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“CORPO SE CONHECENDO”, “O TESO SÚBITO” LUGAR DE FALA, DE ESCUTA: CORPOEMA EM HILDA HILST E RICARDO DOMENECK Sandro Adriano da Silva (Unespar/UFSC) [email protected] Resumo A literatura é um território de experimentação de possíveis estéticos e existenciais. A poesia, lugar de rumor da língua, de fala e escuta das paixões humanas, entre elas, o erotismo e seu signo mais imediato: o corpo. Corpo e poesia unem-se numa cena desejante, que busca o mais-além, o gozo impossível, o sublime, o interdito: corpoema. “Corpo se conhecendo”, “o teso súbito”, invocados no título, são, respectivamente, fragmentos dos poemas “I”, da seção “Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor”, da obra Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974/2001), de Hilda Hilst, e “Breviário de secreções”, de Carta aos anfíbios (2005), de Ricardo Domeneck. A análise comparativa entre ambos aventa um olhar sobre o corpo e o poema como espaços de fala e escuta dos sujeitos da enunciação lírica. Hilda Hilst insere um eu poético feminino e elabora a imagem de um corpo sáfico; Ricardo Domeneck inscreve uma dicção explicitamente homoerótica. Cada um ao seu modo poético e existencial, recolhe um mote libertário e humanizador da literatura, em torno do corpo indócil, ilimitado e transcendente, como discurso materializado em inquietação, ao subverter os liames ideológicos que marcam os espaços discursivos pelas relações de gênero, marcadamente patriarcalistas e homofóbicas, ainda fixados na contemporaneidade. Palavras-chave: Poesia brasileira; Hilda Hilst; Ricardo Domeneck; Corpo. Corpoema.

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Page 1: “CORPO SE CONHECENDO”, “O TESO SÚBITO” LUGAR ...(1974/2001), de Hilda Hilst, e “Breviário de secreções”, de Carta aos anfíbios (2005), de Ricardo Domeneck. A análise

“CORPO SE CONHECENDO”, “O TESO SÚBITO” LUGAR DE FALA,

DE ESCUTA: CORPOEMA EM HILDA HILST E RICARDO DOMENECK

Sandro Adriano da Silva (Unespar/UFSC)

[email protected]

Resumo

A literatura é um território de experimentação de possíveis estéticos e existenciais. A poesia, lugar de rumor da língua, de fala e escuta das paixões humanas, entre elas, o erotismo e seu signo mais imediato: o corpo. Corpo e poesia unem-se numa cena desejante, que busca o mais-além, o gozo impossível, o sublime, o interdito: corpoema. “Corpo se conhecendo”, “o teso súbito”, invocados no título, são, respectivamente, fragmentos dos poemas “I”, da seção “Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor”, da obra Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974/2001), de Hilda Hilst, e “Breviário de secreções”, de Carta aos anfíbios (2005), de Ricardo Domeneck. A análise comparativa entre ambos aventa um olhar sobre o corpo e o poema como espaços de fala e escuta dos sujeitos da enunciação lírica. Hilda Hilst insere um eu poético feminino e elabora a imagem de um corpo sáfico; Ricardo Domeneck inscreve uma dicção explicitamente homoerótica. Cada um ao seu modo poético e existencial, recolhe um mote libertário e humanizador da literatura, em torno do corpo indócil, ilimitado e transcendente, como discurso materializado em inquietação, ao subverter os liames ideológicos que marcam os espaços discursivos pelas relações de gênero, marcadamente patriarcalistas e homofóbicas, ainda fixados na contemporaneidade.

Palavras-chave: Poesia brasileira; Hilda Hilst; Ricardo Domeneck; Corpo. Corpoema.

Page 2: “CORPO SE CONHECENDO”, “O TESO SÚBITO” LUGAR ...(1974/2001), de Hilda Hilst, e “Breviário de secreções”, de Carta aos anfíbios (2005), de Ricardo Domeneck. A análise

Introdução

Compagnon (2009) concebe a literatura como uma atividade do pensamento

humano e uma experiência estética e existencial. Nela, a poesia, constitui um lugar

de fala e escuta das paixões humanas, entre as quais, o erotismo e seu signo mais

imediato: o corpo (BATAILLE, 2013; NANCY, 2015;). Corpo e poesia unem-se numa

cena desejante, que busca o mais-além, o gozo impossível, o sublime, o interdito:

corpoema e suas metáforas.

“Corpo se conhecendo”, “o teso súbito”, invocados no título, são,

respectivamente, fragmentos dos poemas “I”, da seção “Prelúdios-intensos para os

desmemoriados do amor”, da obra Júbilo, memória, noviciado da paixão

(1974/2001), de Hilda Hilst, e “Breviário de secreções”, de Carta aos anfíbios (2005),

de Ricardo Domeneck. Hilda Hilst insere um eu poético feminino e elabora a imagem

de um corpo sáfico; Ricardo Domeneck revela uma dicção explicitamente

homoerótica. Cada um ao seu modo poético e existencial, recolhe um mote libertário

e transgressor da literatura (DERRIDA, 2014), em torno do corpo indócil, ilimitado e

transcendente. Corpo “como discurso em sua realidade material de coisa

pronunciada ou escrita” (FOUCAULT, 2014, p. 8), ao subverter liames ideológicos

que marcam os espaços discursivos fixados pelas relações de gênero,

marcadamente patriarcalistas e homofóbicas, que ainda se fazem contundentes no

contemporâneo. Assim, a poesia se faz ditado poético humanizador do corpo uma

vez que ambos se afiguram sempre expostos, inventivos, mas arredios a qualquer

tentativa de interpretação em sua plenitude. (DERRIDA, 1988).

Corpoemas, suas demandas, experimentações dos possíveis

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Os poemas a serem analisados em sua íntegra na versão do trabalho

completo indiciam, nos temas e arquitetônica poética, marcas incisivas e caras ao

literário: suas funções estética e social, cognitiva e humanizadora. “A literatura é um

exercício de pensamento; a leitura, uma experimentação dos possíveis”,

(COMPAGNON, 2009, p. 52), que promovem uma “quota de humanidade na medida

em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o

semelhante.” (CANDIDO 2011, p.182).

Ao lado da linguagem, nenhum outro registro seja talvez tão distintivo da

experiência humana quanto o corpo em sua dimensão erótica e os juízos que sobre

ele incidem. Nancy (2015) ensaia sobre esse “corpo de prazer” (p.25) e sua

expressão estética, como “liberado de seus esquemas perceptivo e operatório, que não

mais se dá a ver e nem a sentir em geral, segundo as modalidades de sua vida funcional,

ativa ou relacional. [...] o corpo de prazer [...] só está ordenado a si mesmo. [...]” (p.25). Para

o filósofo, essa dimensão da corporeidade comporta a “capacidade de se transformar, de se reformar, [...] de se in-formar (ou bem exformar...). Assim, de uma condição de

“conformidade regulada por um conjunto de práticas sociais, culturais, técnicas” o corpo

assume “uma formação incessante, [...] o corpo de prazer [...] ilimita o corpo. É a sua

transcendência.” (p. 25;26, grifos do autor).

O erotismo “é a aprovação da vida até na morte” (p.31) uma “contemplação poética”

(p.35) e uma política e se apresenta em “três formas, a saber, o erotismo dos corpos, o

erotismo dos corações e, enfim, o erotismo sagrado.” (p.39). E corpo assume seu lugar de

enunciação nesses registros erótico e homoerótico (SOUZA JÚNIOR, 2002), no interior de

uma sociedade de fortes marcas patriarcais e homofóbicas, na qual, como apontou Foucault

(2014), “conhecemos certos procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar

também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo em qualquer

circunstância” (p.9). Para Bataille (2013), o erotismo se constitui um desses “tabus do

objeto”, como chamou Foucault (2014, p.9), pois ainda é tratado com visível ambivalência: o

corpo (homo)erótico é valorado em seu agenciamento de dispêndido, improdutividade,

excessos, anormalidades.

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Para tentar responder à pergunta “o que é a poesia?”, Derrida (1988) propõe que se

deva antes “renunciar ao saber” e desmobilizar a cultura”; posturas que o filósofo sintetiza a

um tempo em estéticas e políticas, no âmbito da poesia e do corpo erótico como discurso:

“A economia da memória” e “o coração” (p. 113). Na experiência radical da linguagem e da

leitura poéticas, o “sujeito leitor é inteiramente deportado sob o registro do Imaginário”

(BARTHES, 2012 p. 37), em “texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele

que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais,

psicológicas do leitor [...] faz entrar em crise sua relação com a linguagem.” (BARTHES, 2015, p. 20). Desde O banquete, o amor é um desejo dirigido para o belo (kallos) e

necessariamente envolve a noção de uma necessidade ou falta (endeia). Eros surge como

um grande daimon, um dos intermediários (metaxu) entre o divino e o mortal, entre a

sabedoria e a ignorância. (PLATÃO, 2016, p.119). Assim, a poesia comparece como lugar

privilegiado de Eros, uma vez que Safo estiliza o erotismo feminino, tornando-o um

arquétipo afetivo não limitado ao matrimônio e, portanto, heterossexual (ou ao homem), e

concede à poesia, “dizer tudo” [...]. A lei da literatura tende, em princípio, a desafiar ou a

suspender a lei. (DERRIDA, 2014, p. 49).

Considerações finais

Se, como indica Paz (1994), a “relação entre erotismo e poesia é tal que se pode

dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal”

(p. 12), depreende-se daí que a experiência artística da palavra e experiência erótica

constituem formas suplementares de um mesmo anseio existencial e de uma mesma

resistência política, tão emergencial em tempos de retrocesso nos direitos democráticos.

Referências BARTHES, R. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015 (Elos; 2).

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BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. (FILÔ/Bataille). COMPAGNON, A. Literatura para quê? Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. DERRIDA, J. Che cos’è la poesía? Trad. Tatiana Rios; Marcos Siscar. Inimigo Rumor, 10 maio 2001, p. 113-116. ______. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Trad. Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. (Leituras filosóficas). introdução. São Paulo: Scortecci Editora, 2002. NANCY, J-L. Corpo, fora. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 1.ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015. PAZ, O. A dupla chama. Amor e erotismo. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994. ______. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman; Paula Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012. PLATÃO. O banquete. Trad. José Cavalcante de Souza. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2016. SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux de (Org.). Literatura e Homoerotismo: uma introdução. São Paulo: Scortecci Editora, 2002.