fundaÇÃo getulio vargas centro de pesquisa e … · era tudo para [inaudível] e era tudo...

27
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser fiel à gravação, com indicação de fonte conforme abaixo. PÓVOAS, Manuel Sebastião Soares. Manuel Sebastião Soares Póvoas (depoimento, 2006). Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (1h 50min). Esta entrevista foi realizada na vigência do convênio entre FUNDAÇÃO ESCOLA NACIONAL DE SEGUROS (FUNENSEG). É obrigatório o crédito às instituições mencionadas. Manuel Sebastião Soares Póvoas (depoimento, 2006) Rio de Janeiro 2019

Upload: others

Post on 02-Nov-2019

8 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEPORÂNEA

DO BRASIL (CPDOC)

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser fiel à gravação, com indicação de fonte conforme abaixo.

PÓVOAS, Manuel Sebastião Soares. Manuel Sebastião Soares Póvoas (depoimento, 2006). Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (1h 50min).

Esta entrevista foi realizada na vigência do convênio entre FUNDAÇÃO ESCOLA NACIONAL DE SEGUROS (FUNENSEG). É obrigatório o crédito às instituições mencionadas.

Manuel Sebastião Soares Póvoas (depoimento, 2006)

Rio de Janeiro

2019

Ficha Técnica

Tipo de entrevista: Temática Entrevistador(es): Christiane Jalles de Paula; Fernando Lattman Weltman; Levantamento de dados: Christiane Jalles de Paula; Fernando Lattman-Weltman; Pesquisa e elaboração do roteiro: Christiane Jalles de Paula; Técnico de gravação: Marco Dreer Buarque; Local: Rio de Janeiro - RJ - Brasil; Data: 04/12/2006 a 04/12/2006 Duração: 1h 50min Arquivo digital - áudio: 1; Arquivo digital - vídeo: 2; MiniDV: 2; Entrevista realizada no contexto do projeto "Funenseg - 35 anos", na vigência com o contrato entre o CPDOC/FGV e a Fundação Escola Nacional de Seguros (Funenseg), entre julho de 2006 e fevereiro de 2007. O projeto visa à realização e tratamento de cerca de 40 (quarenta) horas de entrevistas de caráter histórico e documental sobre a história da Fundação Escola Nacional de Seguros (Funenseg). A escolha do entrevistado se justificou por ser considerado um ator fundamental para o resgate da história do seguro no Brasil. Temas: Companhias de seguro; Econometria; Previdência privada; Seguros; Sul América Seguros;

Sumário

Entrevista: 04/12/2006 Dados pessoais; origem portuguesa e infância nos arredores de Lisboa; os filhos; primeiros estudos; a ida para Lisboa; graduação em economia e finanças (Faculdade de Finanças e Economia); o aprendizado de econometria; entrada no mercado de seguros; a Inspecção-Geral de Créditos e Seguros; breves comentários sobre o mercado de seguros em Portugal (décadas de 1940 e 1950); o convite de Pinto Magalhães; a experiência na Companhia de Seguro Mutualidade; o convite de Agnelo Apuzzo; a influência de Antônio Martins; a formação em direito; participação no I Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito de Seguros (AIDA), a fundação da seção portuguesa da AIDA; fundação por Ângelo Mário Cerne da seção brasileira da AIDA; o Grêmio dos Seguradores; a vinda para o Brasil; a entrada na Sul América; o convite de Leonídio Ribeiro; a ida para São Paulo e o papel de Rony Lírio; atuação na Superintendência Geral; previdência privada e a atuação no projeto Sul América, Atlântica-BoaVista e Bradesco; a Lei 6.435; a ERISA; a atuação no Conselho Superior da ANAPP; a composição da previdência privada fechada da Bradesco Previdência; Nilton Molina; João José de Souza Mendes; os convites para conferencista em Madri; os métodos de atuação do Bradesco; Antônio Carlos de Almeida Braga; Ararino de Oliveira; Bradescor; Amadeu Aguiar; Mário Petrelli; a campanha de lançamento da Vida e Previdência; o fracasso inicial do produto com os corretores; a equipe do Vida e Previdência; a distribuição pela rede bancária do Bradesco; o Sistema Nacional de Previdência e Assistência (SINPAS); modelo previdenciário americano (Three Legs System); o sistema previdenciário chileno; o papel da SUSEP; a defensoria do segurado; breve relato sobre o seguro e a Constituição de 1988; o lobby do mercado de seguros na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988; Emenda Constitucional n° 40; Emenda Constitucional nº 47; a Lei Complementar nº 109; a ANAPP; a Academia Nacional de Seguros e Previdência; perspectivas para o ramo da Previdência Privada; a Associação Internacional do Direito do Seguro; confiança e seguro; o papel regulatório do Estado.

1

Entrevista: 04/12/2006 C.J.- Dr. Manuel, para começar, gostaríamos que o senhor nos informasse sua data e local de nascimento, filiação, sua formação acadêmica etc. M.P. - Eu nasci há 79 anos, numa povoação muito bonita quase em frente a Lisboa, no outro lado do estuário do Tejo. Era uma daquelas cidadezinhas que existem em Portugal... Graças a Deus, nunca vi uma favela em Portugal. Em Portugal, sinceramente, não havia favelas; gente toda muito modesta, mas, realmente, todos com as suas construções de alvenaria, enfim. O nome do meu pai era Manuel Soares Póvoas e da minha mãe Aurora Maria Soares Póvoas. Tive duas irmãs, já falecidas. Essa era a minha família! Como filhos: tenho três filhos meus e tenho um menino que eu adotei - um menino, já com 27 anos... um pardinho que eu adotei em São Paulo. Mas, não pense: "Ah, que bonzinho que este homem é por ter adotado um menino". Não! É que uma empregada nossa, uma menina chamada de Alzira, estava lá em casa - ao lado da minha casa havia outra menina trabalhava numa outra casa. As duas, 16, 17 anos, foram brincar no carnaval e vieram grávidas. [riso] E o menino lá nasceu. Até tive para adotar também a outra menina, mas depois umas avós dela de Mato Grosso quiseram ficar com a menina. Só que essa outra menina, não a mãe deste meu filho, mas a outra menina. Tão novinha! Era uma loira, era uma índia loira - vocês nunca viram! Certamente não viram, porque é estranho: a gente ver uma índia loira. Tinha uma coisa no coração e, um dia, ela estava... enfim, ela depois tinha ficado como companheira de um homem, que era meu jardineiro, e morreu. Estava jantando, caiu e, pronto, estava morta. De forma que, eu tive também para adotar essa criança. De forma, como eu digo, não foi por coração que eu tivesse adotado o meu filho – quer dizer, o meu filho querido de nome Fernando que está nos Estados Unidos, enfim, estudando – mas foram as circunstâncias da vida. Portanto, eu tenho quatro filhos: três naturais e esse também, de adoção. F.W. - Qual era a profissão do seu pai? O que ele fazia? M.P. - O meu pai era um agricultor da planície ao sul do Tejo que se chama Ribatejo. Nessa altura, apesar de estarmos, em linha reta, a uns vinte quilômetros de Lisboa, para eu ir estudar em Lisboa todos os dias, tinha que tomar um trem, tinha que tomar um barco para chegar e depois fazer tudo ao contrário: eram 2 horas e meia. Por que? Porque não havia uma ponte a atravessar o Rio Tejo. Tem 14 quilômetros de largura, era só colocar ali uma ponte. Depois colocaram. Colocaram até duas, e lindas, pontes. F.W. – O que o senhor foi estudar em Lisboa? M.P. – Primeiro eu estudei numa escola técnica, uma escola importante. Eu fiz essa escola técnica, que dava a possibilidade de entrar em um instituto intermediário, o Instituto Comercial de Lisboa. Lá, a gente ficava dois anos, depois fazia um exame de admissão à faculdade. E assim eu entrei na Faculdade de Finanças e Economia. F.W. – E como foi o seu curso de Economia e Finanças?

2

M.P. – Durante o curso, estudei muita econometria. Na minha época, os cursos de economia já tinham abandonado aqueles ranços, aquelas posturas clássicas daqueles economistas clássicos, e nós já íamos para a escola dos economistas modernos, baseada na econometria. Tive grandes professores. Também estudei matemática e cálculo numa profundidade extraordinária. No primeiro e segundo ano, tive matemática superior e cálculo em n dimensões. E, depois, no terceiro ano, o que foi para mim uma coisa muito agradável, estudei cálculo financeiro com taxas instantâneas de capitalização. Era tudo para [inaudível] e era tudo lançado. Nos últimos dois anos, estudei cálculo atuarial. E foi esse cálculo atuarial, que me permitiu entrar – vão me permitir à modéstia – com o verdadeiro conhecimento no estudo da previdência. Formei-me. Depois, entrei na Inspeção de Seguros, que era, digamos assim, o organismo fiscalizador e que também dava normas para o seguro. Imagina! Esse foi o meu primeiro cargo em seguros.. C.J.- O senhor trabalhou em alguma outra coisa antes de entrar no seguro? M.P. – Fiz parte, durante alguns meses, do quadro técnico do ANET. Depois tive esse curso, entrei no curso e, a partir daí, nunca mais saí do seguro. E em seguro, tem duas coisas por mim que pouca gente tem. É que não é mérito meu, é dos anos que passaram, e até demérito. Havia um poeta português1, que dizia... que quando uma pessoa foi dar os parabéns, ele perguntou: “Parabéns? Ainda se os desfizesse, mas fazê-los não parece de quem tem muito miolo. Realmente, essa parte da gente fazer anos. Qual é o prazer que existe em fazer anos? [Risos] F.W. – Em que circunstâncias o senhor foi trabalhar nesse local? O senhor aproveitou uma oportunidade que surgiu? M.P. – É, eu estava trabalhando nas alfândegas e um ministro, que tinha sido meu professor e com o qual eu nem sequer me dava bem, me mandou chamar ao gabinete dele: "Olha, há aí uma vaga na Inspeção de Seguros, você não quer? É uma vaga de atuário. Você foi bem classificado em matemática. Eu acho que isso está bem para você". Como o salário era um pouco melhor... F.W. - O senhor trabalhou exatamente em que departamento? Como era o nome do órgão, o senhor se lembra? M.P. - Eu trabalhava como inspetor atuário para um órgão do governo, a Inspecção-Geral de Créditos e Seguros2. A Inspecção-Geral tinha duas inspeções: a Inspeção do Crédito, que fiscalizava os bancos, e a Inspeção do Seguro, que fiscalizava as seguradoras. F.W. - Como era o mercado de seguros em Portugal nessa época? M.P. – Um mercado muito alinhado, mas sem grandes rasgos, embora o conhecimento operacional do seguro, do segurador português, fosse invejável. Invejável por uma razão que o Brasil não teve, que o Brasil perdeu em virtude do caminho que seguiu em relação ao resseguro. No Brasil, a grande escola, o mais alto nível do seguro era dado pelo esquema do resseguro e eu vou dizer em que sentido. 1 Refere-se ao poeta João de Deus. 2 Organismo de fiscalização português criado em 1949 e extinto em 1975.

3

Em Portugal, o resseguro era livre. Eu tinha minhas companhias pequenitas, enfim... fazia o seguro. E, então, aquilo era muito interessante, porque à noite a gente tinha lá as propostas para fazer o seguro – muitas vezes, a gente não podia fazer o seguro porque aquilo saía fora do que a gente tinha possibilidade de fazer –, a gente tinha que saber onde colocar os restantes. Nessa altura, o único meio que a gente tinha, além do telefone, era o telex. A gente telefonava para Milão, a gente telefonava para a Suécia, para Suíça, e quando não conseguíamos ressegurador íamos realmente para o mercado de Londres, que aceitava tudo [inaudível]. De forma que qualquer pessoa que estudasse seguro tinha a cultura do resseguro. Como é que os contratos eram feitos? Ali, entre julho, agosto, setembro, a gente começava a ser visitado pelos diretores das grandes resseguradoras que vinham fazer os contratos de resseguro com seguradoras em Portugal. Eram pessoas com conhecimento extraordinário de tudo que se passava no mundo. As conversas eram extraordinárias porque a gente ficava com uma visão não apenas operacional ou institucional, mas também até daqueles pormenores, tipo que a companhia de seguros tal tinha fundido com a outra etc. Eu reputo que, para a minha formação, a melhor lição que recebi na minha vida foi a lição transmitida pelos diretores das grandes resseguradoras. C.J.- O senhor tinha contato com eles por trabalhar no órgão de inspeção? M.P. - Não, não. Lá, apenas aprovávamos os contratos de seguro. C.J.- Quando o senhor deixou a inspetoria? M.P. - Acho que deixei no ano de 45. Não lembro bem! C.J.- E por que o senhor saiu de lá? M.P.- Deu-se uma infelicidade. Uma companhia de seguros teve um caso desagradabilíssimo de desonestidade dos diretores e eu fui nomeado diretor-interventor, e durante dois anos aprendi como se administrava uma companhia de seguros. Pronto! E aí foi a minha vida em seguros. F.W. – Quando o senhor se tornou interventor já sabia como se administrava uma empresa de seguros? M.P. - De uma forma externa, porque eu era a pessoa que fazia a inspeção da seguradora. F.W. - Ah, o senhor já tinha uma prática... M.P. – Sim! Já tinha prática de dois anos e meio de fiscalizar as seguradoras. E, nessa altura, sabia que a fiscalização das seguradoras era algo complicado, demorado. Porque a gente tinha que fazer a inspeção ali no local, tinha de tomar assento na seguradora e procurar o que estava bem, o que estava mal.. E os rastos que existiam eram muito mixurucas... Mas, mesmo assim, davam algumas indicações. Era preciso a gente dedicar-se muito para ver se a companhia ia bem ou mal. De uma forma geral, o seguro, em Portugal, era um seguro honesto, pobre mas honesto. Não havia assim grandes seguradores, mas eles eram honestos. Depois fui convidado

4

pelo Pinto de Magalhães3, um banqueiro que trabalhou aqui no Rio, para administrar a companhia de seguros que ele havia comprado. F.W. - Lá em Portugal? M.P. - Lá em Portugal... Mais tarde, a gente criou uma companhia de seguros de vida. Foi assim. Um dia, apareceu um senhor, um italiano chamado Agnelo Apuzzo, que era ligado à ala econômica do Vaticano, aos negócios do Vaticano. Ele veio me oferecer o cargo de administrador de uma companhia autorizada no ramo de vida – ele não disse o nome da companhia - porque o ramo de vida lá, como aqui, não era fácil de obter. Ele disse: "Eu tenho essa companhia, a gente quer que você venha administrar a companhia". Eu disse que era administrador do Pinto Magalhães e que não podia largar a empresa. F.W. - Como era o nome da empresa do Magalhães? M.P. – Companhia de Seguro Mutualidade, uma S.A. Tinha o nome Mutualidade, mas era uma S.A. Continuando a minha conversa com o Apuzzo, eu disse para ele: "Eu ainda não falei com o meu capitalista, mas aceito administrar as duas companhias, desde que o Pinto de Magalhães estiver disposto a entrar nesse negócio". Essa era uma forma de ele ficar com o ramo de vida também. Tive tanta sorte que o Pinto de Magalhães aceitou, eles também aceitaram, só que eles estavam à espera de um dinheiro que vinha do Caribe. Nessa altura, transferir dinheiro de um país para o outro era a coisa mais difícil que havia. E eles só podiam transferir dinheiro lá do Caribe por virtude de uma coisa que tinha acontecido. Entretanto, mudou o governo (já não me lembro qual era o país) e eles não puderam passar esse dinheiro. Por isso, não puderam concretizar o negócio. Gente muito séria, eles nos procuraram, dizendo: "Olha, lamentamos muito, a gente não tem mais dinheiro para comprar a companhia, mas se vocês quiserem ficar com ela..." Como era barata, compramos a companhia e ela passou a ser a segunda companhia do grupo. Depois, compramos mais duas companhias na Ilha da Madeira e assim se formou um grupinho que, depois, eu transformei no primeiro grupo segurador português, o MSA. E nessa trajetória toda, não houve lugar dentro de uma companhia de seguros pelo qual eu não passasse. Não houve um só lugar: parte técnica, parte administrativa, parte atuarial, parte da produção. Passei por tudo. F.W. - O senhor lembra de quando isso ocorreu? M.P. - Isso foi, digo já, a partir do ano de 47... F.W. - O senhor era então muito jovem. M.P.- Eu tinha vinte e poucos anos. F.W. - E o curso de Direito? Por que o senhor acabou fazendo um outro curso superior?

3 Refere-se ao empresário português Afonso Pinto de Magalhães, fundador da Sonae – Sociedade Nacional de Estratifivados –, um dos principais grupos econômicos do país.

5

M.P.- Quando o jurista da Inspeção de Seguros, o Antônio Martins, que tinha sido secretário do ditador Salazar4, foi para lá, ele me perguntou: "Ô Póvoas, por que você não faz Direito?" Então, bateu na cabeça, eu fui e tirei Direito, com um esforço enorme, porque eu fiz o curso como aluno de livro, sem ir às aulas... Nós éramos massacrados, vocês nem podem imaginar. Era pior que uma inquisição. Havia cinco cadeiras, e muitas vezes as aulas aconteciam no mesmo dia e na mesma hora. O meu professor de Direito Constitucional foi o Marcello Caetano5. O Marcelo Caetano espremia. E tinha outro, o de Direito Civil. Tive sorte! Passei sempre! F.W. - O senhor costumava trocar idéias com estudiosos de seguros de outras partes da Europa? M.P. - Costumava sim, sempre que podia participava de congressos e outros eventos. Em 1962, eu li no jornal que ia dar-se, em Roma, o I Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito de Seguros6. Essa Associação tinha nascido dois anos antes, em Estrasburgo7. Foi muita gente, inclusive aqui do Brasil. Foi um homem que depois eu muito admirei, tornei-me amigo dele, que é o Ângelo Mário Cerne8. Também lá estava o fundador da Associação, o professor italiano Antigono Donati. Ele me convidou para instalar a sessão portuguesa da AIDA, em Portugal, e convidou o Cerne para fazer a mesma coisa com a sessão brasileira, aqui no Rio. E ele o fez de uma forma brilhante... [silêncio - o depoente procura por algo em sacolas]... Aquela revista sobre risco tinha me pedido para eu escrever um artigo sobre o genoma humano e o seguro de vida, que foi agora o tema no Congresso de Buenos Aires, e eu escrevi, mas como o outro tema do Congresso tinha sido o terrorismo, eu então, aproveitei o artigo para evocar a figura do Ângelo Mário Cerne. O Ângelo Mário Cerne foi, há cerca de 20 anos, a primeira pessoa a propor o terrorismo como tema de congresso. Eu faço essa evocação e falo do Ângelo Mário Cerne. Eu vou enviar-lhes esse artigo que escrevi. F.W. - E quanto à previdência? O senhor já se preocupava com esse assunto?

M.P. - A parte da previdência teve outra inspiração e aconteceu quando eu era presidente do Grêmio dos Seguradores, órgão correspondente à nossa FENASEG. Eu, por virtude do próprio cargo, tinha assento no Comitê Europeu da Insurance. Nós nos reuníamos em Paris todos os meses e discutíamos durante as reuniões todos os problemas magnos do seguro e do resseguro. Mas o que se dava é que todo segurador na Europa estava muito voltado para o dinheiro. A certa altura, logo depois do estrago que a guerra fez, o que as pessoas queriam era dinheiro. E aí então, nos corredores, a gente falava baseado em fundos de pensão, porque tal companhia já dava fundos de pensão aos seus funcionários. Tem uns que tinham lá estado e que já tinham sido convidados por uma empresa americana que lhes dava fundos de pensão. Eu estava assim um pouco alheio, mas eu sabia o que era fundo de pensão, tinha estudado. Comecei também a interessar-me.

F.W. - Como foi a sua vinda para o Brasil? 4 Antônio de Oliveira Salazar governou Portugal entre 1933 e 1968. 5 Marcello José das Neves Alves Caetano, jurista, governou Portugal entre 1968 e 1974.. 6 É também conhecida pela sua sigla AIDA, as iniciais de seu nome em francês, Association Internationale de Droit des Assurances. 7De acordo com o site da Associação, ela foi criada em Luxemburgo no ano de 1960. 8 Foi o fundador da sessão brasileira da AIDA, em 1960, e presidente da FENASEG entre 1956 e 1962, por três mandatos, e novamente entre 1966 e 1968.

6

M.P. - A minha vinda para o Brasil foi... Quando a gente começou a sentir que algo não estava correndo bem... O Salazar foi um grande ditador. Eu mesmo fui perseguido por Salazar, mas não tenho nada a dizer contra ele porque ele era um homem justíssimo. Um dia, ele sofreu um acidente, caiu de uma cadeira. Então chamaram esse meu professor, o Marcello Caetano, que eu admirava muito – eu, tenho certeza, que ele também me admirava. Nessa altura, ele, que já tinha sido tudo, nem queria ser presidente do Conselho do Ministro, mas, enfim, sob pressão, aceitou. Só que o Marcello Caetano já estava velho demais para pensar e ter força para se opor àquela gente, todos com uma mentalidade retrógrada. Pensavam que a Europa se mantinha ainda como sempre tinha sido, quando a Europa estava em um desenvolvimento extraordinário de idéias. E ele se deixou ir e realmente foi derrubado. Quando se deu a Revolução9, apesar de ter esse trunfo na mão, de ter sido considerado um desafeto do regime, nunca o usei. O Mário Soares10 sabia disso, porque eu havia estudado direito com ele (eu já era licenciado em economia e finanças e o Mário Soares em história e obras filosóficas). Nós nos dávamos muito bem... O Mário Soares disse para mim: "Póvoas, você tem na mão uma coisa maravilhosa...". "Mas eu não quero..., o caminho da Revolução vai levar Portugal a uma coisa terrível...". "Ah, você é muito pessimista". Não fui não! Ainda hoje Portugal está sofrendo daquilo que fizeram na Revolução. Fui corrido também do meu grupo de seguradoras, das seguradoras que eu tinha constituído. Porém, logo em seguida, fui convidado para ser o administrador-delegado. Lá existia essa figura jurídica do administrador-delegado, aquilo que a gente chama aqui de vice-presidente executivo. Administrador-delegado é aquele homem que tem a companhia toda na mão [inaudível]. Fui também convidado para ser administrador-delegado da Companhia de Seguros e Crédito, constituída nessa altura. Também não aceitei. Decidir vir para o Brasil. Vim para o Brasil e tive a sorte de entrar na SulAmérica. F.W. - Isso foi quando, mais ou menos? Quando o senhor chegou aqui? M.P. - Em 76. C.J.- O senhor já tinha contato com alguém da SulAmérica? M.P. – Tinha, através dos congressos de Direito de Seguros da AIDA. Eu tinha estado no Congresso11, em Paris, com o Leonídio Ribeiro, com vários seguradores brasileiros, e já tinha estado com eles noutras reuniões também. E, nessa altura, o Brasil também já procurava muito Portugal, já havia um intercâmbio. Eu já conhecia muitos brasileiros. Fora que foi daquelas coisas que Deus me deu e que eu não tive qualquer desgaste. Cheguei ao Brasil hoje e amanhã a SulAmérica já tinha me dito: "Olha, você fica conosco". Eu também já tinha apresentado trabalhos para a AIDA. Enfim, eu já era um pouco conhecido. F.W. - O senhor começou atuando especificamente em que área da SulAmérica? M.P. - Fiquei aqui cinco meses a estudar o processo da SulAmérica. Só que eu me beneficiava de uma coisa: o seguro na Europa estava mais adiantado que no Brasil, esta que é a verdade.

9 Refere-se à Revolução dos Cravos ocorrida em 25 de abril de 1974. 10 Importante político socialista, ocupou o cargo de primeiro-ministro de Portugal em 1976-1977, 1978 e 1983-1985. Foi também presidente da República entre 1986 e 1996. 11 Refere-se ao III congresso mundial da AIDA ocorrido em 1970 na capital francesa.

7

Estávamos muito mais adiantados em todos os segmentos, tanto no segmento administrativo como no segmento técnico e também no seguro de vida, em tudo isso. A essa altura o presidente da companhia ainda era o Leonídio e o vice-presidente era o Rony Lírio, um homem que tinham ido buscar na Vale do Rio Doce, em Nova York. O Rony Lírio disse: "Póvoas, você vai para São Paulo. Você vai fazer a mesma coisa que fazia em Portugal. Você vai ficar com a companhia na mão". Companhia na mão era ficar com a parte da produção, com a parte técnica e com a parte administrativa. Tinham criado, para mim, o cargo de superintendente técnico, mas fiquei meio incomodado... Assim, de repente, cai um pára-quedista que vem de Portugal, cai no meio daquela gente que também tem as suas expectativas.... Eu falei pro Rony: "Ô Rony, vocês têm que pensar em criar outro cargo de superintendente para dar aí para os novatos, são pessoas que sabem...". “Vou pensar nisso!”. Só que eles acabaram me colocando numa situação pior, pois criaram o lugar de superintendente geral... Criaram dois lugares de superintendente geral: um para a produção e outro para o resto e me deram os dois lugares para eu continuar com a companhia na mão. Imaginem a reação daquela gente lá... Chato! Eu não me senti bem! Eu ali, todo poderoso, no meio daquela coisa toda. Daí eu fui para esse outro projeto da previdência privada. F.W. - Quer dizer, o senhor ficou pouco tempo à frente da Superintendência Geral? M.P. - Sim, de 78 a 81. F.W. – Então, o senhor começou a trabalhar na previdência privada em 81? M.P. - Na previdência privada, com todo o entusiasmo. C.J.- Na SulAmérica? M.P. - Na SulAmérica, não. No projeto conjunto SulAmérica, Atlântica-BoaVista e Bradesco. C.J.- Como começou essa história da previdência privada? M.P. - Depois que eu cheguei aqui ao Brasil, vi um dia no jornal a publicação da Lei 6.43512. Eu pensei: “Isso é uma mina de ouro!” Eu perguntei para o Leonídio Ribeiro: "Ô Leonídio, você leu esta lei que está aqui?". "Que lei, Póvoas?". "Uma lei sobre previdência privada", "Mas o que é isso, previdência privada, Póvoas?". "Ô Leonídio, isso que está aqui é uma verdadeira mina de ouro". Ele, sempre brincalhão, disse assim: "Ô Póvoas, havia aqui umas minas de ouro, mas vocês, portugueses, roubaram isso tudo, você agora não venha com [inaudível]" [risos]. Eu insisti: "Olha, Leonídio, pense nisso. Eu estou falando de uma verdadeira mina de ouro". C.J.- Quer dizer então que a Lei 6.435 foi o ponto de partida da previdência privada no Brasil? M.P. - Não, não exatamente porque antes da previdência privada ter sido instituída legalmente aqui no Brasil já se fazia previdência privada de outra maneira, através das fundações de seguridade, dos montepios... Mas, em termos, digamos assim, jurídicos, foi a Lei 6.435 sim... 12 Essa lei foi promulgada em 15 de julho de 1977 e regulamentou a previdência privada aberta e fechada (complementar).

8

O legislador brasileiro seguiu, e muito bem, aquilo que eu tinha visto ser feito nos Estados Unidos. Ali, por volta de 1974, os Estados Unidos fizeram esse monumento jurídico de extraordinário cunho social que foi a ERISA13. Na ERISA, até para dar mais credibilidade aos fundos de pensão, eles foram de uma profundidade extraordinária... Muita gente me convida para dar lições na PUC, eu digo sempre lá: "Vamos ver se a gente arranja uma forma de começar a estudar, apesar de tardiamente, esse monumento extraordinário que é a ERISA”. Mas, enfim, ainda não se conseguiu. De todo modo, a ERISA foi a grande inspiradora da Lei 6.435. Só que, e eu não sei por que, o legislador brasileiro regulamentou apenas uma parte da matéria que eram os planos atuariais, os planos de benefícios que tinham, todos eles, uma construção atuarial. No sentido: "Olha, você é empregado ou não? Mas você tem um rendimento tal o que é que você quer? Você quer se aposentar daqui a quantos anos?". "Ah, daqui há vinte anos". "Muito bem!” “Quanto você quer receber nessa altura?" "Ah, eu queria ter uma renda de 5 mil reais". Muitíssimo bem! No cálculo atuarial nunca se considera a parte da inflação... A parte de inflação foi outro elemento que a gente toma e desenvolve. Com o cálculo das probabilidades, com o cálculo da sobrevivência, e já depois de feito um cálculo de matemática, também muito elevado, a gente diz: "Olha, você tem hoje 24 anos, você para daqui a tantos anos receber isso, você tem que pagar por mês tantos reais". Este é o cálculo atuarial.

Eu era, nessa altura, presidente do Conselho Superior da ANAPP14. Nós lutamos imenso com a SUSEP para que ela também autorizasse a fazer planos de benefícios de acumulação financeira, que era a grande coqueluche. Nessa altura, toda a gente, em todos os países, queria, através da acumulação financeira, fazer aqueles planos que não interessava a idade, nem coisa nenhuma. Por que? "Você tem possibilidade de dar quanto por mês?” "100”. “Põe aí: 100”. “Quando quiser se aposentar diga, que a gente vai ver o monte que lá está, vamos ver sua expectativa de vida e vamos ver – só aqui é que se recorria ao cálculo atuarial – qual vai ser o seu direito quando chegar aos 50 anos para começar a receber por toda a sua vida". Eram outros benefícios! Eram benefícios da acumulação financeira. Por isso é que é uma hipocrisia essa luta que havia entre bancos e seguradoras. Os bancos sempre olhavam com olho gordo para as seguradoras. E as seguradoras queriam se meter no produto financeiro dos bancos. Quando fomos autorizados a operar planos de acumulação financeira, os bancos deram-se as mãos. O Bradesco deu as mãos àquela companhia que já estava também no Bradesco, que eu tinha formado, que também era Bradesco, e pronto! A partir daí, foi um casamento indissolúvel. Eu acho que não há mais possibilidade de separar as operadoras de previdência, ou de seguros, dos bancos. C.J.- O senhor já tinha alguma experiência com previdência privada em Portugal? M.P. – Pouca, muito pouca...

Passados uns meses, o Flávio15 disse: “Ô Póvoas”, eu já era superintendente na companhia, "você é que vai ficar com esse projeto". "Qual projeto?" “O projeto da previdência privada”. E continuou: “Eu, o Antônio Carlos de Almeida Braga e mais o Bradesco, a gente

13 A ERISA (Employee Retirement Income Security Act) é a lei federal americana, de setembro de 1974, que dispõe sobre a organização do sistema previdenciário privado do país. 14 A ANAPP - Associação Nacional de Previdência Privada - foi criada em 1974 e teve participação decisiva na regulamentação do Estatuto Básico da Previdência Privada, criado pela Lei 6.435. Em 2007, com a reestruturação do setor associativo do seguro no Brasil, foi extinta e sucedida pela FENAPREVI - Federação Nacional de Previdência Privada e Vida. 15 Flávio Jahrmann Portugal foi um dos fundadores da Bradesco Vida e Previdência.

9

vai formar uma grande companhia de previdência privada e você é que vai ficar à frente desse projeto". Eu disse: "Olha, cuidado, porque eu posso saber a parte, digamos assim, operacional e tal, mas há uma coisa muito importante que é toda a parte comercial.” “Para a parte comercial, temos um homem muito bom que é o Molina”. Nessa altura, o Nilton Molina, um homem extraordinário, não era o vice-presidente. Quem era o vice-presidente da companhia era um grande atuário do Rio, o Dr. João José de Souza Mendes. Eu podia falar isso porque também era atuário, mas nem chegava aos pés dele em conhecimento! Foi o Dr. Souza Mendes que desenhou os planos, modéstia à parte, com grande ajuda minha. Eu tinha trazido realmente os planos mais avançados da Europa por virtude desses meus contatos lá em Paris. E, assim, se fez a companhia que , desde o início, foi sem dúvida um êxito.

Foi um êxito também por causa das taxas de inscrição, que depois desapareceram, nem podia deixar de ser. Eu mesmo votei contra elas, servi-me delas, mas depois votei contra elas por considerá-las iníquas. Para fazer um plano de previdência privada, a pessoa tinha que pagar uma taxa de inscrição e essa taxa de inscrição dava para a gente pagar as equipes que colocávamos na rua para fazer a angariação dos planos, porque era muito difícil vender um plano de previdência privada o trabalhador não sabia para que servia aquilo, quando ninguém sabia. Ninguém queria previdência privada. Mas, a verdade é que, com uma grande determinação, criamos núcleos em todos os estados do país, com psicólogos, com professores, a dar lições sobre previdência privada, e aquilo entrou na cabeça das pessoas, e hoje é essa maravilha que se vê. Ninguém sabe o que eu passei. O que era administrar uma companhia sem ninguém saber nada. Por isso eu escrevi esse livro que está aí16, em 8817, porque eu já não agüentava mais. As pessoas não sabiam, vinham sempre perguntar: “E, agora?” Em 84 comecei a escrever o livro. Em 85, já estava na rua. A partir daí, houve algo onde as pessoas podiam aferir seus conhecimentos ou adquirir conhecimentos. F.W. - Por que o senhor achou que a previdência privada era uma mina de ouro? M.P. - Eu vinha da Europa, onde a previdência social, na maior parte dos casos, se não dava 100% do último salário como aposentadoria, dava 90%. E o que acontecia aqui? Aqui havia um teto de benefício. A pessoa, um executivo, ganhava cinco mil unidades monetárias, só que o teto, quando ele se aposentava, não dava mais do que mil. Portanto, havia ali um gap de quatro mil para uma pessoa que ganhava cinco mil, mas se uma pessoa ganhava dez mil o gap era de nove mil. Vendo isso, eu dizia: "Só uma pessoa louca é que tendo possibilidade...”

Eu fui, nessa altura, convidado para fazer muitas conferências, em Madri, porque a Espanha começou a interessar-se muito pelo sistema de previdência privada no Brasil, e eu apresentava tudo, falava e tal. C.J.- O convite vinha de quem? De alguma instituição espanhola? M.P. - Vinha da associação dos seguradores da Espanha. Quando eu terminava, aquela gente sempre batia palmas e tal... Os espanhóis, que são muito duros, muito objetivos, me perguntavam como as coisas podiam funcionar no Brasil com uma inflação tão alta... Uma vez fiz uma palestra quando a inflação projetada era mais de 1.000% ao ano. Como a coisa é assim, isso não vai render dinheiro de jeito nenhum, eles diziam. Eu lá explicava o instituto da

16 Refere-se ao livro Previdência Privada. Filosofia, fundamentos técnicos, conceituação jurídica. 2ª ed. São Paulo: IAPE/Quartier Latin, 2007. 17 O depoente confundiu-se. O livro foi publicado em 1985, como ele corrige a seguir.

10

correção monetária, mas eles continuavam não entendendo como seria possível as coisas funcionarem aqui. Isso é para ver o ambiente em que a gente vivia. Ninguém acreditava! Só nós acreditávamos! Eu e meus companheiros sempre pensamos que tinha que dar certo e fizemos um esquema que não havia possibilidade de falhar. E não falhou! Veja-se o que é a previdência privada aberta hoje.

A previdência privada fechada já era uma realidade muito interessante... Era aquela previdência que tinha sido feita para as empresas estatais em que não havia falta de dinheiro. Era uma previdência que servia não apenas para trazer a aposentadoria até 100% do salário, mas muitas vezes ultrapassava os 100% e ia para os 200%. Foram escândalos que se deram aí e vocês sabem bem como se deu, enfim, foi algo terrível. Mas, na parte privada, o processo foi sempre impecável. Impecável! E o processo começou pelo Bradesco. Eu tenho que me curvar aos métodos do Bradesco. O Bradesco, na verdade, é uma instituição muito séria. Aquela gente, aqueles diretores... Víamos que era uma gente que não tinha uma grande cultura, porque era tudo pescado no interior. As pessoas até falavam com aquele sotaque, pareciam pessoas assim... Mas eram pessoas altamente conhecedoras da atividade bancária e, mais do que isso, pessoas de uma honestidade impecável. De forma que tudo aquilo que a gente propunha para um esquema previdenciário que não tivesse problemas no futuro, eles aceitavam. Eu tenho uma grande admiração por Sr. Brandão18, presidente do Bradesco no tempo em que eu lá estava. Nessa altura, havia três presidentes no banco – havia até mais, mas havia três presidentes nas partes mais importantes: um senhor aqui do Rio, o senhor Ararino de Oliveira, que era o presidente da seguradora, eu, como presidente da Bradesco Previdência, e o sr. Almeida Brandão como presidente do Banco. Éramos realmente, as pessoas que resolviam, enfim, os assuntos fortes de dinheiro. F.W. - E como foi feito esse planejamento que conseguiu alavancar o mercado de previdência privada nessas condições brasileiras? C.J.– Posso complementar? Como é que foi feito o entrosamento entre a SulAmérica, o Bradesco e o Atlântico-BoaVista? Como é que esses três grupos se juntaram para desenvolver um projeto como esse? M.P. - O Molina era muito amigo do Antônio Carlos de Almeida Braga. E o Molina era uma pessoa muito esperta, foi sempre um vendedor de montepio, mas que também sabia muito sobre o processo da intermediação da Previdência naquela fase em que estava nas mãos dos montepios. E, depois de eu ter falado ao Leonídio, ele começou a se interessar muito sobre a Lei 6.435... Mas, antes disso, por virtude também de um papel que teve o Petrelli19, eles conseguiram fazer aquela Bradescor20, que era uma intermediária de seguro, que era uma intermediária do Bradesco. O dinheiro que a Bradescor ganhava era para sustentar a Fundação Bradesco, e afora que o próprio Bradesco começava a tomar um certo interesse pelo seguro. Quando veio a previdência, isso já foi um pouco além, eles já estavam mentalizados para entrar no campo do risco de seguro de vida. Por isso, nessa altura, já estavam juntos o Molina, o Antônio Carlos Almeida Braga, o Amadeu Aguiar, enfim, e até o Petrelli também, com as idéias que tinha, porque a idéia da Bradescor foi do Petrelli. Agora, qual foi mesmo a sua pergunta?

18 Lázaro Brandão foi fundador do Banco Bradesco. 19 Mário Petrelli 20 Corretora de Seguros do grupo Bradesco.

11

F.W. - Como foi feito esse planejamento que o senhor disse ter ficado tão bem feito? M.P. - A gente organizou a companhia nos mínimos pormenores. Como é que se faz isso, como é que se vai fazer a produção aqui nesta área, ali naquela. Perfeito! A gente confiava – e não apenas eu, porque o Molina era o homem da intermediação – na participação dos corretores. O Molina dizia: “A gente vai convencer os corretores de seguros e eles vão vender esse produto”. Enviamos, pensem só, 24.000 cartas aos corretores, dizendo que era um novo produto, que eles podiam ganhar dinheiro. Nessa altura, todos queriam ganhar dinheiro por causa da tal taxa de inscrição. Agora, não há mais possibilidade de se ganhar assim, mas, nessa altura, havia essa possibilidade. F.W. - Só para lembrar a gente, dr. Póvoas, isso foi exatamente quando? Início dos anos 80? M.P. – Isso foi ali em 83, 84. A gente aprontou tudo, mas as cartas em resposta não apareceram. Recebemos apenas duas cartas. De 24.000 cartas que foram enviadas, recebemos duas cartas. Ninguém se interessou pelo produto e aí foi o mesmo que carcar pedra. Carcar pedra em que sentido? Nós começamos a formar os nossos próprios produtores, com nossos funcionários que tinham um salário fixo. F.W. - Os corretores não corresponderam às expectativas de vocês. Como o senhor avalia o fato de eles não terem respondido? M.P. – Eles não entenderam o produto. Se bem que a gente na [inaudível] já fizesse muitas conferências pelo Brasil afora. F.W. - Ninguém fazia previdência privada no Brasil? M.P. - Ninguém fazia e ainda hoje ninguém faz. O corretor não faz previdência privada. Mas até compreendo que hoje os corretores não tenham interesse em fazer previdência privada. F.W. - Nesse momento vocês já tinham articulação com o Bradesco? Já estava tudo montado? M.P. - A empresa era do Bradesco. Nessa altura, a empresa já era na totalidade do Bradesco... A gente formou a empresa com o nome de Vida Previdência e, quando o Bradesco se meteu, desapareceu o Vida e ficou só Bradesco. C.J.- A gente quem? M.P. - Nessa altura, era o Molina, a Atlântica-BoaVista e a SulAmérica. F.W. – Então, vocês tiveram que montar a equipe? M.P. – A equipe foi muito bem montada, com psicólogos e professores. A gente tinha um núcleo em cada capital de Estado e aquilo começou a dar resultado. Mas o que deu mais resultado, porque o dinheiro era grande... Essa foi uma idéia pela qual eu também lutei muito. Depois, mais tarde, o Bradesco achou que eu não devia continuar com ela porque a gente

12

remunerava muito. A gente dava um salário fixo ou intermediário ao produtor e, além disso, um percentual que não se esgotava numa só prestação. A cada prestação o percentual continuava, pois era para que a pessoa que entrava num plano em que ia pagar, mês a mês, não pagasse a primeira e depois desistisse. Não! Eu tinha que estar em cima dela. A coisa era de tal forma interessante que, ainda hoje, encontro produtores dessa época que vêm me dar um abraço e dizem: “Olhe, foi o dinheiro que eu ganhei naquela época da minha vida que me permitiu comprar o meu apartamento, o meu automóvel, foi naqueles primeiros tempos da Bradesco Previdência”. Depois o Sr. Brandão mandou cortar, por que? Porque os gerentes dos bancos começaram a queixar-se que a previdência ganhava mais do que eles, e realmente ganhava porque tinha aquelas comissões. Então tivemos que acabar com isso, mas depois eu saí... F.W. - E como esses produtores trabalhavam? Como eles chegavam ao cliente? M.P. - No caso de empresa, o Dr. Souza Mendes começou por fazer um esquema de benefícios da empresa para seus funcionários. Aí era mais fácil porque, até pela influência do Bradesco, a gente batia a porta e tal, eles aceitavam que o nosso homem expusesse. Numa empresa grande, vinha logo uma batelada de vidas, de participantes. Mas no caso individual era mais difícil, e a gente tinha essa escola que eram os salões de vendas, onde a gente mostrava como tinha que ser feita a abordagem. Nesse aspecto o Molina é o grande mestre. [inaudível] A gente ensinava como eles deviam ir, como é que não deviam ir, enfim. F.W. – Quer dizer, já havia a idéia de usar a rede do banco para fazer isso? M.P. - Sim, a rede do banco era usada não para vender, porque o gerente não era capaz de vender coisa nenhuma porque ele não conhecia o produto – era um produto altamente técnico e especializado - mas ele era capaz de dizer ao nosso produtor assim... Porque, era também um engano dizer que o cliente era apanhado no banco. A pessoa que tem dinheiro não vai ao banco, manda alguém lá. Quem tem dinheiro diz assim ao seu empregado: "Olha, vai lá fazer o meu depósito, vai lá fazer isso...” Só quem é mais pobre é que vai lá e diz: “Vim aqui fazer um empréstimo”. Os verdadeiramente endinheirados, que podiam ter interesse, não iam lá. O gerente dizia: "Olha, a gente tem uns clientes, seu fulano de tal... você entra em contato com ele”. Mas eu não tinha força nenhuma para ter o cliente. F.W. - Ou seja, na verdade a rede era muito mais uma captação de informação sobre quem era o cliente. M.P. - Era mais saber que a gente tinha a possibilidade de chegar ali, bater na porta e dizer assim: "Olha, eu sou o fulano tal, sou do Bradesco, você pode me dar uns minutos da sua atenção?" Uns diziam que não, mas a maior parte dizia que sim. Até porque, à medida que a gente ia fazendo as nossas conferências [inaudível], a cultura previdenciária privada entrava na... Em termos de cultura, deu-se uma coisa espantosa. Essa Lei 6.435, que saiu em 1977, para mim foi algo extraordinário porque preparou o Brasil para ter... Tem uma coisa que pouca gente sabe... No ano de 1977, deu-se um outro fato: foi estabelecido o Sistema Nacional de Previdência e Assistência21. O SINPAS também nasceu em 1977. Nasceu o SINPAS e foi

21 A Lei n° 6.439, de 1° de setembro de 1977, instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social - SINPAS, orientado, coordenado e controlado pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, responsável

13

promulgada a Lei 6.435. Quer dizer, nesse ano, o Brasil tinha a parte da previdência social institucionalizada, bem ou mal resolvida e, ao mesmo tempo, tinha criado e já tinha estruturado a parte da previdência privada. O Brasil estava em condições, se quisesse, de fazer um sistema integrado igual ao dos Estados Unidos, o chamado Three Legs System, sistema das três pernas. Que pernas são essas? A primeira perna é formada pela Previdência Social. A segunda perna é formada pela previdência que as empresas oferecem aos seus empregados na forma de fundo de pensão. E a terceira perna, que seria sempre a mais difícil, é a perna de pessoas, como nós aqui, que temos preocupação com o futuro, vamos a uma entidade e dizemos: "Olha, eu quero começar a pagar para ter lá no fim a minha aposentadoria". São as três pernas. O Brasil estava em condições, e fez, de fazer, só que não de uma forma integralizada, porque integralização tem na sua base uma coisa que é um sistema fiscal que tem de ser realmente de uma rigidez muito grande para não haver pessoas prejudicadas. Nesse aspecto, a gente ainda não conseguiu nada, mas as três pernas estão aí a continuar a serem trabalhadas.

O que aconteceu é que nenhum dos países da América Latina se interessou pelo esquema brasileiro, pela Lei 6.435. De forma que, em 1980, quando aconteceu aquela verdadeira bomba que foi a falência do sistema previdenciário chileno (o Pinochet estava no poder), eles vão à falência e logo o que é que eles mostram? Eles promulgaram aquele Decreto 3.500, onde criam o sistema das AFPs – Administradoras dos Fundos de Pensão –, que era a administração da previdência por atividades privadas em que o Estado intervinha e tudo aquilo que entrava como fundo de pensão do empregado era do seu próprio bolso. Fora que eles puderam fazer um fundo de pensão para cada pessoa. E é nessa altura que aparecem os grandes conselhos, conselho de portabilidade, que era fácil porque corria tudo da forma que o sistema tinha sido feito. Esse sistema teve a maior projeção no mundo, todo mundo começou a olhar para aquilo, houve até também más línguas, diziam que o sistema era uma guarda avançada da escola neoliberalista de Chicago, que o Chile tinha sido usado para se testar essas experiências, enfim. Eu fui a primeira pessoa a escrever, em 85, sobre o sistema chileno e disse que aquilo não poderia ser uma experiência maravilhosa. Todos os presidentes da América Latina foram atrás do sistema chileno e ninguém nunca pensou no sistema brasileiro, que estava muito mais adiantado do que o deles. C.J.– Nesse momento, quais eram as diferenças entre o modelo chileno e o brasileiro? M.P.- Eu faço muitas palestras e acontece até... Quando eu vejo que a palestra representa a pessoas que tem que ficar com os ensinamentos básicos, eu escrevo a palestra antes. Não é que eu precise da palestra, porque... Mas eu escrevo a palestra e depois entrego para a pessoa, para elas ficarem. Nessas palestras incluo praticamente tudo isso que eu estou aqui dizendo, enfim. São palestras que eu escrevo, essa foi feita em Belo Horizonte, foi feita em Porto Alegre, foi feita em Goiânia.

Também dei uma grande contribuição à defensoria do segurado22. O problema é que a SUSEP não foi capaz de compreender o meu pensamento e fez uma coisa que, enfim... Nem é, é claro, o que eu penso, porque aquilo que eu defendi está ali [depoente indica os textos das

"pela proposição da política de previdência e assistência médica, farmacêutica e social, bem como pela supervisão dos órgãos que lhe são subordinados" e das entidades a ele vinculadas. 22 Em 2003, a SUSEP baixou uma norma incentivando as seguradoras a instituírem, além dos mecanismos de Serviço de Atendimento ao Consumidor, a Ouvidoria, com o objetivo de solucionar os conflitos entre empresa e cliente.

14

suas palestras]. Olhe também: uma lição que eu fiz da PUC para alunos, eu escrevia palestras e dizia aquilo que acontecia e depois se ele quisesse estudar estava aí. Posso deixar-lhes isto, para terem a noção daquilo que respeita propriamente à previdência privada. Isso são coisas que eu escrevi dirigidas a pessoas que não sabiam nada de previdência privada e que queriam ficar com alguma informação. C.J.– Mas o que seria, mais precisamente, a defensoria do segurado? M.P. – Isso aí de defensoria do segurado é o tal ombudsman.... Uma coisa que eu estudei bem dentro da teoria clássica foi a questão da defensoria do segurado. Fiz uma palestra a convite da FENASEG, em que eu disse como a coisa tinha que ser. Disse que o defensor do segurado não podia ser de jeito nenhum um funcionário da seguradora, porque isso era a mesma coisa que ter o lobo dentro do galinheiro, era ter a raposa dentro do galinheiro. Mas, mesmo assim, o Bradesco, com a influência toda que tinha, embaralhou aquelas pessoas, que podiam, até certo ponto, seguir uma outra orientação, e a SUSEP também foi nisso também23. Permitiram que o defensor do segurado fosse um funcionário ou um diretor da própria seguradora. Está errado! Mas, enfim, dizem que está funcionando bem. Eu até fico satisfeito. Mas não pode funcionar bem, porque é contra a filosofia do sistema. Quando a gente vê que o sistema está bem definido, que tem a sua filosofia e que há uma estrutura contra essa filosofia, a gente já sabe que por mais que digam não pode ir bem. Não pode ir bem, porque é contra a natureza da estrutura filosófica da instituição.

[FINAL DO ARQUIVO 1 - DISCO 1] Entrevista: 04/12/2006 C.J. - Nós conversávamos sobre o início dos anos 80, momento da formação desse grande projeto da previdência privada... M.P. - ...da previdência privada, projeto que tem se mantido. Então, deixe-me cá só dizer uma coisa. Enquanto, ao nível do povo, a cultura ia entrando na cabeça do trabalhador, ao nível da Constituição de 1988, o constituinte nem estava aí. O constituinte estava orientado por uma plêiade de grandes técnicos presidencialistas clássicos e, para eles, só existia uma forma de previdência – a previdência social. Eles não aceitavam de forma nenhuma a previdência privada. Eu lembro que, nessa altura, eu era presidente do conselho superior da ANAPP e ia todos os dias de avião para Brasília – ia lá no aviãozinho, no jato do Bradesco – para falar com aqueles constituintes. Eles diziam sempre: "Pô, Póvoas, essa não. Para nós, previdência é previdência social". Eu dizia: "Mas eu só quero que na Constituição apareça a expressão previdência privada. Não me interessa o conteúdo. Desde que apareça a expressão previdência privada na Constituição eu já fico satisfeito". Conseguimos, mas de uma forma atabalhoada! 23Pela Resolução nº 110 do CNSP, de 2004, que regulamentou a Ouvidoria, no artigo 3º, está determinado que a Ouvidoria deverá ficar sob a responsabilidade de um Ouvidor, indicado pelo Conselho de Administração ou pelo Presidente da sociedade ou entidade ou cargo equivalente e sua atuação será sempre de forma personalizada, independente e imparcial.

15

Por que? Porque a expressão previdência privada apareceu, só que no artigo 201, parágrafo 8º, que diz: “É proibido o auxílio do poder público às entidades de previdência privada com fins lucrativos”24. Foi a única coisa!25 E uma coisa que não tinha qualquer significado! Mas, pelo menos, lá ficou...

Há pouco, eu falei, assim en passant, do sistema chileno. O sistema chileno assentava-se em pressupostos filosóficos que nunca tinham sido considerados. Um dos pressupostos filosóficos era que o sistema, o regime financeiro que prevalecia era o regime da capitalização e não o da repartição, que é o sistema da previdência social. Este é o primeiro. Outra coisa que prevalecia também era o trabalhador sustentar o seu próprio plano. Filosoficamente, era uma coisa, enfim, extraordinária. E o terceiro era a criação de administradoras para administrar os fundos de pensão, essas AFPs.

Eu fiz muitas palestras a esse respeito e muitas outras pessoas também fizeram... O IBMEC convidou o próprio Hérnan Büchi26, que era primeiro-ministro27 do tempo do Pinochet e que foi o pai da lei chilena28, para vir ao Brasil e encarregou-me de acompanhar esse homem durante três dias. Eu tive possibilidade de contatar com ele, um grande senhor, uma pessoa muito sabedora, que me permitia fazer todas as perguntas. E quando eu lhe disse: "Olha, professor, como é que o senhor encara essa acusação de dizerem que o Chile foi um lacaio dos norte-americanos, através da Escola Neoliberal de Chicago, para difundir uma coisa que você por você não era nem capaz de fazer". Ele me explicou: “Ô Póvoas, pelo amor de Deus... Olha, esse é um sistema puramente meu. O Chile estava numa má situação, o Chile não tinha poupança, e um regime que assentasse na capitalização ia criar poupanças como um seu produto. Foi por isso que eu fui para o sistema de fundos de pensão. E, por outro lado, você não encontra, em parte nenhuma no mundo, um sistema idêntico ao meu. Qual é a particularidade? Faça a acumulação do dinheiro de onde as pensões vão sair, só que no momento em que a pessoa se aposenta é que o dinheiro, que é o fundo de pensão, passa para uma companhia de seguros, e a companhia de seguros é que vai pagar a renda dele enquanto ele viver... Isso foi meio idéia minha, porque em toda a minha vida eu sempre ouvi dizer que um dos índices mais expressivos do bem-estar de um país era a sua captação no seguro de vida".

Essa filosofia foi entrando naqueles constituintes mais evoluídos. A gente fazia também muitas reuniões em Brasília. F.W. - Quem eram os seus interlocutores lá na Constituinte? O senhor se lembra?

24 O entrevistado se confundiu. A referência correta é Constituição Federal de 1988, Título VIII. Da Ordem Social, Capítulo II, da Seguridade Social, seção III, da Previdência Social, artigo 202, parágrafo 3°, que diz; “[fica] vedado o aporte de recursos a entidades de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado”. 25 Ainda no artigo 202 foi definida que a previdência privada tendo caráter complementar e autônomo ao regime da Previdência Social, sendo facultativa e, finalmente, regulada por lei complementar. 26 Economista chileno, foi ministro da Economia entre 1985 e 1989, nos últimos anos do governo do general Augusto Pinochet. Foi também um dos colaboradores da reforma da previdência chilena no início da década de 1980. 27 O depoente equivocou-se. O Chile era e é um regime presidencialista. 28 José Piñera, que ocupou a pasta do Trabalho e Previdência, é quem é considerado o pai do sistema privado de pensões do Chile.

16

M.P. – Todos! A Constituinte não foi uma constituinte especial. A Constituinte era o próprio Parlamento. Foi uma grande discussão que se fez. Houve grandes professores que disseram que aquilo não ia dar nada, e realmente não deu. A gente quer realmente exaltar a Constituição, mas uma Constituição dessas... uma Constituição tão paternalista... Ninguém se preocupou em como o país ia arranjar dinheiro para dar todos aqueles benefícios ... Foi um show de inconsciência! Foi um show!

Na previdência privada houve uma correção por causa daquele intercâmbio cultural que se deu ali, a partir de 1990, nos cinco anos seguintes, entre o Brasil e o Chile, e que teve realmente muitos resultados. E, foi por isso, em virtude da inteligência dos constituintes, que eles estabeleceram no art.3º das Disposições Transitórias, o princípio de que a Constituição teria que ser revista, passados cinco anos. Foi o que salvou! Porque aí, então, em 1998, passados dez anos, a gente conseguiu a primeira Emenda Constitucional29, que foi, por assim dizer, uma reforma constitucional, uma reforma previdenciária. Depois, em 200130, fez-se a Emenda Constitucional nº 40 e, passados dois anos, a Emenda Constitucional nº 47, que modificou muitas coisas e permitiu isso que está aí. Mas ainda tem que se fazer muita, mas muita reforma para que o sistema se equilibre. Foi aí, na parte de equilíbrio, que veio essa grande discussão nacional, com muita gente dizendo que os governantes estão mentindo, e que, hoje, o que o país faz com muito esforço de receita para a previdência social é mais do que suficiente para pagar a todos. Sem essa choradeira do governo, a dizer que, enfim, tem 45 bilhões de débito. Outro dia assisti a uma palestra do presidente da Fipe31, e ele dizia que há duas correntes e que as duas têm razão. Eu sou daquela corrente que diz que para todos receberem as suas rendas sem preocupação não é necessário mais dinheiro do que está aí. Só temos que estar atentos. Daqui para adiante aqueles novos servidores, aqueles novos empregados que entrarem têm que se sujeitar à outra regra, mas para os antigos está tudo bem. Esta é uma corrente, a que diz que há dinheiro suficiente para isso. F.W. – O senhor acha que não são necessários mais recursos? M.P. – Não, não são, mas a outra corrente diz que sim. Se o governo insiste em dizer que o dinheiro não é suficiente, então que reponha aquilo que roubou do próprio sistema, porque a Transamazônica foi feita com fundos acumulados da Previdência Social, a ponte Rio-Niterói foi feita com o dinheiro da Previdência Social. F.W. - De onde é que vai sair dinheiro para repor isso tudo? M.P. – Pois é! Agora o governo tem que ter a hombridade de dizer: "Olha, tudo bem, tem toda razão. Realmente, o dinheiro é suficiente, a gente é que gastou mal”. Quer dizer, os governos que estiveram aí gastaram mal, mas o dinheiro é suficiente. Para que? Para tirar da cabeça do povo brasileiro a preocupação de que o dinheiro – dinheiro enorme – que ele está pagando para a sua previdência social não é suficiente. Sim, hoje, eu pago 8%, seu patrão paga 12%, 20%. Reparem naquele grito dado por neoliberais da Escola de Chicago. Ainda há pouco morreu um

29 A Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, regulamentou a Reforma da Previdência Social. 30 O depoente confundiu-se com relação a data da Emenda Constitucional n° 40: é de 2003. 31 Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, centro de estudos ligado ao Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

17

dos homens de maior prestígio nessa escola que era o Friedman32. O que o Friedman dizia? O Friedman dizia: "Olha, todo o sistema da previdência social que está implantado aí é prejudicial ao trabalhador, porque aquilo que o trabalhador está pagando, por ele ou pela empresa onde trabalha, é muito superior aos benefícios que recebe. Portanto, ele está sendo enganado". Repare. Isso é uma acusação espantosa. Tivemos a oportunidade de falar sobre isso com o próprio Friedman lá em Brasília. E ele dizia: "Realmente Póvoas, é isso mesmo! Não há como fugir. Aquilo que o trabalhador paga para a previdência social é muito, mas muitíssimo, superior àquilo que ele recebe como aposentadoria”. No meio disso tudo, há um outro problema que é o problema dos sistemas próprios de previdência social, o sistema dos funcionários, dos servidores. Isso é um complicador, um grande complicador, mas que tem que ser resolvido de formas muito especiais. A gente vai esperar que a próxima reforma da previdência resolva esses problemas. C.J. – Poderíamos voltar um pouco? O senhor falou que as emendas constitucionais do final dos anos 90 começaram a modificar o setor de previdência privada. Que modificações foram essas? M.P. - Do ponto de vista do plano geral, já chamei a atenção para uma coisa, sem saber que a gente ir entrar nisso. Sabemos que a filosofia de qualquer sistema é que determina os caminhos que o sistema tem que trilhar. Quando eu, há pouco, vos disse que, no ano de 1977, o Brasil estava preparado para instituir um sistema integrado de previdência, estava preparado por quê? Por um lado, porque tinha acabado de instituir o Sistema Nacional de Previdência, o SINPAS estava completo. Por outro lado, porque o Sistema da Previdência Privada também estava instituído. Era só juntar aquilo de uma forma integrada. O que significa essa forma integrada? Esse sistemas têm que estar integrados de tal modo que, em termos filosóficos da previdência, eles funcionem de forma a dizerem que aquele homem tem condições para enfrentar o futuro com tranqüilidade, desde que o trabalhador esteja inscrito na previdência social, ou em uma empresa, ou inscrito por ele próprio ao ter comprado o sistema dele numa operadora qualquer. Na base disso estão dois conceitos para a integração. C.J. – Que conceitos são esses? M.P. - Não queria entrar nisso, porque é uma coisa complicada, mas já que vocês falaram... O primeiro conceito é o de solidariedade, conceito muito bem definido. Um sistema previdenciário tem que ter sempre, na sua base, ou a latere, um sistema de solidariedade. Por que? Porque deve haver sempre pessoas, nas comunidades que estão dentro desses sistemas, que se beneficiem deles sem pagar nada. Ou então fazer que a própria filosofia nos atinja, dizendo assim: "Olha, se você não pagou, você não recebe nada do sistema". Isso tem que ser definido. No Brasil, vem um parlamentar agora e diz: "Olha, paguem ao trabalhadores agrícolas, eles também têm direito". Ah, então vamos juntando todos na previdência social. Isso não pode ser! Não se pode admitir essa forma de solidariedade porque vai prejudicar todos os outros. Por isso é que o sistema da previdência social está desequilibrado. O dinheiro existia, mas vão lá e dizem: "Olha, agora também dêem dinheiro aos trabalhadores rurais". A gente acabou de assistir a algo... Parece que nós estamos em uma sociedade de loucos. Não é que a

32 Milton Friedman foi um dos mais importantes economistas da Escola de Chicago no século XX. Defensor do liberalismo econômico, suas contribuições para a ciência econômica o levaram em 1976 a ser agraciado com o Prêmio Nobel de Economia.

18

oposição, para pôr o Lula em dificuldades, mandou dar o 13º para aqueles sistemas? É até uma coisa muito bonita dar o 13º para bolsa disso, bolsa daquilo, mas só que é uma loucura. Como é que pode? Só porque são parlamentares acham que podem propor qualquer coisa e o Lula que se vire... Mas aquilo vai sair do bolso de todos nós. Por isso eu digo, a parte da solidariedade é uma das coisas mais importantes a ser definida num regime integrado.

A outra coisa que tem que ser definida, porque tem que ser igual para todos os segmentos dentro do sistema, é o sistema fiscal. Nos Estados Unidos, o que dá realmente consistência ao sistema do tripé é o sistema fiscal e isso não está feito aqui no Brasil. Voltando à questão da integração, ela se deu quando ninguém pensava... Depois da burrada feita quando da primeira redação da Constituição de 1988, quando a gente pensava que já não havia nada a se fazer, foi promulgada a Lei Complementar nº 10933, substituindo essa lei que está aí, que é a 6.435. E depois veio essa Emenda Constitucional nº 20 a dizer que os funcionários públicos sempre ganharam mais do que os outros, e que são uns trabalhadores que não trabalham nada, que não valem nada. Foi um insulto horrível. Não sei como é que se permitiu uma coisa dessas no Brasil. Na Europa, isso não passava de jeito nenhum. Até porque o direito do funcionário público é um direito ancestral que vem... que foi sempre assim... O funcionário público, para suas funções, sempre teve um sistema especial de aposentadoria que não podia ser tirado. E de repente vem uma lei que diz: "Aí, a gente dá essa machadada, só que vocês agora vão ter a possibilidade de recorrer a um plano complementar". E quando a lei diz isso, quando a Emenda Constitucional diz isso, então o que acontece? Acontece exatamente uma integração dos sistemas. É a própria lei que está dizendo assim: "Olha, a integração está a dar-se, porque você – é certo que apanha de uma machadada –você não tem mais possibilidade sequer de ‘viver a sorrir’ durante o resto da sua vida. Mas você tem agora a possibilidade de complementar nestes termos, que não é tão lamentável, você vai complementar a sua aposentadoria com um plano de previdência complementar". É para tapar a boca do funcionário público, dizer para ele: "Olha, vocês já sabem a porcaria que tem na previdência privada, nos fundos de pensão, tem às vezes muito roubo... Olha, a gente está lá na Constituição... nós vamos constituir uma entidade especial de feição pública que vai administrar os vossos dinheiros."

Dois erros de imensa gravidade! Um é admitir que a previdência privada, em alguns casos, não oferece qualquer confiabilidade, e o outro dizer uma coisa que era impossível, dizer que “realmente vocês sofreram muito e tal, mas a gente vai fazer com que vocês não tenham preocupações, a vossa previdência privada vai ser administrada por entidade de natureza pública." Parece o quê? Olha, pode estar, mesmo que roubem, em quantidade, tal...Falar em natureza pública quer dizer que será o Estado que vai pagar tudo aquilo que a entidade não pode. Que mentira, meu Deus! Que mentira! Isso nem estava na nossa conversa, porque certamente está muito além daquilo que vocês certamente queriam ouvir de mim, mas são coisas de tal gravidade que, mais tarde ou mais cedo, têm que ser consideradas...

Agora se fala numa reforma que vai resolver todos os problemas. Agora, o que a gente vê... O presidente Lula, por ignorância, acho eu, diz: "Ah, não existe problema nenhum na previdência social, nada disso. Agora é moda falar mal da previdência social..." É aí que a gente tem que estar atento. C.J. – Nesse meio tempo, o senhor ainda trabalhava na Bradesco?

33 Lei Complementar n° 109, de 2001, regulamentou o sistema de previdência complementar.

19

M.P. – Não! Eu tive sempre alguma atividade... Sou presidente do grande conselho da Academia Nacional de Seguro de Previdência34, sou presidente do Conselho Deliberativo da Associação Internacional do Direito do Seguro, sou também diretor da Sociedade Brasileira de Ciências do Seguro35. E todos esses problemas são tratados lá. Também sou muito consultado para fazer palestras para isso, para aquilo e tal. C.J. – Fale-nos um pouco da ANAPP. M.P. - Quando eu cheguei ao Brasil, a ANAPP já estava formada. Tinha sido formada no Rio Grande do Sul e, enquanto a ANAPP... enquanto a previdência privada foi operada pelos montepios. Quer dizer, usando datas... até o ano de 1977, essas associações - que havia eram uma pecha lá no Rio Grande do Sul - não tinham qualquer importância. Só quando os montepios foram enquadrados ... Aí tenho de fazer um aparte. Os montepios sempre foram discriminados pelo legislador no Brasil. O livro que está aí36, que é um livro de história, conta o que aconteceu com os montepios. Os montepios estiveram sempre fora da fiscalização que incidia sobre seguros. Assim, as pessoas que tinham montepio até podiam ter muito boas intenções, mas o caixa dos montepios era o próprio bolso do fundador, do instituto dos montepios. De forma que todos aqueles escândalos que se divulgaram... Mas isso não quer dizer que a instituição do montepio não seja uma instituição que devesse ser cultuada aqui no Brasil. Porque a gente vê o que acontece na França, onde realmente os montepios têm grande expressão. E, agora, no Brasil também, depois da promulgação da Lei 6.435, há montepios de grande expressão e gente muito séria, sobretudo no Rio Grande do Sul. Mas a sua pergunta foi sobre o quê mesmo? C.J. – Sobre a ANAPP. M.P. - Nessa altura, tínhamos criado a ANAPP, a nossa associação da classe, que, aliás, sempre funcionou muitíssimo bem. Nós demos uma grande ajuda à própria SUSEP, aos estudos da SUSEP. Certa vez nós redigimos – eu também tenho esse texto – um decreto-lei, no qual, pela primeira vez, a gente falou do papel que as reservas matemáticas dos fundos de pensão desempenhariam na economia do Brasil. É o decreto dois mil novecentos e não sei o quê. Eu tenho a honra de dizer que aquele decreto foi redigido pela minha mão, auxiliado pelo Cata Preta37 e pelo Molina. Fomos nós que redigimos. Isso é para ver a que grau chegava o nosso entendimento com a SUSEP. A SUSEP confiava na gente, eles sabiam que nós é que tínhamos o conhecimento operacional da questão. C.J. - Isso foi quando? O senhor lembra o ano? M.P. - Isso foi por volta de 86 mais ou menos. Estávamos já muito instigados, já se começava a murmurar com ansiedade em se fazer uma nova Constituição. 34 A Academia Nacional de Seguro de Previdência (ANSP) foi fundada em 1993 com objetivo de estimular o aperfeiçoamento da instituição seguro, da previdência privada e instituições afins. Tem abrangência nacional e constitui-se em um centro de estudos e pesquisas. 35 A Sociedade Brasileira de Ciências do Seguro (SBCS) foi fundada em 1953, em São Paulo, com objetivo de promover o ensino da ciência do seguro no país. 36 Refere-se ao livro de sua autoria, já mencionado, Previdência Privada. Filosofia, Fundamentos Técnicos. Conceituação. 37 Horácio L. N. Cata Preta.

20

C.J. - A função da ANAPP seria quase dar assessoria sobre previdência? M.P. - Não, não! Ela é uma associação de classe que, perante a lei, ou estrebucha ou diz que sim. Se estrebucha, colabora para que a coisa seja emendada e seja alterada ou... Temos que fazer justiça a SUSEP. Ela também tinha os seus atuários, mas sempre que era para alterar, eles vinham junto a nós e diziam: "Olha, temos aí uma coisa, vamos estudar esse conjunto...”. Olha, não digo isso por vaidade não, mas o próprio IRB... Outro dia, uma senhora, que é mulher do Sérgio Mello e também jurista do IRB, me contou que quando saiu esse meu livro sobre previdência privada em 85, o IRB fazia cursos das 8 às 10 da manhã sobre o livro. Era a única fonte de cultura que tinham para a operação. Podia até haver outras fontes de cultura filosóficas em geral, mas para a operação, para o conhecimento operacional da previdência, não havia. C.J. – A ANAPP exerceu pressão junto aos constituintes? Vocês chegaram a se reunir para isso? M.P. - Não, não! Repara só. A Lei 6.435 tinha institucionalizado muito bem a previdência. Primeiro, assentou a estrutura previdenciária naquilo que eu acho que estava mal, em entidades abertas e entidades fechadas, nem vale a pena falar nisso. Colocou as entidades fechadas na esfera de influência do Ministério da Previdência Social. Colocou as entidades abertas na esfera de influência do Ministério da Fazenda que, a essa altura, se chamava Indústria e Comércio38. Depois, havia a necessidade de um órgão legislativo (o interessante é que a gente pensava que os órgãos legislativos desapareceriam com a Constituição de 88, mas não desapareceram, continuam). O legislador instituiu como órgão normativo o Conselho da Previdência Complementar nas entidades fechadas e nas entidades abertas- incorporou – não criou, porque já estava criado – o Conselho Nacional de Seguros Privados. Como órgãos executivos, criou, na parte das entidades fechadas, a Secretaria da Previdência Complementar e, na parte das entidades abertas, a SUSEP. Quer dizer, a estrutura, em termos governamentais é uma perfeição. Para mim é uma perfeição. C.J. – Então, qual é o problema? M.P. - O problema foi depois, com a própria evolução das coisas, terem sido necessárias estruturas que não quiseram dar, como integrar os sistemas em termos efetivos. C.J. - E a Academia Nacional de Seguros e Previdência? M.P. – São outras associações. Em São Paulo, é interessante, há um movimento intelectualizado para o estudo do seguro e da previdência. Lá há uma série de associações. Há associação dos técnicos do seguro, há a academia, há a AIDA, enfim. Há uma série de pessoas que gostam de se juntar para estudar os assuntos institucionais do seguro e da previdência. C.J. - Que especificidade tão grande a previdência tem? Por que tantas entidades?

38 Na verdade, o depoente equivocou-se. A atividade seguradora no Brasil esteve entre 1933 e 1979 regulamentada pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Neste ano passou a vincular-se ao Ministério da Fazenda.

21

M.P. - Eu também me admirei. Eu, há cerca de 10 anos, comecei a ouvir falar nos simpósios sobre direito previdenciário. Eu tinha sido uma das primeiras pessoas a escrever sobre isso e comecei a ir. As pessoas começaram a conhecer e começaram a pedir para eu sentar nas mesas e me davam possibilidade de falar. Eu sempre conclamei os advogados previdenciários, aqueles que se diziam advogados previdenciários, que estudassem previdência privada, estudassem filosofia, na certeza de que essa filosofia ia alargar o campo do conhecimento deles. Eu digo sempre: "Olha, estudem que vocês não se arrependem". Depois comecei a sentir um entusiasmo, sobretudo dos alunos, que vinham me pedir para eu fazer a apresentação de um livro, de uma tese. Aquilo dava uma trabalheira enorme, houve momentos que eu tinha 30 teses comigo, que eu tinha que ler tudo aquilo, mas eu sempre dava a minha contribuição. Eu estou dizendo isso é porque eu assisti ao nascimento de um ramo de seguro que não existia, o ramo de seguro previdenciário. Foi o pessoal desse ramo de seguro previdenciário que me procurou e me outorgou o título de comendador do Direito Previdenciário. Foi esse mesmo ramo que fez essa segunda edição [do seu livro], através de professores como Vladimir Novaes, como Wagner Balera, através do presidente do IAPE39... Quer dizer, são professores que estão dando uma contribuição extraordinária para tornar o ramo do direito previdenciário um ramo autônomo, e aqui no Rio ninguém fala nisso. C.J. - É porque está todo mundo em São Paulo, não é mesmo? M.P. - Isso é para ver como as coisas evoluem lá. O paulistano é terrível. Sabe, eu admiro muito aquela gente. Eles conseguem tirar leite de pedra. C.J. - Que perspectivas o senhor imagina para previdência privada? M.P. - As melhores! Na parte da previdência privada tudo bem. Quanto pior estiver a previdência social, melhor estará a previdência privada. Não tenha dúvida sobre isso. Mas a gente tem que se preocupar porque, quando defendo o sistema tripé para o Brasil, estou defendendo a previdência social. Não há sistema tripé sem previdência social. Eu defendo um sistema de previdência social forte e acho que a gente consegue solucionar isso. Na parte do seguro... Bem, o seguro ainda tem um campo tão grande para crescer que certamente não vai haver problemas, se for feito aquilo que eu digo sempre, acompanhar os planos e não deixar de fazer os seus planos... Mas parece que eu estou me imiscuindo em assuntos que não me dizem respeito. Apesar disso, com todo o meu entusiasmo, o seguro ainda vai crescer muito. Tem campo para crescer... está praticamente em 5%. Se, realmente, as companhias conseguirem trabalhar há a possibilidade de conseguirem talvez mais 2%, ir a 7%. Eu acho que o Brasil está meio... com a parte do seguro e tudo, para chegar aos 8% do PIB, é um crescimento extraordinário na instituição do seguro. F.W. - E a Associação Internacional do Direito do Seguro? Fale-nos um pouco sobre ela. M.P. - Ninguém olhava para o seguro. Todos os códigos, os antigos códigos comerciais já tinham a definição de contrato. Mas as definições atuais são as mesmas. O nosso Código Civil não fez mais do que já vinha lá de 87. Só que o seguro... aquele código, na verdade, começou a dar uma definição de contrato de seguro em que a parte do grande número aparecia disfarçada. Disfarçada até quando se dizia que o segurador tinha que ser uma seguradora. Repara, quando 39 Refere-se a Hélio Gustavo Alves, atual presidente do Instituto dos Advogados Previdenciários.

22

se diz isso é porque está já a pensar uma coisa que é o grande número. Porque o seguro assenta no mutualismo e no grande número. Vocês sabem também, nem precisa dizer isso aqui, que desde mil seiscentos e tal que a questão do grande número foi posto por um grande matemático que era o suíço Jacob Bernoulli. O Jacob Bernoulli começou também com aquelas experiências para ver o cálculo das probabilidades quadradas por unidade, sempre insistindo nisso, mas depois achou que o termo grandes números era melhor e começou a utilizá-lo. Até que um dia, durante uma aula, um aluno dele disse: "Oh, professor Bernoulli, afinal de contas o que os grandes números significam? O que os grandes números representam para o senhor?” Para ele, não havia dúvida. E desmistificando o conceito de grandes números, o que é que o Bernoulli disse? "Olhe, para mim 10.000 é um grande número". E realmente desmistificou, porque se a gente tiver 10.000 operações idênticas – se uma operação se repete 10.000 vezes – a forma como essa operação se vai desenvolver tem tal objetividade. A mesma lógica dos 10.000... Se fosse 5.000 era a mesma coisa. Isso é apenas para dizer que o grande número é aquele que está na base do seguro e ninguém pode esquecer disso. Só que a gente aqui está esquecido do grande número. A gente está esquecido do direito atuarial. Já reparou toda essa gritaria que há aí sobre o seguro de saúde... Parece que ninguém estudou como o seguro se comporta do ponto de vista atuarial, do ponto de vista efetivo. Porque se toda a gente estivesse atenta para isso, haveria certamente muito mais tranqüilidade para se discutir o problema. As companhias de seguro já não podiam levar aquilo que querem, mas também não ficariam como os políticos querem que elas fiquem. Chegar-se-ia a um termo de equidade de que a sociedade podia se beneficiar. Agora assim não! A gente estuda muito pouco o cálculo atuarial, mas muito pouco mesmo! É sempre assim: "Ah, a gente vai fazer isso, talvez dê". Ah não! Olha, eu tenho um livro que comprei agora na minha estada em Nova Iorque sobre o cálculo atuarial utilizado na previdência social. Livro extraordinário! Basta só a gente ler os títulos para dizer: "Olha, isso é que é realmente uma forma de tratar o problema, não é? Porque se a gente tiver o conhecimento efetivo de como se comporta determinado risco social – quer seja saúde, quer seja desemprego, quer seja vida, seja o que for –, a gente tem possibilidade de arranjar uma solução, sem prejudicar ninguém. A gente resolve o problema em termos consistentes. Não é a gente fazer uma coisa para depois de amanhã vir um político e dizer: "Ah, isso não pode ser, vai para o Parlamento. A gente vai colocar isso abaixo”. Isso perde todo um trabalho que já foi feito, pura ignorância. F.W. - O senhor tem alguma questão importante que não chegou a falar e nós não chegamos a perguntar? M.P. – Tenho, mas eu tenho medo de falar por causa do tempo e talvez nunca mais saia daqui... [risos]. Havia muita coisa a falar! Havia em termos... Porque esses termos não são operacionais, são institucionais. Havia este assunto da assessoria do segurado. Havia um outro tema da maior importância que é o da confiabilidade da previdência privada, que é um outro problema que se põe. Um outro tema da maior importância, que entramos aqui, mas depois não fomos para adiante, que é o tema do resseguro. Como é que o resseguro vai caminhar? Vai desaparecer o IRB? O que é que se vai fazer? Isso é da maior importância. E há também aquilo que realmente pode passar, pode vir a aumentar, ao fim de dois anos, a participação do seguro no PIB de 5 para 7%, que é o acidente de trabalho. Se a gente resolve essas questões de boa forma, então o crescimento da instituição vai ser alavancado de forma extraordinária. Na parte da previdência privada eu acho que não é preciso fazer nada...Toda gente sabe que a previdência social não vai resolver os nossos problemas.

23

C.J. - Mas não há nenhum risco de repetir montepios, não? M.P. - Não, não há. Porque os montepios... C.J. - Então qual é o problema de confiabilidade? M.P. - Vou lhe só dar um exemplo. Na América, havia muito roubo nos fundos de pensão. As empresas faziam os fundos de pensão em favor dos seus funcionários, mas como tinham benefícios fiscais, para isso lá estava o tal sistema fiscal, elas chegavam a um certo ponto, quando viam aquilo muito grande, rapavam aquilo, fugiam e as pessoas ficavam sem nada. Isso acontecia na América! Veio, então, um legislador da ERISA e fez aquele monumento. E, nesse monumento, quase no fim, foi criado o que eles chamam de corporação, uma espécie de sociedade anônima, baseada no mutualismo, em que todos os fundos de pensão eram obrigados a pagar 2%. E com estes 2% essa corporação, que funcionava no Ministério do Trabalho, respondia por todas as falhas que houvessem no sistema dos fundos de pensão, qualquer que fosse a causa. Você, por exemplo, estava inscrita lá em um fundo de pensão qualquer e dizia: "Olha, vim agora receber a minha pensão, o homem fechou a porta”. Nem tem que se incomodar. Vai logo à esta corporação, PGBC...PCGB40, vai lá e diz: "Olhe, eu não recebi". Não importa, eles começavam-lhe a pagar. Se uma entidade fechada vai à falência, se a empresa não tem qualquer possibilidade de resolver esse problema, a pessoa fica numa situação de grande angústia. A mesma coisa nas entidades abertas, se bem que as entidades abertas estejam muitíssimo bem fiscalizadas pela SUSEP. Ora, por que não se faz aqui entre nós também uma espécie de um seguro de todas as entidades de previdência privada abertas? Para, seja qual for a causa que leve a empresa à falência, os seus inscritos não sofram nada com isso. C.J. - Por que é que não se cria isso no Brasil? Qual é a opinião do senhor? M.P. - Outro dia, o dr. René Garcia, por quem eu tenho muita admiração, homem extraordinário, quando eu li - já sabe qual é o pensamento desse homem - "Ô Póvoas, eu estou a pensar uma coisa destas, e é possível que eu vá fazer”.

Mas dou-lhe um outro exemplo. Certamente vocês acompanharam toda a discussão agora sobre a longevidade e tal, sobre a expectativa de vida ao nascer. Aqui, no Brasil, já está em 72 anos, mais ou menos já por aí, e dizem que se vai continuar, enfim. Porque realmente as pessoas inscritas em planos de previdência privada, em vez de morrer aos 70, 80 anos, começarem a morrer aos 120, não haverá dinheiro para pagar. Qual é a confiabilidade de um sistema desses? Realmente, esses são os grandes problemas, que já estão para além da nossa discussão aqui. C.J. - Nas mãos de quem está a solução? M.P. - Aí é que está. Eu tenho uma tese – eu a tenho apresentado aí em congressos, enfim – que no dia tem que começar a ser olhada com mais interesse a solução pode aparecer. O sistema de fundos de pensão, esta previdência privada, estruturada em um símbolo da capitalização, sem dúvida que representa um benefício extraordinário para qualquer nação onde for instituído. Por que? Porque aqueles fundos de pensão acumulados somam uma poupança com a qual o 40 O correto é PBGC, ou seja, Pension Benefit Guaranty Corporation.

24

Estado não conta. É uma poupança institucional, uma macro-poupança, que nascendo como um subproduto da previdência privada, não tem qualquer custo para a nação. E a nação se beneficia dela. Porque um país que tem, como aqui o Brasil, quase 150 bilhões de reais de fundos de pensão, sem dúvida é muito mais rico que um mesmo país que não tenha 150 bilhões. E não foi o Estado que o criou não. Foi a atividade privada. De forma que a minha tese é se os governos têm esse benefício, eles têm que arranjar um esquema em que, posicionando-se como pano de fundo institucional, eles resolvam os problemas, aqueles problemas negativos que a própria conjuntura um dia criará. Esta é a parte mais simples da minha tese. Minha tese tem muitos desdobramentos, mas é para vos dar uma idéia de como a coisa pode funcionar. Portanto, eu já lhe disse que há muita coisa ainda para falar, não é? C.J. - Falaremos com a FUNENSEG para tentar marcar um outro papo, parte 2, para continuar. Aí a gente cobre isso. M.P. – Sim. Garanto, modéstia a parte, que não há no mercado alguém com uma vivência como a minha nestes anos todos, alguém que tenha vivido não apenas aqui, porque a gente também não falou em Portugal, não falou na entrada de Portugal no mercado nem nada disso. Mas, de qualquer modo, vocês têm material para pensarem muito sobre ele. C.J. – Ok. Muito obrigada! Foi ótimo.

[FINAL DO DEPOIMENTO]