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“SALVE-SE A INFÂNCIA E TEREMOS GARANTIDO O FUTURO DA PÁTRIA”: O ASILO DE MENORES ABANDONADOS DO RIO DE JANEIRO E O AMPARO A CRIANÇA POBRE (1907) Julia de Oliveira Duarte UERJ-FFP [email protected] Luiza Pinheiro da Silva UERJ-PROPED [email protected] Introdução O trabalho aqui apresentado é fruto de nossa participação e estudos no Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em História da Educação e Infância (NIPHEI), grupo de pesquisa situado na Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP) e coordenado pela professora doutora Sônia Camara. Durante as discussões no grupo nos interessamos pela questão da assistência, educação e amparo à infância na primeira república no Rio de Janeiro. Fazendo um recorte do tema nos decidimos pelo Asilo de Menores Abandonados, instituição da esfera Federal, preocupada com a assistência e o amparo a criança órfã e/ou abandonada. A preocupação com o progresso, a modernidade e com o futuro do país na primeira república (1889-1930) colocava em pauta as discussões sobre a infância. Para alcançar o progresso almejado e moldar um futuro de país que fosse moderno, alfabetizado e patriótico, era preciso olhar principalmente pelas crianças que representava as futuras gerações. Como afirma Camara (2010): A visão imaculada da infância contrapôs-se outra infância perspectivada como pervertida, desamparada, viciosa, imoral e abandonada. Uma infância descrita pelos jornais com aparência maltrapilha, suja, descabelada, portadora de comportamentos agressivos, dissonantes em relação aos valores instituidores de uma cidade que, ao sagrar a imagem de ordem e progresso, negava, compulsivamente, o seu contrário. (p. 63)

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“SALVE-SE A INFÂNCIA E TEREMOS GARANTIDO O FUTURO DA PÁTRIA”:

O ASILO DE MENORES ABANDONADOS DO RIO DE JANEIRO E O AMPARO

A CRIANÇA POBRE (1907)

Julia de Oliveira Duarte

UERJ-FFP

[email protected]

Luiza Pinheiro da Silva

UERJ-PROPED

[email protected]

Introdução

O trabalho aqui apresentado é fruto de nossa participação e estudos no Núcleo

Interdisciplinar de Pesquisa em História da Educação e Infância (NIPHEI), grupo de

pesquisa situado na Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP) e coordenado pela

professora doutora Sônia Camara. Durante as discussões no grupo nos interessamos pela

questão da assistência, educação e amparo à infância na primeira república no Rio de

Janeiro. Fazendo um recorte do tema nos decidimos pelo Asilo de Menores Abandonados,

instituição da esfera Federal, preocupada com a assistência e o amparo a criança órfã e/ou

abandonada.

A preocupação com o progresso, a modernidade e com o futuro do país na primeira

república (1889-1930) colocava em pauta as discussões sobre a infância. Para alcançar o

progresso almejado e moldar um futuro de país que fosse moderno, alfabetizado e

patriótico, era preciso olhar principalmente pelas crianças que representava as futuras

gerações. Como afirma Camara (2010):

A visão imaculada da infância contrapôs-se outra infância perspectivada como

pervertida, desamparada, viciosa, imoral e abandonada. Uma infância descrita

pelos jornais com aparência maltrapilha, suja, descabelada, portadora de

comportamentos agressivos, dissonantes em relação aos valores instituidores de

uma cidade que, ao sagrar a imagem de ordem e progresso, negava,

compulsivamente, o seu contrário. (p. 63)

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Nesse sentido, alguns intelectuais filantropos preocupados com a infância, oriundos

principalmente da área médica e jurídica, se uniram para criar instituições voltadas ao

amparo, educação e regeneração dessa infância. É nesse contexto que o Asilo de Menores

Abandonados do Estado do Rio de Janeiro é criado em 1907.

Com a presença dos Exmos. Srs. Ministro da Justiça, Chefe de Polícia, Provedor

da Santa Casa de Misericórdia, Curador de Órphãos, Delegados e Funcionários da Policia, representantes da imprensa diária e mais pessoas, foi solemnemente

installado, à Praça Visconde do Rio Branco n. 2, em S. Christovão, no dia 16 de

fevereiro deste anno, o Asylo de Menores Abandonados [sic] (MONCORVO

FILHO, 1907, p. 131).

Inaugurado em 16 de fevereiro de 1907, o Asilo de Menores Abandonados teve

como principal idealizador o Chefe de Polícia Alfredo Pinto Vieira de Melo (1863-1923).

O prédio em que foi instalado havia pertencido ao Marechal Floriano Peixoto (1839-1895)

e contava com jardins, árvores frutíferas, adaptando-se, segundo Moncorvo Filho (1907):

"perfeitamente ao fim para o que foi destinado, não só por suas condições hygienicas,

como pelas amplas accommodações de que dispõe, compostas de vastos salões e aposentos

arejados para dormitórios, enfermaria, salas de estudo, escolas e etc [sic]." (p. 131). Assim,

a instituição tinha lotação para o máximo de cinquenta menores.

Tinha por objetivo recolher menores órfãos e abandonados, entre oito e quinze anos

do sexo masculino, encontrados pelas ruas e enviados por juízes de órfãos. Na nova

instituição os menores recebiam abrigo, alimentação e instrução. Era um estabelecimento

de caráter temporário, os menores permaneciam no Asilo por um tempo determinado pelos

juízes de órfão que, findado esse tempo, os encaminhavam para outras instituições.

Interessou-nos nesse artigo analisar os motivos que levaram à criação e o

funcionamento do Asilo de Menores Abandonados no seu primeiro ano de fundação. Para

isso, utilizamos no desenvolvimento desse trabalho alguns documentos, como os Archivos

de Assistência a Infância, publicados em 1907 pelo médico Arthur Moncorvo Filho, o

Relatório apresentado ao Ministro da Justiça pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal,

Alfredo Pinto, em 1907 e periódicos da época, sobretudo os jornais "O Paiz" e "A

Imprensa" onde encontramos uma quantidade mais expressiva de matérias sobre a

instituição no seu primeiro ano de funcionamento. O trabalho foi realizado a partir das

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matérias e dos documentos selecionados, articulados com o momento histórico vivido na

época. Como afirma Velloso (1996):

O passado não está lá, à espera do resgate e da reconstituição certeiros. Ao

contrário: o passado, tal qual foi, não existe mais. Reconstituí-lo, portanto, é

entrar em contato com a ‘desordem das lembranças’, aventurando-se por

labirintos, subterrâneos e fragmentos, conforme já sugeria a instigante reflexão

de Walter Benjamin (1987). (Grifo da autora, p.87)

Dessa forma, mergulhamos nessas “aventuras por labirintos subterrâneos” onde

procuramos desvendar com atenção e cuidado os “indícios” (GINZBURG, 1989) que

ocasionalmente escaparam. Assim, embasados nessas reflexões encontramos, através das

matérias dos jornais e dos outros documentos os “vestígios” deixados pelos “testemunhos

involuntários” (BLOCH, 2004) que nos levaram ao funcionamento da instituição.

Para o diálogo com as fontes alguns autores nos ajudaram, entre eles: Bloch (2004),

Camara (2010), Ginzburg (1989), Goffman (2003), Rizzini (1990) e outros.

"Salve-se a infância e teremos garantido o futuro da Pátria"

A ideia de criar uma relação de brasilidade na sociedade brasileira já vinha sendo

debatida desde a Abolição da Escravatura (1888) e da Proclamação da República (1889)

em que a intenção de construir “laços de pertencimento, capazes de difundir um sentimento

de brasilidade, assumiu um caráter de urgência. Tratava-se agora de agregar todos os

cidadãos em torno da nação” (DE LUCA, 1999, p. 33). Assim, em meio às discussões do

que seria o Brasil e o brasileiro, pensar a infância como o futuro que ainda estava por vir e

que poderia ser moldado de forma a se tornarem cidadãos fiéis e úteis à pátria, eram uma

das prioridades dos intelectuais envolvidos e preocupados com a criança. Entendia-se na

infância algo como uma semente que precisava ser cuidada e educada para que brotasse

bons frutos. Segundo afirma Camara (2010):

Perspectivada, ora como 'sementeira do futuro ora como sementeira fecunda de

vícios e demais germes criminosos', a infância passou a ser concebida e descrita

como perigosa ou em perigo, nos discursos que contribuíram e asseveraram

determinadas representações acerca do seu papel social. As representações

encontravam-se assentadas em estereótipos afirmativos de uma iniquidade

inerente à criança pobre, e também de uma fraqueza, inocência e infortúnio que

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ela suscitava. A partir de uma visão ambivalente da infância, procurou-se

constituir uma retórica protecionista e regeneradora, através da qual se

justificaram as formas de intervenção sobre as relações privadas e públicas das

camadas empobrecidas da sociedade. (p. 52, grifo da autora)

Portanto, o Asilo de Menores Abandonados era uma dessas instituições

preocupadas em intervir e “salvar” essa infância pobre e que poderia estar em perigo ou ser

perigosa. Tal preocupação, é pensada através da configuração do Estado moderno, qual a

noção liberal faz notável a desvinculação entre o público e o privado. Contudo, a política

assumida por esse Estado, propõe-se defender a saúde física e moral protegendo também as

liberdades individuais. Conforme nos mostra Costa (1999, p. 52), “A ação médico-

filantrópica-assistencial conduzia a vida privada sem desrespeitar o pacto social”. Dessa

maneira, conseguimos compreender não somente a ação médica de intervenção no social e

sua efetivação pela educação higiênica, para mais disso, o pensamento político que passa a

ser moldado no seio da capital brasileira.

O enfoque em pensar a cidade nos guia através da discussão entre assistencialismo

e infância, uma vez que se mostra necessário para apresentar o objeto escolhido para esta

discussão. De modo qual o amanhecer republicano que observamos no Rio de Janeiro não

necessariamente rompeu com o passado colonial. Segundo Costa (1999, p. 178), “A defesa

da secularização dos costumes, entretanto, vinha condicionada à sujeição médica”.

As queixas do jornalista Olavo Bilac (1865-1918) sobre o secular atraso da capital

se apresentam como exemplo no que diz respeito a necessidade de intervenção política

nesta cidade para sua eventual modernização e urbanização (FREIRE, 2003, p. 145). Por

um lado, Olavo Bilac em defesa de melhorias na cidade e das obras públicas. Do outro, a

medicina higienista do Dr. Moncorvo Filho, preocupada com a inspeção das condições em

que se vivia as crianças pobres e em proporcionar a elas amparo concentrando esforços

com outras associações de caridade e religiosa (MONCORVO FILHO, 1907).

Esta associação entre a medicina e as instituições religiosas, segundo Costa (1999,

p. 66), “[...] foi o que possibilitou à higiene infiltrar-se na moral da família sem fraturar

suas antigas crenças e valores e, simultaneamente, reorientar o prestígio da religião em seu

benefício”. Por conseguinte, Camara (2010) percebe como as ações de saneamento,

embelezamento e expansão da cidade qual estamos tratando foram executadas

concomitante as contradições sociais, econômicas e também culturais presentes no início

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do século XX. Perpendicular a urbanização, encontrava-se a categoria de infância cuja nos

interessa nesse momento, pois:

Para as crianças abandonadas, a rua era vista como espaço de referência que

conheciam, não vendo em suas atitudes nenhuma ilegalidade. Era corrente à

época, a prisão de crianças que circulassem ociosas pelas ruas, ou as que nelas desenvolvessem ocupações ocasionais, não sendo preciso apresentar motivos que

as implicassem legalmente, além da suposta vadiagem que a sua presença na rua

representava. A prática da vadiagem equivalia a uma ameaça à moral e aos bons

costumes, onde a associação entre ociosidade e indigência, provocada pela

miséria dava, como resultado final, os pervertidos morais, capazes de cometer

crimes contra a ordem e a propriedade. (CAMARA, 2010, p. 55)

O papel da imprensa neste momento é sentido através de sua dimensão social,

sendo seu caráter podendo ser pensado como canal de comunicação entre a esfera pública e

privada. Por meio dos debates buscados, que dão voz para o esforço de pesquisa

empreendido até o momento, lançam luz para se compreender sobre qual perspectiva

interessava os intelectuais do âmbito médico e jurídico na criação de uma malha

assistencial de proteção à infância pobre e desamparada. Deixando importantes vestígios

impressos sobre a situação dessa infância. Desse modo, o periódico “O Paiz” (1907, p. 3)

manifesta a preocupação do Dr. Alfredo Pinto em retirar da Casa de Detenção os menores

“desocupados” e “viciosos”, termos observados na matéria para referir-se aos menores que

se encontravam em situação de desamparo, qual através desta tornou realidade em dois

meses a iniciativa de assistência com a criação do Asilo de Menores, tal impacto na

sociedade pode ser percebido através dos inúmeros pedidos de internação apontados pela

matéria. A ação empreendida pelos intelectuais preocupados primordialmente com o

progresso do Brasil e de tornar o Rio de Janeiro espelho de civilidade, tornam-se claras ao

considerarmos que:

As iniciativas organizadas com o aporte científico e racional não descuidavam da

matriz moralizante a que todas as medidas e propostas deveriam ancorar-se,

constituindo-se como referência na identificação das crianças, necessitadas da

proteção e do amparo do Estado. Sustentados no discurso da moral como ‘motor máximo do progresso’ defenderam o lugar central da educação na transformação

da criança, homem em potencial do amanhã. (CAMARA, grifo da autora, 2010,

p. 174)

Tratando-se de continuidade desse empreendimento filantrópico, como segundo

exemplo de ação de manter em efetivo a implementação das políticas assistenciais,

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destaca-se o periódico A Imprensa, que expressivamente esteve conectado aos debates

sobre a assistência e infância, comemora a criação do setor feminino já no ano de 1908:

A assistencia aos menores abandonados, ainda tão rudimentar entre nós

mórmente por parte do Estado, entra hoje em nova phase. O Asylo de Menores

Abandonados que hoje se inaugura [...], representa o primeiro passo dado pelo

poder publico para o que seja definitivamente resolvido o momentoso problema

de assistencia á infancia desamparada. (1908, p. 2)

A figura apresenta o edifício qual fora utilizado para a regeneração e proteção da

infância. O Asilo de Menores é representativo da ação concreta das discussões que forma

fomentadas pelo campo médico e jurídico notado nos séculos XIX e XX. Sendo esta

instituição de atendimento e educação parte importante para se compreender a malha

assistencial da cidade do Rio de Janeiro, a defesa da infância e da modernização da nação.

Sendo assim, nesse momento, compreender os dispositivos filantrópicos que estiveram

presentes nas décadas iniciais do século XX é um primeiro passo para refletir sobre os

casos das infâncias pobres e desvalidas e, também nesse ensejo, “as sucessivas gerações

formadas por essa pedagogia higienizada” (COSTA, 1999, p. 214) qual projetou o homem

moderno.

Figura 1 – O Asilo de Menores Abandonados

Fonte: A Imprensa, 05/11/1910, p. 4 (Hemeroteca Digital Brasileira – BN)

O Asilo de Menores Abandonados em seu primeiro ano de criação

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Concebido como entidade tutelar, o Estado foi proposto como instância

privilegiada na elaboração, coordenação e inspeção dos serviços de assistência e

proteção social, cabendo-lhe, na compreensão dos intelectuais, tomar para si, em

nome da defesa nacional, do progresso econômico e da saúde social, o controle

na condução do processo de harmonização social e de preservação da infância.

Proteger a infância não significava, apenas, dar-lhe noção geral de vida poupando-a de esforços e trabalhos incompatíveis com o seu organismo ou,

ainda, dar-lhes esmolas. Significava, isto sim, amparar, defender e cuidar do seu

desenvolvimento físico, moral e mental, atuando sobre os males e

imprevidências que corrompiam as suas formas de vida. (CAMARA, 2010, p.

145-146)

Assim, era tarefa do Estado preservar e zelar pela infância oferecendo-lhe proteção,

resgate e salvação dos males que uma vida mundana e desprotegida poderia causar. Nesse

sentido algumas ações foram empreendidas sobre a responsabilidade do Estado, entre elas

a criação de instituições voltadas para a regeneração e assistência dessa infância.

Subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o Asilo de Menores

Abandonados fazia parte de uma malha assistencial criada no Rio de Janeiro que vinha

nessa direção de regenerar e assistir a infância pobre e desvalida. Em relatório enviando ao

Ministério da Justiça, o Chefe de Polícia Alfredo Pinto, deixa clara a sua preocupação com

a preservação da infância abandonada.

O Asylo de Menores Abandonados é uma demonstração do meu interesse pela

sorte de muitas infelizes creanças, que perambulam pelas ruas, sem educação

nem officio; destituídas de qualquer assistência natural; dormindo nas lages das

calçadas de ruas escusas; servindo de auxiliares de gatunos audazes;

alimentando-se das sobras dos hotéis e entregues aos vícios mais abjectos [sic]

(MELO, 1907, p. 5).

Assim, era preciso preservar essa infância para não precisar regenerá-la ou puni-la

mais tarde. "Antes de existir o Asylo, o sistema era de encarcerál-os na Casa de Detenção,

onde permaneciam dias e dias, até que mão piedosa os libertasse [sic]" (MELO, 1907,

p.05). Na Casa de Detenção os menores conviviam com adultos criminosos e havia uma

preocupação de que essa convivência influenciasse no futuro dessas crianças levando-as

para o mundo do crime. Sendo assim, segundo afirma Melo (1907, p.05), ele proibiu

"expressamente que esses abandonados soffressem o mesmo castigo, e em logar da prisão

elles têm um abrigo protector, alimento e instrucção elementar, durante a permanência no

estabelecimento, onde ficam à disposição dos respectivos juízes de Orphãos [sic]".

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Os menores, apreendidos por uma autoridade jurídica, permaneciam na instituição

durante um prazo de no máximo noventa dias, findado esse prazo, ou eram enviados para a

Escola Quinze de Novembro, ou para a Escola de Aprendizes Marinheiros, ou eram

entregues a "tutores". Logo que chegavam eram matriculados em um livro de registros e

encaminhados ao setor de "rouparia", onde trocavam as suas roupas pelo uniforme da

instituição. Dialogando com Goffman (1961), percebemos algumas características do Asilo

de Menores que o indicam como uma "instituição total", mesmo que temporária. Segundo

o autor "Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho

onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade

mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente

administrada" (1961, p. 11). Despir-se dos seus pertences, não ter contato com o mundo

externo, regras de conduta e comportamento, vigilância, essas, entre outras características

faziam parte do mundo do internado no Asilo de Menores Abandonados. Na imagem

abaixo, os menores uniformizados posavam para a foto.

Figura 2 - Menores em formatura

Fonte: "Archivos de Assistência à Infância", Ano V n. 7 e 8 p. 134 (Acervo NIPHEI)

Os meninos na foto acima estavam claramente uniformizados, higienizados e

arrumados em uma ordem aparentemente por tamanho, porém, o que não vemos na

imagem são os sorrisos dos menores, mostrando que aquele parecia ser um ritual

enfadonho e forçado. Segundo Goffman (1961, p. 93):

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A exibição de fotografias nas salas dos estabelecimentos totais, onde se mostra o

ciclode atividades pelas quais o internado ideal passa com a equipe dirigente

ideal, frequentemente tem uma relação muito pequena com os fatos da vida

institucional, mas pelo menos, alguns internados passam uma manhã agradável

posando para as fotografias.

Assim, na imagem acima, os menores estavam "arrumados" de forma a parecerem

os "internados ideais": disciplinados, limpos e devidamente controlados.

A instituição ficava instalada em uma dependência da Casa de Detenção, sendo

assim, estava sob a "superintendência do Chefe de Polícia" (MONCORVO FILHO, 1907,

p. 135) e era dirigida pelo administrador da Casa de Detenção, o Capitão Meira Lima.

Dessa forma, alguns dos funcionários do Asilo eram também guardas na Casa de

Detenção, ficavam responsáveis pela inspeção e pela instrução primária dos internados. A

vigilância dos guardas se dava de forma permanente e os menores eram divididos em

turmas de acordo com a faixa etária, a "índole e antecedentes de cada um" (MONCORVO

FILHO, 1907, p. 135).

Os menores trabalhavam na jardinagem e na horta do estabelecimento nas primeiras

horas da manhã e nos serviços internos, tais como limpeza e arrumação, nas horas vagas.

Segundo estava em seu Estatuto, as horas de trabalho não poderiam ultrapassar seis horas

por dia. Eram diariamente submetidos a "moderados exercícios militares dirigidos por um

cabo da Força Policial à disposição da Administração desse Asylo [sic]" (MONCORVO

FILHO, 1907 p. 133). O ensino escolar era oferecido das dez horas da manhã às três horas

da tarde e das seis horas da tarde às sete da noite. Os menores eram recolhidos para os

dormitórios às oito horas da noite. Os guardas se revezavam na vigilância durante as horas

que os meninos dormiam.

A intenção, fica claro, era de preservar os pequenos, que ainda não tinham se

envolvido com o mundo do crime através da disciplina, do trabalho e do controle. Para os

menores que já eram criminosos a Casa de Detenção construiria uma dependência

separada. Segundo reportagem do jornal "O Paiz": "Esse Pavilhão, unicamente para

menores, terá a denominação de Escola de Regeneração" (1907, p. 04). Assim, ficariam

separados os menores "delinquentes" dos menores que não haviam cometido crimes, as

crianças que estavam em "perigo" não conviveriam com as crianças que eram "perigosas".

No entanto, apesar dos seus Estatutos também corroborarem dessa "separação", em

reportagem no dia 15 de agosto de 1907, o jornal "O Paiz" afirma que: [...] o dr.

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Geminiano da França, juiz da 3ª vara criminal, fez recolher ao Asylo de Menores

Abandonados, o menor de 13 annos José Paulo da Costa, pronunciado por crime do art.

294, parágrapho 1°, do Código Penal, por ter assassinado um creoulo [sic]" (1907, p.04).

Dessa forma, concluímos que enquanto a "Escola de Regeneração" não estava construída e

apta para receber os menores envolvidos com algum crimeeles eram internados no Asilo de

Menores indo de encontro com o que dizia o regulamento inicial da instituição.

Pretendia-se, além da Escola de Regeneração, construir um "pavilhão", com as

mesmas funções, para meninas. Em matéria de 07 de abril de 1908, o jornal "O Paiz"

divulga a inauguração dessa "ala" feminina: "O Asylo de Menores inaugurou-se hontem,

em um prédio confortável, em S. Christovão, junto onde funcciona já o Asylo de Menores

Abandonados, outro estabelecimento que faz honra à actual administração [sic]" (p. 02). A

intenção não era que o Asilo de Menores Abandonados se tornasse "misto", essa "ala"

feminina denominada "Asilo de Menores" ficaria separada da masculinae seria

administrada e dirigida por pessoas diferentes.

Em 1915, o Asilo de Menores Abandonados, passa a ser administrado pelo

Patronato de Menores, instituição de origem privada criada em 1908, que também fazia

parte dessa "rede" de instituições assistencialistas formada no Rio de Janeiro. O Patronato

mantinha uma creche "central" e administrava outros estabelecimentos pelo Estado, o

Asilo de Menores Abandonados passou a fazer parte dessa administração do Patronato a

partir do ano já mencionado.

Considerações finais

O esforço desse trabalho consistiu-se em debruçarmos nos anos iniciais de

funcionamento do Asilo de Menores a partir das fontes documentais, priorizando a

percepção do médico higienista Dr. Moncorvo Filho, utilizadas de modo que pudéssemos

entrecruzar com aspectos sociais, econômicos e políticos da cidade do Rio de Janeiro da

ação benemérita dos intelectuais que permearam a sociedade carioca em prol da

moralidade pública. O exclusivo fim do Asilo de prestar serviços de atendimento aos

menores moralmente abandonados no intuito de “[...] corresponder ás necessidades de uma

capital civilisada, cuja população já se approxima de um milhão de habitantes, e que até

hoje se descuidara da protecção devida a esses infelizes pequeninos seres [...] [sic]”

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(MONCORVO FILHO, 1907, p. 132). Tal estratégia moralizadora da infância fora

empreendida em conjunto das políticas sociais perspectivadas no cenário internacional de

proteção e atendimento a infância que ainda no século XIX passa o cerne de pesquisas

médicas e posteriormente sistematização do pensamento que podemos observar demasiada

continuidade nos tempos atuais.

O Rio de Janeiro era o cenário principal para as experiências sociais e políticas da

recém instaurada república, sendo ela pensada pelos intelectuais da época com a

necessidade de ser espelho para outras cidades da pátria. Não somente exemplo para

capitais vizinhas no quesito urbanização, mas, principalmente, estar ao alcance dos países

da Europa no quesito higiene infantil e moralidade pública. Uma vez que os estudos sobre

esse tema se tornaram pauta por conta do crescente índice de mortalidade infantil que era

uma realidade no Brasil.

Nesse sentido, entendemos que o intuito para a criação de uma instituição, voltada

para a assistência e educação de menores, localizada na Capital Federal e subordinada ao

Ministério da Justiça e Negócios Interiores, estava muito voltado a uma ideia de regenerar

essa infância que estava pelas ruas, sem rumo e propicia a vícios e crimes, que iam na

contramão do progresso e do exemplo que a Capital Federal deveria representar para o

país. Sendo assim, formar cidadãos patrióticos, trabalhadores e úteis ao Brasil do amanhã

era uma necessidade, afinal, "salvar a infância" era primordial para garantir o "futuro da

pátria".

Referências

A IMPRENSA, Uma victoria d“A IMPRENSA” : O Asylo de Menores Abandonados

no Largo do Pedregulho. Rio de Janeiro, 6 de abr. de 1908, p. 2.

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DE LUCA, T. R.A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo:

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