também pode encontrar-se em restaurantes e mesmo em casas de espetáculos – são obrigados a vender os ingressos. A descabida da recusa é mais eloquente em situações de monopólio ou oligopólio, todavia se apresenta essa obrigação de contratar quando a conduta daquele que se recusa se mostra intoleravelmente ofensiva ao sentido ético-jurídico. Dou o exemplo ainda de Antunes Varela, que aponta a preponderância das empresas proponentes de contratos de adesão como uma razão limitadora da sua liberdade contratual, ou seja, se a empresa se apresenta no mercado com contratos massificados, naturalmente ela fica restringida na sua liberdade contratual.

Do mesmo modo que o Direito pode impor deveres e ônus para fazer algo, também pode impor o dever de fazê-lo. O contratante dominante pode ser legalmente compelido a contratar ou a preservar o contrato em curso, e a recusa em fazê-lo, quando contratar ou preservar o contrato é um dever, pode configurar abuso do direito. Falo aqui na presença do Bruno, cuja tese de

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doutorado é justamente sobre isso. Esse abuso de direito teria a forma atualizada, moderna, de exercício inadmissível de uma posição jurídica, o que acontece nos contratos massificados.

No mercado de hoje, voltando à ideia de estrutura, são estruturais os contratos de adesão que intermedeiam o fornecimento de produtos e serviços essenciais sobre formas de prestação, nem sempre totalmente satisfatórias, mas contra as quais os consumidores não têm força de oposição – contrata ou não obtém o serviço. Na ausência de alternativa, os consumidores aderem às ofertas, na expectativa de alcançar a satisfação de suas necessidades no grau possível. No caso de um seguro de vida, a seguradora deve ficar inibida de se recusar a renovar o contrato, porque a estrutura social de que ela se serve é o contrato de adesão, implicando um exercício contrário à funcionalidade da liberdade contratual. Essa variação da fundamentação jurídica da boa-fé para o abuso do direito permite visualizar o dever da seguradora em preservar o contrato e o correspectivo direito do segurado consumidor à permanência do vínculo. Tem-se, então, o direito subjetivo do segurado à renovação, o que efetivamente poderia causar uma mudança nas práticas do mercado. Não se estaria falando, no Direito brasileiro, de nenhuma novidade, porque, de modo análogo a esse raciocínio, o art. 35-E da Lei 9.656, que trata dos planos de saúde, veda à operadora a suspensão ou a rescisão unilateral dos contatos e planos de saúde, demonstrando que o ordenamento jurídico brasileiro já contempla a obrigação de contratar no terreno do seguro. Parece-me que a analogia com os contratos de seguro de vida seria cabível.

Trago aqui um exemplo da Lei do Contrato de Seguro de Portugal. Em Portugal, a lei prevê a proibição de práticas discriminatórias na celebração, na execução e na cessação de contrato. Elas são consideradas atentatórias ao princípio da igualdade por disposição expressa no art. 15. O agravamento do risco – que é levado em consideração nesse artigo –, em qualquer hipótese de celebração, execução ou cessação do contrato, deve ser objetivamente fundamentado – agora leio – “tendo por base dados estatísticos e atuariais rigorosos considerados relevantes nos termos dos princípios da técnica seguradora”. A alínea 3 do art. 15 é que prevê isso. Se o proponente divergir dos dados apresentados, poderá solicitar a uma comissão tripartite... Essa comissão é integrada por um representante do Instituto Nacional para a

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Reabilitação, por um representante do Instituto Nacional de Medicina Legal e por um representante do segurador. Essa comissão deve emitir um parecer sobre a razão entre os fatores de risco apresentados pela seguradora e a situação pessoal do segurado.

Há uma legislação semelhante a essa no Reino Unido e na Eslováquia aplicável aos seguros de vida e aos seguros de saúde. A França também tem uma disposição semelhante, só que ela amplia a comissão, que é integrada lá por representações dos consumidores, do Estado, da segurança social e dos seguradores e resseguradores.

Enfim, era esse o raciocínio que eu queria expor, mas eu gostaria ainda de fazer um pequeno adendo em um comentário sobre a recente Medida Provisória n. 881. Essa medida provisória proclama os direitos de liberdade econômica e diz no art. 2º que: “São princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória: I - a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas; II - a presunção de boa-fé do particular; III - a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas”. Essa medida provisória modifica o art. 421 do Código Civil, dando-lhe a seguinte redação: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”.

A minha pergunta é: será que a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica se sobrepõe ao art. 170 da Constituição, cuja diretriz é que a ordem econômica deve propiciar a existência digna a todos e justiça social e em cujos artigos não está apenas a função social do contrato, está a função social da propriedade e a defesa do consumidor, que é uma função social aplicada à proteção dos vulneráveis, função social da própria ordem econômica? Acho que é sobre essas questões que é preciso refletir no quadro que temos hoje no Brasil, com a política invadindo o ordenamento jurídico.

Podemos discutir se essa sustentação que fiz, que é meramente teórica, é aceitável ou não é aceitável. Ela procura um novo fundamento para a jurisprudência dominante hoje no STJ. A mim parece que esse fundamento poderia ser mais adequado, mas se veja que esse fundamento estaria contrariando essa jurisprudência. Então, discutir o mérito disso acho que é plenamente aceitável. O que não me parece aceitável é que, em nome de uma pretensa liberdade econômica, se derrube o que está na Constituição. Mas, a

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meu juízo, o que está na Constituição fundamentaria o raciocínio que acabei de fazer.

Lógico que isso é matéria de debate, de discussão. Fiquem todos à vontade para divergir de mim, assim como ouso divergir – quem sabe, um pouco arrogantemente – da jurisprudência do STJ. Muito obrigado pela atenção.

DR.ª INGRID BING MOREIRA – Muito obrigada, Prof. Adalberto, pelas suas palavras. Concluindo o diálogo das fontes pela sua brilhante apresentação e por julgados recentes, o diálogo das partes me parece que tem também total relação para fechar, com chave de ouro, a nossa palestra.

Convido aqui o Des. Ney e o Bruno Miragem para encerrarem.

DES. NEY WIEDEMANN NETO – Muito bom dia a todos. Cabe agora a mim, por delegação do Des. Umberto Sudbrack, que não pôde estar presente, representar o Centro de Estudos para o encerramento deste seminário, que é uma atividade em conjunto com a UFRGS. Aqui está o Dr. Bruno Miragem.

Quero saudar o Des. Francisco José Moesch, que nos honra muito com a sua presença entre os colegas magistrados. Quero agradecer os painelistas deste último painel, que foi, como falei à Prof.ª Claudia, a cereja do bolo. Foi um painel que veio coroar tudo o que se passou ontem e hoje neste seminário internacional.

Passo, então, a palavra ao Prof. Bruno, para as suas considerações de encerramento do seminário.

DR. BRUNO MIRAGEM – Muito obrigado, Des. Ney Wiedemann. Na verdade, ao final dos trabalhos, só cumpre agradecer por esta parceria do nosso Tribunal de Justiça, do Centro de Estudos, liderado pelo Des. Umberto, mas que teve no Des. Ney Wiedemann o nosso porta-voz e grande articulador desta parceria na matéria própria deste seminário de seguros. Cumprimento o meu estimado amigo Francisco Moesch, Desembargador deste Tribunal também. Agradeço muito fortemente a todos que participaram, palestrantes, público, sempre numeroso e especializado, atento.

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As palestras que fizemos aqui, os painéis tiveram sequência, todos eles, pelo que pude observar no coffee break. Os debates permaneceram e foram enriquecidos com experiências, com reflexões. De forma muito especial, naturalmente, faço uma homenagem com muita satisfação à Luiza Petersen. Eu disse no início, na abertura do seminário, e repito agora: ela foi a grande artífice deste seminário. Professores são bons em dar grandes ideias, mas a execução das ideias precisa de gente comprometida. A Luiza foi, desde o primeiro momento, não só entusiasta, mas muito comprometida nessa organização, na interlocução com o nosso Centro de Estudos. Então, quero registrar essa participação vital da Luiza. Também ao nosso Dr. Marco Aurélio Moreira, que também, desde o primeiro momento, participou, engajou-se, construiu conosco este evento.

Que este seja o primeiro evento de outros tantos que possamos fazer dessa forma como foi desenhado, de uma maneira plural, trazendo entendimentos plurais. Acho que essa é a grande ideia do conhecimento: trazer o diálogo e a construção a partir de visões não exatamente iguais. Do contrário não haveria o enriquecimento do conhecimento próprio.

Que tenhamos outras oportunidades de fazer esse mesmo exercício em matéria de seguros e em outros tantas que a universidade e o nosso programa de pós-graduação em Direito da UFRGS possam contribuir.

Agradeço ao Dr. Ney mais uma vez. Acho que encerramos com chave de ouro o nosso seminário.

DES. NEY WIEDEMANN NETO – Muito obrigado, Prof. Bruno. Gostaria de fazer um último registro: lembrando que, no site do

Tribunal de Justiça, há nas guias o link que abre a página do Centro de Estudos. Ali, qualquer pessoa – é aberto a todos – pode ter acesso a todas as palestras que o Centro de Estudos realizou. Esta é a palestra de número 50. Clicando ali, há acesso à degravação, a arquivos do Word com degravações de todo o conteúdo de todas as palestras, inclusive a deste evento. Às vezes, encontrarão disponível apenas o áudio, como no caso das palestras que se realizam em outros idiomas. Quando a palestra é, por exemplo, em espanhol, não há degravação, mas se pode ter acesso ao áudio. Muitas vezes, as palestras têm em anexo os arquivos de PowerPoint, quando disponibilizados pelos palestrantes. Este foi um seminário longo, com várias palestras. Todas

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elas, dentro de cerca de trinta dias, estarão disponíveis para quem não pôde acompanhar todos os trabalhos.

Com isso, agradeço, mais uma vez, os organizadores do evento, a presença da assistência dos senhores, sem o que não haveria o evento, porque são a razão de sê-lo. Dou por encerrada mais uma reunião do Centro de Estudos, neste Projeto Horizontes do Conhecimento. Muito obrigado a todos.

(TRANSCRIÇÃO E REVISÃO REALIZADAS PELO DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA E ESTENOTIPIA DO TJRS.)

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