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“DEVE-SE DEIXAR VIVER AS CRIANÇAS ANORMAIS?”: A ABORDAGEM DA MÍDIA BRASILEIRA SOBRE A TRAGÉDIA DO MEDICAMENTO TALIDOMIDA NA DÉCADA DE 60 Adriana Moro Wieczorkievicz 1 Josemari Poerschke de Quevedo 2 Noela Invernizzi 3 Resumo: A talidomida foi descoberta em 1953 na Alemanha para ser agregada em antibióticos. Foi reconhecida em 1957 pelo efeito sedativo e hipnótico, tornando-se um dos medicamentos mais vendidos na Alemanha Ocidental. Comercialmente se popularizou em vários países como medicamento para enjoos. Em 1961 vieram à tona casos de teratogenia em crianças relacionados ao consumo de talidomida por mulheres grávidas, estimando-se entre 10 e 15 mil casos em todo o mundo. Considerando a importância da mídia na construção de significados na história da ciência e da tecnologia, este artigo tem por objetivo demonstrar como os jornais veicularam no Brasil, na década de 1960, as notícias sobre o surgimento da talidomida como “droga mágica” até os malefícios provocados pela mesma. Para tanto, é realizada uma análise de conteúdo sobre o enquadramento feito pelas publicações, pesquisadas no arquivo da Associação Brasileira de Portadores da Síndrome da Talidomida. São analisados trechos dos jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Diário da Noite do Brasil e Diário do Povo; e as revistas Manchete, O Cruzeiro e Seleções , com enfoque na forma como a notícia foi difundida, nos atores em pauta e na forma como o corpo dos atingidos é descrito. Verifica-se que a mídia apresentou enfoque preponderante sobre as deformidades do corpo das crianças atingidas, remetendo-se à origem grega da palavra “teratos” - que significa monstro; podendo ser visualizado também o advento de discussões éticas acerca da temática, suscitado pelo questionamento da mídia:“deve-se deixar viver as crianças anormais? Palavras-chave: Talidomida; Mídia; História Regulação Farmacêutica 1 INTRODUÇÃO O termo “teratogenia” tem sua origem na palavra grega “teratos”, que significa monstro, e é utilizado para descrever as alterações externas causadas pela ingestão do medicamento talidomida na gestação. Segundo Lima, Fraga e Barreiro (2001), a palavra refere-se a malformações anatômicas macroscópicas. No plano simbólico, os atingidos pela talidomida vivenciam o que Goffman (2006, p. 7) chama de estigma: a situação social em que o indivíduo está inabilitado para a situação social plena, numa perspectiva contrária às expectativas normativas. Há a abominação do corpo devido às várias deformidades físicas. O portador do corpo estranho passa pela desconsideração de criatura comum e total”, sendo reduzido a uma pessoa estragada e diminuída, com efeito de descrédito muito grande (GOFFMAN, 2006, p. 12). 1 Enfermeira, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR. Bolsista CAPES. Email: [email protected] 2 Jornalista, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR. Bolsista CAPES. Email: [email protected] 3 Professora, doutora em Política Científica e Tecnológica, Professora Associada do Programa de Pós- Graduação em Políticas Públicas da UFPR. E-mail: [email protected].

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“DEVE-SE DEIXAR VIVER AS CRIANÇAS ANORMAIS?”:

A ABORDAGEM DA MÍDIA BRASILEIRA SOBRE A TRAGÉDIA DO

MEDICAMENTO TALIDOMIDA NA DÉCADA DE 60

Adriana Moro Wieczorkievicz1

Josemari Poerschke de Quevedo2

Noela Invernizzi3

Resumo: A talidomida foi descoberta em 1953 na Alemanha para ser agregada em antibióticos. Foi

reconhecida em 1957 pelo efeito sedativo e hipnótico, tornando-se um dos medicamentos mais vendidos

na Alemanha Ocidental. Comercialmente se popularizou em vários países como medicamento para

enjoos. Em 1961 vieram à tona casos de teratogenia em crianças relacionados ao consumo de talidomida

por mulheres grávidas, estimando-se entre 10 e 15 mil casos em todo o mundo. Considerando a

importância da mídia na construção de significados na história da ciência e da tecnologia, este artigo tem

por objetivo demonstrar como os jornais veicularam no Brasil, na década de 1960, as notícias sobre o

surgimento da talidomida como “droga mágica” até os malefícios provocados pela mesma. Para tanto, é

realizada uma análise de conteúdo sobre o enquadramento feito pelas publicações, pesquisadas no arquivo

da Associação Brasileira de Portadores da Síndrome da Talidomida. São analisados trechos dos jornais

Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Diário da Noite do Brasil e Diário do Povo; e as revistas

Manchete, O Cruzeiro e Seleções , com enfoque na forma como a notícia foi difundida, nos atores em

pauta e na forma como o corpo dos atingidos é descrito. Verifica-se que a mídia apresentou enfoque

preponderante sobre as deformidades do corpo das crianças atingidas, remetendo-se à origem grega da

palavra “teratos” - que significa monstro; podendo ser visualizado também o advento de discussões éticas

acerca da temática, suscitado pelo questionamento da mídia:“deve-se deixar viver as crianças anormais?

Palavras-chave: Talidomida; Mídia; História Regulação Farmacêutica

1 INTRODUÇÃO

O termo “teratogenia” tem sua origem na palavra grega “teratos”, que significa

monstro, e é utilizado para descrever as alterações externas causadas pela ingestão do

medicamento talidomida na gestação. Segundo Lima, Fraga e Barreiro (2001), a palavra

refere-se a malformações anatômicas macroscópicas. No plano simbólico, os atingidos

pela talidomida vivenciam o que Goffman (2006, p. 7) chama de estigma: a situação

social em que o indivíduo está inabilitado para a situação social plena, numa perspectiva

contrária às expectativas normativas. Há a abominação do corpo devido às várias

deformidades físicas. O portador do corpo estranho passa pela desconsideração de

“criatura comum e total”, sendo reduzido a uma pessoa estragada e diminuída, com

efeito de descrédito muito grande (GOFFMAN, 2006, p. 12).

1 Enfermeira, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR. Bolsista

CAPES. Email: [email protected] 2 Jornalista, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR. Bolsista CAPES.

Email: [email protected] 3 Professora, doutora em Política Científica e Tecnológica, Professora Associada do Programa de Pós-

Graduação em Políticas Públicas da UFPR. E-mail: [email protected].

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Entre as anormalidades em órgãos internos ocasionadas pela talidomida estão

malformações cardíacas, incluindo defeitos do septo ventricular, coarctação da aorta e

tetralogia de Fallot; estes ocorrem com frequência considerável, sendo a principal causa

de morte. A taxa de mortalidade entre as vítimas da talidomida variou entre 40% e 45%,

na época em que foi lançada e entre 10 e 15 mil crianças nasceram com malformações

típicas associadas à ela no mundo (VIANNA, 2014).

No Brasil há três gerações de atingidos pela talidomida, ou seja, mesmo com a

regulação vigente pela Lei n.10.651, de 16 de abril de 2003, que dispõe sobre o controle

do uso da medicação, ainda ocorrem casos de teratogenia pela ingesta desse

medicamento na gestação, tornando o tema atual e de discussão necessária. Assim, é

pertinente revisitar a história da tragédia provocada pela droga e seus desdobramentos.

O objetivo deste artigo é analisar a abordagem da mídia sobre a tragédia da

talidomida ao longo da década de 1960 a partir da teoria do enquadramento. Interessa-

nos levantar as maneiras como o corpo das vítimas foi referido nas notícias e examinar

o papel da mídia ao colocar o problema em debate público, dando voz a vários atores.

Ressalta-se que as análises de conteúdo baseadas nos enquadramentos midiáticos

tornam acessíveis perspectivas de interpretação da realidade, incluindo neste viés o

mapeamento de controvérsias públicas.

A relevância de mostrar os eventos na perspectiva da mídia radica em que,

segundo Borges e Froehilch (2003), a ação da imprensa foi instrumental para ventilar o

caso da talidomida. Ademais, foi agente para a retirada da droga em vários países do

mundo, em que pese os estigmas empregados para noticiar o problema.

2 FONTES DE DADOS, ENFOQUE DE ANÁLISE E METODOLOGIA

O artigo se baseia em dados coletados no arquivo de notícias de mídia impressa

da Associação Brasileira de Portadores da Síndrome da Talidomida (ABPST),

localizada na cidade de São Paulo (SP), que inclui jornais e revistas de ampla circulação

no país. Embora não se trate de uma base de dados montada a partir de uma recopilação

exaustiva, compõe-se de um conjunto significativo de matérias consideradas relevantes

por este grupo de atingidos, suficiente para mostrar como o problema foi enquadrado na

mídia nacional e quais foram os principais atores que se posicionaram em torno dele.

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Optou-se pela metodologia mista, com métodos qualitativos na discussão do tema e do

conteúdo coletado a partir da amostra quantitativa de matérias selecionadas para análise.

O levantamento das notícias ocorreu entre dezembro de 2014 e agosto de 2015,

com o consentimento da ABPST. Como se teve acesso somente às cópias das notícias

impressas foram excluídas aquelas que não estivessem legíveis e as que não estavam

redigidas no idioma português.

Foram analisadas 20 notícias que datam da década 1960 cujos trechos são

representativos das principais publicações em circulação no período no Brasil, a saber:

os jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Diário da Noite do Brasil e Diário

do Povo; e as revistas Manchete, O Cruzeiro e Seleções.4

Os jornais e revistas que nos ocupam nesta análise são caracterizados pela

estrutura empresarial burguesa do jornalismo. No anos 1960, este modelo de imprensa

estava em derrocada devido a transformações capitalistas pela alta do preço do papel e

da importação de máquinas, reduzindo a pluralidade de opiniões (SODRÉ, 1999).

A produção noticiosa enquanto construtora da realidade que noticia se

fundamenta em processos de escolha do que noticiar num universo de possibilidades.

Neste sentido, a teoria do enquadramento se debruça sobre a delimitação do que é

relevante informar. Tais escolhas podem concretizar significados no imaginário do

público pelas repetições de estruturas narrativas. Apesar das investigações de Goffman

(1986) abrangerem a comunicação face a face, o conceito de enquadramento é utilizado

em estudos de mídia visto que “quadros específicos adquirem visibilidade nos media e

atravessam outros processos sociais” (MENDONÇA et al, 2011, p. 191).

Entman (1993) centra a questão no discurso comunicacional, especificamente

nas escolhas verificadas na seleção e saliência do que está exposto na realidade:

Enquadrar é selecionar alguns aspectos da realidade percebida e ressaltá-los

4 A Folha de SP é o jornal com maior tiragem no Brasil e foi fundado em 1960 quando os três títulos da

empresa Folha da Noite (1921), Folha da Manhã e Folha da Tarde se fundiram. Nos anos 1960, foi

pioneiro na tecnologia de impressão offset em cores (CÍRCULO FOLHA, 2016). O Estado de São Paulo

é o mais antigo jornal de SP, fundado em 1875. Na década de 1960, foi um dos periódicos mais

censurados pela ditadura, com tiragem ultrapassando os 34 mil exemplares no ano de 1967 (ACERVO

ESTADÃO, 2016). O jornal Diário do Povo, de Campinas (SP), foi fundado em 1912 e tinha enfoque

voltado às classes sociais menos favorecidas. Nos anos 1960, o jornal passou por modernizações,

encerrando atividades em 2012 (CARMO-ROLDÃO et al, 2013). A revista O Cruzeiro existiu de 1928 a

1975, lançada por Assis Chateaubriand, do conglomerado Diários Associados. Era líder no segmento nos

anos 1960. Já a Revista Manchete foi fundada por Adolfo Bloch, em 1952, e encerrou atividades em 2000

(MOURA, 2011). A revista Seleções do Reader’s Digest foi fundada nos EUA, em 1922, e circulou em

português a partir de 1942 com enorme sucesso nos anos 1960 (RAAD, 2004).

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em um texto comunicativo, promovendo uma definição particular de um

problema, uma interpretação causal, uma avaliação moral e/ou um tratamento

recomendado (ENTMAN, 1993, p. 52).

Na produção de notícias, influenciam a seleção os quesitos profissionais, as

fontes, as burocracias empresariais e as relações com outras esferas de poder, não

necessariamente de forma coordenada, mas também a partir de processos interacionais

não previsíveis. Em uma notícia, a ênfase dada a certos aspectos promove uma

“orientação estruturada” sobre o significado do quê informa (HACKETT, 1993).

Indo além de mero condutor de informação, o jornalismo seleciona certos temas

e questões e os organiza (enquadra) de modo inteligível para a interpretação do público.

Dentro deste campo, os enquadramentos noticiosos podem ser detectados nas

formatações, titulações ou angulações de notícias (PORTO, 2007)

Neste artigo, realizou-se uma classificação de conteúdo de acordo com dois

critérios: atores salientados e macroenquadramentos, ou seja, o enfoque amplo em que a

notícia foi divulgada na mídia (LOOSE et al, 2014). Além disso, foram evidenciadas as

formas como a mídia descreveu o “corpo” das vítimas da talidomida nas manchetes,

visto que as caracterizações sobre o corpo foram constantes.

Primeiramente, examinou-se como são retratados os atores enquadrados mais

recorrentemente em cada notícia, que incluem: atingidos/vítimas, farmacêuticos,

médicos, cientistas, indústria, governo e a mídia quando se posiciona (cf. TABELA 1).

TABELA 1: Frequência das notícias sobre Talidomida segundo o destaque aos atores na década de 1960.

As vozes destacadas na notícia Número de Notícias

Atingidos/Vítimas 11

Mídia* 3

Farmacêuticos 1

Médicos 2

Cientistas 1

Indústria Farmacêutica e/ou

laboratórios farmacêuticos

2

Governo -

Total 20

FONTE: Elaboração das autoras a partir do arquivo de notícias da ABPST..

* Nesta categoria agrupamos as notícias que são apresentadas em colunas de opinião ou editoriais,

deixando evidente um posicionamento do jornalista e/ou do jornal ou revista.

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Observa-se que na década de 1960 o posicionamento assumido pelos jornalistas

trazendo as vítimas como principais atores foi preponderante nas notícias acerca da

talidomida, acumulando 11 das 20 notícias veiculadas.

Em segundo lugar, as matérias foram classificadas conforme o

macroenquadramento, abarcando as seguintes modalidades: problematização,

divulgação, sensacionalização e posicionamento (cf. TABELA 2).

TABELA 2: Frequência dos modos de divulgação das notícias sobre a Talidomida nas décadas de 1960.

Conteúdo/Década 1960

Problematização 5

Divulgação 10

Sensacionalização 5

Posicionamento -

Total 20

FONTE: Elaboração das autoras a partir do arquivo de notícias da ABPST.

Na Tabela 2, nota-se que as notícias estavam bastante relacionadas à divulgação

do problema da talidomida, ocorrendo 12 vezes. No período, houve cinco

macroenquadramentos sensacionalistas; mas este tom não foi preponderante.

A partir das Tabelas 1 e 2, podemos representar, de forma sintética, os

conteúdos das notícias da década de 1960 pela problematização em torno da causa da

tragédia, conforme mostraremos mais detalhadamente à frente.5

3 O SURGIMENTO DA DROGA MÁGICA E O PRINCÍPIO DA TRAGÉDIA

A talidomida foi descoberta em 1953 por Wilhelm Kunnz, na Alemanha.

Segundo Lima, Fraga e Barreiro (2001), a sua primeira síntese foi realizada na indústria

Chemie Grünenthal tendo como objetivo ser agregada em antibióticos. Foi lançada no

mercado em 1956, como um medicamento antigripal, com a marca registrada

Grippex®. Apesar de insuficientes estudos quanto à segurança do seu uso em humanos,

a Grünenthal lançou o medicamento Contergan® como sedativo em outubro de 1957 e

posteriormente foi utilizado em larga escala para náuseas de gestantes. Foi um dos

5As notas jornalísticas foram transcritas em sua maioria na íntegra, respeitando a gramática da época. Os

trechos das notícias citados no artigo estão dispostos em itálico e examinam os elementos enquadrados.

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medicamentos mais vendidos na Alemanha Ocidental, onde ficava localizada a sede da

indústria primária deste medicamento (LIMA, FRAGA, BARREIRO, 2001).

A empresa Grünenthal promoveu ampla campanha publicitária com slogan

afirmando a segurança da substância e com anúncios se encarregando da massificação

desta informação (OLIVEIRA et al, 1999). Conforme Mokhiver (1995a, p.371), foram

produzidas 50 publicações médicas de primeira linha, além de 200 mil cartas enviadas a

médicos e a 50 mil farmacêuticos no mundo. Segundo Bosch (2012), a talidomida foi

comercializada com cerca de 52 nomes comerciais.

O sucesso da talidomida foi tão grande que em 1958 uma distribuidora de

bebidas alcóolicas, a Distillers Biochemicals Ltd (DBCL), detentora do rótulo Johnnie

Walker, resolveu garantir sua participação neste mercado, tornando-se também uma

distribuidora do medicamento. A empresa de bebidas iniciou a comercialização da

talidomida na Grã-Bretanha sem nenhum suporte técnico.

Um dos únicos países que não permitiu a comercialização da talidomida foi os

Estados Unidos da América, por indicação de Kelsey Frances, pesquisadora da agência

Food and Drug Administration (FDA).6 Mas há relatos de casos de uso “off label”7 no

país (LIMA, FRAGA e BARREIRO, 2001), assunto ao qual retornaremos adiante.

Já em 1958 a Chemie Grünenthal começou a receber notificações leigas de

neuropatias periféricas pelas pessoas que usaram a droga. Porém, não se percebia

claramente a relação entre o uso do remédio e outras reações adversas, principalmente

as mais graves, descritas posteriormente (BORGES, FROEHILICH, 2003).

Os primeiros relatos médicos de casos de teratogenia em crianças na Alemanha

datam de 1959. Eles caracterizavam um tipo peculiar de malformação congênita

causado pelo desenvolvimento defeituoso dos ossos longos dos braços e pernas em que

mãos e pés variavam entre o rudimentar e o normal. A primeira pesquisa que alertou

para o aumento da incidência de malformações de extremidades foi realizada por

Wiedemann em 1961 (OLIVEIRA et al, 1999 apud MOKHIBER 1995a). Mas foi Lenz,

ainda em 1961, quem denunciou a associação de 34 casos de bebês com malformações

nas extremidades nascidos de mães que tinham tomado a talidomida, e se posicionou

pela retirada da droga do mercado para realização de novos estudos (LENZ, 1988).

6 FDA foi fundada em 1931 (MELLO; OLIVEIRA; CASTANHEIRA, 2008). 7 “Off label” significa um uso fora do que está previsto em bula (WANNMACHER, 2014).

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Os eventos de teratogenia por talidomida nos EUA ocorreram em consequência

do uso da medicação para enjoos em gestantes em ensaios clínicos realizados por 1200

médicos que receberam o remédio direto da empresa (APEL, 2010). Segundo

Daemmrich (2002), o laboratório Merrell estava tão confiante na segurança da

talidomida que usou o período de testes para captar médicos nos EUA. Apesar de 16 mil

pacientes terem recebido a droga nesta fase, só 17 crianças nasceram com focomelia.8

Na Alemanha, país de origem da droga, o evento teratogênico provocado pela

talidomida ocasionou discussões sobre agendas de pesquisa, regulação de fármacos,

bem como sobre as condições dadas aos portadores de deficiências físicas, além de

propostas de leis que apoiassem e indenizassem as vítimas (DALLY, 1999).

Daemmrich (2002) refere que o julgamento sobre a responsabilização da

empresa Grünenthal pelo desastre da talidomida começou em janeiro de 1968 e só

terminou três anos mais tarde, quando os promotores retiraram as acusações em troca da

concordância da empresa em criar um fundo para as crianças vítimas do medicamento.

3.1 A talidomida no Brasil

A história da talidomida no Brasil se diferenciou da maioria dos países. A droga

começou a ser comercializada em março de 1958, dois anos após a identificação do

primeiro caso de malformação de crianças relacionada ao uso da droga na Alemanha.

A primeira propaganda comercial da talidomida no Brasil foi publicada em três

diferentes jornais de grande circulação em 1959. Os anúncios direcionavam-se aos

médicos, oferecendo-lhes literatura e amostras grátis do medicamento “Sedalis”, nome

comercial da Talidomida lançado pelo Instituto Pinheiros Produtos Farmacêuticos,

representante da Chemie Grünenthal no país. A propaganda enfatizava propriedades

sedativas-hipnóticas, não barbitúricas e ainda destituídas de efeitos secundários, bem

tolerada por crianças e portadores de lesões hepáticas.

A retirada da droga do mercado foi estabelecida em 1962. Notas sobre apreensão

da talidomida saíram no Diário Oficial e no O Estado de São Paulo em agosto de 1962.

Mas a retirada do mercado brasileiro só ocorreu de fato em 1965, pelo menos quatro

anos depois da Alemanha (OLIVEIRA et al, 1999 apud MOKHIBER 1995a).

8 Focomelia é o nome dado ao tipo de malformação, na qual as crianças tinham aspecto parecido com

uma foca, sendo que os pés e mãos apareciam implantados diretamente no tronco dos mesmos

(DAEMMRICH, 2002).

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Mesmo após a retirada da droga, a Talidomida continuou a ser comercializada

no Brasil por diversos laboratórios, pois não havia regulação efetiva para a proibição.

3.2 As notícias sobre a talidomida no Brasil nos anos 1960: Análise

Em julho de 1962, o jornal Folha de São Paulo publicou artigo com a manchete

“Mais de 3.000 mulheres tomaram a droga nos Estados Unidos” e prosseguiu:

[...] A talidomida.... foi entregue, como amostra, a 15.904 pacientes nos

Estados Unidos... “o número de mulheres norte-americanas que tomaram as

pastilhas e que se encontram em idade de procriar, é calculado em 3.272.

Porém as investigações indicam que elas ingeriram a droga nos últimos

meses de gravidez... ao que sabemos, até o presente, o medicamento não teve

influência sobre os recém-nascidos...” [...]

O trecho se refere a uma matéria de macroenquadramento de divulgação e

aborda o caso nos EUA em que um relatório sobre o problema é repercutido. Destacam-

se entre os atores salientados as mulheres americanas, que seriam potenciais atingidas,

colocando-se em evidência a vítima. Os afetados aparecem de antemão já no título, o

elemento mais importante da notícia. Já o corpo das crianças é descrito como disforme.

O Diário da Noite do Brasil enfocou, em agosto de 1962, as malformações ao

publicar a denúncia do pediatra Vicente Monetti, em artigo com o título “Thalidomida –

responsável pela metade dos casos de malformações congênitas”, conforme trecho:

[...] “Repetem-se com frequência cada vez maior as comunicações de

cientistas de diversas partes do mundo, principalmente da Europa, sobre a

relação de más-formações congênitas e a administração de talidomida às

gestantes... este fato retrata o que pode acontecer...com outras medicações...

A maior parte das gestantes em nosso meio não faz tratamento pré-

natal...Em geral, se socorre do farmacêutico ou de pessoas leigas para fazer

um tratamento indevido, inadequado” [...]

Ao dar espaço para um ator especialista médico expor parecer sobre a situação, o

jornal se posicionou de maneira a problematizar a situação da talidomida. Sobre o corpo

das vítimas, o artigo refere-se como “más-formações congênitas”.

No mesmo mês, a FSP destacou: “Cientistas advertem: não é só a

“Thalidomide” que causa malformações”. O jornal incluiu declarações do professor

Newton Freire Maia, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Genética:

[...]“a dolorosa experiência da Thalidomida veio demonstrar que drogas

semelhantes devem ser submetidas antes a exaustivos testes de laboratório,

que devem tomar cuidados especiais antes de lançar no mercado os produtos

que vão sintetizando [...].

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Nesta notícia, o ator central foi o cientista Freire Maia, que citava pesquisa

publicada na Inglaterra sobre a responsabilidade da talidomida pela metade dos casos de

má formações graves, levando a crer que outros tranquilizantes poderiam elevar os

nascimentos de crianças com problemas causados por drogas ingeridas na gestação. A

notícia segue o enquadre de problematização e caracteriza o corpo como “malformado.”

Revelou-se ainda que havia um padrão deficiente de regulação de medicamentos.

Neste sentido, as duas últimas notícias refletem a importância de se realizar

estudos sobre as medicações antes da comercialização para garantir segurança, trazendo

à tona o conceito de risco potencial. No período, médicos reiteraram a importância do

pré-natal e da necessidade de se procurar orientação para a utilização de medicamentos.

Em 30 de maio de 1962, na Casa Maternal Leonor Mendes Barros, nascia a

primeira vítima da talidomida conhecida no país. Em setembro O Cruzeiro publicou:

[...] ele com 22 anos e ela com 18, sofreu o impacto de receber tão esperado

primeiro filho com a marca da deformação causada pela droga. Era uma

menina sem braços. As mãos atrofiadas, partiam diretamente do tronco, uma

com 3 e outra com 4 dedos... [...]

A matéria noticiou o fato em reportagem no macroenquadramento de

divulgação, salientando enfaticamente os atores como vítimas. Aqui, a filha é

apresentada com o corpo marcado pelas deformações e as descrições “menina sem

braços”, “mãos atrofiadas”. Como se tratava de uma grande reportagem, a revista

mencionou que a equipe que examinou o caso da menina elaborou um trabalho

científico que seria enviado à Organização das Nações Unidas (ONU), órgão que vinha

pesquisando a talidomida em vários países. A mesma matéria também informou que um

professor identificado como Hepp havia criado um sistema de classificação dos casos

observados e que posteriormente faria membros artificiais para auxiliar as crianças

atingidas. Nesta notícia observa-se a preocupação das condições de vida das crianças

com a síndrome, algumas das quais estavam completando 3 ou 4 anos.

Em agosto e setembro de 1962, um conjunto de notícias tratou da proibição da

comercialização da droga no Brasil, ocorrida em agosto. Observam-se contradições uma

vez que algumas fontes ouvidas nas reportagens negaram a problemática.

O Estado de São Paulo, em edição de agosto de 1962, apresentou a manchete

“Apreendidos 4 milhões de comprimidos de talidomida”, denotando que a droga era

amplamente vendida nas farmácias brasileiras. Já a revista O Cruzeiro registrou em

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setembro de 1962 a “continuidade da venda do produto no Brasil”. Mas, por outro

lado, citou que, segundo o Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional do Estado

de São Paulo, a droga nem era comercializada no país. Ademais, tal enquadre de

divulgação demonstra um desencontro de informações e evidencia a mídia como ator ao

exercer a função de denunciante. Nestas notícias o corpo não foi enfocado.

Em estudo sobre jornais brasileiros, Leandro e Santos (2015) destacam uma

cobertura na qual a única fonte ouvida foi o representante do Laboratório Pinheiro,

distribuidor da talidomida no país, Aníbal Coré. Ele buscou negar a problemática ao

avaliar que a suposição de que a talidomida seria responsável por casos de

malformações foi uma manobra de trustes internacionais para eliminar um concorrente

brasileiro, no caso o Laboratório Pinheiro, empresa com aceitação na Europa e Ásia.

Como desdobramento, verifica-se a disputa de interesses comerciais e de concorrência

entre laboratórios na ocultação de problemas decorrentes do uso do medicamento.

Em setembro de 1962, o Jornal Diário do Povo titulou “Relação de drogas

farmacêuticas a base de sedativos” e referiu a prevenção a casos como da talidomida:

[...] Alcançaram em todo o mundo a maior repercussão as notícias sobres às

drogas a base de Thalidomida. Várias providências foram adotadas no

sentido de retirar do mercado e dos laboratórios todos os produtos

farmacêuticos condenados pelos fatos universalmente apontados [...]

O macroenquadre de divulgação ressaltava os problemas, as vítimas crianças e

as mães afetadas, enfocando também os produtos farmacêuticos, sendo o principal ator

justamente os laboratórios farmacêuticos. A matéria também relatava que a Associação

de Farmacêuticos havia solicitado que as medicações a base de sedativos fossem

registradas por meio de livro. Os remédios deveriam ser recolhidos e, a partir de então,

controlados por meio de registro. Alude-se aí marco histórico para o início do controle

dos medicamentos, sendo um fato antecessor das receitas controladas. Mesmo fora do

foco central, o corpo dos atingidos apareceu retratado pelas “deformações”.

Com a manchete “É trágico o balanço da talidomida”, a revista O Cruzeiro de

setembro de 1962 publicou entrevista com o professor Widukind Lenz, geneticista de

Hamburgo, que disse não perdoar as autoridades sanitárias da Alemanha Ocidental por

não terem agido logo que ele denunciou a Talidomida:

Êles levaram dez dias para proibir a droga. E esses dez dias poderão custar

mais de 300 bebês deformados”.

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O corpo das crianças é referido pela expressão “bebês deformados”, gerando um

estigma, uma vez que a deformação rompe com a expectativa de um bebê saudável. No

macroenquadramento de problematização, Lenz chegou a dizer que pensou ser apenas

uma epidemia localizada. Mas, para ter certeza, escreveu aos grandes pediatras da

Alemanha Ocidental e observou que o resultado era pior do que esperava.

Tais conjecturas foram de relevância para os estudos epidemiológicos atuais,

levando ao reconhecimento de que, mesmo atualmente com a garantia dos testes de fase

III para liberação dos medicamentos, a vigilância pós-comercialização é uma das mais

importantes e desafiantes etapas para garantir o uso seguro de medicamentos.

Em outra entrevista de Lenz, publicada na FSP, também em setembro de 1962, o

cientista foi contundente ao enfatizar que a tragédia da Talidomida não foi apenas

resultado da negligencia de um laboratório, mas uma falha mais ampla, que ele atribuiu

“ao funcionamento da sociedade”:

[...] Lenz não põe toda a culpa nos laboratórios. Acha que tão culpada

quanto eles é a própria sociedade... por outro lado, a venda franca e a

publicidade espalhafatosa deixam o público entregue ao perigo das drogas

de que não tem necessidade. Isso sem sequer uma palavra de conselho por

parte das autoridades sanitárias [...]

O macroenquadre de problematização tem como ator principal o médico como

denunciante e detecta a publicidade que sustenta a mídia. Em decorrência do estigma,

observado na maneira como a mídia enquadra o problema, e da culpa das mães por

ingerir a droga, além do desconhecimento dos eventos teratogênicos é que havia,

segundo Lenz, dificuldade em mapear novos casos que a droga poderia ainda provocar.

Na sua declaração à revista O Cruzeiro de setembro de 1962, ele já relatava essa

dificuldade dizendo que “Havia mesmo...as mães que se mostravam relutantes, em

admitir que haviam tomado a droga, como medo dos maridos e da família “. Esta

notícia tem macroenquadramento de problematização, trazendo as vítimas como atores.

Neste sentido, muito além das lutas nos tribunais para indenizar a vítimas e na saúde

pública para retirar a droga do mercado e exigir novas regras para os testes nos

laboratórios farmacêuticos, o problema que se instalava no mundo era um “terrorismo”

vivenciado pelas famílias atingidas. As constantes referências às deformidades do corpo

não deram espaço a outros enquadramentos para lidar com o problema.

Notícia da FSP em 1962 exemplifica a ênfase explícita no corpo da vítima com

“deformações”, aferindo-se como causa do assassinato de filha pela mãe em um

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macroenquadramento sensacionalista. O caso na Bélgica tratou da jovem de 25 anos

que, “após ter parido uma filha com deformações por causa da ingestão da Talidomida

na gravidez, conseguiu de um médico uma receita de barbitúricos, o misturou com mel

e deu a filha, matando-a, com consentimento do marido e de sua mãe”.

Ainda sobre este caso, a FSP, no mesmo ano, noticiou “Mãe presa”, referindo-

se ao episódio utilizando-se do macroenquadramento sensacionalista. Ainda em 1962, a

revista Manchete noticiava “Após longos debates, o júri de Liege absolveu os réus

processados pela eliminação de uma criança deformada pela talidomida”. Nesse lance

do caso, a notícia induz ao entendimento de que a deformação justificaria a absolvição

dos réus no assassinato da criança “deformada”, que por fim seria “eliminada”.

Em notícia da revista Manchete, de data indefinida, a palavra “eliminação”

novamente utilizada pela imprensa denotou a importância da discussão ética sobre o

“corpo disforme” das vítimas da Talidomida. O início da notícia registrava que:

[...]o que estava em causa era mais do que um drama de família: eram os

erros da medicina e a cupidez dos industriais, que querem fazer lucro...por

trás de tudo isso, havia ainda a torturante e grave pergunta: deve-se deixar

viver as crianças anormais? [...]

A notícia revela o drama da problemática e o preconceito estigmatizante. Em

macroenquadre sensacionalista questiona-se o que fazer com as “crianças anormais”.

A FSP, ainda em 1962, noticiou “Abortos legais na Suécia”, tratando de sete

mulheres suecas que se submeteram a abortos legais por terem tomado a talidomida. O

macroenquadre de divulgação tem foco nas vítimas.

Em outra notícia da FSP, em 1962, intitulada “Drama da talidomida: Vaticano

ataca decisão de mãe de futura criança disforme”, acusa-se uma mulher do Arizona de

provocar um aborto para não dar à luz a uma criança por causa do efeito da talidomida.

Afirmou-se: “Não é admissível, contudo, que esta aberração subjetiva se transforme

numa prática da vida , num princípio moral. O homicídio jamais é ato de bondade...”.

Referem-se práticas relacionadas ao problema, enfocando as vítimas em macroenquadre

sensacionalista e o estigma do corpo aparecendo na definição “aberração subjetiva”.

Outro texto do jornal FSP de novembro de 1962 informava sobre os efeitos

adversos da droga em gestantes e uma adaptação do desenho original da dra. Helen

Taussig, mostrando algumas das características da “síndrome da talidomida”. A nota

dizia: “Notam-se os braços atrofiados e deformados e as marcas de morango

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(hemangioma) na testa, no nariz e no lábio superior. Várias alterações esqueléticas e

internas completam o quadro”. A notícia tem o macroenquadramento de divulgação e

salienta as vítimas. O corpo é descrito com os “braços atrofiados”.

Após o grande número de matérias no período em que a droga foi reconhecida

como causa das malformações e banida em muitos países, seis anos depois, começam a

aparecer em 1968 informações sobre o julgamento da empresa produtora de talidomida

na Alemanha. Na manchete intitulada “Talidomida: responsáveis começam a ser

julgados”, em maio de 1968, o jornal FSP descreveu o início do júri da farmacêutica

alemã Chemie Grünenthal e seus colaboradores:

[...] O julgamento do dr. Heinrich Mueckter, chefe de pesquisas científicas

da Chemie Grünenthal, e seu colaboradores teve início às 10 horas... Os

diretores são acusados de violação da lei nacional sobre drogas, causando

danos físicos, primeiro por imprudência e depois deliberadamente, e ainda

apontados como autores de homicídio culposo por negligência [...].

Na notícia, o macroenquadramento de divulgação apresenta outros atores, sendo

o principal a indústria farmacêutica. A notícia se refere à violação da lei nacional sobre

drogas da Alemanha, com foco no julgamento. O corpo é retratado por “danos físicos”.

Em junho de 1968 artigo na FSP denuncia novos casos de teratogenia por

talidomida com a manchete “Sedativo fez surgir pequenos monstros”, conforme trecho:

[...] Milhares de pequenos “monstros”, vítimas de deformações congênitas,

apresentam-se hoje em diversos países no mundo como terrível advertência

quanto aos perigos desconhecidos das modernas drogas milagrosas [...]

Nesta notícia as crianças com problemas são referidas como “monstros”, em

macroenquadramento sensacionalista. O viés privilegiou o explicitamente o estigma.

A revista Seleções do Readers Digest do Brasil, em janeiro de 1969, advertia no

título “Isto pode acontecer de novo”. Relatava-se que a droga tinha voltado a ser

testada para uso em nódulos. A tragédia foi relatada a partir dos posicionamentos da

família das vítimas que na Alemanha contavam com 42 organizações de pais dedicados

ao problema. Contudo, indicava-se, alguns pais e crianças continuavam se isolando.

Neste macroequadramento de divulgação, as vítimas são os principais atores.

3.3 Discussão

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A análise de conteúdo a partir dos enquadramentos sobre o problema da

talidomida põe em relevância a articulação dos macroenquadramentos, a saliência de

atores e a ênfase no corpo.

No que tange aos macroenquadramentos, a divulgação voltou-se para relatar

como o problema repercutia no Brasil tendo como parâmetro os casos em outros países.

Quando a primeira criança talidomida brasileira nasce, a divulgação ocorre em tons

dramáticos com descrição minuciosa das deformidades corporais. Os enquadres vão

dando sequência ao desenrolar dos fatos com as características variadas do problema, a

apreensão da droga, a continuidade da venda mesmo após proibição e escassos enfoques

alternativos sobre resoluções e prevenção. Há concentração de notícias na divulgação

sobre a “eliminação” de crianças talidomida e, depois, no julgamento da empresa. O

macroenquadramento de divulgação seguiu os fatos no intuito de contá-los como

história dramática.

O macroenquadramento da problematização se diferenciou na medida em que

enfoca as questões por trás do fato central do acontecimento da talidomida: negligência

da regulação de medicamentos e questões de saúde pública; críticas e denúncias de

médicos e cientistas; exposição de falhas no “funcionamento da sociedade”, isentando

um pouco os laboratórios, crítica à excessiva publicidade e às autoridades sanitárias.

O macroenquadre sensacionalista foi o que explicitou o estigma do corpo das

vítimas, referindo os episódios de “eliminação” das crianças pelas famílias e a

referência às vítimas como “aberração subjetiva”. Seja por palavras ou sugestão de

ação, este macroenquadre evidenciou também uma opção da mídia em estereotipar as

crianças, denominando-as tanto de “pequenos monstros” como em termos mais neutros

como deformações congênitas, em um mix entre o termo estigmatizante “monstro” e do

termo mais científico “deformações congênitas.”

Sobre os atores envolvidos com a talidomida, as saliências sobre determinados

protagonistas também revelam o ritmo pelo qual a problemática vai se desdobrando.

Como o cerne da questão deram as deformações no corpo de crianças, em uma tragédia

familiar com centro nas mães, os principais atores das notícias foram as vítimas.

Médicos, enfermeiras, cientistas e pesquisadores aparecem como pano de fundo e vozes

que analisam a situação posta pela tragédia. No entanto, após o impacto inicial, a

apuração dos responsáveis joga luz sobre atores que até então estavam mais ocultos:

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laboratórios farmacêuticos, indústria e empresas relacionados com a fabricação e

distribuição da talidomida.

A tragédia da talidomida suscita questionamentos sobre contextos e condições

em que o ser humano é exposto à maior vulnerabilidade, nos quais a vida humana pode

ser impactada pela ciência e pelas transformações no mundo da saúde (SANCHES;

GUBERT, 2012). Segundo Sanches e Gubert (2012), avanços devem ser acompanhados

da reflexão sobre suas consequências na sociedade. Diante dos valores morais e éticos

da época, a tragédia trouxe reflexões até então pouco frequentes diante da deficiência

física. A tragédia também coloca o descolamento ético da ciência e indústria

farmacêutica e o entrelaçamento com estratégias de marketing visando a disseminação

de um medicamento em fase experimental através da comunidade médica para alcançar

a sociedade.

Sobre as reações das famílias em torno da deficiência gerada pela talidomida, o

enfrentamento ao fato variou conforme características individuais e foi determinado

pela extensão e a profundidade do impacto dos nascimentos. Da parte da mulher, o

problema tornou-se ainda mais conflituoso, pela desigualdade de gênero na sociedade e

a responsabilização pelo problema. Muitas se culparam, houve conformismo e

frustração considerando as dificuldades em compreender os mecanismos causadores da

deficiência. Além disso, pressupõem-se choque e medo com relação ao evento ou o

reconhecimento da deficiência, bem como dor e ansiedade de se imaginar quais seriam

as implicações futuras (BRUNHARA, TETEAN, 1999).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mídia descreveu o corpo dos atingidos na década de 1960 usando os termos

como “disforme”, “deformado”, “mal formado”, mas em algumas situações chegou a

descrever os sujeitos como “mostros”, “aberrações” e “anormais”, até a mais

estigmatizante determinação em uma questão sobre o destino dos atingidos: “deve-se

deixar viver as crianças anormais?”. Esses enquadramentos referem-se a padrões

estigmatizantes repetitivos sobre os atingidos.

O impacto do problema repercutiu em diferentes países envolvendo sociedades

que tiveram de corresponder rapidamente ao choque. Há, em geral, uma

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homogeneização nos enfoques dos diferentes jornais e revistas, com saliências similares

quanto ao corpo e atores envolvidos bem como aos fatos narrados. Esses elementos

eram componentes do momento socioeconômico da imprensa no Brasil de redução da

independência editorial em face da influência de agências de publicidade internacionais.

Ainda assim, em face dos casos das deformações, a opção da mídia por retratar o

corpo sobremaneira evidenciou a pregnância cultural sobre a normalidade corporal e

também elos de significância intercultural, visto que o problema atravessava a realidade

brasileira ligando-se a um problema de saúde pública internacional.

A imprensa brasileira fez avaliação moral dos casos e questionou o que deveria

ser feito com as crianças talidomidas. Contrasta-se pelo não questionamento de qual

seria a pena apropriada para os causadores da tragédia. Por fim, a mídia privilegiou a

problematização enfocando os atingidos pela talidomida, com alguma atuação de

denúncia na repercussão do problema e a atenção constante centrada no corpo.

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