antropologia visual e modos

12
 O MODELO ETNOGRÁFICO: ANTROPOLOGIA VISUAL E MODOS CONTEMPORÂNEOS DE SUBJETIVAÇÃO - O EXEMPLO DE EDUARDO COUTINHO - 1  Marcos Aurélio da Silva Doutorando PPGAS/Universidade Federal de Santa Catarina RESUMO: O trabalho pretende uma discussão sobre a emergência de uma linguagem etnográfica que transborda os limites da antropologia e pode ser identificada tanto em produções cinematográ- ficas de ficção quanto em documentários. Se, como afirma Jean Claude Bernardet, existe um modelo sociológico que permeia a produção de documentários no Brasil, a partir dos anos 60, tendo em Viramundo (1965) de Geraldo Sarno seu maior exemplo, podemos num exercício teórico projetar a existência de um modelo etnográfico que, utilizado paralelamente, marcou produções mais preocupadas em problematizar questões, através de um jogo de reflexividade entre filmadores e filmados, o que pode ser encontrado em filmes como os de Eduardo Couti- nho e do canadense Pierre Perrault – cineastas, não-antropólogos que, no entanto são celebra- dos nas filmografias de antropologia visual –, e não explicá-las através de textos coerentes com depoimentos ilustrativos – característica do modelo sociológico que o fez consagrado pelo telejornalismo brasileiro. O modelo etnográfico, por sua vez, não desfrutou de tanto pres- tígio nas produções televisivas e cinematográficas, mas se coaduna com modos contemporâ- neos de subjetivação, ao propiciar sujeitos que se constituem performativamente em frente à câmera e não num ideário tipificador sociológico. PALAVRAS-CHAVE: Modelo Etnográfico; Processos de Subjetivação; Eduardo Coutinho. 1  Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho de 2008, Porto Seguro, Bahia, Brasil. GT 11 - Imagens e Sociedades: balanço crítico das possibilidades analítico- interpretativas na antropologia visual.

Upload: smaccioly

Post on 06-Oct-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Texto

TRANSCRIPT

  • O MODELO ETNOGRFICO: ANTROPOLOGIA VISUAL E MODOS CONTEMPORNEOS DE SUBJETIVAO

    - O EXEMPLO DE EDUARDO COUTINHO -1

    Marcos Aurlio da Silva Doutorando PPGAS/Universidade Federal de Santa Catarina

    RESUMO:

    O trabalho pretende uma discusso sobre a emergncia de uma linguagem etnogrfica que transborda os limites da antropologia e pode ser identificada tanto em produes cinematogr-ficas de fico quanto em documentrios. Se, como afirma Jean Claude Bernardet, existe um modelo sociolgico que permeia a produo de documentrios no Brasil, a partir dos anos 60, tendo em Viramundo (1965) de Geraldo Sarno seu maior exemplo, podemos num exerccio terico projetar a existncia de um modelo etnogrfico que, utilizado paralelamente, marcou produes mais preocupadas em problematizar questes, atravs de um jogo de reflexividade entre filmadores e filmados, o que pode ser encontrado em filmes como os de Eduardo Couti-nho e do canadense Pierre Perrault cineastas, no-antroplogos que, no entanto so celebra-dos nas filmografias de antropologia visual , e no explic-las atravs de textos coerentes com depoimentos ilustrativos caracterstica do modelo sociolgico que o fez consagrado pelo telejornalismo brasileiro. O modelo etnogrfico, por sua vez, no desfrutou de tanto pres-tgio nas produes televisivas e cinematogrficas, mas se coaduna com modos contempor-neos de subjetivao, ao propiciar sujeitos que se constituem performativamente em frente cmera e no num iderio tipificador sociolgico.

    PALAVRAS-CHAVE: Modelo Etnogrfico; Processos de Subjetivao; Eduardo Coutinho.

    1 Trabalho apresentado na 26. Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho de

    2008, Porto Seguro, Bahia, Brasil. GT 11 - Imagens e Sociedades: balano crtico das possibilidades analtico-interpretativas na antropologia visual.

  • 1

    INTRODUO

    A antropologia visual contempornea por vezes tem ressaltado em suas filmografias a importncia de produes no necessariamente antropolgicas mas que se encaixariam nas premissas do que considerado o filme etnogrfico. Eduardo Coutinho um desses cineastas que se especializaram na produo de documentrios que tm sido festejados como possuido-res de uma linguagem etnogrfica, apesar de no possuir formao acadmica antropolgica. O objetivo do presente trabalho pensar em algumas das obras de Coutinho sob a tica da antropologia visual, levantando a partir delas os fundamentos de uma antropologia flmica ou audiovisual, assim como pensar num possvel modelo etnogrfico que estaria alm dos limites da antropologia. Linguagem que vem se oferecer como uma alternativa nas obras cinematogrficas con-temporneas e que muitos tericos e crticos j classificaram como o cinema da palavra, no modelo etnogrfico o que se privilegia na tela so as narrativas de personagens que no so meros entrevistados. Trata-se de um tipo de cinema que busca enfatizar no o contedo das falas que possam revelar verdades sobre o assunto tratado, mas as condies prprias de elaborao desses textos, como so articulados no sentido de constiturem os sujeitos que fa-lam. Aposta-se assim numa narratividade que marca a forma como esses sujeitos se relacio-nam com o mundo. So filmes que possuem diferenas em relao a outros documentrios contempor-neos, opondo-se ao chamado modelo sociolgico, teoria formulada por Jean Claude Bernardet (2003), na anlise de filmes documentrios produzidos no Brasil entre os anos 60 e 70. Se neste modelo sociolgico temos a construo de uma narrativa hermtica que busca confirmar uma tese a partir da apresentao de fatos e imagens casadas com entrevistas2, os filmes de Coutinho se marcam por uma busca incessante por narrativas nunca prontas, mas que so construdas no decorrer da histria. Alm do cineasta no se utilizar freqentemente do recur-so da voz off, as entrevistas no so feitas no sentido de confirmar alguma teoria prvia ou de conformar os entrevistados dentro de esteretipos pr-estabelecidos. So antes narrativas ml-tiplas que apontam o tema para diferentes direes e apostam numa certa perturbao e no na coerncia.

    Como arteso da imagem real, Coutinho parece se utilizar de um material no fic-cional o que no significa menos produzido ou maquiado e, sim, no escrito previamen-

    2 O modelo sociolgico consiste, basicamente, na voz off de um locutor que narra - por cima das imagens - as

    idias centrais da produo, intercalada por depoimentos de pessoas que do crdito a ela, tal qual podemos observar no telejornalismo dirio. Os entrevistados so a voz da experincia, nunca generalizam, nunca tiram concluses. A voz off possui um dono que no se identifica. homognea e regular, segue a norma culta. uma voz neutra que nunca fala de si (BERNARDET, 2003:15).

  • 2

    te por um roteirista e no interpretado por um ator para construir uma narrativa algo com-partilhada entre filmador e filmado. Se a possibilidade de realizar sua prpria montagem com o material gravado oferece certos poderes ao cineasta na conduo da histria, a prpria forma como o cineasta realiza suas filmagens oferecendo aos personagens/entrevistados a possibi-lidade de se constiturem em tela impede uma finalizao do material totalmente alheia s condies de captao das imagens, da realizao das entrevistas, ou seja, da prpria partici-pao deste outro. Este ensaio filmogrfico no se focar em obras especficas de Eduardo Coutinho, mas em aspectos de sua obra presentes em um conjunto vasto de filmes, dos quais citarei e descre-verei cenas e seqncias. Acredito que as obras de e outras do modelo etnogrfico so exem-plos da possibilidade de realizarmos, no campo da antropologia flmica, estudos e pesquisas atravs de imagem e som que, neste caso, no so meros registros, nem confirmao de um estive l, nem a verso audiovisual de uma etnografia escrita. Trata-se de, antes, pensar num encontro etnogrfico: de um lado, um sujeito que, sim, registra o campo em que est se inserindo, mas sabe que essa filmagem no gratuita, muito menos essa insero, que utilizar essas condies no processo de montagem pensada nestes casos no mais como representao fiel do que aconteceu, mas fruto de uma linguagem audiovisual; de outro, um sujeito (no mais objeto), que no mero entrevistado, mas um personagem que constri seu prprio texto, baseado numa histria vivida e reconstruda de acordo com experincias subjetivas e com todo conhecimento prvio de uma cultura audiovi-sual.

    Por conta disso, utilizarei neste trabalho as expresses performance3 e performativida-de, com as quais acredito dar conta desses processos cinematogrficos, principalmente a mise en scne e a montagem. Nesse, sentido, tanto o cineasta quanto os indivduos e coletivos fil-mados esto a elaborar performances, cujo sentido no est apenas em palavras e imagens reais, mas em palavras, sons e visibilidades que surgem desse encontro etnogrfico. Pen-sar em termos de performance privilegiar o contedo relacional das vivncias humanas, estas sim produtoras de sentido, e menos os contedos apriorsticos que explicam uma cultu-ra e justificam os comportamentos humanos, antes de nos mostrar como so constitudos em processos relacionais cotidianos.

    3 Na antropologia, dois conceitos de performance foram desenvolvidos. Um desses conceitos considera a vida

    social como dramatrgica ou como drama social e se desenvolveu no campo da antropologia simblica - Geertz, Turner e outros -, em estudos onde se vislumbra a relao entre rito, sociedade e transformao (LANGDON, 1996:24). O outro surge na etnografia da fala, do entrecruzamento da lingstica, da antropologia e da crtica literria (BAUMAN, 1977:3), em que a performance pensada em termos de um modo de falar (i-dem:3). Nos dois casos, a performance entendida como algo que est sendo dito a respeito de algo, em que preocupaes esto sendo dramatizadas (GEERTZ, 1989:316). Pensa-se, assim, a ao social como um comen-trio dos atores sobre a realidade, uma interpretao que o antroplogo busca interpretar (idem:316)

  • 3

    1. A CONSTITUIO DOS SUJEITOS EM TELA E O LUGAR COMO PERSONAGEM

    As obras de Eduardo Coutinho, a partir do ano de 1984, marcam a trajetria de um cineasta que, em mais de duas dcadas de produes tem se revelado capaz de se transformar e experimentar novos mtodos, sem deixar de produzir obras primas que destoam sobremanei-ra dos documentrios produzidos no mesmo perodo. Poderia comear atravs da anlise de grandes clssicos do cineasta, como Cabra Marcado para Morrer (1964-1984) e Boca de Lixo (1993), dois dos filmes mais comentados de Coutinho e que marcaram profundamente seu estilo. No entanto, gostaria de pensar sobre vrios de seus filmes, recentes e antigos, que mesmo apresentando algumas mudanas de estilo nessas produes, elas mantm certo mo-delo etnogrfico. Dos ltimos filmes de Coutinho, quatro deles apontam para um amadurecimento de seu estilo que se marca por uma possvel nfase no LUGAR. Assim, Santo Forte (1999), Babi-lnia 2000 (2000), Edifcio Mster (2002) e O Fim e o Princpio (2005) parecem concretizar as principais premissas da filmografia que Coutinho vem construindo desde 1987, com Santa Marta, Duas semanas no Morro. Por sua vez, Pees (2004) e Jogo de Cena (2007) apontam para estratgias j apontadas em Cabra Marcado... aprofundando o universo interior dos per-sonagens, em detrimento da nfase territorial. Santa Marta4 tem uma importncia estratgica na trajetria de Coutinho, pois as ad-versidades da projeto5 abriram um campo de possibilidades para seu cinema, tanto nas tcni-cas de filmagem, quanto na montagem:

    Filmar em um espao restrito em apenas uma favela e em curto espao de tempo foram dois procedimentos criados para realizar Santa Marta. Eles vieram a servir de base para a maior parte dos filmes que Coutinho iria fazer em seguida. Naquele momento, no eram claras as potencialidades desse mtodo; era possvel de ser feito em funo das condies do projeto, misturado a uma intuio de que poderia dar certo. (LINS, 2004:61)

    Em O Fim e o Princpio, ele parece retomar um dos procedimentos inaugurados em Santa Marta que permitir que esse jogo inicial da busca de personagens, que pode ou no levar a uma entrevista mais aprofundada, faa tambm parte da mise en scne. Em Santa Mar-ta, os moradores procuram Coutinho por conta de um anncio colocado na favela para que pessoas interessadas em prestar depoimentos sobre violncia procurem a equipe. Muitos, po-

    4 Uma quase anedota exemplar para a discusso desse artigo. A TV Globo rejeitou a exibio de Santa Marta

    por consider-lo muito antropolgico, quando se buscavam trabalhos mais jornalsticos com a crescente violn-cia nos morros cariocas, em meados dos anos 80 (LINS, 2004:73). 5 O filme produzido pelo Instituto Superior de Estudos da Religio (ISER), com recursos do Ministrio da Justi-

    a em um concurso para produo de vdeos sobre a violncia nas favelas do Rio de Janeiro. O dinheiro era pouco e a produo precisava ser realizada rapidamente (LINS, 2004:58).

  • 4

    rm, parecem no ter noo do que se trata e chegam para pedir ajuda financeira ou no pos-suem os relatos solicitados e acabam dando depoimentos sobre casamento, filhos, racismo, entre outros. Da mesma forma, o filme do interior da Paraba conta com situaes adversas como personagens que se recusam a falar, em que a prpria situao de recusa passa a ser um mote para uma conversa. Nega-se uma entrevista, mas no uma boa conversa. O filme, que uma das obras mais difceis de Coutinho, em termos de realizao6, ilustra uma preocupao em mostrar mais as capacidades das pessoas em se transformarem em personagens, do que o prprio contedo de suas falas. Se nos outros filmes era possvel ter no lixo ou na vivncia no prdio ou favela motes mais quentes para uma conversa prolixa, neste as histrias parecem mais difceis de comearem a se desenrolar. Os moradores da co-munidade dos Aras, municpio de So Joo do Rio do Peixe, serto da Paraba, apresentam-se mais silenciosos em relao ao espao rido que os une e s prprias relaes de parentesco longnquo. As conversas parecem um trabalho artesanal de buscar em cada entrevistado uma experincia que no ilustrativa de nenhuma teoria cientfica, mas de uma sabedoria constru-da por este personagem na sua relao com aquele ambiente sertanejo. O que d o tom da pelcula a protagonista, Rosa, uma agente da Pastoral da Criana que quem leva Coutinho e a equipe nas casas do povoado. A prpria visita de Rosa a essas pessoas parece ser o objeto do filme em muitos momentos, quando ela chega e explica de que se trata a filmagem. Essa pr-produo, que em O Fim e o Princpio feita em frente s c-meras, foi realizada numa etapa anterior s filmagens em ttulos como Santo Forte (1999) e Edifcio Master (2002), em que se privilegiava o momento de sua chegada nos lares das pes-soas, mas estas j sabiam previamente que seriam entrevistadas e se preparam para receber Coutinho.

    Santo Forte, Babilnia 2000, Edifcio Master e O Fim e o Princpio marcam a maturi-dade deste estilo de Coutinho, diferenciando-se de Pees por possurem todos o ambiente como personagem. A favela nos dois primeiros , um edifcio no terceiro e uma comunidade neste ltimo podem nos fazer pensar que so filmes sobre esses lugares. Acredito que os luga-res, ali, no so temas, mas personagens. A tcnica que surge das restries econmicas de Santa Marta tambm uma forma de no escorregar no pitoresco como afirma Lins em relao a Edifcio Master:

    Como possvel colocar lado a lado camel, costureira, prostituta, tcnico de futebol, es-tudante, msico, funcionria pblica, empregada domstica, professora de ingls, ator a-posentado, poetisa e despachante sem resvalar para o pitoresco? Como fazer coexistir vivos solteiros e casados, de diferentes origens, idades, opes sexuais e isso fazer sen-tido em um filme? O fato de todos os personagens morarem em um nico prdio um e-

    6 Neste filme, o fio condutor da histria a prpria busca de Coutinho por um lugar, no interior do Nordeste, em

    que ele pudesse recolher histrias da experincia da vida no serto. Desarmado, sem pesquisa prvia, circula por vrias comunidades de So Joo do Rio do Peixe, Paraba, procura de relatos pessoais.

  • 5

    lemento absolutamente crucial para evitar o folclrico, a simples diverso, a caricatura. Limita as escolhas do diretor, que se atm a uma espcie de pr-montagem j oferecida pelo lugar onde escolheu filmar, e no vai procurar no prdio ao lado personagens mais carismticos ou com um perfil mais tpico. (LINS, 2004:155)

    Em outros trabalhos, porm, e a devemos incluir sua obra prima, Cabra Marcado para Morrer (1964-1984), possvel observar uma amplido nos espaos filmados e uma menor nfase num nico lugar. o que se percebe em Pees (2004) e Jogo de Cena (2007) que deixaram de ter o lugar como personagem da histria caso das favelas em Santa Marta e Santo Forte, o prdio em Edifcio Mster, o lixo em Boca de Lixo (1992), o serto em O Fim e o Princpio (2005). Pees e Jogo de Cena apontaram mais para certas nuances de sua trajetria por apresentarem uma maior nfase em certos tipos de pessoas: operrio e mulher. O procedimento que poderia levar, no entanto, a uma reificao de identidades acaba por no permiti-la pela prpria mise en scne caracterstica dos filmes de Coutinho em que ele talvez por no se utilizar de perguntas pr-estabelecidas para aquele tipo de persona-gem/tema faz das entrevistas dilogos em que as perguntas parecem surgir do prprio conta-to (lembrando mais as nossas relaes cotidianas que o interrogatrio jornalstico). As pergun-tas que faz, aparentemente ingnuas, so na verdade incentivos para que se traga tona um mundo interior do entrevistado, uma experincia de vida, uma sabedoria que, de forma algu-ma, colocada como hierarquicamente inferior do cineasta. Pees (2004) outra obra de Coutinho que no desfruta de um mesmo cenrio como fio condutor da histria. Um trabalho primoroso que vai atrs de resgatar operrios que parti-ciparam das greves no ABC Paulista quando Lus Incio Lula da Silva, agora presidente, tornou-se nacionalmente conhecido por liderar o movimento , Pees mantm, no entanto, seu estilo de entrevistas informais em que Coutinho no se presta a retirar informaes que vo completar um quadro geral de idias sobre o tema. Ao questionar cada entrevistado sobre a participao no movimento e como sentiam a chegada de Lula ao poder, em 2002, depois de quatro eleies, ele mantm esta relao entre operrios como fio condutor, mas permite que as entrevistas sejam sobre as vidas pessoais dessas pessoas que, assim, se tornam persona-gens.

    Nesse sentido, Jogo de Cena talvez seja a sua obra mais desterritorializada, pois se a categoria operrio permite alguma linha mestra em Pees, no isso que garante a continui-

    dade em seu ltimo trabalho. Por mais que as experincias paream sublinhadas pela catego-ria mulher, girando em torno de questes da maternidade, o foco do cineasta o jogo do real e do verdadeiro, do prprio documentrio versus fico. A pelcula que conta com entrevistas de mulheres annimas, atrizes desconhecidas e trs atrizes famosas da dramaturgia brasileira que interpretam depoimentos de outras mulheres annimas transforma-se numa espcie de

  • 6

    estudo sobre a prpria mise en scne que acompanhou Coutinho em tantas obras. Ao convidar seu pblico a pensar sobre o que real e verdadeiro nessa histria, ele expe a natureza de suas entrevistas, que a essncia desse material no est naquilo que dito, mas como este dito est implicado numa constituio de pessoa, a auto mise en scne de que nos fala Claudine de France (1998:405) ou mesmo a performance da teoria antropolgica. Para France, a auto-mise en scne so as diversas maneiras em que as pessoas filma-das mostram de maneira mais ou menos ostensiva, ou dissimulam a outrem, seus atos e as coisas que a envolvem, ao longo das atividades corporais, materiais e rituais (1998:405), considerando a presena de um cineasta, o que faz recordar o prprio conceito de performan-ce como uma insero social, minimamente pblica, em que aqueles que falam e se movimen-tam esto a elaborar seus prprios enunciados e construindo uma realidade sua volta (BAU-MAN, 1977).

    2. UM MODELO ETNOGRFICO PARA ALM DA ANTROPOLOGIA VISUAL

    Se Jogo de Cena nos faz repensar aspectos cruciais da obra de Coutinho, da mesma forma nos faz pensar nesta velha dicotomia entre real e fico que acompanha a histria do cinema e me faz acreditar que esse dualismo entre filme e documentrio no se mostra eficaz sob certas circunstncias como as apresentadas pelo cinema etnogrfico. Dentro do que se pode chamar de filme para fins de estudos antropolgicos (no o mero registro), ser fico ou realidade s uma questo de estilo, pois ambos compartilham de uma mesma mise en scne que o que interessa antropologia flmica. Tanto em um como no outro, estamos diante de performances, seja do ator/entrevistado e sua mise en scne, seja do cineasta e seus enqua-dramentos, seqncias e montagem. No toa, ento que as obras de Coutinho so lugar-comum nas listas de filmes et-nogrficos. Remetem prpria histria do cinema, em que antropologia e filme, pareciam habitar lugares mais prximos. Marc-Henri Piault (1994:62) fala da contemporaneidade do cinema e da antropologia, constitudos no fim do sculo XIX como instrumento ou disciplina de observao. Estabeleceu-se entre os dois uma colaborao, destacando-se a filmagem feita pelo mdico Flix-Louis Regnault, nos primeiros anos do cinematgrafo, de uma mulher afri-cana fabricando potes numa feira em Paris, dando incio a um projeto de arquivo de filmes etnogrficos. Piault, no entanto, considera que:

    se o cinema desenvolveu rapidamente suas tcnicas, ampliou o campo de sua investigao e de suas aplicaes, sua utilizao e reconhecimento pelos antroplogos no seguiu a mesma evoluo: estes o consideraram, durante muito tempo, um tipo de registro secund-rio, seno perigoso e, freqentemente, frvolo. O cinema, ao contrrio, se apropriou muito mais rapidamente dos domnios reservados

  • 7

    antropologia, no hesitando em circular suas cmeras nos mundos exticos, oferecendo imagens atraentes para as fantasias do Ocidente. Para alm do contedo prprio fico , aos documentrios e aos filmes de viagem e explorao, suas tcnicas foram enriquecidas pelas exigncias e as condies de filmagem caractersticas da atitude antropolgica. (PI-AULT, 1994:62-3)

    Dziga Vertov e Robert Flaherty so dois cineastas que, apesar de no serem antrop-logos so considerados mestres no campo da antropologia visual. As produes realizadas por eles, nos anos de 1920 e 1930, tornaram-se referncia para os antroplogos contemporneos e ofuscam os filmes feitos na mesma poca por antroplogos geralmente por encomenda de museus com finalidades didticas (PIAULT, 1994:65). Nesse bojo, Andr Leroi-Gorhan foi um dos principais formuladores do conceito de filme etnogrfico, em 1948, j naquela poca a-brangendo produes no cientficas/antropolgicas: filmes que descreviam sociedades dife-rentes daquela de seus autores. Desde ento, a idia de um cinema de cincia cultural, pas-sou a ser de alguma forma aceita, embora com certo receio e mesmo curiosidade pela disci-plina antropolgica (MACDOUGALL, 1994:71). Mas se a antropologia teve uma virada, a partir dos anos 50 e 60, quando tornou-se voltada para o prprio mundo dos antroplogos constituindo as antropologias rural e urbana no podemos desconsiderar esta mesma atitude antropolgica nos filmes etnogrficos. da que vai brotar a cinematografia de Coutinho, inspirado na antropologia flmica de Jean Rouch, mas tambm de obras seminais como as do canadense Pierre Perrault. claro que, neste sen-tido, no podemos deixar de perceber a exotizao do que prximo e tambm ocidental, sejam os moradores de uma favela ou um edifcio do Rio de Janeiro ou os pescadores do inte-rior do Canad. Claudine de France ([1982]1998) toma a obra de Perrault, Pour la suite du monde (1966) como um exemplo de um momento da histria do filme etnogrfico em que foi poss-vel, atravs dos novos aparelhos portteis, com registro sincronizado de imagem e som, a ex-presso verbal de emoes, sentimentos, crenas e opinies, at ento ausentes da imagem (FRANCE, 1998:11). A autora est se referindo a um tipo de filme etnogrfico que valorizava extremamente as atividades tcnicas, mais acessveis ao processo cinematogrfico: nas ativi-dades tcnicas do cotidiano, articulam-se as visibilidades de uma cultura e a prpria sociabili-dade humana. Exemplos desse tecnologismo esto nas obras dos mestres do filme etnogr-fico, Dziga Vertov e Robert Flaherty. Perrault, no entanto, parece se beneficiar das novas tecnologias e acaba por constituir um novo cinema que, de certa forma, acompanha mudanas semelhantes no prprio campo da antropologia. As pessoas filmadas passam de objetos a sujeitos, pois a mise en scne sai das tcnicas mudas que so acompanhadas apenas por um texto explicativo das atividades, geral-mente escrito pelo antroplogo caso de Nanook of the North, de Flaherty, e O homem com a

  • 8

    cmera, de Vertov , e passa a abranger a fala, a expresso corporal-sonora (gestos que a-companham a fala e vice-versa) e um universo aparentemente interior do indivduo mas que construdo numa relao ativa com a cmera. Nesse ponto, os filmes de Perrault e Coutinho parecem pertencer a uma mesma escola. Suas obras parecem utilizar como pretexto determinados temas centrais para na verdade reali-zarem verdadeiros experimentos etno-cinematogrficos que vo privilegiar o gesto, o imedia-tamente visvel mas oferecendo a chance de processos performativos se desenrolarem em frente cmera, indicando a uma dimenso interior da experincia vivida. Talvez por conta disso, quando Claudine de France (2000:17) fala em filme etnogrfico, ela est consideran-do no apenas produes de antroplogos com fins cientficos, mas tambm as destinadas a um pblico indeterminado, porm sem finalidades cientficas, ou seja, filmes que no podem ser considerados etnografias flmicas, mas que representam certa insero da antropologia na histria do cinema.

    (...) essas produes diversificadas evoluem numa zona movedia e ambgua que vai da cincia arte, do esboo obra acabada, do documentrio fico. No entanto todas elas tm em comum o fato de tomarem como ponto de partida a observao do real, mesmo que, s vezes, essa observao seja algo provocada e que a maneira como o real apresen-tado possa, de vez em quando, buscar inspirao em alguns procedimentos prprios ao filme de fico. (FRANCE, 2000:17)

    A antropologia flmica, termo que Claudine de France utiliza em preferncia antro-pologia visual, vai se delineando por conta desse vasto campo de produes, encontrando co-mo objeto o homem tal como ele apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das maneiras como coloca em cena suas aes, seus pensamentos e seu meio ambiente (FRANCE, 2000:17). Significa dizer que o foco central de uma antropologia flmica no apenas o hu-mano imerso em sua cultura tpico da etnografia tradicional mas a imagem do humano, pensada a partir das leis e opes de mise en scne (idem:18).

    CONCLUSO

    MacDougall em seus artigos sobre a existncia ou no de uma antropologia visual se contrape falsa idia de que os filmes etnogrficos so formas de vermos, ouvirmos as pes-soas para entend-las. Para ele, este ponto de vista incapaz de ler um filme como se l um texto elaborado, e talvez incapaz mesmo de ver que a caracterstica de um filme pode residir na sua capacidade de analisar os aspectos culturais ignorados pela literatura especializada (MACDOUGALL, 1994:71). No se trataria, portanto, de uma antropologia que apenas coloca-ria em udio e vdeo o contedo que poderia estar numa etnografia escrita:

    Apesar de, no passado, a antropologia visual ter se adequado aos interesses da antropolo-gia escrita (e aos seus tpicos), o mais provvel que a antropologia visual progressiva-

  • 9

    mente se volte para o estudo de outros aspectos da realidade social, incluindo os tpicos previamente ignorados. Fora o fato de que alguns fenmenos sociais so mais bem estu-dados por meio do audiovisual (por exemplo, como determinadas poses denotam emo-es), os mesmos dificilmente podem ser abordados de alguma outra forma. Assim, a an-tropologia visual est emergindo como um tipo diferente de antropologia e no como uma substituta da antropologia escrita. (MACDOUGALL, 2005:24).

    Ele segue a receita do terico de cinema Bela Balzs que, em 1923, j defendia a possibilida-de do visual em transmitir conceitos no transmitidos em palavras, como experincias inter-nas, emoes no-racionais, ignoradas quando tudo j parece ter sido dito (idem). Nenhuma filmagem gratuita e descompromissada, por mais realista que almeje ser. Filmar e ser filmado implica a utilizao de linguagens que ultrapassam a simples conversa do cotidiano ou que aprofundam as performances que acompanham a relao dos seres humanos com o ambiente (pessoas e coisas) em que esto inseridos. Se questionvel essa performan-ce constante tanto em nossas vidas pblicas quanto privadas, ela no pode ser negada nas pro-dues flmicas. Claro que essa performatividade parece ser mais identificvel nos filmes de fico, pois os atores precisam construir um personagem que se encaixe num texto previa-

    mente escrito (roteiro). Num documentrio, essa performatividade parece estar velada sob a idia de se tratar de imagens e depoimentos reais de onde a originalidade de Jogo de Ce-na.

    Coutinho parece reconhecer em suas obras essa caracterstica humana, essa capacidade de constituir uma mise en scne ao falar de si mesmo, do ambiente em que se vive, das rela-es que so criadas no cotidiano, nas histrias de vida.

    Se a antropologia flmica aborda o homem pelo vis das aparncias, concedendo um gran-de cuidado sua restituio, tanto pelo interesse que elas despertam por si mesmas quan-to por aquilo que exprimem ou dissimulam e que invisvel por razes de ordem estrutu-ral (no sensvel, logo no mostrvel), ou circunstancial (sensvel mas no mostrado). No de estranhar, portanto, o carter inesgotvel desta disciplina em compreenso. Ele inclui, com efeito, tudo que se encontra localizado no eixo que une a mais discreta aparncia de uma atividade humana, ou de seu produto, quilo que esse mesmo aspecto exprime, ou dissimula, da sociedade qual ele se refere. Isso vai das manifestaes concretas, proviso-riamente camufladas na imagem ou colocadas fora de campo, s estruturas, significaes, valores, funes, normas e regras que toda aparncia contm. (FRANCE, 2000:21-2)

    Para tanto, torna-se premente considerar os que fazem parte dessas filmagens como pessoas que conhecem minimamente o universo de imagens em que esto penetrando. Basta lembrar que, em filmes como O fim e o princpio de Coutinho, em que se valoriza o momento de chegada e entrada na casa das pessoas, dizer que aquele pessoal (a equipe de filmagem) do cinema ou mesmo comparar com a televiso, abrir para um mundo j imaginado, presen-te em suas vidas na forma do prprio eletrodomstico. Por fim, acredito tambm tratar-se de uma antropologia que se ope a um certo cultu-ralismo que talvez esteja mais presente no modelo sociolgico (BERNARDET, 2003) funda-mentado no realismo de suas imagens e entrevistas. Se neste modelo sociolgico temos logo-

  • 10

    centricamente a crena de que o entrevistado sabe tudo de sua cultura e, logo, suas palavras tornam-se testemunho real e as imagens apresentadas uma representao fiel, h que se consi-derar nos filmes do modelo etnogrfico o aspecto relacional dos humanos com seus ambien-tes, do cineasta com os sujeitos do filme, da fico com a realidade. Uma antropologia das relaes ser humano e seu ambiente (INGOLD, 2000) nos leva a considerar a produo flmica para alm de um instrumento de captao da realidade. A filmagem , por si mesma, uma forma de habitar um mundo, de construir uma relao com a realidade, de construir ou inventar essa mesma realidade.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BAUMAN, Richard. Verbal art as performance. Rowley: Newbury House Publishers, 1977. BERNARDET, Jean Claude. O modelo sociolgico ou a voz do dono. in Cineastas e Imagens do Povo. So Paulo: Ed. Brasiliense, 2003.

    FRANCE, Claudine de. Cinema e Antropologia. Traduo: Mrcius Freire. Campinas: Ed. da Unicamp, [1982] 1998.

    ___________. Antropologia Flmica Uma gnese difcil, mas promissora. In FRANCE, Claudine de (org.). Do filme etnogrfico antropologia flmica. Traduo: Mrcius Freire. Campinas: Ed. da Unicamp, 2000.

    GEERTZ, Clifford. 1989. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC.

    INGOLD, Tim. The Perception of the Environment. Essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000.

    LANGDON, E. Jean. Performance e preocupaes ps-modernas em Antropologia. in TEI-XEIRA, Joo Gabriel (org.) Performticos, Performance e Sociedade. Braslia: EdUnB, 1996. LINS, Consuelo. O Documentrio de Eduardo Coutinho: televiso, cinema e vdeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

    MACDOUGALL, David. Mas afinal, existe realmente uma antropologia visual?. In Catlogo da Mostra Internacional do Filme Etnogrfico. Rio de Janeiro, 1994. pp. 71-75. ___________. Novos princpios da antropologia visual. In Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro, 21(2), 2005.

    PIAULT, Marc-Henri. Antropologia e Cinema. In Catlogo da Mostra Internacional do Fil-me Etnogrfico. Rio de Janeiro, 1994. pp. 62-69.

  • 11

    FILMOGRAFIA

    COUTINHO, Eduardo. Babilnia 2000. Rio de Janeiro, 2001. (vdeo, 80) COUTINHO, Eduardo. Boca de Lixo. Rio de Janeiro, 1992. (vdeo, 50) COUTINHO, Eduardo. Cabra Marcado para Morrer. Rio de Janeiro, 1964-1984. (35mm, 119) COUTINHO, Eduardo. Edifcio Master. Rio de Janeiro, 2002. (vdeo, 110) COUTINHO, Eduardo. Jogo de Cena. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2007. (35mm, 110) COUTINHO, Eduardo. O fim e o princpio. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2005. (35mm, 100) COUTINHO, Eduardo. Pees. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2004. (35mm, 90) COUTINHO, Eduardo. Santa Marta, Duas semanas no morro. Rio de Janeiro: ISER, 1987. (v-deo, 54) COUTINHO, Eduardo. Santo Forte. Rio de Janeiro, 1999. (vdeo, 80) FLAHERTY, Robert. Nanook of the North. 1922. (35mm, 55) PERRAULT, Pierre e BRAULT, Michel. Pour la suite du monde. Quebec: ONF, 1966. (35mm, 90) VERTOV, Dziga. O homem com a cmera. URSS, 1929. (35mm, 80)