antropologia - apostila

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Antropologia: O que é? Para que serve? Trata-se de uma ciência que estuda as sociedades humanas, considerando origens, desenvolvimento, semelhanças e diferenças entre elas. Pode-se dizer que a Antropologia é uma ciência que estuda o homem e tudo o que envolve a sua cultura. A palavra Antropologia deriva de duas palavras gregas: Anthropos e Logos. O prefixo Anthropos significa homem e o sufixo Logos significa estudo, pensamento, razão. Campos da Antropologia Os campos da Antropologia são: Antropologia Biológica Antropologia Cultural ou Social Antropologia Arqueológica (Arqueologia) Antropologia Lingüística Antropologia Biológica : Considerada uma ciência natural, ocupa-se de estudos como a origem e evolução do homem, estudos de fosséis e comportamento de outros primatas. Ocupa-se, ainda, de estudos de raças e etnias, formatos e mensurações do corpo humano (Antropometria). Antropologia Cultural ou Social : Chamada nos Estados Unidos de Antropologia Cultural e na Inglaterra de Antropologia Social, ocupa-se do estudo de todas as culturas do mundo, considerando suas origens, características e mudanças. Para documentar-se usa a arqueologia, os registros orais, os contos, os cantos, além de outros recursos como a observação participante, os depoimentos, os registros escritos, fotográficos e fílmicos. É uma ciência complexa, que trata das origens da família e seus diferentes tipos, dos casamentos e suas diferentes formas, dos costumes, mitos, religiões. Estuda as diversas tecnologias, as culturas híbridas, as crenças e padrões de conduta no tempo e no espaço, as formas de premiação e punição nas diferentes sociedades, as normas formais e informais de controle social, as regras de aceitação e discriminação nos diferentes grupos sociais, as formas de comunicação social, a cultura de massas e seus produtos, como o culto do efêmero e a cultura do narcisismo. Estuda as ideologias e seu papel na dominação política de um povo sobre outro. Antropologia Arqueológica : Ocupa-se do estudo de diferentes culturas por intermédio de achados arqueológicos como vestígios de antigas construções, utensílios de barro, cerâmica, osso, metal e outros materiais encontrados em escavações. Antropologia Lingüística : Ocupa-se de analisar os sistemas de comunicação e desvendar as ideologias e visões de mundo contidas nos processos de comunicação oral, impresso, audiovisual, sonoro e imagético. Identifica, através de mitos, lendas, fábulas, provérbios, poesia, canções, as visões de mundo, aspirações e costumes, modo de ser e agir de diferentes grupos.

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Antropologia: O que é? Para que serve? Trata-se de uma ciência que estuda as sociedades humanas, considerando origens, desenvolvimento, semelhanças e diferenças entre elas. Pode-se dizer que a Antropologia é uma ciência que estuda o homem e tudo o que envolve a sua cultura. A palavra Antropologia deriva de duas palavras gregas: Anthropos e Logos. O prefixo Anthropos significa homem e o sufixo Logos significa estudo, pensamento, razão.

Campos da Antropologia Os campos da Antropologia são:

• Antropologia Biológica • Antropologia Cultural ou Social • Antropologia Arqueológica (Arqueologia) • Antropologia Lingüística

Antropologia Biológica: Considerada uma ciência natural, ocupa-se de estudos como a origem e evolução do homem, estudos de fosséis e comportamento de outros primatas. Ocupa-se, ainda, de estudos de raças e etnias, formatos e mensurações do corpo humano (Antropometria). Antropologia Cultural ou Social: Chamada nos Estados Unidos de Antropologia Cultural e na Inglaterra de Antropologia Social, ocupa-se do estudo de todas as culturas do mundo, considerando suas origens, características e mudanças. Para documentar-se usa a arqueologia, os registros orais, os contos, os cantos, além de outros recursos como a observação participante, os depoimentos, os registros escritos, fotográficos e fílmicos. É uma ciência complexa, que trata das origens da família e seus diferentes tipos, dos casamentos e suas diferentes formas, dos costumes, mitos, religiões. Estuda as diversas tecnologias, as culturas híbridas, as crenças e padrões de conduta no tempo e no espaço, as formas de premiação e punição nas diferentes sociedades, as normas formais e informais de controle social, as regras de aceitação e discriminação nos diferentes grupos sociais, as formas de comunicação social, a cultura de massas e seus produtos, como o culto do efêmero e a cultura do narcisismo. Estuda as ideologias e seu papel na dominação política de um povo sobre outro. Antropologia Arqueológica: Ocupa-se do estudo de diferentes culturas por intermédio de achados arqueológicos como vestígios de antigas construções, utensílios de barro, cerâmica, osso, metal e outros materiais encontrados em escavações. Antropologia Lingüística: Ocupa-se de analisar os sistemas de comunicação e desvendar as ideologias e visões de mundo contidas nos processos de comunicação oral, impresso, audiovisual, sonoro e imagético. Identifica, através de mitos, lendas, fábulas, provérbios, poesia, canções, as visões de mundo, aspirações e costumes, modo de ser e agir de diferentes grupos.

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Antropologia e Áreas Afins Por ser uma ciência complexa, que investiga diferentes aspectos das sociedades humanas, a Antropologia interliga-se com áreas afins como:

Biologia Anatomia Genética História

Geografia Geologia Economia Psicologia Sociologia

Política Filosofia

Tida como uma ciência que no século XIX, estudando nações nativas, particularmente na África e Ilhas da Oceania, forneceu conhecimento a governos europeus que mantinham políticas coloniais, a Antropologia criou e acumulou conhecimentos que lhe permitem fornecer subsídios a políticas públicas avançadas nos séculos XX e XXI e apresentar métodos e técnicas de leitura crítica das sociedades e grupos culturais.

Para Que Serve A Antropologia Hoje? Além de facilitar leituras críticas de diferentes sociedades, a Antropologia fornece conhecimentos e técnicas importantes para:

• Assessorar governos e outras instituições públicas e particulares na formulação de políticas sociais, educacionais, econômicas, ambientais e jurídicas.

• Contribui para formulações de políticas públicas de valorização das culturas de minorias étnicas no seio de grupos sociais mais amplos.

• Contribui para formulação de políticas de combate ao preconceito étnico, de gênero, de classe e outras formas de discriminação social.

• Contribui para formulação de políticas de respeito à alteridade, de valorização da diversidade sócio-cultural-etnico-racial, favorecendo a interação social e as práticas inclusivas.

• Contribui para uma leitura crítica aprofundada da sociedade e dos meios de comunicação de massas, desvendando suas mensagens subliminares e práticas discriminatórias.

• Contribui para uma leitura crítica aprofundada das políticas de dominação de um povo sobre outro.

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ANTROPOLOGIA: O ESTUDO DO HOMEM EM SUA DIVERSIDADE

Zenaide Bassi Ribeiro Soares

A Antropologia não é apenas o estudo de tudo que compõe uma sociedade. Ela é o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas.

Nas suas origens, a antropologia ocupou-se de civilizações extra-européias, povos chamados de “primitivos”, cujos costumes eram bastante diferentes dos europeus. Mas a ciência antropológica avançou. Se seu campo de observação tivesse continuado centrado no estudo das sociedades ditas “arcaicas”, “primitivas”, “exóticas”, preservadas do contato com o Ocidente, ela hoje teria desaparecido pois se encontraria sem objeto de estudo.

O desenvolvimento da Antropologia permitiu que muito do que era considerado natural fosse visto como realmente é: cultural. Muito do que parecia evidente, passava a ser visto como infinitamente problemático.

A Antropologia permitiu, ao se comparar culturas, que o olhar do observador se modificasse, pois, como diz Laplantine, o encontro de culturas diversas leva o observador a modificar o olhar que tinha sobre si mesmo. Ele diz:

"De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideremos "evidente". Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não têm realmente nada de "natural". Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.

Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia, como já o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta questão, é sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina permite notar, com a maior proximidade possível, que essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tomávamos todos espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existência...) são, na realidade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos têm em comum é sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento, instituições, jogos profundamente diversos; pois se há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é sua aptidão à variação cultural.

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O projeto antropológico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento, juntamente com a compreensão de uma humanidade plural. Isso supõe ao mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do idêntico, e com a exclusão num irredutível "alhures". As sociedades mais diferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas, são na realidade tão diferentes entre si quanto o são da nossa. E, mais ainda, elas são para cada uma delas muito raramente homogêneas (como seria de se esperar) mas, pelo contrário, extremamente diversificadas, participando ao mesmo tempo de uma comum humanidade.

A abordagem antropológica provoca, assim, uma verdadeira revolução epistemológica, que começa por uma revolução do olhar. Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com idéias de que existe um "centro do mundo", e, correlativamente, uma ampliação do saber e uma mutação de si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de André Gide: "Eu sou mil possíveis em mim; mas não posso me resignar a querer ser apenas um deles".

A descoberta da alteridade é a de uma relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido "selvagem" fora de nós mesmos. Confrontados à multiplicidade, a priori enigmática, das culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturalização do social (como se nossos comportamentos estivessem inscritos em nós desde o nascimento, e não fossem adquiridos no contrato com a cultura na qual nascemos)”.

O reconhecimento da diversidade cultural, étnica, social, o respeito à alteridade, focos da antropologia, contribuem para se combater o etnocentrismo, aquela ideologia que alimenta o sentimento de estar no centro do mundo, de ser superior a outros povos.

A Antropologia contemporânea oferece um saber que se opõe à dominação política, étnica e cultural, apresentando paradigmas que podem alimentar políticas públicas orientadas para grupos sociais vitimizados por preconceitos e discriminação das mais variadas ordens, procurando garantir-lhes seus direitos sociais e espaciais.

__________________

Sugestões de leitura:

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense. 1996.

CANCLINE, Nestor García. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp. 2006

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INDIVÍDUO, SOCIEDADE E CULTURA1

Zenaide Bassi Ribeiro Soares

Um bebê, ao nascer, poderá ser considerado um ser plenamente humano ou apenas potencialmente humano?

A esta questão, a Antropologia tem respondido lembrando casos de meninos ou meninas, que, criados fora do ambiente social, privados completa ou parcialmente da associação humana tiveram sua natureza humana comprometida, tornando-se o que se convencionou chamar de homem-fera. É o caso de Pedro de Hanover, Jean de Liege, Mowgli ou do selvagem de Kronstadt (Rússia) e selvagem de Averyon (França), entre outros.

Desse modo, admite-se que a natureza humana é um produto social que resulta da integração da criança com outros seres humanos, a partir do contato com o grupo familiar. Não resulta apenas do fato do ser humano possuir uma estrutura fisiológica especial, mas da manutenção de relações sociais primárias com outras pessoas com as quais aprende a falar, alimentar-se, adotar práticas higiênicas, cantar, brincar e assim por diante.

A relevância do contato do indivíduo com outros seres humanos é tão grande, que, mesmo um ser em idade adulta, poderá tornar-se vítima da desintegração de sua natureza humana, caso esse homem fique, por longo tempo, completamente isolado. Essa desintegração pode se expressar por distúrbios mentais de diferentes graus, dificuldade de reconhecer pessoas e locais, perda de vocabulário, podendo chegar à loucura e até mesmo ao suicídio.

A crença de que um prisioneiro deveria ficar em cela solitária, para, nesse isolamento, refletir sobre seu crime e reaproximar-se de Deus, levou, na Inglaterra, do século XIX, que pouco mais de 50% dos encarcerados apresentassem sintomas de desintegração de personalidade, além de se terem verificado ali vários casos de suicídio. Esses fatos evidenciam que não apenas a criança desprovida total ou parcialmente de contato humano poderá ter sua natureza humana comprometida, mas, também, que, mesmo constituída num adulto, essa natureza pode desintegrar-se se ela for reduzida ao isolamento, pois existe a necessidade de manutenção de contato com seus semelhantes.

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Sabe-se que para desenvolver a natureza humana e também a personalidade, não somente é necessário estar-se cercado de outros seres

__________________________________________ 1 Publicado in Indivíduo e Sociedade. São Paulo: Clíper. 2007.

humanos, capazes de entrarem em interação. É também essencial que o indivíduo seja capaz de compartilhar, com outros, suas experiências, penetrar na vida deles, assumir os seus papéis, olhar o mundo do seu ponto de vista. Somente quando é capaz de assim se comportar, de sair de si próprio, para enxergar-se do ponto de vista de outros, e de julgar-se a si mesmo, pode-se dizer que está socializado. Isto implica afirmar que através da prática da alteridade, de colocar-se no lugar dos outros, o ser humano é capaz de compreender melhor a si mesmo e ao mundo que o rodeia.

Chama-se de socialização o processo através do qual o indivíduo aprende as normas e padrões de seu grupo e se torna membro ativo da sociedade em que vive.

INDIVÍDUO, SOCIEDADE E CULTURA

O indivíduo se socializa através do contato com pessoas, coisas, crenças e valores. O meio social - a presença e os atos dos que o rodeiam – é fator predominante no seu processo de socialização, embora o ambiente físico também tenha sua importância.

A criança começa seu processo de desenvolvimento nos grupos primários, nos quais as relações são sempre íntimas e pessoais. A família, os companheiros, de brincadeiras, vizinhos próximos, constituem grupos primários, onde predominam os contatos face a face. Em cada grupo todos se conhecem de modo muito próximo, e dessas relações íntimas e pessoais surgem laços sentimentais, fortes e permanentes.

A socialização ocorre, portanto, em determinado grupo social, norteado por sua cultura.

Ao discutir o conceito de cultura, o antropólogo norte-americano Clyde Kluckhorn escreveu o seguinte: “Por que os chineses não gostam do leite e dos seus derivados? Por que os japoneses morrem sem hesitação num ataque "Banzai" que

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parece insensato aos americanos? Por que algumas nações fixam a descendência pela linha paterna, outras pela materna, outras ainda por ambos os pais? Não porque diferentes povos tenham diferentes instintos; não porque Deus ou a fatalidade os haja destinado a ter diferentes hábitos; não porque o clima seja diferente na China, no Japão e nos Estados Unidos. Às vezes, o penetrante senso comum tem uma resposta que se acha próxima da dos antropólogos: "Porque foram criados assim". Por "cultura", antropologia entende a vida total de um povo, a herança social que o indivíduo adquire de seu grupo. Ou pode a cultura ser considerada como aquela parte do ambiente que o próprio homem criou.

Esse termo técnico tem sentido mais amplo que a "cultura" da história e da literatura. Uma humilde caçarola de cozinha é um produto cultural tanto quanto uma sonata de Beethoven. Na linguagem comum, um homem de cultura é um homem capaz de falar línguas diferentes da sua, que conhece a história, a literatura, a filosofia ou as belas artes. Em certos círculos intelectuais, a definição é ainda mais estreita. A pessoa culta é aquela capaz de falar de James Joyce, Scarlatti e Picasso. Para o antropólogo, entretanto, pertencer ao gênero humano é ter cultura. Existe a cultura em geral e existem as culturas específicas tais como a russa, a americana, a britânica, a hotentote, a incaica. A idéia geral abstrata serve para nos lembrar que não podemos explicar os atos exclusivamente em função das propriedades biológicas dos povos em causa, de sua experiência individual no passado e da situação imediata. A experiência anterior de outros homens, em forma de cultura, participa em quase todos os acontecimentos. Cada cultura específica constitui uma espécie de plano para todas as atividades da vida.

Uma das particularidades interessantes dos seres humanos é a de que procuram compreender a si mesmos e ao seu próprio comportamento. Embora isso tenha sido particularmente verdadeiro com relação aos europeus, em tempos recentes, não há grupo algum que não tenha elaborado um esquema ou vários esquemas para explicar as ações do homem. À insistente indagação humana, "por que?", o esclarecimento mais excitante que a antropologia pode oferecer é o do conceito de cultura. A sua importância como explicação é comparável a categorias tais como a evolução, na biologia, a gravidade, na física, a enfermidade, na medicina. Uma boa

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parte do comportamento humano pode ser compreendida e até mesmo prevista, se conhecermos o sistema de vida de um povo. Muitos atos não são nem acidentais, nem devidos a peculiaridade pessoais, nem causados por forças sobrenaturais, nem simplesmente misteriosos. Mesmo aqueles que, dentre nós, se orgulham do seu próprio individualismo, seguem na maior parte do tempo um padrão de conduta que não traçaram. Escovamos os dentes ao levantar. Vestimos calças - e não uma tanga ou saiote de ervas. Fazemos três refeições por dia - e não quatro, nem cinco, nem duas. Dormimos numa cama - e não numa rede ou numa pele de carneiro. Não é preciso que eu conheça o indivíduo e a história de sua vida para poder predizer essas e outras incontáveis regularidades, inclusive muitas do processo de pensamento, de todos os norte-americanos que não se acham encarcerados em prisões ou hospitais de dementes.

Para a mulher americana, um sistema de casamento com mais de uma esposa parece "instintivamente" abominável. Ela não é capaz de compreender que qualquer mulher deixe de se mostrar enciumada e incomodada, se é obrigada a dividir seu marido com outra mulher. Julga "antinatural" aceitar semelhante situação. Por outro lado, uma mulher Koryak da Sibéria, por exemplo, terá dificuldades em compreender como uma mulher tão egoísta e tão pouco desejosa de ter em casa companhia feminina, a ponto de querer limitar seu marido a uma só esposa.

Há alguns anos, conheci em Nova York um jovem que não falava uma palavra de inglês e estava evidentemente perplexo com os costumes americanos. Pelo ‘sangue’, era tão americano como qualquer outro, pois seus pais eram de Indiana e tinham ido para a China como missionários. Órfão desde a infância, fora criado por uma família chinesa numa aldeia perdida. Todos os que o conheceram o acharam mais chinês do que americano. O fato de ter olhos azuis e cabelos claros impressionava menos que o nadar chinês, os movimentos chineses dos braços e das mãos, a expressão facial chinesa, e os modos chineses de pensamento. A herança biológica era americana, mas a formação cultura fora chinesa. Ele voltou para a China.

Outro exemplo, de outra natureza: certa vez, conheci a esposa de um comerciante de Arizona que tinha um prazer algo diabólico em produzir reações culturais. Servia aos seus

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convidados, não raro, deliciosos sanduíches recheados com uma carne que não parecia nem de frango nem de atum, mas que vagamente lembrava as duas. Quando lhe faziam perguntas, não dava resposta alguma, até que cada um houvesse comido a sua porção. Explicava então que o que tinham comido não era frango, nem atum, mas a carne branca e suculenta de cascavéis recentemente mortas. A reação era imediata: acessos de vômitos, não raro violentos. Um processo biológico é envolvido numa trama cultural.

Uma professora muito inteligente, com uma experiência longa e feliz nas escolas públicas de Chicago, terminava seu primeiro ano numa escola para índios. Quando lhe perguntaram qual a relação entre a inteligência de seus alunos navajos e dos jovens de Chicago, ela respondeu: ‘Na verdade, não sei. Às vezes, os índios parecem ter o mesmo brilhantismo. Noutras ocasiões, agem como se fossem animais obtusos. Certa noite, demos um baile na escola secundária. Vi um dos melhores alunos de minhas aulas de inglês afastado num canto. Por isso, levei-o a uma bela jovem e lhes disse que fossem dançar, mas os dois ficaram parados, de cabeça baixa, e nem sequer trocaram palavras’. Perguntei se a professora sabia se não pertenciam, por acaso, ao mesmo clã. ‘Que diferença faria isso’?

‘Que pensaria a senhora se tivesse de ir para a cama com seu irmão?’ A professora afastou-se, ofendida, mas, na verdade, os dois casos eram perfeitamente comparáveis em princípio. Para o índio, o tipo de contato corporal necessário em nossas danças sociais tem uma conotação diretamente sexual. Os tabus de incesto entre membros do mesmo clã são tão severos como se fossem verdadeiros irmãos e irmãs. A vergonha dos índios ante a sugestão de que irmãos de clã fossem dançar e a indignação da professora branca ante a idéia de partilhar da cama de um irmão adulto representam reações igualmente irracionais - o irracional culturalmente padronizado”.

A cultura é aprendida e temos a tendência de praticarmos o etnocentrismo o que julgando o nosso modo de ser e de ver o mundo superiores a cultura de outros povos.

Laplantine afirma que conhecer outras culturas alarga nosso olhar para nós mesmos. Ele diz que “presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiência da alteridade (e a

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elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideremos "evidente". Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não têm realmente nada de "natural". Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.

Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia, como já o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta questão, é sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina permite notar, com a maior proximidade possível, que essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tomávamos todos espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existência...) são, na realidade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos têm em comum é sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento, instituições, jogos profundamente diversos; pois se há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é sua aptidão à variação cultural”.

Os diferentes modos que caracterizam diferentes culturas dão a cada uma fisionomia própria, no que se refere à língua, religião, hábitos alimentares, expressões artísticas, técnicas de construção, moda e assim por diante.

Nascendo em determinada sociedade, que apresenta determinado padrão cultural, o indivíduo ali encontra um universo de cuja criação não participou. Encontra uma situação definida, descobre nessa situação padrões de pensamento e de conduta previamente formados. Busca sua autonomia reavaliando sua herança social, repensando valores e crenças, com a certeza dos limites que tem de enfrentar e tentar ultrapassar, em geral associando-se a grupos com que se identifica.