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Ao meu avôÀ minha família

À AnaAos meus amigos

PASSO DE ABERTURA

Não é necessário ler este texto prévio. Nele, o autor tenta apresentar--se a si próprio. Pode, portanto, ser considerado inútil.

Nasci em 1942, numa aldeia do concelho de Vinhais. Num ano tão inadequado para nascer, só mesmo o lugar oferecia recompensas.

Nesse ano, continuava a carnificina europeia, com poucas espe-ranças para a Liberdade. O lugar é distante de todos os lugares co-nhecidos. Ali, quase não se ouviam os ecos do inferno.

O único membro da minha família que viajou pelo mundo foi o meu avô Artur, que fez o serviço militar em Moçambique.

Quando veio a idade, fui estudar para Bragança, onde concluí o liceu, em 1960. Foi no liceu que fiz grandes amigos, alguns dos quais me acompanham até hoje. Ainda nos juntamos, de vez em quando.

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Aquilo que sou e que sempre fui formou-se nesses primeiros tem-pos. Nas parábolas de meu pai, nos avisos dos meus irmãos, nas conversas com os meus amigos, nos conselhos dos homens bons de Vinhais. As minhas referências têm aí as suas raízes.

Vim depois para Lisboa, para entrar na Academia Militar. Aliás, viemos. Quem nos trouxe foi o desafio conjunto e a certeza de uma carreira acessível. Uma carreira que tinha vagas para gente da pro-víncia, para os candidatos rurais. Éramos nós. Ficámos quase todos. O regime precisava de gente para o exército. Acolher-nos foi um dos seus erros.

Não foi fácil a adaptação ao ambiente militar. Nós gostávamos de questionar a vida. Vinha-nos o hábito das noites de tertúlia bri-gantina. Passados os primeiros tempos, cada um por si ou todos em conjunto, fomos construindo a nossa relação com o Exército e tam-bém com a sociedade. Eu procurei não perder as minhas referências anteriores, sem deixar de assimilar uma visão muito própria da vida, através dos códigos militares. Nunca me conformei inteiramente, mas não pude resistir para além de um certo limite. Conservei-me atento ao mundo, no cumprimento das regras da minha profissão.

Nunca encarei a guerra, que começou pouco depois da nossa che-gada, como a via necessária para concretizar a minha relação com a profissão militar. Eu comecei por ver Angola como uma preocu-pação passageira. Só lentamente, e cada vez mais, me apercebi da dimensão da tragédia. E à medida que me confrontava com Angola e depois com a Guiné e com Moçambique, fui constatando que mui-tas outras coisas do meu país careciam de discussão. Retomei os fios que quebrara ao sair de Bragança e comecei o curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa. Contrariamente ao que diziam as leis, não pedi autorização e a escola aceitou.

Casei, ao encontro de um novo rumo. Habituei-me a pensar a dois.Se algumas interrogações atrevidas se erguiam com cautela, todas

acordaram quando cheguei a Angola. Ali, em campo propício, fiz a minha aprendizagem prática, concluindo que muito teria de ser mudado para poder dizer que valia a pena ser militar.

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As convicções não se geram instantaneamente. Elas insinuam-se, crescem, demoram tempo em impor-se, mas acabam fortes e mol-dam o nosso espírito. É necessário abertura, curiosidade e coragem.

Cheguei neste ponto a Moçambique, em 1973. No dia do meu embarque, começa a memória que vos apresento. Recuperá-la é para mim um exercício gratificante. O que desejo é partilhar com todos a intensidade de vida desse período decisivo.

PASSO 1

Embarquei para Moçambique no dia 9 de Setembro de 1973. Saí-mos da Portela num avião militar já a noite ia adiantada.

A essa hora tinham os meus camaradas do Exército terminado a reunião de Évora, onde aprovaram um documento que se tornou de-terminante no nascimento do Movimento dos Capitães. Recomen-dara ao Veiga Vaz que estivesse presente e me representasse. Soube depois que não conseguiu lá chegar.

Viajaram connosco (eu levava toda a família) o major de Enge-nharia Braga Barbosa, que ainda andara comigo na Academia, mas alguns anos mais velho. Também seguia com a mulher e três filhos.

No dia seguinte estávamos na Beira, na costa oriental de África.Estas passagens pelo Império (e eu só estive em Angola e Mo-

çambique e de visita em Cabo Verde e em Macau) ampliavam-me a memória, como se pudesse ter estado ali em tempos idos. Antes mesmo de começar a situar-me, já me parecia sucumbir com o peso do passado. Olhava, ali tão perto, o oceano Índico e dava comigo

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a pensar — estou aqui porquê? Porque centenas de antepassados meus (aqui vinha-me à memória o meu avô Artur, que me dizia ter ido para África quando ainda estava viva a memória de Mouzinho) por aqui passaram o seu tempo? Eu podia duvidar muito da Histó-ria e das histórias que ouvia contar, mas ao pisar aquele solo tão dis-tante, e vistas as razões por que ali estava, não podia duvidar muito do que me contavam.

A Beira era nesse tempo uma cidade militar. Encontrei logo com-panheiros, mas de todos só um se mostrou, um pouco recatadamen-te, ávido de novidades:

— Então, notícias? Houve reunião?Que notícias podia eu dar, para além de confirmar a preparação

da reunião? Não sei o que aconteceu, ou se aconteceu alguma coisa. Vamos ter de esperar.

PASSO 2

Seguimos para Nampula, no dia seguinte.Nampula é que era verdadeiramente uma cidade militar. Ficámos

na Messe de Oficiais.Não despegava de mim essa sensação estranha de já ter estado por

ali. Hei-de saber se o meu avô não teria passado por estas terras. Por algum motivo ele era conhecido como «o Africano», qual D. Afonso V.

Demos umas voltas pela cidade. Havia dois pólos — a catedral (a que chamavam Sofia Loren) e o Quartel-General (a que chama-

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vam Pantera Cor-de-Rosa). Enfim, mergulhávamos no nosso lugar de destino.

No hotel só havia oficiais de passagem. Os outros acabavam por se instalar em casas do Exército, ou alugadas. De qualquer forma, alguns, raros, começaram a perguntar-me por novidades. Que se di-zia isto e aquilo, que havia umas notícias. Aquela reunião fizera-se? Que reacções? Vagamente.

Lá fui apresentar-me na CHERET— Chefia de Reconhecimento das Transmissões. Gente conhecida, mas pouca.

Na Messe, ao jantar, é que pudemos medir a multidão de oficiais de Nampula. Mais perguntas e uma sugestão. Alguém propôs que nos reuníssemos, no dia seguinte, que já era 13 de Setembro, numa casa particular. Devíamos passar palavra, com algum cuidado. Aí poderíamos transmitir as novidades. Já havia notícias da reunião de Évora.

PASSO 3

Passeando os olhos pelo meu dossiê de memórias, esse dia 13 de Se-tembro de 1973 deixou alguns vestígios.

Antes de avançar... A Marília fez, nesse dia, 28 anos. Tenho a ideia de que só apagámos as velas bem depois da meia-noite, já na madrugada do dia 14. Falávamos da esperança que mantínhamos na vida, na luta que era necessário levar por diante, mas raramente falávamos em concreto das reuniões e muito menos onde elas se rea-lizavam. As nossas filhas dormiram tranquilas, depois da cerimónia

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das velas, sem a qual não era possível fazer anos.Como facto concreto apenas aquele documento, feito em todos

os territórios onde estavam oficiais do Quadro Permanente e que começa assim:

Senhor Presidente do Conselho de Ministros, Excelência, Os oficiais do Quadro Permanente, etc., etc.

e que termina:

Confiando no indefectível critério de Justiça que caracteriza a governação de Vossa Excelência, e cientes de que será este as-sunto devidamente revisto, expressamos, Senhor Presidente, a nossa firme determinação na defesa da Pátria. Estado de Mo-çambique, 13 de Setembro de 1973.

Lembro-me que chovia de mansinho, nessa noite. E cheirava a ter-ra. Era o mesmo cheiro que meu avô sentira quando por ali passara. Numa conversa, tivera ele oportunidade de me dizer:

— Um dia hás-de ir para África. Escolhe Moçambique. É ali que se sente o peso da nossa maravilhosa aventura, da nossa viagem, da nossa ousadia, do peso dos nossos antepassados. Se sentires o que eu senti, não trairás a nossa memória. Não te encantes com as sereias que te chamam. Amarra-te ao cheiro da terra molhada.

Era um tempo em que eu não chegava a compreender a sua men-sagem.

Mas naquela noite, em que caminhava excitado, depois da aberta troca de opiniões daqueles capitães que foram defender o Império, lembrei-me nitidamente das recomendações de meu avô. E não pude deixar de exclamar:

— Meu avô! Eu não quero desiludir-te, mas tu sabes (tu agora sa-bes tudo) que este céu não nos pertence, e se o céu não é nosso, então a terra também não é!

Com estas lembranças cheguei ao nosso quarto, na Messe de Ofi-

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ciais. Cantámos baixinho os parabéns a você!

PASSO 4

Num instante, tudo passou a ser urgente.Juntar gente, informar, reunir, decidir, assinar papéis, definir estra-

tégias, transmitir apoios.Passámos por várias casas, quase sempre com as mesmas caras.

Alguns iam regressando a Lisboa, outros iam chegando de novo. Quando um capitão chegava, era reunião certa. Queríamos saber tudo quanto se passava em Portugal. Que reuniões, que orientações, que papéis, que reacções! Quem participa, quantos somos!

A maior parte das vezes só temos desilusões. O capitão sabe pou-co, não assistiu a nada, está entusiasmado. Todos estamos.

Discutimos estatutos, decretos, missões das Forças Armadas, ven-cimentos...

Diz o Fernando Amaral:— Ouçam bem! Quando isto acabar ou estamos a ganhar o dobro

ou estamos no poder!A reacção foi algum silêncio. Ninguém estava preparado para res-

ponder a provocações destas. Mas a frase ficou no nosso espírito...

Meu avô bem me avisara:— Nunca queiras muito poder! Olha que é bem mais fácil criticá-

-los do que ter de enfrentar as críticas. Quando eu era jovem, ainda fui desafiado a mandar. Procurei não passar por perto.

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— Mas, avô, isso foi em África?— Não, não foi em África que me desafiaram...— E lá, o que fazias? Eu sei que acordavas os teus companheiros

com o teu clarim!— É verdade. Houve um tempo em que anunciava as boas e as más

novas. Com o meu clarim tocava, nas horas certas, as notas combi-nadas. Quando tocava, não me ouvia. O que eu gostava mesmo era de escutar os ecos. Em África, os ecos são imensos. Vão pela terra fora e voltam como vozes regressadas do céu. Vozes que se levantam, coisas que se dizem, sons que se produzem. Tudo tem retorno. Fica para sempre na nossa memória. Nunca te portes mal, quando fores para África. Não poderás livrar-te da lembrança. O problema é que os ecos chegam sempre a Portugal.

Nessa noite, a nossa conversa prolongou-se até de madrugada, quando a luz ténue do dia nos fez chegar um eco longínquo e leve, em acordes próprios das auroras!

O meu avô, como esforçado soldado do seu regimento, não an-dara em reuniões, a conspirar contra o poder, tenho a certeza disso. Nós, para acalmar os ecos, insistíamos que só estávamos à procura do prestígio das Forças Armadas. Era nosso dever de militares exigir respeito. E se o poder não tivesse capacidade de resposta, não podia ser poder.

Dessa primeira reunião saiu mais um papel, já que não conseguí-amos decidir outro caminho a tomar. Dizia assim:

Dos Oficiais do QP da RMM [Região Militar de Moçambi-que] aos camaradas do QP do CT1G [Comando Territorial Independente da Guiné]

Os oficiais do QP da RMM reagiram já aos decretos-leis 353/73 e 409/73, através duma exposição colectiva dirigida a Sua Exa. o Senhor Presidente do Conselho, da qual se junta uma cópia.

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Estamos conscientes de que as atitudes tomadas pelos Ofi-ciais do QP nas diversas parcelas de Portugal serão sempre concordantes, já que exprimem uma maneira de sentir que é ge-ral e não pode ser atribuída a um ou a outro, individualmente.

A carta dirigida às mais altas individualidades da Nação pe-los Capitães do QP, em serviço na Província da Guiné, datada de 28 de Agosto de 1973, não é então mais do que um docu-mento que expressa o sentir comum de todos os Oficiais do QP, pelo que tem todo o nosso inteiro apoio e concordância.

Sobre a Nota-Circular 490/S, dela não foi ainda dado co-nhecimento aos Oficiais da RMM Tomando, no entanto, co-nhecimento particular do seu conteúdo, está a ser objecto de estudo com vista à tomada de uma posição definida, de que daremos oportunamente conhecimento.

PASSO 5

As reuniões continuaram em Nampula. As opiniões eram múltiplas, em relação ao rumo a seguir. Procurávamos saber o que se fazia em Portugal e não tomar iniciativas que contrariassem as orientações definidas. Sempre que alguém chegava de novo, aprazava-se um se-rão.

À medida que os dias corriam, ia-se definindo uma metodologia. Havia os mais dinâmicos, que congregavam os restantes, arranjavam lugares de reunião, começavam a preocupar-se com a organização do movimento. Era necessário informar os camaradas que se espa-

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lhavam pelo território de Moçambique, normalmente isolados nos locais distantes das sedes das unidades.

Uma carta datada de 28 de Setembro, julgo que foi uma das pri-meiras que escrevemos para eles, rezava assim:

28Set73Caro Camarada

Junto envio fotocópias dos Dec.-Leis n.°5 353/73, 409/73 e da Nota-Circular 490/73 para, se ainda não lhes tiverem acesso, tomarem conhecimento do que o Governo da Nação decidiu fazer, para revigorar o Quadro Permanente do Exército.

É escusado tecer considerações acerca do assunto, até por-que aí já devem ter pensado e repensado sobre o problema.

Junto se enviam também documentos que dão notícia da posição assumida pelos Camaradas da Guiné. Na Metrópole e em Angola todos os Capitães e alguns Oficiais Superiores tomaram posição actuante, colectiva e individualmente irrever-sível.

Trata-se de darmos também o nosso apoio em bloco.Também se junta uma exposição e uma declaração de apoio

aos Camaradas da Guiné. Interessa que aí se consiga o maior número de assinaturas (que devem ser apostas em papel selado para a exposição e em papel azul de 25 linhas para a declara-ção) para, juntamente com as que aqui se obtiverem (já enviá-mos, para não perder tempo, uma série delas para se juntarem às de Angola e vamos já enviar a primeira série delas para a Guiné) e as que nos forem enviadas de outros Sectores, se «en-grossar» a nossa participação.

Estamos a receber mais documentação de Angola, Guiné e Metrópole para que a acção seja coordenada e global.

Convém que aí formem uma comissão, não só para reunir as assinaturas e enviá-las, mas também para estudar todos os assuntos que, de interesse colectivo, se forem apresentando, da-

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rem a vossa colaboração e manterem-se em contacto connosco.Vamos fazer um estudo analítico e crítico da Circular 490 de

que lhes daremos conta.Fundamentalmente é preciso:Agir em blocoAgir em íntima coordenaçãoAgir depressa mas sem precipitações.Em Angola, Guiné e Metrópole está-se a trabalhar modelar-

mente e nós estamos um pouco atrasados...É preciso que os camaradas das outras RM sintam concreta-

mente o nosso apoio da mesma forma que nós sentimos o deles.Agradecemos que para já nos enviem o maior número de as-

sinaturas (se possível também de Oficiais Superiores, Admi-nistração Militar e Engenharia).

Está em jogo, uma vez mais, o prestígio do Exército, e pela primeira vez tomamos consciência colectiva de nós mesmos. É a coisa mais importante que aconteceu no Exército.

Os nossos melhores cumprimentos

— Pois é, meu avô. Os dados estão lançados. Estamos a transfor-mar uma simples questão militar no pretexto para uma grande so-lução. Tu saberás compreender que temos razão. É certo que não temos uma ideia muito exacta do que pretendemos, mas é justificado o nosso descontentamento. Perguntas se pensamos em acabar com o Império? Bem, para isso não temos resposta. O nosso mundo já não aceita essas ideias, o nosso povo não pode pronunciar-se, nós sentimo-nos sem apoio. O que é que quer o nosso Governo? Conti-nuar esta guerra sem fim? Virão para a guerra os nossos filhos? E os filhos dos nossos filhos? E acabamos isto quando? Bem, o que nós queremos nesta altura é juntar as pessoas, fazer com que assinem declarações que as comprometam numa acção memorável.

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O nosso Governo que se cuide...

PASSO 6

Passei a trabalhar no meu posto, na CHERET. Como criptólogo, deveria «entrar» (a palavra era esta, «entrar») nos códigos utilizados pela Frelimo nas suas mensagens cifradas. Era um sistema simples, que tínhamos estudado no curso da Trafaria. A base era constituída por um quadrado com 26 entradas à esquerda e 26 entradas em cima, com um total de 676 (26x26) hipóteses de codificação. Nos cruza-mentos constituía-se um bigrama, correspondente ao seu respectivo conteúdo, que poderia ser uma letra, uma palavra mais comum, uma expressão, etc. A cifra era, portanto, uma simples substituição dos elementos da mensagem em claro por correspondentes códigos reti-rados do quadro. Se bem utilizado não seria simples de descriptar. Mas os operadores, como quase sempre, tinham tendência para usar sempre as mesmas correspondências, o que fazia com que, depois de algum treino, pudéssemos ler as mensagens directamente, quase sem necessidade de as decifrar. Era um exercício estimulante.

Só em Janeiro de 1974, a Frelimo mudou de quadro, mantendo o mesmo sistema. Aí foi mais difícil, mas a continuação do mau uso acabou por ajudar à sua reconstituição. E como o nosso sistema de escutas rádio apanhava todas as mensagens da Frelimo, a certa altu-ra, eu conhecia todos os seus principais elementos e tinha deles uma ideia muito concreta, incluindo o que se relacionava com a sua vida privada, que não poucas vezes era tratada por mensagem.

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Trabalhava com o Melo de Carvalho e o Fernando Amaral, ele-mentos muito activos do Movimento dos Capitães.

A CHERET constituía um ponto de apoio do movimento. Muitos documentos foram aí reproduzidos e distribuídos. Como tínhamos uma rede exclusiva de mensagens, a que chamávamos «de serviço», podíamos enviar para todo o território e para os nossos contactos as mensagens necessárias. Passávamos ao lado das hierarquias.

Chegou assim a altura de assinarmos o pedido de demissão de oficial do Exército e a declaração comum, seguindo aquilo que já se fazia nos outros territórios e em Portugal.

Começava assim a declaração:

Os signatários abaixo indicados, na firme disposição de garan-tir o prestígio de uma classe que tem dado provas insofismáveis de valor e abnegação patriótica no cumprimento da sua mis-são, nomeadamente na última década, e considerando como imperativo pessoal de HONRA, os sacrifícios resultantes da consecução daquele objectivo, efectuaram individualmente um documento solicitando a sua demissão de OFICIAL DO EXÉRCITO, cujo texto se transcreve e que depositaram sob custódia de pessoa idónea, e a quem, uma vez verificadas as condições abaixo expressas, conferem o direito de, em sua re-presentação, os entregarem à Autoridade Militar...

Uma parte dos pedidos de demissão guardei-os eu, como «pessoa idónea» e membro da comissão que já se desenhava. Ainda hoje os tenho, bem sei que contrariando as directivas posteriores, mas estou contente por eles permanecerem como prova de um acto de afirma-ção. Estão agora no Arquivo Histórico Militar.

— Como vês, meu avô Artur, isto agora tornou-se irreversível — já pedimos a demissão. Bem sei que a tua recomendação não ia neste sentido, mas há alturas em que a paciência se esgota. Queres saber o que eles pensavam? Vou-te transcrever um despacho do ministro da

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Defesa e do Exército, portanto o nosso chefe maior. Ora lê, ou escu-ta, ou passa simplesmente os olhos pela folha, pois eu sei que isso te basta para perceberes o que eles tinham na cabeça:

Havendo conhecimento de que uma carta-circular anónima, contendo reivindicações sobre a matéria legislada pelos De-cretos-Leis 353/73 e 409/73 está a ser difundida entre Capi-tães e Subalternos chamo a atenção de V. Exa. para que, com vista a evitar que alguns Oficiais do seu Comando se possam deixar influenciar pela referida carta-circular, podendo mesmo inadvertidamente virem a colocar-se sob a alçada do RDM; esclareça os mesmos dos propósitos das medidas legais pro-mulgadas.

Assim, e como aliás já publicamente S. Exa. o Ministro do Exército teve ocasião de explicar aquelas medidas destinam-se a:

1. Aumentar rapidamente o QP, muito e perigosamente des-falcado;

2. Para o efeito, habilitar os Oficiais Milicianos, com provas prestadas no Ultramar e com experiência reconhecida, a in-gressar no QP mediante um curso rápido e intensivo que, não sendo novidade no nosso Exército, habilite esses oficiais de for-ma apropriada para as funções da sua carreira futura;

3. Aproveitar para o QP cerca de 200 Oficiais que, ingressa-dos nele já com bastante idade, estão em risco de passar à re-serva em Capitães, e nem têm já condições físicas para exercer as funções desse posto;

4. Permitir que, pelo aumento dos efectivos do QP, possam folgar mais todos os Oficiais entre duas comissões no Ultra-mar;

5. Não prejudicar o regular movimento das promoções.

— E era isto que eles pensavam fazer...— Mas olha que eles tinham razão — dizia isto com tranquili-