antropojornalismo no suriname

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O Segundo Primeiro Cinema do Suriname Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então, quem é? Sushi em Folha de Bananeira e Frango no Curry Contagem Regressiva: Diário de bordo de um jornalista no Suriname

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Trabalho final de graduação em Jornalismo - UFMG 2010.

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Page 1: Antropojornalismo no Suriname

O Segundo Primeiro Cinema do

Suriname

Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então, quem é?

Sushi em Folha de Bananeira e

Frango no Curry

Contagem Regressiva: Diário de bordo de um jornalista no Suriname

Page 2: Antropojornalismo no Suriname

O jornalista é aquele que diz:“eu identifico o mundo”.

O antropojornalista é aquele que diz: “Eu faço parte do mundo”.

Elton Antunes, setembro, 2010.

Page 3: Antropojornalismo no Suriname

O Segundo Primeiro Cinema do Suriname. - p.4.

Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então, quem é? - p.20.

Sushi em Folha de Bananeira e Frango no Curry. - p.34.

Suriname Pouco sabemos sobre nosso vizinho ao norte do Pará.

Por lá, habitam cerca de 30 mil brasileiros, numa comunidade jovem e multicultural.

Nesta edição você encontra algumas reportagens especiais sobre o país que esbanja ouro e abriga comunidades do mundo inteiro.

Relatório Técnico - p. 49.

Contagem Regressiva - Diário de Bordo de um Jornalista no Surinme. - p.57.

Por Luiza Andrade

Page 4: Antropojornalismo no Suriname

Osegundo

DOPRIMEIRO CINEMA

SURINAMEPor Luiza Andrade

Page 5: Antropojornalismo no Suriname
Page 6: Antropojornalismo no Suriname

Para os moradores locais, o país litorâneo oferece poucas opções de entretenimento.

Page 7: Antropojornalismo no Suriname

Os seksbioscop, cinêmas pornô, são uma das poucas opções de entretenimento que mantém um público cativo. Sessões de filmes pornô são exibidas três vezes ao dia. Programação variável.

Page 8: Antropojornalismo no Suriname

“Vocês já foram ao novo cinema?” Pergunto, com muito cuidado, ao grupo de javanesas que saía para tomar drinks. “Que cinema?”, responde uma delas, a menos receptiva, com um tom hostil. “TBL, o cinema que abriu oficialmente em outubro. Ouvi dizer que eles já tiveram quase 100 mil pessoas”. “Nem sabia que tinha cinema”, afirma uma outra. Todas de vestidos decotados, para aguentar o calor, com seus drinks na mão. As garotas da classe média surinamesa da capital Paramaribo ainda não conhecem o único cinema da cidade. Kristinadewi, sempre com um sorriso no rosto, comenta: “Eu me lembro de quando ia ao cinema com meus pais. Eram cinemas de rua. Eu era muito nova, mas gostava do programa”. Durante a adolescência de Kristinadewi, e da maioria da população jovem do país, o Suriname passou por mudanças drásticas na economia e na política. Mudanças, essas, que levaram ao fechamento das 28 portas dos cinemas existentes no país até os anos 90. Mais tarde, alguns foram reabertos como cassinos, que puderam aproveitar os grandes espaços dos antigos saguões principais, ou igrejas evangélicas – utilizando o grande número de cadeiras da sala de exibição.

Com menos da metade da extensão territorial do estado de Minas Gerais, o Suriname abriga cerca de 500 mil pessoas – equivalente

a 5% da população da cidade de São Paulo. Originalmente colônia Holandesa, o país tem características muito peculiares. Ao sul, faz fronteira com o Brasil. A leste e oeste, com as Guianas. Ao norte, águas ensebadas em um litoral sem praia. Sua primeira experiência no mundo moderno foi como fonte de minério da Holanda. O tráfico de escravos era enorme e contribuiu para a composição étnica da população. Quando o regime de escravidão foi abolido por acordos internacionais, em 1819, e efetivado somente em 1863, a Holanda perdeu grande parte dos seus trabalhadores na colônia. Precisando de mão de obra, os holandeses decidiram buscar o proletariado em países que tinham a moeda desvalorizada e estariam dispostos a tentar a vida em terreno desconhecido. Foi assim que o Suriname se tornou um país policultural. Aproximadamente 27% da população é descendente da Índia, 18% de países da África, 15% da Ilha de Java, na Indonésia, 15% “maroon”, habitantes locais, e os outros 25% são constituídos por comunidades numericamente menos expressivas: chineses, libaneses, europeus, entre outros. As comunidades étnicas, desde que se estabeleceram no país, desenvolveram formas de sobrevivência que envolveram negócios de subsistência e comércio local. Vê-se nas ruas restaurantes chineses, javaneses, surinameses, brasileiros, indianos

Antigo cinema de rua, o Princess Cassino ilumina as ruas do centro na noite da capital.

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e holandeses. Cardápio é o que não falta, mas tudo com um toque de pimenta e aroma agridoce. Os comércios são variados e, muitas vezes, improvisados nos fundos ou na sala das residências. Eles começam pequenos. Alguns, em geral os indianos e chineses, crescem a ponto de se tornarem redes. Alem disso, produtos de todo tipo são importados das árvores étnicas da população surinamesa. Pouco é produzido no próprio país.

Para quem acha que o Brasil é um país adolescente, o Suriname não saiu da maternidade. Cem anos após a abolição da escravatura, o país ainda era uma colônia Holandesa. A independência veio somente em 1975, deixando uma série de problemas na sociedade local. Como qualquer país que se vê livre da colonização, o Suriname passou por dificuldades em seus primeiros 40 anos de governo. Houve pouca democracia e muita confusão. Mesmo subsidiado pela Holanda, o país entrou em crise e, cinco anos após a declaração da independência, foi assolado por um golpe militar. Sob a liderança de Desi Boutersi, hoje presidente eleito, o exército instituiu uma série de novas regras de conduta. Dentre elas, toque de recolher, a partir de seis horas, e voz de prisão para quem se posicionasse contra o governo. O toque de recolher, sozinho, acabou com grande

parte do entretenimento local.

Em 1982, o exército sob comando do atual presidente, Desi Boutersi, assassinou quinze cidadãos acusados de subversão. A subversão, na realidade, foi o pronunciamento de opiniões contra o governo na mídia local. Segundo a organização em prol dos direitos humanos, Amnesty International, as quinze pessoas foram retiradas à força de suas casas e ambientes de trabalho e levadas na calada da noite ao forte militar em Fort Zeeland, local próximo ao palácio do governo. Em 8 de dezembro, no dia seguinte, as vítimas foram brutalmente assassinadas. Apresentavam cortes e hematomas por todo o corpo e algumas tiveram membros fraturados. O episódio chocou o país e o mundo.

“Com ou sem toque de recolher, as pessoas preferiram ficar em casa, por segurança”, afirma Achie, javanesa naturalizada no Suriname. A dona da casa que serviu de base à reportagem é também uma voz da experiência da ditadura. Viu de perto a movimentação na base militar quando do golpe e os protestos quando da tragédia de 82. Trabalhava na Embaixada Indonésia, era uma das poucas pessoas protegidos por leis internacionais.

“Na sala tem ar condicionado”. Foi a

Casas surradas pela ação das chuvas são comuns na paisagem local.

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Vazio durante o dia, o restaurante fast-food do complexo enche por volta de duas da manhã, quando os jovens saem da discoteca.

primeira frase que ouvi ao entrar na base onde eu ficaria instalada durante as próximas duas semanas de trabalho no Suriname, a casa da família Putanto Prawmidjodjo. Sem poder sair de casa à noite, quando o pôr do sol alivia as longas horas de calor intenso, os surinameses ficam confinados à maravilha moderna do ar condicionado. Quem não pode pagar a instalação de um aparelho, acaba tendo que se virar com o ventilador. A vida social passou a se concentrar no círculo familiar. Acabaram-se os bailes e sessões de cinema. A sala de TV virou o espaço de convivência. E essa tradição, legitimada pelo toque de recolher do regime militar, se perpetua até os dias de hoje.

Com a suspensão da ajuda econômica da Holanda, por causa dos assassinatos de 82, o regime militar não durou muito. Cinco anos mais tarde, em 1987, o Suriname instituiu eleições democráticas. Mas, mesmo tendo diminuído a pressão social, a economia ia mal, e muitos dos cinemas já haviam fechado. Para as salas, faltava público e, ao público, faltava dinheiro para pagar o entretenimento.

Amontoada de objetos, a sala da família Putanto tem de tudo. Desde pacotes de biscoito, revistas, mapas, leques, creme para o corpo,

livros, e filmes, até caixinhas de cotonete ou reservatórios de lenço em papel. A sala é o ponto de encontro, o local de descanso, o centro de relacionamento e o lugar onde se vai para ficar sozinho com a TV. Na casa, o ar circula pouco. As portas, sempre fechadas, têm marcas de dedos melados pelo calor. Raramente vê-se uma janela aberta. A maioria dos cômodos, como o da TV, sequer apresentam frestas e entradas de ar. A geladeira finge que gela, e o freezer mais ladra do que morde. Adaptados ao calor intenso, os outros ambientes também têm ar

Suit NV, complexo de entretenimento. Boliche, sala de jogos, discoteca, restaurante, pub e cinema “second chance”.

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“Nos Estados Unidos seria ilegal, mas… aqui, tudo é

liberado”

Vendidos a dois reais e cinquenta centavos, títulos

norte americanos são acessíveis a toda a população.

condicionado, mas nenhum possui o principal ponto de convergência social, a TV. Na capital existem dezenove canais de transmissão televisiva. A maioria das concessões foi distribuída durante o regime militar, para quem tinha grandes capitais, ou grandes laços políticos.

Para Baldew, surinamês descendente de indianos e empresário dono do complexo de entretenimento Suit NV, o Suriname é um local muito difícil para se investir no entretenimento: “São públicos muito variados, é difícil agradar a todos. Além disso, os estabelecimentos fazem sucesso durante o primeiro ano. Depois, são esquecidos pelo público. Eles preferem ficar em casa, a repetir o programa semanalmente”, afirma. No ramo do entretenimento há 19 anos, ele comanda o complexo Suit NV, cuja sigla em holandês representa as palavras Samen Uit (em português, “sair juntos”) e que foi construído na tentativa de criar diversos espaços para a salada étnica que habita o país. Dividido em ambientes temáticos, o complexo conta com uma sala de jogos, um boliche, um restaurante de fast-food, um pub de tema esportivo, uma discoteca (que também é dividida em 2 ambientes, com diferentes estilos musicais) e, por fim, um “second chance” movie theatre (sala de cinema que passa filmes que já saíram de cartaz).

Nas lojas, feiras de rua e até supermercados. Por todos os lados é possível encontrar títulos piratas de lançamentos norte americanos.

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O empresário explica, muito orgulhoso, que o complexo obteve sucesso durante dois anos de existência e, só agora, começa a perder público. Durante minha visita, estavam em cartaz no cinema De Paarl – dentro do complexo –os filmes Rebelde sem causa, Barbie: a fashion fairy tale, Kung Fu Panda e Atividade Paranormal.

Curioso um país ter salas de cinema funcionais que não passam filmes novos. Segundo o dono, se as sessões ocuparem 30 cadeiras, o lucro é maior que o esperado. Ao ser questionado a respeito dos filmes “second chance”, Baldew explica que o foco dos seus negócios não era investir no cinema, mas na multiplicidade de programas. “Os direitos de transmissão são muito caros. Com os second chance movies, eu não preciso pagar esses direitos”. As salas de cinema do Suit NV são, na verdade, salas com aparelhos de DVD atrelados a projetores que ampliam a imagem para a telona. “Nos Estados Unidos (a transmissão) seria ilegal, mas… aqui, tudo é liberado”, comenta baixinho, quase sussurrando e fazendo o sinal de aspas com os dedos indicador e do meio nas duas mãos.

A primeira imigração chinesa para o país aconteceu em 1853. Desde então, a população que hoje registra 7% dos 500 mil habitantes desenvolveu habilidades no comércio local. Ainda não tive o prazer de ir à China, mas imagino que não deva ser muito diferente da parte chinesa de Paramaribo. A grande maioria dos supermercados e lojas de conveniência

é controlada pelos chineses. Lá, placas dos estabelecimentos comerciais que anunciam o tipo do comércio dividem o espaço entre chinês e holandês. Choi, chung, Hong Sheng. São vários os estabelecimentos que carregam glifos chineses. Andando por Tourtonnelaan ou Annamoestraat, é difícil lembrar que alí se fala holandês.

Conhecidos mundialmente pelos produtos de baixo custo – e, muitas vezes, baixa qualidade –, os chineses são importadores mundiais. Eles estão em todos os países e levam às populações os últimos modelos de produtos tecnológicos a preços acessíveis. Este cenário de importação de produtos piratas se instalou no Suriname no início dos anos 90. Com o surgimento do videocassete e, mais tarde, do DVD, as lojas chinesas passaram a dispor dos mais recentes títulos das telonas. Filmes que ainda estavam em cartaz nos últimos dos 12 cinemas de rua de Paramaribo podiam ser encontrados nas prateleiras de produtos pirateados, ao lado das bolsas Guchi e dos relógios Rolleks. É tentador entrar nas lojas sem sair com dez títulos na sacola de plástico amarela. Cada filme a dois reais e cinquenta centavos. Com SRD$40,00 (dólares surinameses) no bolso, leva-se dez lançamentos e sobra dinheiro para comprar

Uma a uma, com a proliferação das cópias, as vídeo locadoras faliram.

Jornal local apresenta filmes recém lançados nos cinemas norte-anericanos na programação televisiva.

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Ao lado, a programação nos jornais indica o filme Piranhas, recém lançado nos cinemas do país. Acima, o jornal do Arquivo Público mostra a existência de 10 cinemas em 1978. Em 1998, restavam apenas dois.

O último cinema do país declara o fechamento em uma nota no jornal local. No texto, as causas são atribuídas à concorrência desleal dos artigos piratas e da transmissão televisiva.

Coca-cola (um alívio à sensação de calor que não pôde ser melhor aproveitado por falta de gelo).

Uma a uma, com a proliferação das cópias, as video locadoras faliram. A pirataria de DVD’s poderia não ter sido um grande problema para os cinemas locais. A concorrência com consumidores que compram os artigos piratas não é tão grande. O que, de fato, levou os cinemas à falência foi a transmissão televisiva. De 10h às 10h, no cômodo mais movimentado da residência Putanto, a TV ligada anuncia os lançamentos na programação que, impressa no jornal local, exibe o crime sem qualquer pudor: filmes recém-lançados nos cinemas norte americanos fazem parte da programação diária das tv’s locais. Intercalados com programas de notícias e talk shows, a grade de horários exibe, inclusive, a reprodução das capas das caixas dos dvd’s piratas, com cenas copiadas dos cartazes em exibição nos cinemas.

Ao final dos anos 90 restavam apenas dois dos cinemas na capital, um deles um seksbioscoop, cinema pornô que até hoje funciona com público cativo. Pesquisando em 10 anos de jornal diário no arquivo público do Suriname, é possível notar a rapidez com que as páginas de entretenimento se modificaram: o espaço antes tomado pela

programação dos cinemas, que inicialmente ocupava mais de uma página, foi engolido pela programação televisiva. Em Fevereiro de 99, o último cinema do país – Cinema Star - declarou falência.

Quem, em sã consciência, escolheria frequentar

Ao final dos anos 90 restavam apenas dois cinemas na capital.

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Acima, corredores vazios do shopping Hermitage Mall, numa tarde de sexta feira.

o cinema, pagando um ingresso equivalente a 16 reais e tendo que se deslocar até a sala de exibição, enquanto o filme em cartaz está sendo transmitido pela televisão, no conforto do lar? A resposta é intrigante: muita gente. Corredores cheios e expressões ansiosas na fila da pipoca. Desde que o único cinema comercial do país abriu as portas, em maio deste ano, as salas já receberam mais de 150 mil visitantes, antes mesmo da abertura oficial, programada para outubro. O público tem idades variadas e preferências diversas. Em comum, o entusiasmo com que adentram as portas cerradas em função do ar condicionado. Falando alto e gesticulando muito. É assim que os surinameses retomam a experiência dos grandes halls de entrada dos cinemas de rua.

A estiagem dos cinemas durou 10 anos. Mas desde 2003, o The Back Lot, uma produtora de longa e curta metragens, articula seus planos de trazer um multiplex para o Suriname. Eddy Wijngaarde, orgulhoso de ter nascido no Suriname, conta que a produtora The Back Lot nasceu em Amsterdã. Como outros 300 mil habitantes do país, com o golpe de 75, o surinamês de cabelos brancos e pele clara, foi estudar na Holanda. Sul-americano, Eddy dividia com alguns amigos a paixão pelo futebol. Estudava administração, mas fazia parte de um grupo de artistas que se reuniam aos sábados para bater bola. Entre os artistas, atores, diretores e produtores de cinema. E foi assim que Wijngaarde entrou no mundo cinematográfico. Ainda nos anos 60, o empresário foi chamado para administrar as finanças de uma produtora de amigos do futebol. Anos se passaram, e já na década de 80 Eddy havia produzido uma série de filmes na Holanda, na África e também no Suriname. “Os cinemas eram o programa no Suriname”, diz o empresário, com um ar de nostalgia e ênfase no “O”. “As pessoas saíam de casa para ir ao cinema. Era um programa de rua. Aqui (em Paramaribo), os cinemas eram enormes. Tinham entre 800 e 1200 cadeiras”. O dono do novo cinema conta que de 1987 a 1992, houve um período de transição do governo ditatorial para o democrático. Nessa mesma época, o vídeo chegou ao Suriname e, com ele, a onda de pirataria. “Depois disso, ninguém teve a coragem de abrir um novo cinema. Todos tinham medo de investir nesse campo”, completa. A coragem parece ser um termo muito utilizado quando se trata de investimentos. Baldew, dono do Suit NV, disse admirar Eddy Wijngaarde. “Ele teve a coragem que eu não tive (de investir em um cinema)”.

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Abaixo, escritório do The Back Lot no quarto piso do complexo de cinemas.

No mudo dos negócios, investimento significa risco. Por isso, antes de investir, é preciso fazer uma série de estudos de público e mercado, construir projeções e planilhas de custos e avaliar os possíveis lucros. Como bons administradores, além de buscar investidores para o projeto da construção do segundo primeiro cinema do Suriname, Eddy Wijngaarde e seu sócio realizaram pesquisas de mercado e constataram a demanda pelo entretenimento na capital. Já com o dinheiro no banco e o apoio dos investidores, em 2008 a dupla começou a construção do prédio que hoje abriga 1000 assentos em cinco salas de exibição, duas delas com projeção em 3D.“Ainda é pequeno”, diz o administrador, se referindo ao tamanho do multiplex, “Nossa meta é colocar o melhor (da tecnologia) da América do Sul aqui, em Paramaribo”.

O cinema foi construído em quatro andares. No segundo andar, a recepção, o saguão, venda de ingressos, lanchonete, mesas e sofás confortáveis. As salas de exibição, novinhas em folha, ocupam o terceiro piso. No quarto, o escritório e a moderna sala de projeção. No primeiro andar, a estratégia: abrigadas em blocos de vidro transparente, - que permitem aos pedestres do lado de fora visualizar os produtos do lado de dentro - e climatizado com um ar condicionado central, ali serão instaladas lojas de marcas norte americanas e cafés, oferecendo uma variedade de serviços dentro do próprio complexo de cinema. O prédio do TBL foi construído anexo a um shopping local, o Hermitage Mall. Os shoppings no Suriname, entretanto, são mais similares a galerias de compras nos centros das cidades brasileiras do que aos luxuosos shopping centres construídos ultimamente. Lá, o ar condicionado fica confinado às lojas, cada uma com seu split (aparelho de ar condicionado individual). Isso significa que os corredores dos shoppings ficam vazios. Ninguém se propõem a passar horas sentado nos bancos quentes, a admirar os produtos dentro das lojas a 23˚C.

O TBL desenvolveu uma estratégia que ninguém imaginava: ele trouxe as pessoas que vagavam pelos corredores quentes para dentro do seu complexo. Assim, os lojistas ficam satisfeitos com o aumento do público e o cinema aumenta as chances de fisgar pedestres para dentro de suas salas 3D. Além disso, a produtora vendeu o espaço das lojas do primeiro piso. O valor complementa a renda e ajuda a pagar o investimento, garantido o funcionamento

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Visão da sala de projeção: Equipamentos de última geração foram instalados para garantir o entretenimento do público. Tudo cheira a novo.

das salas mesmo se houver diminuição do número de visitantes. “As paredes serão todas transparentes. A ideia é as pessoas do lado de fora poderem visualizar o que acontece aqui dentro, e querererem fazer parte do clima do cinema”, explica Wijngaarde.

A coragem de investir no cinema foi sustentada pelas pesquisas de mercado e o apoio dos investidores. Por outro lado, a pirataria é uma realidade que não pode ser ignorada. Em maio de 2010, quando o cinema abriu as portas extra oficialmente e deu início às sessões, Eddy e seu sócio marcaram reuniões com os donos das 19 estações de TV da capital. “Nos sentamos com cada um deles e explicamos a situação”. Eddy conta que nas reuniões a equipe do The Back Lot fez acordos com os diretores dos canais. O acordo é baseado em uma lista de exibição: a lista traz a programação do TBL para os próximos dois meses, e as televisões concordam em não transmitir os filmes da lista enquanto estiverem em cartaz. Depois que saírem de cena, a transmissão é liberada. O acordo parece tender apenas para o lado do cinema, mas Wijngaarde explica que existe uma teoria mundialmente aceita que diz respeito ao circuito de exibição de filmes na mídia. Primeiro, as salas de cinema exibem os lançamentos. Há propaganda nas televisões, nas ruas, nas revistas. O público do cinema corresponde a apenas 10% da população consumidora de entretenimento. Esses 10%, que têm o acesso inicial, divulgam os filmes para seus amigos menos afortunados, outros 30%. Estes

30% têm acesso às vídeo-locadoras e à internet. Eles, por sua vez, divulgam os filmes para os outros 60% da população que, em grande parte, tem acesso à televisão. Dessa forma, quando o título chega às telinhas, ele já foi divulgado e sugerido diversas vezes. Em teoria, isso significa um alto índice de ibope durante a transmissão dos filmes e mais dinheiro para as televisões, que lucram a partir dos anunciantes.

Ninguém parece acreditar que as televisões locais aceitaram o acordo. Mas, ao conversar com o CEO da maior emissora do país, a SCCN, obtive uma versão muito parecida com a sugerida por Eddy Wijngaarde. No galpão da emissora, chão de cimento. A sala de entrada é composta por 3 computadores e uma televisão, sempre ligada. Na entrada, duas portas para evitar a saída do ar refrigerado. Abre uma porta, e fecha a outra. Atravessamos a saleta e, mais uma porta. Abre e fecha e damos em um corredor de cimento. O corredor, longo, nos guia até as salas de escritório montadas com estruturas pré-prontas. Os cubículos são condicionados, têm paredes até o teto, mas algumas janelas adereçadas por venezianas. Mais um sofá, mais um ar condicionado. A chegada até o homem mais importante da maior emissora do país foi longa, mas fresca. “O equipamento da TV não pode ficar no calor”, diz um homem de traços indianos com um sorriso no rosto. O homem é Isfahani Nagassersing, Diretor da SCCN. Entramos em seu cubículo, mais espaçoso que os outros. Na mesa, placas de cursos internacionais e de times

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No espaço serão construídas lojas de marcas norte americanas e um Grand Café, com opções de alimentação e delicatessen para o público do cinema.

do campeonato europeu, Champions League.

Antes de se tornar o diretor executivo da emissora, Nagassersing trabalhou muitos anos como jornalista esportivo. Tem em comum com Eddy Wijngaarde a paixão pelo futebol e, segundo ele, a luta a favor dos direitos autorais no Suriname. O diretor conta que, de fato, se reuniu com Wijngaarde e sua equipe para discutir o acordo. “Nós concordamos e estamos na mesma luta, ao lado do TBL”. A luta à que Nagassersing se refere é um grupo de processos tramitando na justiça do país. Como normalmente acontece nas redes de transmissão brasileiras, a emissora comprou os direitos de exibição de programas internacionais como American Idol, e os jogos da Champions League. Estavam no caminho para a legalização mas, quando se deram conta da dimensão da pirataria, outras seis emissoras já haviam iniciado a transmissão dos jogos e do programa americano - sem pagar pelos direitos autorais. Nagassersing conta que ficou injuriado e achou que estava na hora de acabar com a disputa entre os canais. Contratou uma advogada e entrou na justiça. “O processo foi difícil”, conta Nagassersing, “como a lei de propriedade intelectual no Suriname é antiga, ela não diz respeito a filmes, vídeos e transmissão televisiva. A advogada ganhou o primeiro caso alegando que “intelectual, ou não”, o produto foi comprado, e é propriedade da SCCN. Portanto, ninguém pode usá-lo sem nossa permissão”. Os outros cinco processos foram interrompidos, uma vez que os canais

souberam da vitória da SCCN e interpretaram o momento como oportuno para entrarem na luta pela legalização.

“Queremos legalizar nossa situação como empresa. Apesar de não existirem leis de direitos autorais no país, nós, da SCCN, queremos fazer a coisa certa. E a coisa certa é pagar os direitos para aqueles que produzem os programas. É assim que deve funcionar”, enfatiza o Diretor. A afirmação é bonita, e se encaixa nos moldes éticos da sociedade midiática. Entretanto, quando Nagassersing afirmou, de dedos cruzados e expressão imponente, o apoio à luta pela regulamentação dos direitos autorais, ele não contava com a experiência de uma repórter cansada demais para dançar salsa e adepta “religiosa” do ar condicionado. Durante duas semanas, minhas noites no Suriname foram regradas à base de filmes de bollywood misturados com os últimos lançamentos do cinema internacional. Sempre no ar condicionado, frequentemente na SCCN.

Pâmela, jovem de vinte e poucos anos, conta que desde a abertura do cinema a emissora que mais descumpre o acordo é a SCCN. A garota confirma que a prova está estampada no jornais. Contratada pelo TBL, Pâmela cuida de diversos aspectos na organização da programação e contato com clientes. Entre suas tarefas, a mais curiosa é realizada diariamente: Pâmela é encarregada de ler a programação dos jornais e entrar em contato com as emissoras que

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“Sem patrocinadores, não há programação de

TV”

DVDs piratas: títulos recém-lançados e shows custam mais caro.Filmes antigos e infantis: 7 por SRD10,00.

Anúncios de sessões de cinema perderam espaço nos jornais para a programação de TV.

Vendidos a preços baixos, os títulos piratas trazem baixa qualidade de imagem e som. Alguns não são reconhecidos. Outros funcionam apenas os primeiros trinta minutos.

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O financiamento do complexo conta com o público das lojas de marca, instaladas no primeiro piso.

descumprem as regras do acordo. A jovem conta que sempre que telefona para a SCCN para tirar satisfação, a emissora afirma que houve um erro na programação ou, ainda, que o título foi um pedido específico do patrocinador do horário televisivo – o que Nagassersing nega piamente. Segundo Isfahani Nagassersing, nenhum patrocinador pede um produto específico. Eles compram o horário e a programação que vem dentro daquele horário.

Perguntei à jovem se ela se lembra do título mais recente que teve o acordo descumprido. Ela responde com expressão de certeza no rosto e os braços cruzados: “Salt, com Angelina Jolie”.

Eddy afirma que o acordo, em sua maior parte, vem sendo cumprido. Dos 40 títulos exibidos no The Back Lot até setembro, apenas cinco haviam vazado na televisão antes de sair de cartaz. Por enquanto o índice é

aceitável mas, caso o número aumente, o TBL já tem um plano B: “Não vamos processar as televisões, porque isso demora e pode não dar resultados. Vamos processar os patrocinadores dos horários em que os filmes são exibidos. Pois, sem patrocinadores, não há programação de TV”, afirma o empreendedor, que abriu oficialmente as portas do segundo primeiro cinema do Suriname no dia 14 de outubro.

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Na porta da Zsa Zsa Zsu, a boate que já foi a mais badalada de Paramaribo e agora luta para sobreviver durante a semana – ainda enche aos sábados – duas garotas vestidas à base de salto alto e glitter, muito glitter, conversam com o segurança. Ele, enorme, vestido de preto, guarda a entrada enquanto observa os arredores. As moças, muito decotadas, falam português. Não é uma surpresa. No Suriname, muita gente fala Português.As moças entram sem pagar, pela porta da esquerda. Os turistas, em maioria europeus, usam sandálias. Mesmo à noite, o calor é intenso e o clima abafado, nem sinal de brisa. “Jij kan niet binnen komen!”, o segurança alerta a turista européia. De sandália rasteirinha, é proibida a entrada. Já o salto de 10 centímetros das brasileiras é bem-vindo.

Aguardava na porta com a câmera na mão, pronta para tirar fotos, como combinado com o senhor Baldew, dono da boate, na noite anterior. Baldew havia me instruído a procurar Clyde, o chefe da segurança. Ele teria meu nome em uma lista, e a entrada seria gratuita. “Clyde? Prazer. Meu nome deve estar na lista”, abordo o segurança delicadamente. “O senhor Baldew me disse para esperar uma jornalista brasileira, mas você não é brasileira”, ele responde. “Sim, eu sou... sou a jornalista brasileira”. Olho para cima, no canto esquerdo dos olhos, tentando entender a situação. O homem de quase dois metros me analisa dos pés à cabeça, deixando um sentimento de desconforto na garganta, e completa: “Você parece qualquer coisa, menos brasileira”, ele abre a porta da esquerda, desconfiado. A gratuidade me custou uma noite de sono. Se eu, morena quase índia, de olhos escuros e estatura baixa, não sou o retrato do brasileiro no Suriname, então quem é?

O ministério de relações exteriores estima que no Suriname haja quase 30 mil Brasileiros. É um cálculo difícil de se fazer, uma vez que a fronteira entre os dois países é coberta de mata fechada, o que dificulta o levantamento de idas e vindas. Destes 30 mil, apenas cerca de 18 mil são registrados. O resto mora ilegalmente no

Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

“Você parece qualquer coisa,

menos brasileira”

Por Luiza Andrade

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Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

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país. A presença dos conterrâneos é evidente. Nas ruas, nas lojas, nas casas. Em todo lugar se fala português. No centro, as placas do comércio evidenciam a presença da nação do futebol até mesmo nos negócios: roupas brasileiras, música brasileira, discos, filmes e calçados.A maior concentração de brasileiros no país, entretanto, está nas corrutelas, os campos de garimpo. Por lá, além dos garimpeiros e suas famílias, existe um comércio de subsistência em função da distância entre o campo e as cidades. Outra grande parte dos imigrantes do país vizinho fica alojada nas proximidades da rua brasileira de Paramaribo, que os habitantes locais chamam de “Little Belém”. No meio de um país que fala holandês e dança ao rítmo de salsa, os restaurantes da “Little Belém” vendem feijoada e picanha. Na padaria, pão de queijo e biscoito de polvilho. E nos supermercados, xampu Palmolive e latinhas de guaraná.

Andando pela rua, que não passa de quatro quarteirões, imaginava como seria me sentir em casa fora de casa. Os brasileiros que vivem ali são bem servidos de produtos brasileiros. Além disso, têm a vantagem de se relacionar com pessoas da mesma origem, algo que faz falta para os emigrantes brasileiros por todo o mundo. A única sensação que tive, entretanto, foi a de um turista intrometido, bisbilhotando a vida da comunidade brasileira local. Das calçadas, brasileiros sentados em cadeiras às portas das casas se entreolhavam como quem desentende como a estrangeira foi parar ali, no

meio do retiro brasileiro. No Suriname não sou brasileira. Isso já havia ficado claro na declaração do segurança da boate. Fugindo dos olhos curiosos nas calçadas, entrei em um supermercado. 100% brasileiro, dizia a placa na porta do comércio. A organização do estabelecimento parece muito com pequenas vendas do interior do Brasil, chão de cimento, prateleiras improvisadas, preços na etiqueta branca, aquela que se divide em parte, com um toque de desorganização chinesa – produtos misturados, sem critério de separação por tipos ou grupos. Dentro, atravessava os corredores analisando os produtos à venda: maioria enlatados, muitos deles com rótulos chineses. A princípio, achei desconcertante um supermercado 100% brasileiro vender produtos chineses. Segundos depois me dei conta de que mesmo no Brasil os supermercados dispõem de produtos diversos importados da China.No terceiro corredor – havia cerca de cinco – me deparo com um chinês seguindo meus passos. Ele pergunta: “Procura algo?”. Pega de surpresa, apelei para o produto mais comum nos estabelecimentos brasileiros no exterior: “Pão de queijo congelado. Tem?”. O chinês não entendeu a retórica e me encaminhou para duas brasileiras. Sentadas no freezer, como quem trabalha sem clientes, as moças tinham vinte e poucos e quarenta anos. Nilde, mais velha, mora no país há 14 anos. “Aqui (no Suriname), tenho uma casa, um filho e um emprego. Já é mais do que eu teria em Belém”, afirma a senhora que exibe, sem pudor, as linhas de cansaço no rosto

No centro da cidade, boa parte do comércio divide os letreiros entre português e holandês.

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bronzeado de sol. Raquel, a mais jovem, também tem um filho. Recém chegada ao Suriname, há cerca de um mês, trouxe o bebê nos braços. “Com uma semana arrumei um emprego”, conta sorridente, satisfeita com o resultado da escolha de se mudar para outro país e completa: “Lá (em Belém) estava há meses sem trabalhar”.

No Suriname, os brasileiros têm empregos. Esse parece ser um grande ponto levado em consideração quando eles pensam em se mudar do Brasil. Não são empregos maravilhosos. No supermercado, por exemplo, os brasileiros trabalham dez horas por dia, seis dias por semana, para ganhar US$300. Sem hora de almoço – eles têm apenas trinta minutos – e sem perspectiva de crescimento profissional, o emprego no supermercado ainda é um bom negócio. “Ganhando em dólares americanos, fica mais fácil viver aqui”, afirma Neia. O dólar Surinamês, moeda local, vale US$0,36. Um salário de trezentos dólares americanos vale, portanto, cerca de SRD800. Por lá, é equivalente a pouco mais que um salário mínimo. Apesar de artigos alimentícios e de limpeza custarem praticamente o mesmo que no Brasil, automóveis e artigos tecnológicos custam quase quatro vezes menos que no território brasileiro. Artigos de luxo no Brasil são objetos de primeira necessidade no Suriname. Todos têm carros e celulares cheios de funções especiais.“Você devia levar uma dessa panela de arroz! É SRD30,00, baratinho!”, afirma Shell, apontando para a panela elétrica de cozinhar arroz, muito

utilizada pelos chineses em todo o mundo. A praticidade da panela é evidente: coloca-se o arroz no recipiente envolvido por uma lâmina de aquecimento, com água até a marca indicada, e o resto é por conta da eletricidade. Na cozinha de Shell, e de mais quatro dos sete membros de sua família, a panela de arroz senta na bancada da pia como um trofeu. É o único artigo exposto, o resto é coberto pelas portas dos armários. Tudo muito organizado, como é de praxe nas famílias brasileiras. A limpeza é impecável e as mesas sempre cobertas por forros. “Ela não faz só arroz”, continua com um ar triunfal: “ela faz outras coisas também! Carne, batata. Tudo quanto é legume, pode colocar que ela cozinha. É elétrica. Muito prática”.

A panela senta na bancada como a prova da acessibilidade dos Brasileiros. Para a família de Shell ainda não é possível ter uma casa, mas a panela está na cozinha, bem à vista, como um atestado da possibilidade de subida na escala social. “TV aqui também é bem barato... e celular. Todo mundo têm Black Berry. Se você for comprar, compre aqui. É bem mais barato que no Brasil!”. O modelo de celular, que no Brasil custa de 970 a 1700 reais, no Suriname pode ser comprado por SRD499, o equivalente a 313 reais. Depois das oportunidades de emprego, o acesso à tecnologia e aos carros, a paixão dos brasileiros, são os aspectos mais mencionados como fatores de peso na imigração. Alem disso, não só se pode ter acesso a artigos tecnológicos, no Suriname, como eles raramente

Separada por lençóis, a cozinha impecávelmente limpa dos brasileiros divide espaço com a sala.

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são roubados. “Aqui é tranquilo”, afirma Shell, cujo passatempo favorito é colocar a cadeira na calçada, do lado de fora da casa, sem medo de ser assaltada. “No Brasil isso não acontece mais. Se você sair de casa está pedindo para ser assaltado. Aqui não tem assalto”, e continua,“as janelas podem ficar abertas durante a noite”.

Segundo o Embaixador brasileiro no Suriname, José Luiz Machado, esse é o país com o mais baixo índice de insegurança da America do Sul: “O que tem aqui (no Suriname) é ladrão de galinha”, explica. De fato, enquanto almoçava na casa de Shell e sua família, num belo domingo, ensolarado como a maioria dos dias no país, aos fundos do quintal algo se movia incessantemente. Ficamos observando, Shell, sua irmã caçula e eu, o vulto que passava pelos quatro quintais das casas, posicionados de frente um para o outro. Um homem negro, muito magro, sai da moita e começa a gritar palavras em Sranan Tongo, a língua local. Antes mesmo que eu percebesse, já

estava tirando fotos da situação. O homem, na verdade, gritava com a minha câmera. Segundo as brasileiras, tinha medo que as fotos fossem mostradas à polícia. Nas mãos, carregava apenas alguns restos de alimentos e frutas deixadas no quintal da casa ao lado.

A família de Shell tem oito pessoas. A mãe e uma irmã ainda moram em Belém, todos os outros tentam a vida no Suriname. A primeira a chegar no país foi Neia, a irmã mais velha, de 40 anos. No país há 19 anos, ela conta que conheceu um surinamês quando trabalhava em uma loja em Belém. Eles se apaixonaram e se casaram. Depois, um por um, sabendo do mar de oportunidades boiando nas ruas alagadas pelas chuvas de verão de Paramaribo, os irmãos acabaram seguindo a primogênita. A mãe da família de sete, nascida no Amazonas, não pretende morar no país vizinho. “Estou muito velha. Se algo acontece comigo, não tem médico para me tratar”, afirma. Já com alguns problemas de saúde, a senhora prefere ficar em Belém, onde tem acesso ao sistema único de saúde, do que confiar em um medico surinamês. Traumatizada por um acidente sofrido por Shell, quando, de moto, teve parte do rosto e do crânio destruídos por uma caçamba na rua, chegando a passar dias no hospital sem receber qualquer tratamento,

Acima, produtos brasileiros são anunciados nas paredes da capital. Ao lado, em uma tarde de calor intenso, a família de Shell almoça do lado de fora da casa, onde é mais fresco. Com os baixos salários, a família não mantém um aparelho de ar condicionado.

“Esse é o país com o mais baixo índice de insegurança da America do Sul”

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a mãe desconfia do sistema de saúde no país. No episódio, precisou voar de Belém, levando antibióticos prescritos por um médico brasileiro na mala de mão, porque no Suriname ninguém prescreveu remédios para a filha. “Aqui a saúde é horrível, e a embaixada não ajuda em nada”, afirma a senhora, com os braços cruzados numa expressão de descontentamento. A insatisfação com a embaixada brasileira no país contagia toda a família. Os trabalhadores do supermercado e os visitantes das feiras locais também parecem não confiar nos representantes brasileiros no país. O desamparo é a maior preocupação. “Aqui paga-se tudo”, ela continua o depoimento. “Até para morrer você tem que pagar uma taxa pro governo. A embaixada trata as pessoas muito mal. Ficamos aqui, pagando caro nos taxis pra tentar resolver os problemas, gastando nosso tempo de trabalho, e o povo da embaixada lá no ar condicionado... Só carrão”, afirma Shell, indignada com a demora da chegada de sua autorização de permanência no país. “Eles devem ter perdido meus documentos”, continua, gesticulando forte com o copo de Coca-cola na mão esquerda e um garfo de dentes tortos na direita. Segundo o Embaixador, os brasileiros têm uma impressão errada da embaixada. “Não estamos aqui para condená-los, mas para ajudá-los”, afirma. “O problema é que as embaixadas não são pró-ativas. Elas respondem a demandas”. Estando em um país estrangeiro, a embaixada não tem qualquer poder político para intervir

ou realizar programas sem o consentimento do governo local. Tudo deve ser pensado e programado com cuidado. “Mas quando o brasileiro vem nos procurar, podemos ajudá-lo”. O embaixador conta que desde o episódio do “massacre de Albina” a imagem do consulado local ficou um pouco abalada. “Tentamos de tudo para assessorar os brasileiros o mais rápido possível. Entretanto, nossa polícia não pode interferir na autoridade local”.

Existem algumas versões para o acontecimento da noite de natal de 2009, na cidade Albina, há 120km de Paramaribo. A imprensa brasileira, nos dias seguintes ao episódio, havia registrado sete mortos e quatorze feridos. A briga teria sido iniciada por um quilombola, habitante local da região de Albina. O homem teria iniciado uma discussão com um brasileiro em um bar local. O brasileiro portava uma faca e, de temperamento abalado, assassinou o surinamês ali mesmo, ao lado das mesas do bar. Dias depois, na véspera de Natal, a comunidade brasileira festejava num espaço fechado. Foi quando centenas de maroons entraram no recinto, portanto armas, bastões e facões, ferindo e aterrorizando os brasileiros locais. Amedrontados, os brasileiros adentraram a mata local, fugindo pelo rio que faz fronteira com a Guyana Francesa. Muitos deles nunca mais apareceram.A versão dos brasileiros habitantes de Paramaribo

Na rua Anamoestraat, as placas dos comércios anunciam a presensença brasileira.

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difere um pouco da dos jornais brasileiros. Shell, que já morou em Albina durante um ano trabalhando no supermercado local, explica que não estava lá durante o ataque, mas tem amigos que presenciaram o massacre. A paraense conta que vários brasileiros ficaram feridos, mas foram apenas dois mortos, um deles uma amiga muito querida. Como os conterrâneos no Brasil, Shell ficou chocada com as notícias do massacre. “Quem fez a confusão foi o padre!”, afirma já bastante tensa com a conversa. O padre a quem ela se refere é um representante da comunidade de evangelização católica no Suriname, Padre Vergílio. Em janeiro de 2009, ele foi utilizado como uma fonte de informações à imprensa brasileira. Dava entrevistas com frequência e estava sempre no noticiário brasileiro contando os episódios desumanos de crimes e atrocidades. Segundo Shell, porém, muito do que foi dito pelo padre foi inventado. “Talvez para aparecer, né? Tem gente que gosta de aparecer”, ressalta. A moça conta, ainda, que quando os habitantes da Little Belém souberam, através de parentes no Brasil, da imagem que o padre desenhava deles na imprensa, “Selvagens, loucos, sem educação ou senso ético”, um grupo de cerca de 50 pessoas se juntou, se armou e, com facas e cabos de vassoura, marcharam até a porta

da Radio Katólila, onde o padre trabalhava, exigindo que ele mostrasse sua cara para que pudessem enfrentá-lo face a face. “Eles queriam matá-lo”, afirma Shell, ainda com o copo de refrigerante em uma mão e fazendo um gesto

de certeza com a outra, como quem concorda que a sensatez da retaliação pela honra não representa selvageria ou falta de senso ético. E completa “Foi a primeira vez que os brasileiros se juntaram para fazer alguma coisa aqui em Little Belém. Aqui ninguém convive. Não se pode confiar nos brasileiros, eles estão sempre tentando te passar para trás”.

Para os brasileiros de Little Belém, a comunidade brasileira local não é de fato uma comunidade. “São pessoas que, por acaso, moram no mesmo lugar”, explica Neia. Apesar do espaço comum e da convivência do dia a dia, os brasileiros daqui não ficam amigos entre si, não confiam uns nos outros e não

Cansada de intrigas, Shell não convive com a comunidade brasileira local. Para ela, só se pode confiar na própria família.

“Foi a primeira vez que os brasileiros se juntaram para fazer alguma coisa em Little

Belém...”

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se relacionam fora do local de trabalho. “A competição é intensa”, afirma o embaixador, e completa: “Talvez por causa da origem, talvez por causa dos anos vividos sem oportunidade, os brasileiros competem entre si no Suriname”. Shell confirma a sentença, explicando que fora do supermercado onde trabalha, não convive com ninguém a não ser sua família.

O sentimento de distância é o mesmo para outro casal, Nalva e Cleo. No país há 14 anos, eles contam que vieram do Pará com o sonho de trabalhar durante um ano no garimpo e guardar dinheiro suficiente para comprar um carro no Brasil. O sonho não deu certo e as expectativas foram destruídas por um surto de malária e a falta de emprego: “Naquela época não tinha tanto brasileiro quanto tem hoje. Eram poucos os que se arriscavam”, explica Cleo. O homem teve a ideia de morar no Suriname através do irmão mais velho que, já na época, era bem sucedido no garimpo de ouro. “Ele era muito respeitado no garimpo, mas perdeu tudo no jogo e na bebida”, explica o irmão mais novo, com os olhos mirando o chão expressando descontento com o irmão, hoje considerado decadente na comunidade local. Durante os primeiros meses, o casal precisou pegar qualquer tipo de trabalho que aparecesse. Não chegaram nem perto de realizar o sonho que os moveu até lá. Depois de um ano, se viram numa situação complicada: não tinham nem dinheiro para comer, quanto menos para voltar a Belém. “A comunidade ainda era pequena e as oportunidades fora do garimpo eram poucas”. Nalva conta que quando Cleo teve malária no garimpo, eles não tinham dinheiro para comprar remédios. Precisaram revender dezessete garrafas de coca cola, acumulando um lucro irrisório, para comprar o almoço do dia. Com o tempo e a experiência a situação foi melhorando para o casal. Cleo já havia trabalhado em uma casa de câmbio no Brasil. Depois de algum tempo sem emprego, conheceu um chinês que precisava de um brasileiro para manter uma de suas filiais. Trabalha na casa há 12 anos. Nalva, com o dinheiro que conseguiram acumular, e alguns empréstimos, montou uma loja de roupas brasileiras “De qualidade!”, afirma, “Não são vagabundas (as roupas) como as dos chineses. Eles copiam tudo, e conseguem vender muito parecido e muito mais barato que a nossa mercadoria”. A moça, mãe de um garota de 18 anos, com frequência viaja ao Brasil para comprar novas mercadorias. “A cada mudança de estação”, ela acrescenta. Vai a São Paulo e Belo Horizonte, “onde as roupas

são de boa qualidade”. Os planos de manter a loja, porém, estão próximos de expirar. Segundo Nalva, a concorrência dos chineses tornou o negócio pouco lucrativo. Eles consideram novas possibilidades de comércio. O casal também não se relaciona com outros brasileiros. Segundo eles, a inveja é intensa. “Quando você não tem dinheiro, eles até ficam amigos, têm dó. Parece que gostam de te ver em situação pior que a deles. Já quando passa a ter algum dinheiro – e não digo ficar rico, não, só ter o suficiente para não passar tanta dificuldade – todo mundo olha para você torto, como se estivesse traficando drogas, ou roubando dinheiro de alguém.” E Nalva completa: “Ganhamos o nosso pão honestamente. Só porque não mais passamos fome, os brasileiros passaram a não gostar mais da gente. Acho que é inveja”. “Antes, eu pagava cerveja para todo mundo. Vivia fazendo churrascos. Agora que não posso mais beber (por causa do alto índice de colesterol), ninguém é meu amigo”, e completa Cleo “...mas é melhor assim. A gente vive nossa vida e eles a deles. É mais seguro, até para os filhos”. Apesar de já terem sido assaltados quatro vezes (duas em casa e duas na casa de câmbio), a família acha mais seguro morar no Suriname do que no Brasil. “Trabalhamos com ouro, o que chama muita atenção. Mas, ainda assim, aqui temos uma caminhonete Hilux, que no Brasil custa 300 mil reais. Aqui, andamos nela tranquilamente, sem medo de ser feliz. Lá, andar num carro desses é pedir para ser sequestrado em troca de resgate”, explica Cleo. Curiosamente, as quatro vezes em que foram assaltados, afirma o casal, os assaltantes eram brasileiros.

A cartilha de imigração para o Suriname, elaborada pelo Ministério das relações exteriores brasileiro alerta para o fato que 69% dos eleitores surinameses têm uma imagem negativa dos brasileiros. Mas, pelo que parece, os próprios brasileiros têm uma imagem negativa de seus conterrâneos. “Aqui, Luiza, só se pode confiar em Deus”, alerta a moça. Nalva é evangélica e Cleo afirma não frequentar a igreja local. O casal pensa em voltar ao país de origem, mas sem esperanças de uma vida melhor: “O Brasil é bom, mas aqui a

69% dos eleitores surinameses têm uma imagem negativa dos

brasileiros.

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gente tem mais segurança”, diz o marido. Segundo o casal, o garimpo no Suriname não é perigoso como afirmam os jornais. “Perigoso é na Guyana, lá sim morrem cinco todos os dias”. Os brasileiros têm uma imagem ruim dos conterrâneos que moram no Suriname, mas se irritam quando um veículo da mídia vai visitá-los, e só mostra partes polêmicas da vida dos brasileiros no país. Da última vez em que uma rede de televisão brasileira foi ao Suriname após o episódio de Albina, o choque dos parentes brasileiros foi enorme. Na matéria: drogas, tráfico, prostituição, maus tratos e mortes. “E só!”, reclama Cleo. “...como se fôssemos um bando de selvagens... A gente sabe que existem problemas aqui, e que muita gente é pilantra, mas tem muita gente honesta também. Não gosto da imagem que o Brasil tem da gente que mora aqui. Parece que somos um bando de animais”.

Os brasileiros não confiam nos brasileiros, e os surinameses os interpretam como pilantras ou prostitutas. O clima de trabalho é diariamente tenso, e as brasileiras de Little Belém se sentem revoltadas com a situação. Shell afirma ter recebido diversas propostas indecentes em seu turno no supermercado. “Quando os garimpeiros vêm do interior comprar suprimentos, eles oferecem vagas nos cabarés. Nos cabarés (as pequenas boates de prostituição e entretenimentos no

interior dos garimpos) eles pagam muito bem”. Segundo conta a moça, apoiada pelas irmãs em seu depoimento, os garimpeiros lhes perguntam quanto elas ganham por mês trabalhando no supermercado. “300 dólares”, afirma Shell. E eles explicam: “No cabaré você ganha isso em uma noite”. A proposta é financeiramente tentadora, mas as irmãs preferem continuar trabalhando no comércio local, em posições “dignas”, como explica Shell.

Em Paramaribo há alguns cabarés brasileiros, três deles mais famosos. Quando tomava um taxi para ir de Little Belém até outro ponto afastado do centro, fui abordada por um taxista muito falante. Em holandês, me perguntava se eu era européia. Quando disse que era brasileira, um arrependimento, o homem que se interpretava cheio de charme falou que procurava uma namorada brasileira, “...adoro mulheres brasileiras”, acrescentou. Presa no espaço de um metro quadrado no banco da frente do taxi que tinha os forros destruídos pelo uso, com espumas saindo do estofado, sem ter para onde andar, respondi com cuidado que eu não estava interessada, menti ser casada. Não satisfeito, o taxista java-chinês continuou: “Você ia vender bem se trabalhasse no Pérola. Brasileiras vendem bem. Ainda mais se parecendo com homem branco (como eles chamam os europeus em Paramaribo)”. Pérola, para quem não pôde imaginar o olhar maluco

Bares dançantes para os estrangeiros são conhecidos como cabarés brasileiros pelos moradores locais.

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na cara do Java-chinês, é a maior casa de prostituição brasileira da capital. Segundo o embaixador brasileiro no país, o trabalhador que vai tentar a vida no Suriname não tem mais o mesmo perfil que antigamente. Antes, os homens iam ao garimpo e acabavam gastando todo o ouro em bebidas e mulheres, e as mulheres eram intimadas a participar dos cabarés (prostituição). Havia histórias de passaportes retidos e mulheres que apanhavam quando tentavam fugir. Hoje, em geral, isso não acontece mais. Muitos dos homens são empreendedores. Eles trabalham no garimpo e investem o ouro em maquinário, em lojas de suprimentos, qualquer coisa que lhes possa garantir um futuro estável uma vez que não mais puderem participar do garimpo.

“A embaixada brasileira no Suriname monta, de tempos em tempos, um consulado itinerante. O grupo de pessoas (em geral mulheres) vai até as corrutelas no interior do Suriname, conversar com as mulheres dos cabarés para instruí-las com relação a seus direitos e deveres”,explica José Luiz Machado.O embaixador conta que, antes de o consulado itinerante entrar nos cabarés, eles pedem a permissão dos donos (em sua maioria também mulheres), para conversar com as brasileiras de forma privada: “só a cônsul e a moça”. A cônsul as instrui com relação a uma série de serviços desde apoio médico, até telefones gratuitos que podem ser contatados 24h, de qualquer telefone, celular ou fixo, caso as moças queiram dar queixa ou precisem de ajuda-.“O serviço já

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existe há muitos anos, mas, até hoje, o consulado não recebeu sequer uma ligação com pedido de ajuda ou queixa de maus tratos” completa o embaixador.As mulheres que trabalham nos cabarés ganham muito dinheiro. Elas são pagas em ouro pelos garimpeiros locais. Muitas sustentam as famílias no Brasil, além de poderem pagar uma vida confortável, cheia de roupas caras e luxos tecnológicos no Suriname. O embaixador não foi o único a mencionar esse perfil das mulheres dos cabarés. Os brasileiros com os quais conversei durante minha estadia no Suriname, todos têm a mesma impressão da situação. No aeroporto mesmo, na ida a Paramaribo, as mulheres vaidosamente vestidas com suas bolsas Gucci e calças Dolce & Gabana

eram muitas. Todas falando português em seus celulares Black Berry, a febre tecnológica do país. Difícil dizer qual das moças vaidosas trabalhava, ou não, no cabaré. Mas era fácil dizer que a vida lhes parecia financeiramente confortável.Dadas as opções de emprego brasileiros no país, não é de espantar que muitas optem pelos cabarés. As moças são valorizadas e ganham uma fortuna paga em ouro, enquanto no comércio local de Little Belém, em sua maioria mantido por empreendedores chineses, as horas de trabalho são mais longas e os salários mais baixos que o dos orientais. Segundo contam as brasileiras, para cada dois conterrâneos empregados nos supermercados de Little Belém a um salário de 300 dólares por mês, há um chinês, ganhando o dobro e trabalhando duas horas a menos.

Os brasileiros que vão parar no Suriname, segundo o embaixador, em maioria, saem de regiões com os menores índices de desenvolvimento humano do Brasil. Por isso, são sujeitos a uma série de contratempos e situações injustas para manter uma pequena quantidade de bens ou uma vida quase agradável. No Suriname eles são acusados de poluir, de sujar, de crimes e de abusos, mas há uma conivência do governo local. Eles não são tirados de lá.“Porquê?”, questiona o embaixador, com compostura, “Porque o país precisa dos brasileiros. Há um lucro saído do garimpo que é repassado para a comunidade local”, afirma, explicando o conflito da imigração. Como os brasileiros são ilegais, há, por exemplo, propinas e chantagens às quais eles são submetidos que geram lucros para o país. “Talvez não diretamente para o governo, claro, mas para a comunidade local, que vai ter dinheiro para investir na economia do país.”, completa.“Eles saem no jornal como criminosos, mas não são impedidos de fazer negócios no país”, afirma José Luiz. “É assim que vivem os brasileiros por aqui”.

Grande parte do comércio local gira em torno do garimpo. Até mesmo na capital, muito é pago em ouro.As casas de troca empregam dezenas de brasileiros. O português é imprescindível para se comunicar com os garimpeiros.

“...o país precisa dos brasileiros. Há um lucro saído do garimpo que

é repassado para a comunidade local.”

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O Conflito: Segundo informações oficiais da embaixada brasileira no Suriname, o episódio do Natal de 2009, em Albina, deixou 14 gravemente feridos e nenhum óbito. A partir de uma investigação com a comunidade local, foi elaborada uma lista de sete pessoas desaparecidas que, uma a uma, foram encontradas no interior do Brasil ou na capital do Suriname. Muitas delas haviam fugido para a Guyana Francesa e retornado meses após o conflito.

Dos criminosos, 28 habitantes do Suriname, em sua maioria maroons, foram confirmados

pela justiça do país como sendo participantes do crime. Foram presos e processados. Alguns respondem em liberdade. No avião da Força Aérea Brasileira foram levados de volta ao Brasil 80 vítimas, sendo 30 no primeiro vôo e 50 no segundo. O último vôo levou, também, famílias das vitimas que estavam instaladas na capital. De Albina a Paramaribo, foram levadas 90 pessoas. A princípio, a cidade ficou vazia. Até algumas semanas mais tarde, não havia a sombra de ninguém no garimpo.

Das 90 pessoas que foram encaminhadas aos

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hospitais da capital, cerca de 50 tinham algum tipo de ferimento. Desses, sete eram mais graves. A embaixada ofereceu às vitimas passagens para Belém, mas não foram todos que aceitaram. Muitos deles não tinham documentos pessoais, ou de permanência no país. Alguns alegaram ter perdido todos os documentos durante o ataque. Para aqueles que não mais possuíam os documentos, a embaixada formou um grupo de emergência de confecção de novos documentos. Esse grupo ficou encarregado de recolher todas as informações possíveis das vítimas, e conferir nos cartórios brasileiros, para poder gerar novos

documentos gratuitamente.

A verdadeira causa do ataque, segundo o embaixador brasileiro, não foi a presença dos brasileiros no local. A presença de qualquer grupo não surinamês poderia ter disparado o gatilho. Ele afirma não existir um ódio generalizado pelos brasileiros. O ataque, segundo ele, poderia ter sido aos chineses e até aos próprios surinameses de outras regiões. “Foi uma questão de ocasião. Naquela região, vivem os antigos guerrilheiros, aqueles que lutaram contra a ditadura de Boutersi (antigo ditador e atual presidente eleito). Aquela região não segue as regras do país. É um caos total. Eles têm suas próprias leis”.

Para José Luiz, o acontecimento foi uma fatalidade: “Os habitantes locais são muito pobres, sem perspectiva de vida. Quando viram os brasileiros celebrando, com uma imensidão de comes e bebes, música, festa, luzes coloridas, e pensaram a respeito da própria situação, chegaram à seguinte conclusão: Nós, habitantes locais, estamos aqui, sem nada, enquanto os forasteiros invadem nossas terras, garimpam o nosso ouro e ficam ricos, fartos, festejando e celebrando. Porque permitir isso? Se eles não obedecem ao governo central, porque obedecer às leis dos brasileiros?”.

No bar, um maroon começou a provocar um brasileiro de baixa estatura. Cobrou um dinheiro relativo ao transporte de mercadorias que o brasileiro já havia pagado. O maroon disse que queria o pagamento novamente, uma vez que ele “mandava” naquele pedaço de terra. A pancadaria começou e o brasileiro, sabendo que não tinha chance de sobreviver, por ser pequeno e fraco, tirou do bolso a faca que carregava consigo. Segundo os moradores locais, ele não esperava que fosse resultar em morte, mas a auto defesa foi desleal.

“O local não é um problema contra os brasileiros. É uma questão de política interna do Suriname, sobre a qual não temos controle, nem eles (o governo). Por sorte, ou falta de, acabou envolvendo um grupo de brasileiros”, avalia o embaixador.

“...não é um problema contra os brasileiros. É uma questão de política

interna...”

Caminhando por Anamoestraat, tem-se a sensação de estar no Brasil.

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Quinze passos. É essa a distância entre as portas da Mesquita e da Sinagoga na rua Keizerstraat, no centro de Paramaribo. O último dos prédios a ser construído foi a mesquita, em 1984. Ali, sob o sol equatorial, no meio do comércio central os dois prédios convivem em harmonia. Quando a festa é mulçumana, a sinagoga empresta o espaço para o encontro dos adeptos da mesquita. Quando chega o ano novo do judaísmo, o estacionamento da mesquita é cedido aos judeus para que possam realizar suas celebrações em um espaço mais amplo.

A cerca de quatro quarteirões, vê-se a catedral católica. Mais algumas quadras e mais duas igrejas evangélicas. Indostano, protestante, católicos ortodoxos e até Deus é Amor e Universal do reino de Deus fazem parte da paisagem de arquitetura religiosa da capital do Suriname. O que pode parecer uma intensa salada cultural, entretanto, de perto se revela uma grande segmentação. Apesar de todas as culturas conviverem no mesmo ambiente da cidade, as relações sociais e afetivas são concentradas nas vidas religiosas, cada um com o seu bando.Tendo passado duas semanas na casa de javaneses estabelecidos há décadas no Suriname, descobri que mesmo o grupo representando apenas 18% da população, tudo que os cerca é javanês. Os móveis, os amigos, os vizinhos, a comida, a igreja, as festas e até os namorados. O supermercado, não tem como fugir, é chinês. Mas até o mercado de rua ao qual a família frequenta é completamente javanês.Nas ruas, muitos fenótipos e pouca miscigenação. Negros, brancos, pardos, indianos, chineses,

Entre terra prometida e terra de

ninguém, o Suriname abre as

portas para etnias e as recebe

com oportunidade e abrigo

étnico.

Sushi em folha de banananeira e frango no curry

Acima, a sinagoga mais antiga da capital. Abaixo, a mesquita, inaugurada em 1984. No centro de Paramaribo, as construções vizinhas convivem em harmonia.

Por Luiza Andrade

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Acima, a sinagoga mais antiga da capital. Abaixo, a mesquita, inaugurada em 1984. No centro de Paramaribo, as construções vizinhas convivem em harmonia.

javaneses, brasileiros e europeus. É como estar em pleno ano de copa do mundo em um país sede. O pouco espaço é dividido entre os 250 mil habitantes da capital e os outros 250 mil do interior. Com tantas culturas, fica difícil estabelecer uma língua local. Na jornada de um dia andando pelo comércio de Paramaribo, é possível perceber pelo menos seis línguas diferentes, - híndi, inglês, português, holandês, javanês e sranan tongo - muitas vezes com expressões misturadas e frases compostas por duas ou mais línguas estrangeiras. Parece confuso para quem observa de fora, mas quem faz parte do contexto se entende e convive em harmonia.

Por uma questão histórica de colonização, a língua oficial é o holandês. O país, até 1975, foi colônia da Holanda. O currículo escolar, portanto, tem o holandês como parâmetro de alfabetização. Mas no Suriname quase todo mundo fala inglês. E quem não o fala, ao menos entende. Até mesmo filmes e programas de televisão importados dos Estados Unidos são transmitidos sem legendas. Não é à toa que, por lá, as pessoas gesticulam bastante quando conversam. Talvez seja uma forma de facilitar a comunicação e a compreensão dos diálogos multiculturais. Ainda assim, quem acha que a população do Suriname é bilíngue se engana. A maioria fala três ou quatro línguas.

Nadya, surinamesa de classe média, já morou na Europa e nos Estados Unidos. Fala javanês, holandês, inglês e um pouco de espanhol. Adoraria aprender o português e durante os almoços de família, com a expressão frustrada, reclama com a mãe que quer aprender o sranan tongo, para poder se comunicar melhor com a empregada doméstica, que entende inglês e holandês, mas só fala a língua maroon.A mãe, javanesa, imigrou para o Suriname fugindo de um casamento forçado. Ela conta que, quando era jovem, tinha um namorado muito querido, mas era muito nova para se casar. “Lá as coisas não são como aqui. Quando eu disse que não queria me casar, ele aceitou, mas sua família me ameaçou de morte”. Na mesma época, surgiu um emprego na recém estabelecida embaixada da Indonésia na capital do Suriname. Sem pensar duas vezes, deixou tudo para trás e se foi, pelos mares à terra desconhecida. Não falava um pingo de holandês, “mas acabei aprendendo”, completa. A mãe já não trabalha mais na embaixada, mas tem fortes relações com a instituição. Durante a semana é a organista oficial da igreja javanesa, dá aulas de

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angklung – instrumento tipicamente javanês – para crianças e é produtora de um programa de música em uma TV local.Seu marido, pai de Nadya, é aposentado. Originalmente da Indonésia, Sr. Prawmidjodjo conta que quando se formou na universidade, ainda em seu país de origem, era o final da segunda guerra. Como a Indonésia tinha inclinações comunistas, o governo lhe ofereceu uma bolsa de mestrado e doutorado na Alemanha oriental. Em troca dos estudos, ele deveria, ao final do curso, voltar à Indonésia e ministrar aulas na universidade local. Entretanto, quando o curso chegou ao fim, o governo havia mudado, e não havia vaga para professores nas universidades indonésias. Foi então que o governo coreano lhe ofereceu um curso de especialização. Durante alguns meses, viveu na Coréia do sul e se especializou em engenharia de maquinário para agricultura. Quando recebeu seu diploma, recebeu também algumas ofertas de emprego pelo mundo. “Conversei com um professor da Alemanha e falei pra ele das propostas. Tinha uma muito interessante no Canadá, que era bastante desenvolvido na época, e outra no Suriname, que não tinha nada. Ele me aconselhou a pegar a proposta do Suriname. “Se o país ainda não tem nada, é você que vai ajudar

a construí-lo. A chance de perder seu emprego é menor”, conta, em holandês, fazendo a voz mais grave, como se tomasse o papel do professor. “E foi assim que vim parar aqui”. Sempre com um sorriso no rosto, Sr. Prawmidjodjo faz questão de exibir seu livro do ano de graduação do curso da Coréia. “Olhe, veja se você conhece alguém”, abre o livro com os nomes e endereços de pessoas de todo o mundo, seis deles brasileiros, quatro deles do Rio de Janeiro. As datas de nascimento são das décadas de vinte e trinta. “Acho difícil conhecer alguém entre os 190 milhões de brasileiros”, penso com meus botões, mas observo atentamente a página do livro e faço, com os olhos, expressão de quem tenta se lembrar de um rosto.

No Suriname, Sr. Prawmidjodjo durante muitos anos trabalhou no ministério de desenvolvimento agrícola. Como tinha fortes laços com a comunidade javanesa local, ia com frequência à Embaixada, e assim conheceu sua esposa. O casal vive no país há mais de trinta anos. Estabelecidos, não têm planos de voltar à Indonésia. “Lá tem gente demais. É muita gente pra pouco espaço”, conta Achie, senhora Prawmidjodjo. “Aqui pelo menos temos espaço. Podemos andar na rua tranquilos”.

Centenas de enfeites javaneses compõem a decoração da casa da família Prawmidjodjo. Nas paredes, fotografias tradicionais fazem referência ao passado da família. Na casa da família Prawmidjodjo os jantares são verdadeiras lições de história e cultura.

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Placas do comércio local dividem o espaço entre holandês e chinês. Acima, um restaurante que também funciona como bar. Abaixo, uma loja de curtinas e objetos diversos.

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A questão do espaço é também uma constante na imigração dos chineses, que representam 7% da população no Suriname. Apesar da porcentagem ser, ainda, pequena, a presença chinesa na capital é marcante. O fenômeno pode ser explicado pelo fato de a etnia dominar os comércios locais, principalmente os supermercados. Dessa forma, os letreiros comerciais espalhados pela cidade carregam sempre, além de nomes chineses – Choi, chug, ying, Jing Lai, Tak Yie, Hong Sheng – também a grafia de pauzinhos minuciosamente organizados.

O espaço em si pode até não ser um problema, afinal o ser humano pode se adaptar para viver em pequenos espaços. O grande problema é a falta de moradia, saúde e emprego para tanta gente por metro quadrado. E a situação não se restringe ao oriente. Segundo o embaixador brasileiro no Suriname, José Luis Machado, a população que imigra do Brasil para o Suriname vem de um dos índices de desenvolvimento humano mais baixos do Brasil. A maioria, de Belém, viaja em busca de um emprego temporário, que lhes ajude a fazer um “pé de meia”, e voltar para a cidade de origem um pouco melhor de vida, com uma casa ou um

carro nos planos de investimento. Entretanto, a maioria quase absoluta acaba ficando no país. Com um emprego fixo, podem estabelecer uma residência permanente e um círculo social com os outros imigrantes de mesma origem.

As etnias mais organizadas estabelecem até mesmo associações de imigrantes. Os chineses, por exemplo, criaram uma associação

de imigração chinesa que recolhe dinheiro dos imigrantes locais. O montante, quando acumulado, é direcionado aos novos imigrantes, como forma de empréstimo/investimento. Com o capital, muitos deles conseguem abrir negócios – vendas e supermercados. Com a esperteza chinesa para negócios, logo os produtos são vendidos e acabam gerando lucro. Assim, o dinheiro é devolvido para a associação, que pode agraciar os próximos imigrantes.

A prosperidade de uma comunidade gera

O mercado chinês atrai públicos de todos os tipos. Ao lado, uma senhora saboreia o café da manhã comprado na barraca ao lado: biscoitos de arroz crocante.

Algumas etnias estabelecem até mesmo

associações de imigrantes.

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insatisfação nas outras. Com a proliferação chinesa em Paramaribo, as comunidades brasileira e indiana sentem-se ameaçadas. Segundo os brasileiros locais, os artigos falsificados acabam com as lojas brasileiras. “Não tem como competir”, afirma a brasileira Nalva, dona de uma loja de roupas que, rumo à falência, busca outras opções de negócios. Além de se inserirem nos negócios de vendas e mercados, os chineses também têm um grande numero de restaurantes de comida chinesa. E, ainda, um mercado de rua que concentra apenas produtos chineses, como o mercado javanês.

A organização étnica e social do país é representada na bandeira oficial do Suriname. Nela, as faixas em verde, branco e vermelho representam a fertilidade, justiça e paz e, por

último, patriotismo. Ao centro uma estrela - da cor do ouro, metal abundante naquelas terras - de cinco pontas representa a multiplicidade étnica e as cinco maiores etnias do país – holandeses, indostanos, javaneses, maroons e judeus. Independente há 35 anos e democrático desde 1987, o país apresenta uma porcentagem maior de imigrantes do que de habitantes locais.

Além da bandeira, outros aspectos sociais tiveram que ser adaptados no país para suprir as necessidades da multiplicidade étnica. Ao

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analisar o calendário anual, no mês de fevereiro, por exemplo, tem-se o ano novo chinês, no dia 14, o carnaval brasileiro nos dias 14 a 16, e a comemoração do nascimento de Mohamed, feriado mulçumano, no dia 26. Já em outubro, têm-se, do dia 8 ao 16, um período indostano de jejum em honra à deusa Durga, no dia 10, o dia da celebração maroon, no dia 20, a comemoração da imigração chinesa e, por último, nas últimas semanas do mês, o festival de Salsa e Zouk, danças tipicamente caribenhas. São mais de quarenta eventos étnicos no calendário escolar. A diversidade religiosa é tamanha que foi implementado em 20 de janeiro, um mês relativamente vazio de feriados (tem apenas dois), o dia mundial da religião, em que todas as crenças, pagãs ou não, são homenageadas. A festa de rua é multi-étnica e as comemorações

Artigos vindos da china abastecem os supermercados e as lojas de roupa. Comerciantes de outras etinias se sentem ameçados pelos baixos preços associados à baixa qualidade de produtos chineses. Com o comércio, cresce o capital de giro e, junto, a porcentagem de chineses no Suriname.

internas segregadas.No guia turístico, além de uma lista de todos os feriados e eventos do país, a constituição do perfil cultural do Suriname é divida em seções. Primeiro, um pouco sobre a influência holandesa. Depois, influências francesa e alemã. Os ingleses, durante a primeira guerra mundial, também deixaram marcas das botas britânicas no solo surinamês. Alem disso, influências africanas, dos escravos, e as já conhecidas chinesa, indiana, javanesa e brasileira são mencionadas. Entretanto, muito pouco é atribuído à cultura local. Ela é praticamente inteira constituída por influências, exceto pela contribuição maroon e ameríndia à culinária e às crenças religiosas.

O resultado é um cardápio variado de refeições. Para os Java-surinameses, tudo com arroz – bem grudado e sem tempero. E, para compensar a falta de tempero, peixe frito salgado de arder a língua, com bastante molho de pimenta. Para os china-surinameses, o café da manhã é quase o mesmo que o almoço: trouxinhas gordurosas de carne de porco e arroz, também sem tempero. O almoço hindi-surinamês é carregado no curry, e o maroon na banana e nos molhos feitos de amendoim – utilizado também nas culinárias javanesa e holandesa. Comer, no Suriname, é como estar em um país diferente a cada refeição, uma verdadeira viagem gastronômica. A sensação de sentir diferentes gostos durante as refeições é a mesma de frequentar diferentes ambientes ao longo do dia, cada qual com sua especialidade e suas características específicas na decoração. Com tanta variedade, é difícil estabelecer um prato que agrade a todos os públicos. Os fast food da cidade, dada a dificuldade, investiram no amor pelo frango frito. Lá, o “Mc’lanche feliz” serve, como opção, ao invés do hamburger, um pedaço de frango frito, empanado com uma capa crocante e servido com um potinho de maionese. Outras cadeias de sucesso são o Kentucky Fried Chicken e o Popey’s, ambos com frango frito no cardápio.

Em geral, cada comunidade concentra-se em formas específicas de sustento. Os chineses, são a camada majoritária no comércio de supermercados e artigos falsificados, seguidos pelos indianos. Cerca de 18% da população, os javaneses, advindos da ilha de Java na Indonésia, em maioria concentram-se na arte da culinária. É comum caminhar pelas ruas sob o sol de Paramaribo e avistar restaurantes construídos nas amplas varandas das casas javanesas. Muitos dos indianos são donos de grandes e pequenos negócios, redes de televisão, cadeias

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Em um dos vários restaurantes indonésios da capital, o jantar é servido como na Ilha de Java: Macarrão , frango frito, salada de feijão em corda e soja, banana empanada e molhos de amendoim e pimenta.

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Em um dos vários restaurantes indonésios da capital, o jantar é servido como na Ilha de Java: Macarrão , frango frito, salada de feijão em corda e soja, banana empanada e molhos de amendoim e pimenta.

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de restaurantes, vendas e lojas de imóveis. Já os habitantes locais, maroons e ameríndios, em maioria prejudicados pela história da colonização, formam a camada mais pobre da população, claro com algumas exceções. Eles representam, em grande parte, a camada operária da salada cultural. Pedreiros, carpinteiros, eletricistas e pintores. Segundo os javaneses, a imigração indonésia para o país começou justamente por causa do trabalho dos habitantes locais. Com a libertação da escravatura e as precárias condições de vida e trabalho dos ameríndios e ex-escravos, foi preciso trazer pessoas de outras regiões do planeta dispostas a trabalharem duro em troca de um pedaço de terra. Os chineses contam uma história similar. A princípio o trabalho era temporário, mas com as vidas e os empregos estabelecidos no Suriname, foi raro alguém voltar ao país de origem.

Dino Ngadino é um comerciante de 44 anos. Com meus olhos, talvez um pouco exaustos de tanto observar detalhes durante quinze dias de estadia no país, lhe daria menos de trinta. Sua loja comercializa CDs e DVDs piratas. Segundo ele, o comércio dá um dinheiro bom. “Mas a Indofair não acrescenta muito em lucro. Só acrescenta mesmo para quem vende móveis e comida. Os javaneses gostam de móveis da Indonésia, e todo mundo gosta de comer”, afirma com um sorriso piadista no rosto. Concordei e disse que eu também era uma dessas pessoas que gostam de comer. A indofair, é uma feira de comemoração da imigração javanesa para o Suriname que acontece uma vez por ano. Em 2010, a imigração completa 60 anos, e a feira 10. Durante nove dias, centenas de javaneses desfrutam de comidas típicas e espetáculos de dança e teatro, trazidos da Indonésia especialmente para a ocasião. Todos se conhecem, muitos deles são familiares. Em todas as barracas, vê-se rostos ovais, tipicamente orientais. Vestimentas javanesas e artigos de luxo. Móveis, roupas, adornos e até mesmo produtos diet importados de lá. Aqui tudo se concentra, o pequeno mundo javanês cultivado em um país estrangeiro. Com todo o entretenimento indonésio, me impressiono com a manifestação do público cativo quando foi anunciada a sessão de cinema: bollywood. Sim, cinema com dança e histórias de amor proibido, diretamente da Índia. O público javanês enlouquece com a sessão, e no dia seguinte ela se repete. Novo título, mas as expressões do público são as mesmas. A multidão de se diverte com o entretenimento. A reação do público é intrigante. Ela aponta para um ponto importante da multiplicidade étnica,

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Ao lado, Dino e seu funcionário em frente à banca de CDs e DVDs na Indofair 2010.

Abaixo, barracas de comida típica da indonésia atraem os visitantes.

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Acima, um surinamês caminha pelas ruas quase desertas de Paramaribo devido ao calor intenso. Abaixo, uma feirante chinesa faz um intervalo nas vendas para o lanche. Ao lado, uma garota javanesa passea pela feira étnica.

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algo que acontece no Brasil com tanta frequência, que já mal é percebido, miscigenação cultural e o sincretismo global. No Suriname, cada grupo étnico vive em sua bolha social. Entretanto, com tanta influência ocorrendo constantemente, é impossível não absorver parte das outras culturas. No Brasil, a mistura já é tanta que a chamamos de uma cultura só, a cultura brasileira, formada de muitas outras, dividida por regiões numa vã tentativa de organizar o mix cultural. Mas, no Suriname, não há regiões para se dividir. São 250 mil pessoas vivendo somente no espaço da capital. É difícil compreender a forma pela qual, até hoje, os grupos étnicos não são tão misturados como em outros países. Paramaribo é o verdadeiro exemplo da aldeia global. Entretanto, assim como este conceito, a segregação tende a cair em desuso e a tentativa

de cultivar raízes puras de culturas de origem se torna cada vez mais difícil de manter. Na barraca de Nadya, em que são vendidas comidas típicas e produtos importados da indonésia, vemos um exemplo da nova geração de jovens surinameses: dois mulçumanos, três javaneses, um indiano e um descendente de ameríndios. É a única barraca multicultural da feira, mas já representa uma tendência. A verdade é que o Suriname se parece cada vez mais com o Brasil. Só lhes faltam 180 milhões, 970 mil brasileiros.

Durante a Indofair, grupos de dança e teatro foram trazidos da Indonésia para entreter os javaneses do Suriname.

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Luiza Andrade

ANTROPOJORNALISMO: uma experiência em enviado especial.

Belo Horizonte, MGUFMG/Fafich

Dezembro 2010

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Luiza Andrade

Antropojornalismo: uma experiência em enviado especial.

Relatório técnico de Projeto Experimental apresentado ao curso de graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG, como um dos requisitos para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social - habilitação Jornalismo.

Professor orientador: Elton Antunes

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ÍNDICE:

>> Apresentação: Antropojornalismo: unindo o útil ao agradável.

1. Porque escolher o Suriname?

2. Proposta Inicial.

3. Enviado Especial e Correspondente, uma locação com dois focos diferentes.

4. A produção: diário de campo.

5. Conclusão.

6. Bibliografia.

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Apresentação: Antropojornalismo: unindo o útil ao agradável.

Jornalistas e antropólogos são profissionais que, apesar de terem objetivos e visões distintas, apresentam características comuns e traçam caminhos que se entrecruzam. Segundo Travancas (2002), os profissionais podem ser reunidos em uma categoria mais ampla, como mediadores profissionais. Tanto os jornalistas, quanto os antropólogos vivem da mediação. Como fenômeno sócio cultural, a mediação é entendida como a relação de interação entre indivíduos, que possibilita a troca e a comunicação. A diferença entre as mediações é estabelecida, em primeiro lugar, no deslocamento cultural. Enquanto os antropólogos, em geral, escrevem sobre culturas distintas, o jornalista diário escreve sobre a própria cultura.Um olhar mais aprofundado, entretanto, é capaz de notar que a experiência do trabalho de campo do pesquisador, a etnologia, não está relacionada com um deslocamento geográfico, mas com a capacidade de se afastar e se inserir em determinados contextos, sejam eles o seu de origem, ou um novo contexto. Dessa forma, os olhares do antropólogo e do jornalista têm muito em comum.Como o do jornalista, o texto do antropólogo é dirigido ao leitor de sua sociedade de origem. Mas, enquanto o jornalista escreve para o leitor do seu jornal, o antropólogo escreve para os acadêmicos de sua sociedade. Como mediadores, ambos levam à sociedade uma visão construída pelo propósito do texto. O jornalista leva ao leitor um mundo construído pelo jornal. Ele é o mediador entre o leitor e o mundo. Da mesma forma que o antropólogo traz, através de seu texto etnográfico, para quem o lê, uma construção da sociedade do outro.Insisto na palavra construção porque tanto a antropologia quanto o jornalismo produzem discursos em condições específicas de demanda de tempo, espaço e interação social. As condições não são culturalmente, nem socialmente neutras. Em 1978, Geertz já afirmava que os textos etnográficos eram uma forma de ficção. Não por serem falsos, mas por serem discursos construídos.As formas de elaboração do texto jornalístico, e do antropológico nos levam à velha questão da objetividade.Por muitos anos, tem sido uma tendência do jornalismo mundial a busca pela objetividade. Como representantes da notícia, os repórteres são estimulados a não manifestar opiniões, buscar sempre os dois lados da historia e transmitir, de forma clara e concisa, as informações livres de julgamentos subjetivos.Na antropologia, a tendência é inversa. A noção positivista da ciência social de Durkheim tem sido deixada de lado e substituída por uma abordagem antropológica não participativa, mas reflexiva. Segundo Travancas, a habilidade relativa à análise dos discursos dos entrevistados, ao invés da simples reprodução pragmática destes, adiciona um aspecto importante à antropologia: ao ir além dos discursos, o antropólogo enriquece o leque de interpretações sobre determinado fato. Ele não o considera apenas do ponto de vista do entrevistado, mas também do ponto de vista da sociedade à qual ele pertence, além do próprio ponto de vista, e do de sua sociedade de origem.No jornalismo, a tendência à objetividade tem sofrido mudanças. Devido às técnicas de formatação dos textos jornalísticos, muitos jornais acabam por publicar matérias feitas a oito mãos. Além de ter sido escrita por um, ou dois repórteres, a matéria passa na mão do editor e do chefe de redação. Dessa forma, manter estilos específicos de escrita, características próprias e inserir reflexões no texto torna-se deveras complicado.O compromisso com a notícia seca, somente informativa e nada analítica, acaba por fazer com que o texto jornalístico tenha um caráter temporário. O que hoje é noticia, amanhã é o toilette do cachorro, ou o embrulho do peixe na feira. Já na antropologia, o texto é duradouro. A análise cultural e as reflexões de grandes pensadores ficam armazenados sob volumes de livros reflexivos e conhecimento acumulado. Por outro lado, o texto obedece a longos períodos de tempo. Ele não é imediato, ou freqüente, como o texto do jornalismo.A disputa entre informação e conhecimento, já antiga no campo do jornalismo, parece mais evidente na confluência entre o campo e a antropologia. Como estudante de jornalismo, ouço dizer que os profissionais do nosso campo de trabalho tudo sabem, mas nada conhecem. De fato, aprofundar em

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determinados campos do conhecimento não faz parte do jornalismo diário – com exceção daqueles especializados em determinados assuntos. Já como estudante de antropologia, ouço o oposto. Para os leigos, somos alienados, sem informação sobre o que acontece no resto do mundo, fora do contexto estudado.Mesmo com seus pontos positivos e negativos, a antropologia e o jornalismo são formas de organização do mundo. Segundo Durkheim e Mauss (1981), a forma que o ser humano encontrou de transformar o mundo em uma dimensão inteligível, foi através da classificação, para compreensão e organização.É essa classificação que direciona os campos aqui debatidos. Apesar de serem apresentadas a públicos distintos, o propósito final é o mesmo. Compreender o mundo não é uma tarefa fácil. A meta final é utópica, é relativa. Mas a apresentação de notícias e fatos de forma organizada e inteligível facilita a elaboração de ideias sobre a sociedade e os diferentes contextos.A antropologia e o jornalismo são como gêmeos separados na maternidade. O que sobra em um, falta no outro e vice-versa. Ao juntar, na medida do possível, a imediaticidade e a linguagem de fácil compreensão, que geralmente acompanham o jornalismo, com a expressão subjetiva, e o aprofundamento nos temas da antropologia, é possível desenvolver um produto mais eficiente na difusão de conhecimento e informação. Um texto fácil de ler que, abrangendo um público extenso, busca, ao mesmo tempo, informar os leitores no primeiro parágrafo, e despertar a curiosidade com relação às sensações do repórter e ao desenrolar da experiência na matéria, que podem ser inferidos ao longo do texto. O jornalismo pode ser enriquecido com o aprofundamento em determinados temas. A inserção das sensações do repórter, sejam elas de estranhamento, ou identificação cultural, trazem uma caráter mais participativo ao texto. Dessa forma, o leitor pode se identificar melhor com o veículo que traz a matéria. É possível, inclusive, que haja uma identificação que venha a se tornar uma relação para-social (Horton e Wohl, 1956), como ocorre com o jornalismo e o entretenimento televisivo. Segundo Horton e Wohl, os telespectadores desenvolvem com os personagens televisivos relações para-sociais. Eles se identificam, tomam suas dores, ou passam a odiá-los, dependendo da forma como são representados. No jornalismo impresso, isso também acontece. As colunas, por exemplo, são representações textuais das opiniões de determinadas personalidades. Algumas amadas, outras odiadas.A proposta deste projeto, entretanto, localiza-se em um grau de subjetividade não tão alto, quanto nas colunas de opinião, e não tão ausente, como nas notícias diárias. A presença do repórter, no antropojornalismo, é reconhecida no texto e, mais raramente, em expressões pessoais. Pelo estilo de escrita, bem como a descrição de sensações, o repórter cativa o leitor, que tem a sensação de estar presente na situação. A leitura passa a ser menos distanciada, e mais relacional com o texto.

Porque escolher o Suriname?

Com ¼ da população da capital de Minas Gerais, o Suriname é um país de pouca projeção na mídia internacional. Mesmo fazendo fronteira com o Brasil, só se ouve falar daquele território quando ele apresenta algum tipo de conflito envolvendo brasileiros. Durante o intercâmbio internacional promovido pela diretoria de relações internacionais da UFMG, em parceria com a Vrije Universiteit, na Holanda, convivi com pessoas de diversos países e de passados distintos. Na primeira semana de trocas culturais, em meio a jantares coletivos e jogos de carta, tive o prazer de conhecer uma estudante mestranda em marketing que é, originalmente, do Suriname.Ao conhecer Nadya, tive a mesma reação que recebo quando falo para as pessoas o nome do país onde foi desenvolvido o projeto: Suriname, uhn? Fica na América Central?Até mesmo a Ásia já foi sugerida como o continente que abriga o pequeno país. Durante um ano,

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expliquei para conhecidos que o Suriname é uma ex colônia holandesa, localizado ao norte do Brasil. Faz fronteira com o Pará e com as Guianas. Para Nadya, entretanto, o senso de nacionalidade foi sempre desenvolvido como uma auto afirmação. A constante necessidade de explicar a existência de um país tão pouco conhecido, acredito, foi sentida por Nadya, da mesma forma como quando alunos europeus, ou norte americanos, afirmavam que no Brasil se fala espanhol. Certa vez, a discussão foi parar no google, com a prova instantânea de que no maior país da América do Sul se fala Português.O estranhamento, bem como a assimilação cultural, foram essenciais no decorrer do intercâmbio. Nada como uma tarde com um nativo, para saciar a sede de informações sobre seus países de origem. A oportunidade de participar do programa surgiu por volta do 4º período, quando começava a questionar a escolha pelo jornalismo. Interessava-me pelas Ciências Sociais e planejava uma transferência para o lado “direito” da Fafich. Por sorte, ou destino, o acordo com a universidade holandesa estabelecia a participação dos alunos na área das Ciências Sociais. Com os olhos no edital, e uma caneta na mão, o “ting” de uma lâmpada brilhou no computador. Era a oportunidade perfeita de estar em contato com a Antropologia, sem desistir, de vez, do jornalismo.Na Holanda, mantive contato com as bases da antropologia e estudos sobre o entretenimento. Os debates em sala, e a bibliografia dos cursos fomentavam uma curiosidade que não era distante daquela do jornalismo. As tentativas de entender determinados fatos, ou rituais de culturas distintas, não foram feitas apenas por antropólogos, mas também por jornalistas. As coberturas de guerra, jornalismo cultural, e até mesmo os cadernos de turismo têm um ponto de partida similar ao da antropologia, ainda que em escalas diferentes. Durante uma aula de história da antropologia, ministrada pelo professor J. T. Sunier, tive um momento de epifania: Que tal desenvolver o jornalismo com uma abordagem antropológica? Que tal chamá-lo de Antropojornalismo? Naquele momento, achei a ideia brilhante. Dias depois, tendo pesquisado as possibilidades do campo, fui descobrir que o antropojornalismo já existia.Como assistente de pesquisa de uma das professoras do departamento de antropologia, pude acessar notícias e estudos sobre os brasileiros que moravam no Suriname. No primeiro dia do trabalho, aprendi que Paramaribo era a capital do país, e que o perfil populacional era bastante similar ao brasileiro: uma grande mistura. Descendentes de diversos países e uma boa quantidade de imigrantes.Nadya, a mestranda surinamesa, era dona de um buffet no Suriname. Sua empresa fornecia salgadinhos e comidas tipicamente javanesas para festas e eventos. Tendo estudado administração em Nova Iorque, a surinamesa de um metro e meio se interessou por marketing, e assim foi parar na Holanda. Como tese de mestrado, Nadya tentava desenvolver estratégias de venda e publicidade para manter os cinemas abertos em seu país. Quando a jovem explicou porque os cinemas precisavam de estratégias fortes e certeiras de marketing, minha reação foi o silêncio. Eu não era capaz de conceber a ideia da inexistência de cinemas no país. Minha lógica fazia parte de um contexto brasileiro, de grandes salas, ingressos a 14 reais e filas, filas, e filas. Nadya, porém, continuou tomando seu chocolate quente como se o que tivesse acabado de dizer fosse óbvio – o que para ela, o era. O país carecia de grandes salas de cinema desde os anos 90. Simplesmente não havia público. O que, para nós, é tido como um programa especial, uma saída de fim de semana, para eles não passava de um atraso na programação. Tudo que ali passava, já havia sido transmitido nas redes nacionais de televisão. Até mesmo os filmes ainda não lançados. A ideia de fazer uma reportagem especial, sobre um contexto cultural, nasceu deste choque, numa noite de filmes e chocolates quentes.

O que você sabe sobre o Suriname?

O Suriname é um pais de 163.820 Km quadrados. Menos da metade da extensão territorial do estado de Minas Gerais (586.528 km2). Faz fronteira com o norte do Pará e com Guiana e Guiana

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Francesa.É um país muito curioso, e quem mora por lá sabe disso. Em uma conversa com o Embaixador brasileiro no país, ao explicar o projeto de graduação, a resposta que obtive foi: “O Suriname é uma aberração geográfica. Um país com clima tropical, cercado de verde amazônico, cuja população é formada por indianos, africanos, javaneses, chineses e libaneses, mas come kroket e fala holandês.”Pensei muito sobre a afirmação do Embaixador. Realmente, o Suriname é uma mistura cultural. Fica num espaço que é praticamente a divisa entre culturas da América central e do sul. 27% da população é Hindustano. 18% descendentes de africanos (os chamados creoles). 17% é javanês (Indonésios). 15% é maroon (quilombolas). Os outros 23% da população são formados por ameríndios, chineses, libaneses, judeus, europeus e até brasileiros.O país é uma “salada cultural”, como diria um dos indostano, entrevistados durante o projeto. Nas duas semanas em que lá estive, ouvi as línguas Inglesa (sotaques da índia e de outros países), Indonésia, Holandesa, Srana Tongo (dialeto local), Hindi e português com sotaque do norte do Brasil.As comunidades culturais do país são bastante delineadas, principalmente quando se trata de religião. Vê-se mesquitas, igrejas católicas e igrejas evangélicas por todos os lados. As sinagogas são poucas. Mas a capital do país é a única cidade no mundo que se atreveu a construir uma sinagoga exatamente ao lado de uma mesquita. São tantas etnias que deve ser difícil criar conflitos por ali. Seria preciso fazer muitos acordos para obter apoio. Durante as festas mulçumanas, a sinagoga empresta o seu espaço para ser usado como estacionamento da mesquita. Nas festas judaicas, a mesquita abre suas portas para servir banquetes e abrigar os judeus.O Suriname abriga de 25 a 30 mil habitantes brasileiros. O país, esse ano, comemora 35 anos de independência da Holanda. Desde 1975, passou por uma ditadura militar e alguns governos democráticos. Nas ruas, vê-se gente de todo tipo. Para quem acha que o Brasil é multicultural, o Suriname pode ser classificado como policultural. É uma diversidade fantástica, tanto humana, quanto da natureza. E tudo isso em um pequeno país vizinho do Brasil. Mas quando ouvimos falar do Suriname? Quase nunca. Sabemos do ataque aos brasileiros, e das casas de prostituição – que, segundo brasileiros habitantes locais, não são o terror que as televisões mostraram à época do ataque.

Proposta Inicial:

O produto proposto é uma reportagem especial construída sob as condições de jornalista enviado especial ao Suriname, buscando, para tanto, teorias e métodos antropológicos na assimilação do contexto cultural. A reportagem consiste em uma experiência em antropojornalismo. Como objetivos específicos deste projeto pretendemos:

• -Discutir questões relativas ao contexto cultural do Suriname de forma que sejam compreendidas pelo contexto cultural brasileiro;• -Formatar a reportagem especial nos moldes da revista National Geographic;• -Capturar imagens de forte intensidade para serem veiculadas na reportagem;• -Desenvolver habilidades em reportagem especial;• -Desenvolver um trabalho investigativo, realizando entrevistas e análises do contexto local; • -vivenciar uma situação de envio especial ao estrangeiro;

A revista National Geographic Magazine foi escolhida como o veículo modelo para a formatação da reportagem especial por um conjunto de motivos.A princípio, porque a revista permite certa liberdade literária que não é aceita pelos veículos diários. Segundo Nilson Lage (2003), quando se constrói uma reportagem, a preocupação com a pirâmide invertida característica das notícias factuais não é necessária. A história apresentada pode ser narrada como um conto, ou um fragmento de um romance. A maioria das reportagens na revista não traz um lead bem definido, com todas as informações factuais enxutas. A formatação do texto

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no veículo é agradável. Parece ser próxima de literatura, é uma fórmula que tanto entretém quanto informa (Baitz, 2005). Em segundo lugar, o veículo apresenta reportagens que trazem uma aproximação entre jornalismo e antropologia (Baitz, 2005). Além de descobertas científicas e apresentações de curiosidades da natureza, grandes reportagens sobre culturas estrangeiras, especificidades culturais e registros de cotidianos desconhecidos. Segundo Rafael Baitz (2005), desde a reformulação da revista sob a direção de Alexander Graham Bell, a ideia central era trazer ao público temas de curiosidades culturais e menos científicos, sem desvincular o conteúdo da pesquisa de campo e da seriedade de informação.O texto das matérias é bastante descritivo. Por outro lado, alem das palavras, a revista apresenta outro artifício informativo, as imagens. Ainda segundo Rafel Baitz (2005), o propósito das imagens na revista National Geographic é fundamentado na apresentação de informações. As imagens não são meramente ilustrativas, elas fazem parte do acordo de fornecer informação precisa. A presença de fotografias na reportagem, mesmo considerando a relatividade da escolha da imagem, do foco e do recorte, como sugerido por Philippe Dubois (1995), segundo Baitz (2005), atribui grande parte da credibilidade e do caráter verossímil à reportagem. Cada reportagem especial é formada por cerca de 10 imagens. Metade das fotos são dispostas em páginas inteiras. Algumas delas chegam a ocupar duas páginas. A outra metade das fotos é disposta em formato menor, relativo a meia página.A reportagem de destaque ganha, em geral, cerca de 24 mil caracteres, dispostos em 26 páginas. Com a diagramação da revista, foram cerca de 7 páginas de texto intercaladas com imagens. A quebra de seções, quando há uma pequena mudança de foco, dentro do mesmo tema, não apresenta sub-título. O próprio início da frase funciona como um sub-título, destacado pelo formato caixa alta. A escolha pelo formato jornalismo impresso, além de preferências pessoais acima descritas, foi feita tendo em mente o acesso às ferramentas de construção da reportagem. Dada a impossibilidade de acesso a ferramentas de construção de vídeo, edição e produção visual, o acesso ao papel e à caneta é irrestrito. Além disso, devemos levar em consideração a discrição do portador da caneta e papel. Câmeras filmadoras chamam atenção, são invasivas nos ambientes. A presença destes materiais eletrônicos muda a forma como as pessoas se portam no ambiente em questão. Apesar de grande parte da documentação antropológica e, principalmente, jornalística contemporânea utilizar o vídeo como assessório de registro, tendo optado por realizar o projeto sozinha, acredito que a dinâmica simultânea de repórter e câmeraman poderia dificultar o registro do contexto. Em último lugar, conto com habilidades e afinidades com a escrita desenvolvidas ao longo do curso. O produto final é uma convergência de habilidades de reportagem, investigação, escrita e fotografia, adquiridas durante os estudos comunicacionais na UFMG e antropológicos na Vrije Universiteit Amsterdam.

Enviado Especial e Correspondente, uma locação com dois focos diferentes.

Tendo vivenciado o trabalho de um jornalista durante duas semanas em um local desconhecido, algumas diferenças básicas entre o trabalho do enviado especial e o trabalho do correspondente vêm à tona. Em primeiro lugar, o correspondente apresenta-se como alguém acostumado com o lugar. Alguém que entende a cultura local e, ao mesmo tempo, tem referencias da cultura de origem. Já o enviado especial é aquele que é deixado em um lugar (muitas vezes desconhecido), e tem pouco tempo para se acostumar com a situação e, daquilo, gerar uma matéria (Peres, 2005). A princípio, o trabalho do enviado especial se assemelha um pouco mais ao do antropólogo do que o do correspondente. O antropólogo reflete, em seu diário, sobre as diferenças e o choque cultural, enquanto o correspondente, em geral, acostuma-se com a cultura local e passa a vê-la apenas como diferente e não mais como um choque. O enviado é aquele que vai ao estrangeiro em busca de algo específico. Ele carrega uma ideia de pauta e, a partir da experiência, gera outras, como no presente

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trabalho. Já o correspondente habita o local. O trabalho do segundo, portanto, é mais parecido com o jornal diário e menos próximo da antropologia, em comparação com o do enviado especial. O correspondente é aquele que tem a experiência e a compartilha conosco, do país de origem. Já o enviado especial é aquele que foi em busca da experiência, já com expectativas do que pode ser encontrado.O acesso às fontes é também uma grande diferença. Segundo Luciana Coelho, correspondente da Folha de São Paulo em Genebra, em uma entrevista pessoal, concedida em 2010, enquanto o correspondente constrói, com o passar de meses, uma agenda de fontes, o enviado especial precisa buscá-las no calor do momento. Por vezes, é preciso passar por diversas fontes até chegar no objeto desejado.A experiência do Suriname foi uma mistura dos dois pontos: enquanto enviado especial, o tempo era limitado para obter informações e fazer reflexões. Ao mesmo tempo, como um correspondente, tive acesso a fontes, locais e determinados eventos devido a conexões e relacionamentos com algumas pessoas conhecidas no país.

A produção: Diário de bordo.A organização foi um ponto chave no desenvolvimento deste projeto, dada a limitação de tempo de estadia no país estrangeiro. Os primeiros passos do desenvolvimento do projeto consistiram na pré-produção da reportagem, comunicação prévia com os entrevistados do Suriname, obtenção de informações sobre o país, sobre os cinemas e a redes de televisão e marcação das entrevistas.No período de pré-produção da reportagem, nos meses anteriores à viagem de campo, foi realizada revisão bibliográfica de conceitos de antropojornalismo, e conceitos básicos de jornalismo, reportagem, construção da notícia, entre outros. Além disso, foram estudados modos de interpretação do “outro” a partir dos vieses antropológico e jornalístico e formas de recolhimento e organização de dados durante o trabalho de campo. Para tanto, o diário de campo foi tomado como metodologia de organização de dados durante a viagem ao Suriname. Dessa forma, foi Possível organizar, num mesmo texto corrido, descrições e impressões do contexto em estudo que puderam, mais tarde, auxiliar na construção das reportagens. Muito do que é vivenciado durante o dia é perdido ou substituído por novas experiências no dia seguinte. Detalhes são esquecidos e pontos importantes perdem força quando o material não é organizado em um diário. Segundo Falkembach (1998), o diário de campo é um instrumento de anotações de caráter pessoal, utilizado pelo investigador de forma a organizar o que foi apreendido durante a jornada. Nele, são anotados pontos como observações de fenômenos sociais, descrições de ambientes, acontecimentos e experiências pessoais.Para melhor compreender o contexto de construção das reportagens especiais, segue, abaixo, o diário de bordo do projeto:

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Contagem Regressiva:

Quinta feira, 2 de Setembro (duas semanas antes do embarque).

Saí com os Bernardos, amigos da faculdade. Com um sorriso no rosto, escondendo a expressão ansiosa, contei que estava de partida para o Suriname. Assustados, os jornalistas perguntaram de brincadeira: você e mais quantos seguranças?A impressão que os brasileiros têm do Suriname ( aqueles que já ouviram falar do país), é manchada pelos episódios sangrentos de massacre, como a chacina que ocorreu na noite de Natal, na cidade de Albina, em 2009.

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No episódio, 80 brasileiros sofreram retaliação ao assassinato de um “maroon” por um garimpeiro brasileiro. Segundo os jornais dos dias seguintes ao acontecimento, foram 7 mortos e 14 feridos. As cenas descritas pelos jornais traçavam pinceladas de sangue e horror. A grávida teria tido seu bebê retirado do ventre com um facão.Lembrando do episódio, é fácil entender porque os Bernardos me perguntaram se eu levava seguranças. Segundo o guia de viagem ao Suriname e à Guiana Francesa - desenvolvido pelo ministério de relações exteriores brasileiro com o intuito de informar a população que transita, ou mora, nas fronteiras dos países - 69% dos eleitores surinameses tinham, em 2007, uma imagem negativa dos brasileiros. As principais atividades dos brasileiros no país estão relacionadas com o garimpo. A coleta do ouro traz o Acúmulo de riquezas. Traz, também, a prostituição, vendas ilegais, exploração de menores, entre outros.No mesmo guia ao estrangeiro, descobri que era preciso renovar a vacina contra Febre Amarela para cruzar a fronteira. Conversando com minha fonte no país, descobri que o mesmo é requisitado quando surinameses vêem ao Brasil. Me aventurei na gaveta de documentos guardados – e quase nunca utilizados. Após alguns espirros, e uma leve coceira nos olhos, encontrei meu cartão de vacinação. Há tempos ele não saía da gaveta. Estava dentro de uma daquelas caixas da OI que se parecem com travesseiros, de quando a operadora de telefonia celular vendia aparelhos com 31 anos de ligações gratuitas nos fins de semana. Quase uma década mais tarde, ainda me restavam uns 20 anos, mudei para claro – era mais barato.Encontrei, também, meu passaporte. Conferi se era válido. Dei sorte. Já com a vacina contra a doença que atinge uma grande quantidade de brasileiros todos os anos, a sorte escapou por alguns meses. Havia tomado a última dose em 2009. Ontem fui ao posto de saúde. Muitas crianças por todos os lados. Curiosas com a presença de um jovem. Não havia jovens, apenas crianças e alguns sujeitos acima de 70. Tomei a vacina e, junto a ela, uma bronca. Precisava renovar tétano, BCG e Rubéola – as que fui capaz de recordar. Disse que voltaria na semana seguinte, mas o planejamento era voltar apenas em outubro, quando retorno do Suriname.São 00H12 do dia 3 de setembro. Em duas semanas estarei no avião para Belém. De lá, pego o vôo para Paramaribo, a capital do Suriname, agendado para as 4h. Chego às 6h da manhã do dia 17. No mesmo dia, preciso entrevistar uma fonte do cinema. Ele viaja no dia 18.

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Segunda feira, 6 de Setembro (10 dias para o embarque)

É difícil encontrar registros do Suriname na internet. Mesmo procurando em Holandês, a língua oficial do país, são poucos os jornais online e menos ainda os sites locais. Meu orientador recomendou que fizesse um inventário dos jornais locais, com o intuito de identificar algum tipo de arquivo de registro dos jornais, desde suas primeiras edições. Após uma semana de busca, finalmente consegui encontrar o Aquivo Público do Suriname. O local, que, pelas fotos do site, parece ser pequeno e estar em condições precárias, guarda um acervo da história dos primeiros habitantes no país. Além da história registrada em documentos oficiais, em parceria com o museu da imprensa da Holanda, o arquivo organizou um inventário dos jornais locais desde o princípio da imprensa no país, por volta de 1700. Não sabemos, ainda, se é Possível ter acesso a este arquivo. Apesar de o inventário poder ser acessado pela internet, os visitantes podem visualizar apenas a lista de conteúdo, e não o próprio jornal. Entrei em contato com o arquivo público por email, espero receber uma resposta ainda esta semana, para saber se terei acesso aos registros das páginas culturais de programação dos cinemas e da televisão.

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Rádio Katólica

Em busca por informações nos jornais brasileiros, quaisquer registros acerca do país, me deparei com o nome José Vergílio, um brasileiro comandante da rádio Katólica FM no Suriname. O site da rádio diz muito sobre a missão do padre, e da transmissão, no país. Segundo a página principal, o canal de evangelização transmite, diariamente, a programação em cinco idiomas: português, holandês, espanhol, inglês e sranatongo (dialeto local). Ainda segundo o site, o sinal da rádio alcança cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Manaus, Belo Horizonte e Fortaleza, além de outros países, como Holanda, Estados Unidos, República Dominicana, Colômbia, Bélgica, Indonésia entre outros.Acredito que Padre Vergílio pode ser uma fonte interessante para traçar um panorama da permanência dos brasileiros no país, meses apos o ataque. Como se vê com frequência na mídia, escândalos e tragédias são notícia apenas enquanto chocantes. Assim que a situação é normalizada, os jornalistas passam a cobrir o próximo evento. A situação dos brasileiros que permaneceram no Suriname após o ataque, entretanto, deve ter sido organizada de uma forma diferente desde o acontecimento. A tensão entre os grupos étnicos no local já existia antes do Natal de 2009, e provavelmente continua existindo após o massacre. Quantas pessoas voltaram ao Brasil? Quantas permaneceram no local? As que permaneceram continuam com as mesmas atividades que desempenhavam em 2009? Existem regras de condutas que foram adotadas após o episódio? São perguntas que Padre Vergílio poderia responder.

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Quarta feira, 8 de Setembro (8 dias para o embarque)

Ontem foi feriado nacional. Aproveitei o pouco tempo livre durante a semana para buscar imagens do Suriname e tentar formar uma ideia do que me espera por lá. Durante o ano em que morei em um país europeu, raramente nos utilizávamos de mapas impressos para nos guiar. O Google maps já existia e, portanto, toda a localização dos roteiros e espaços era feita em instantes, com auxílio da internet. O Google street view, então, nos passava até as referencias do que encontrar nas ruas. Em Paramaribo, porém, não existe Google street view. Os mapas são ótimos para a localização de alguns dos locais aos quais precisarei ir, durante a estadia no país. Mas, em termos de imagens, o arquivo é deveras pobre. Pelas poucas fotos encontradas, o Suriname tem muito espaço. As ruas são largas, como estradas em zonas rurais. As casas enormes e muita terra, e muita chuva. O clima tropical pode ser identificado nas roupas dos habitantes locais, e nos relatos da fonte. Na semana passada, ao visitar uma rede social, observei alguns comentários da fonte e de seus amigos a respeito de uma forte queda de energia no país. O “apagão” parece ter atingido a capital, e deixado seus moradores sem energia durante horas. Segundo Nadya, por lá, as quedas de energia são frequentes. Das fotos encontradas no Google street view, muitas relatam a grande quantidade de água advinda das chuvas. Ruas alagadas, carros submersos e lama dentro das casas. Os estilos arquitetônicos se misturam. Casas feitas em blocos de concreto, como no Brasil, ao lado de prédios com tetos pontudos e coloridos, como em imagens de revistas que discorrem sobre a Tailândia.

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Dia do embarque

Vários conflitos com relação a o que levar na mala. Não por uma questão de condições climáticas, mas por uma questão cultural. Que tipo de roupa é formal demais? Que tipo é muito pouco formal para as situações enfrentadas?

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O primeiro vôo, às 21h30. Algum tempo depois, em Brasília. Menos de uma hora de conexão. De Brasília para Belém, mais algumas horas. Vôo desconfortável, com turbulência. Para pegar o vôo de 21h30 em Confins, tive que sair de casa às 18h20. O trânsito até lá é intenso, e o caminho bastante longo.Agora já são 3h30 da manhã; 9 horas mais tarde. Aguardo o vôo Belém Paramaribo. Na sala de embarque, 6 homens falam um holandês difícil de entender. Sotaque parece asiático. As moças, todas magérrimas, vestem roupas bastante coloridas. O critério parece ser quanto mais brilho, mais bem vestidas. Falam um português pernambucano. O sotaque puxa o S. As sacolas na mão denunciam coisas demais para carregar nas malas. No aeroporto, uma demora eterna para a saída das malas. No balcão da Suriname Airways, uma surpresinha: mais 65 reais de taxa de embarque. Acho que isso suprime minhas dúvidas sobre carregar, ou não, dinheiro em espécie. No segundo andar, outra surpresa. Porém, dessa vez ela foi mais do que agradável. Um subway aberto, às 3h da manhã. Apos 9 horas de viagem e dieta à base de 5 fatias de batatas ruffles servidas nos vôos da companhia aérea que me trouxe até Belém, um sanduíche me parece algo muito próximo da sensação de paraíso.Barriga cheia, e rumo à policia Federal. A fila é longa, e as entrevistas media duração. Chegou a minha vez, e passei direto. Apenas uma leve conferência de foto no passaporte, um carimbo, e estava aprovada a minha entrada no Suriname. Com outras pessoas da fila, entretanto, não parece ter sido tão simples. Talvez o tipo físico possa ter a ver com a seleção.A internet, claro, é paga. O acesso da Infraero, que avisa “só dá direito a acesso aos sites do governo”, requer senha. Nos televisores tela plana espalhados pelo saguão, notícias do diário do Pará, intercalados com muitas, muitas propagandas. São 3h45 e nem sinal da aeronave que nos levará além da fronteira norte do Brasil. Lá fora, um calor infernal. Aqui dentro, um friozinho agradável. Sinto falta do óculos de sol. Ele permite a observação que passa despercebida. Aqui, à noite, olhos vigiam os nossos. É complicado observar, quando se está sendo observado. Aeroportos internacionais tem gente de todo tipo. Não sabia que era possível ser considerado um estranho em um ambiente tão diverso. Mas já me sinto um alienígena. Uma das meninas magras de Pernambuco me observa. Deve ter cerca de 17 anos. Carrega um bicho de pelúcia vermelho, maior que uma criança de 1 ano. Imagino de onde possa ter vindo o bicho, e o que ele pode representar para a garota.

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19/09, Domingo.

Há dois dias no Suriname. Paramaribo parece muito pequena no mapa, mas na realidade, tudo é muito distante na cidade. A única opção de transporte público, aqui, são mini ônibus coloridos (cada um com uma estampa diferente, para que os passageiros saibam qual motorista está conduzindo o veículo e possam evitar qualquer tipo de trem da morte).Cheguei no aeroporto de Paramaribo na sexta feira, às 6h da manhã. A fila da imigração era enorme, de turismo, maior ainda. Na alfândega, placas indicavam a separação das filas “nada a declara” e “algo a declarar”, mas os guardas contradizem os dizeres oficiais. Fizemos uma só fila. Gigantesca. Todos as pessoas que vieram do Brasil foram instruídas a abrir a mala. A inspeção demora apenas alguns segundos, é o abrir dos cadeados que retarda o movimento.Lá fora, mais calor. A primeira impressão da cidade foi interessante. A saída do aeroporto, que não tem portões, parece de uma rodoviária do interior de Goiás. Lá fora alguns taxis e carros enormes. Aqui os carros são todos enormes. Nadya conta que, devido à intensa quantidade de chuvas, ter um carro baixo não compensa. Ele acaba quebrando, com água no filtro de óleo. Na porta da rodoviária, digo, do aeroporto, homens oferecem para ajudar com a mala. Carrego apenas uma mochila nas costas e uma mala muito pequena, de rodinhas. Disse para o senhor que não preciso de ajuda umas 4 vezes, mas ele insiste. Arranca a mala da minha mão e coloca no carro de Nadya. Depois me cobra pelo serviço.

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Chegando em casa: O calor é intenso. 10 graus a mais do que em Belo Horizonte. Além disso, o tempo é úmido. As pessoas transpiram o tempo todo. A casa onde estou hospedada parece ser a típica classe media. Três quartos e duas salas. Bem simples. Como é uma hospedagem tipicamente javanesa, as paredes são cheias de fotografias e quadros. Há poucos espaços vazios. Os móveis carregam porta retratos, souvenirs, troféus, chaves, bibelôs de todos os tipos. São lotados. Há pouco espaço para muitos artigos de lembranças.Nas ruas: a diversidade é intensa. As ruas são tomadas por chineses, javaneses e surinameses. Muitos brasileiros por todos os lados. Os brasileiros não são bem vistos por essas bandas. Ao conversar com uma javanesa, e dizer que eu era brasileira, a garota afirmou que a maioria das mulheres no Brasil eram prostitutas. Mas não o disse como uma ofensa. Ela realmente achava que a maioria das mulheres brasileiras trabalham como prostitutas. A garota tem 23 anos e uma tia brasileira.Todos os quartos têm ar condicionado. É costume, no Suriname, sair de manhã cedo, quando o sol ainda não é escaldante, e voltar pra casa por volta de 11h30. Da hora do almoço, até 16h, quem pode fica envolvido pelos cômodos de ar condicionado, saindo novamente para as ruas depois das 17h, quando o sol está para se pôr. Quem não tem o luxo do condicionamento da temperatura sofre, muito, como o calor.Ah, sim, aqui as pessoas dirigem do lado inverso do usual no Brasil ou nos Estados Unidos. O direcionamento é o mesmo da Inglaterra, ou da Austrália. Não sei ainda porque, se o país foi colonizado pela Holanda, que dirige sob o mesmo direcionamento brasileiro. O Multiculturalismo: A presença dos Javaneses no país, originalmente advindos da Indonésia, é explicada pelo tráfico de escravos. Quando houve a libertação destes escravos, os holandeses que habitavam e gerenciavam negócios no Suriname precisavam de mão de obra barata e eficiente. Esses foram os javaneses. A indonésia também era colonizada pela Holanda. O que eles fizeram foi oferecer oportunidades de emprego a quem quisesse abandonar o país de origem. O problema é que as oportunidades eram cheias de lacunas e muito mal pagas.Com os chineses, a história foi um pouco diferente, pelo que contam os habitantes locais. Durante o boom de construção do país, a mão de obra chinesa foi convocada. O trabalho rápido e barato era perfeito para o que o Suriname procurava. Os chineses que por aqui se estabeleceram acabaram abrindo seus próprios negócios, como supermercados ou restaurantes.

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Segunda Feira, 20/09

Dia de acordar cedo e trabalhar. Liguei na Embaixada brasileira para ver se conseguia uma entrevista com o embaixador, mas ele está na argentina. Conversei, por telefone, com o Ministro da Embaixada, que me recebeu algumas horas mais tarde em seu gabinete.Fiz perguntas relativas à situação dos brasileiros no Suriname, principalmente aqueles atingidos pelo clean sweep (operação de limpeza dos estrangeiros) e pelo atentado de dezembro de 2009.A entrevista foi deveras rápida. O Ministro Almir Nascimento preferiu que eu não gravasse a entrevista, o que dificulta meu trabalho. Escrevi tudo o que pude direto no computador. Na realidade, ele estava muito mal informado a respeito dos brasileiros. O Ministro está no Suriname a poucos meses, e não acompanhou o caso desde o princípio.Muitas das perguntas ficaram sem respostas, e as outras ficaram com meias respostas. Portanto, marcamos um “afspraak”com o Embaixador no dia 29, quando ele retorna da Argentina.Fui à embaixada de carona, no carro de Nadya. Voltei de taxi. Os taxis aqui não tem taxímetro. Os preços são avaliados pelo motorista. Da Embaixada até a casa, o que levou cerca de 10 minutos, ficou em SRD 8,00. O motorista, enorme, que cantava uma musica americana de R & B sobre sexo, dirige perigosamente. Alta velocidade e palavrões para os outros carros.Chegando em casa, passei a copia da entrevista com o Ministro da Embaixada para a antropóloga Marjo de Theije, da Universidade Livre de Amsterdã. Ela havia solicitado algumas perguntas. A antropóloga estuda presença brasileira no Suriname, e gostaria de saber um pouco mais sobre as providências tomadas pela Embaixada. Marjo concorda que o Ministro sabia de muito pouco, e

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desfez de algumas perguntas que careciam de respostas.

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21/09 Terça feira

Dia cheio. Saímos da casa, Nadya e eu, às 10h. Fomos direto ao arquivo nacional. O prédio foi aberto recentemente, há cerca de 4 meses. É limpo e bastante organizado. Conta com apoio financeiro e administrativo do museu da imprensa de Amsterdã.Curiosamente, o museu nacional parece ter uma política de empregar apenas descendentes de indianos. Exagero, claro, mas todos os atendentes e secretários e pessoas na cantina parecem ter vindo da Índia.Pedi informações no balcão a respeito de notícias sobre os cinemas locais. Os atendentes são todos novos, não parecem ter acompanhado o fechamento dos cinemas que, segundo Eddy Wijngaarde, foi por volta dos anos 80.Comecei a procurar nos arquivos. Pedi um do ano 82, mas me trouxeram um de 79. Ok, começo por aqui, decidi. O problema é que de 79 para 82 dão 3 anos de jornais diários, de segunda a segunda para vasculhar. Depois de ter chegado aos anos 82, dois anos após o golpe militar, percebi que ainda havia a programação de cerca de 10 cinemas, incluindo um Drive-in, dependendo do dia da semana.Resolvi, portanto, pular alguns anos. Conversamos no balcão, e chegamos à conclusão de que os DVD’s devem ter chegado ao Suriname ao final doa anos 90. Como o comércio da pirataria foi uma das principais causas da queda da cultura do cinema local, pulamos direto para 95. 1 ano de busca, e quase nada de novo. Em 95 ainda existiam 3 cinemas, um deles um seksbioscoop. Pulamos direto para 1999, seguindo uma sugestão da secretaria do arquivo nacional. Lá, um achado. A nota de fechamento do último cinema comercial, o Star. Na nota, eles agradecem a presença do público e divulgam a última sessão de cinema. Acima da nota, uma notícia do jornal. Nela são esclarecidas as causas do fechamento do último cinema: a concorrência desleal com os DVDs piratas. Tirei bastante fotos. Acho que já é hora de formar um cd back up.De lá fomos almoçar num fast food (frango frito, como sempre) e visitamos um supermercado chinês. No caminho, passamos em frente a uma biblioteca antiga, não no estilo europeu, com mogno e ambiente aconchegante, mas no estilo sul americano mesmo. Paredes brancas, nome anunciado em tinta, acima da porta. Lá, duas mulheres limpavam as janelas. Tirei uma foto da biblioteca sem me dar conta de que as mulheres apareceriam na foto. Uma delas, muito exaltada, começou a gritar comigo. Parecia absolutamente nervosa, não falava holandês. As pessoas por aqui são receosas com relação a fotografias. Ninguém parece satisfeito quando vêem a câmera fora da mochila. Com a senhora muito exaltada, tirei mais algumas fotos da biblioteca, para mostrar que ela não era o objeto da imagem. Corremos para o carro e fomos ao supermercado chinês (um dos milhares).Pequeno, o espaço é sujo e bagunçado como os outros. Mas lá no fundo vê-se uma grande bancada cheia de títulos de DVDs diversos. Filmes antigos, novos, não lançados, e já lançados porém ainda em cartaz. Salt, Despicable me, O último mestre dos ares, the expendables, o príncipe da pérsia, karate kid remake etc. Resolvi que, para que fosse possível tirar uma foto do local, o vendedor deveria, antes, simpatizar conosco. Fomos conversando, e pedindo indicação de filmes bacanas recém-lançados. Para cada título que tirávamos da bancada, o vendedor, um indiano, fazia um comentário do tipo “good quality!”, com o dedão para cima simbolizando o “supimpa”, ou “bad quality”. Como os DVDs são piratas, a qualidade nunca é das melhores. Antes de comprar os filmes todos são testados na TV do local. Me fingi de turista impressionada com o leque de opções. Anunciei que ia comprar 10, cada um a RSD3,50. Um total de 35 dólares surinameses, ou 25 reais. O vendedor, já feliz com a compra, acabou ficando nosso amigo. Perguntei se eu poderia tirar umas fotos, expliquei que no Suriname muitas pessoas não gostam que eu tire fotos. Ele riu e disse “Sim, sim, claro, à vontade”. Tirei algumas fotos e fomos embora com a promessa de voltar para comprar títulos musicais.Mais tarde, já na minha base, pronta para dormir, resolvi assistir a um dos 10 filmes que ainda não

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saíram do cinema. Coloquei o primeiro no meu computador e, para minha surpresa, não funcionou. O computador não reconhece. Mas é o único dos 10. Depois de testar todos, reconheço que a pirataria sai barato, mas a qualidade é péssima, mesmo daqueles que receberam um dedão supimpa.

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22/09 Quarta feira

O jornalista Luis Nachbin está ajudando muito no projeto. Entrei em contato com ele por meio da minha chefe no estágio. Ela já trabalhou no Rio, e lá tinha alguns conhecidos que nos arrumaram o telefone dele. Nachbin parece ter gostado do projeto e sugeriu um contato de um Javanês que morou muitos anos no Brasil. Ele foi o personagem do capítulo “O homem que falava Javanês”, do programa Passagem Para, regido por Nachbin.De manhã fomos encontrá-lo em seu posto de trabalho. O escritório é o equivalente ao IPHAM no Brasil. Ele trabalha com conservação de patrimônio. Morou cerca de 10 anos no Rio, enquanto estudava português e conservação. Quando chegamos em Fort Zeeland, o bairro onde fica o escritório do IPHAM do Suriname, as 3 pessoas dentro do escritório pareciam assistir ao tempo passar. Sequer se moveram com a abertura das portas. Lesley, o javanês nos apresentou às secretárias. Entramos para a sala dos fundos e conversamos durante algumas horas sobre a situação dos brasileiros no Suriname. Falamos também sobre a cultura javanesa. Lesley ficou de arrumar um casamento ou alguma festa típica javanesa para que eu pudesse acompanhar no fim de semana. Ele sugeriu, também, que eu deixasse minha fonte ir embora de carro e ficasse com ele para que pudesse me levar na casa de um amigo casado com uma brasileira logo em seguida. Entretanto, já tínhamos uma reunião marcada na Embaixada da Indonésia para as Próximas horas.Agradeci, educadamente, e falei que precisaríamos deixar para outra hora. De lá fomos direto para a Embaixada da Indonésia, onde os comerciantes participantes da Indofair receberiam algumas instruções sobre como proceder durante o evento. Reuniões com mais de 30 pessoas seguem sempre o mesmo modelo de público no Brasil. Há sempre um piadista e um chato. Pois não é que com os javaneses, a história é a mesma? Estávamos lá, 32 pessoas, mais um piadista e um reclamão.O piadista, claro, para cada instrução, soltava uma risadinha precedida por um comentário. No início, alguns riam. Já ao final de uma hora de reunião, era comum a expressão de falta de paciência nos olhos pequeninos dos javaneses. Já o reclamão, seguia uma media de uma reclamação para cada duas instruções da mesa. Por fim, havíamos passado 20 minutos discutindo sugestões de locais próximos ao espaço do evento para estacionar os carros enormes que eles usam por aqui.Pois bem. No final da reunião, lanchinho. Como todos os lanchinhos que tive a oportunidade de participar em Paramaribo, havia xarope colorido. É comum aqui a cultura do xarope colorido. São vários tipos e diversas cores. Dessa vez havia um verde e um cor de rosa. O rótulo do verde informava ser feito de kiwi. Já o gosto, como todos os outros xaropes, era de açúcar com um leve aroma da fruta.O calor era intenso, e o xarope deve ser misturado com água (não resfriada) e alguns cubos de gelo. Entretanto, como a sede é grande, bebe-se a mistura antes mesmo dela ficar gelada. Se esperar a mudança da temperatura, haverá tanta água no copo que mal se sente o gosto excessivo do açúcar.Finalizada a reunião, fomos encontrar um Surinamês Pernambucano. Indicado pela antropóloga Marjo de Theije, da Universidade livre de Amsterdã, o Surinamês havia morado 9 anos em Pernambuco. Fala um pernambucano perfeito, mas desconhece expressões mineiras. O encontro foi no complexo de entretenimento Suit NV. O nome representa Samen uit, ou sair juntos, em português. Nesse complexo fica a outra sala de cinema existente no Suriname. Aproveitei que lá estava para procurar o dono e entrevistá-lo. Ele não estava, mas consegui um telefone.Quando já eram 8h30, voltamos para a base (casa dos javaneses). Uma hora depois, já de banho tomado e barriga cheia, meu telefone toca. Era Lesley, o javanês que morou no Rio. Ele queria que eu

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o encontrasse em meia hora em um shopping (relativamente afastado da cidade), para que ele me levasse na casa do tal amigo casado com uma brasileira.Neste momento, já eram 21h30 da noite. Até chegar no shopping seriam 22h. Lesley aparenta ter cerca de 40 anos. Não usa aliança em nenhuma das mão, o que indica ser solteiro. A cultura javanesa é muito interessante. Nadya, minha fonte principal, com frequência ouve da família e dos primos que ficará para titia. Isso porque já tem 26 anos e ainda não é casada. Na Indonésia as pessoas se casam cedo. Constituem famílias e criam seus filhos.Fiquei muito pensativa quando Lesley me chamou para encontrá-lo às 22h de uma quarta feira. Em meio minuto, várias coisas passaram pela minha cabeça. Em primeiro lugar, o fato de eu estar em um país estranho, cujas ruas não conheço e, provavelmente, não saberia chegar na base à pé. Em segundo lugar, o fato de o sujeito em questão ser um javanês solteiro de quase 40 anos. Em terceiro, - e esse é um ponto que ainda não foi abordado no diário por puro e simples constrangimento cultural - aqui no Suriname, a maioria das pessoas com quem tive contato têm uma impressão muito ruim das mulheres brasileiras.Na noite em que eu saí com as javanesas, uma delas insistiu em dizer que a maioria das mulheres no Brasil são prostitutas. Vejam bem, é preciso que fique claro que ela não disse a maioria das brasileiras que vivem no Suriname, mas a maioria das brasileiras no Brasil. Portando, ela, e muitos outros, acreditam que a maioria das mulheres, dos 190 milhões de brasileiros, ganham a vida com o sexo.E ela não foi a única. Já ouvi esse papo de prostituição algumas vezes enquanto estive aqui. Lesley mesmo, quando eu disse que gostaria de ir a Albina (cidade onde aconteceu o ataque de Dezembro de 2009), afirmou que não achava uma boa ideia. Disse que os surinameses interpretam as brasileiras como profissionais do sexo, e que eu não estaria segura lá. Ainda não sei dizer se Lesley estava simplesmente querendo ajudar, ou se ele foi extremamente amigável por algum outro motivo. Resolvi passar a oportunidade de conhecer os brasileiros. Afinal, a segurança deve vir em primeiro lugar.Agradeci, e perguntei se não poderia ficar para outro dia, afinal já era tarde. No telefone, ele pareceu não ter gostado da rejeição. Disse que não sabia se poderia outro dia, e que os brasileiros trabalham até tarde, portanto não poderia ser mais cedo. Sua reação fez com que eu ficasse mais segura da minha decisão de não ir encontrá-lo naquela noite. Fiquei na base, escrevendo e pesquisando os programas de TV publicados nos jornais.

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23/09 quinta feira

Acordei com muita dor de cabeça. Talvez por causa do frio, talvez por causa do restinho de arrependimento de não ter ido encontrar os brasileiros ontem à noite. A noite inteira acordei pensando se deveria ter passado a oportunidade. Afinal, essa passou e muito provavelmente não vai aparecer na porta da base uma segunda vez.Com a intensa dor de cabeça, fiquei com preguiça do dia. Tomei café e quis voltar para o meu quarto (que também é o escritório de Nadya). Uma neosaldina e 5 garrafinhas de 350ml de água mais tarde, resolvemos sair e começar o dia. Fomos ao Hermitage mall buscar algumas fotografias que havíamos mandado imprimir, para a decoração da banquinha na Indofair. Lá, passamos em meu local preferido no calor do Suriname: a loja de smoothies. Pedi um smoothie de café (água, leite, café, chocolate e gelo, muito gelo triturado). Imaginei que a cafeína pudesse estimular o ânimo. Liguei para o Suit NV, para marcar uma entrevista com o dono, Mr. Baldew. Combinamos o encontro para 19h30. Não poderia ser mais cedo, segundo Sr. Baldew, porque ele precisava dormir durante a tarde.De lá, fomos direto para o templo Indonésio, onde será realizada a feira. A montagem da barraquinha começou cedo, umas 14h, e foi até tarde, muito tarde. O sol castigava os trabalhadores e incomodava os comerciantes. Limpamos, organizamos, montamos, colamos, revestimos, encapamos, pregamos, e vários outros amos.

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Quando termin(amos), já eram 6h da tarde. Enquanto trabalhávamos na montagem, liguei para Eddy Wijngaarde para perguntar se havia alguma instituição lutando pelos direitos autorais de filmes no país. Ele me disse que a história era complicada, e precisaríamos nos encontrar para conversar melhor. Marcamos para 20h30. Quando achei que estávamos indo embora, poderia passar na base e tomar um banho antes de fazer as entrevistas daquela noite, Nadya me disse que precisaríamos esperar os trabalhadores cobrirem a barraquinha com a lona. Segundo ela, na última feira a concorrência foi grande. Pessoas das outras barracas espionaram os preços e os produtos. No dia da abertura todos tinham os mesmos preços que o Teas & Snacks (loja da Nadya). Muitos deles haviam rabiscado os preços mais altos e abaixado para poder competir com os dela. Formada em administração em Nova Yorque e mestre em marketing pela Universidade Livre de Amsterdã, Nadya tem talento para os negócios. Passa dias fazendo planilhas de gastos e lucros no computador. Escolheu a dedo seus empregados e não economiza na mão de obra. Na reunião pré-indofair, a dona do Teas & Snacks instruiu seus empregados a lidar com os clientes de forma muito educada e gentil. Ao invés de dizer “não sei” quando um cliente faz uma pergunta (o que é muito comum por aqui), foram instruídos a dizer “aguarde um momento, vou perguntar a alguém e já te respondo”, com um sorriso no rosto.De 6h às 7h30, ficamos parados, esperando os trabalhadores fecharem a barraca com a lona. Eles andavam a ½ metro por hora. Demorou uma eternidade. Nunca havia presenciado um serviço tão demorado. Nadya me explicou que as pessoas aqui trabalham muito devagar. Segundo ela, foi exatamente por isso que as imigrações javanesa e chinesa tiveram início. Realmente, as lojas chinesas ficam abertas 24h. As surinamesas, a maioria, fecham às 17h.Depois de muita agonia na espera, fui até Suit NV conversar com o dono do local. A entrevista foi muito interessante.

SUIT NV:Segundo Sr. Baldew, o cinema que faz parte do complexo de entretenimento Suit NV não é um cinema normal. O De Paarl, como é chamado, é um Second Chance bioscoop. Bioscoop é, em holandês, aquilo que em português chamamos de Cinema. Isso significa que os filmes que entram em cartaz ali já estiveram nos cinemas há muito tempo atrás. Não há filmes novos. Segundo ele, o público do cinema TBL e do Suit são diferentes. O último é destinado a pessoas que não tiveram a oportunidade de assistir determinados filmes enquanto eles estiveram em cartaz, e gostariam de assisti-los agora. Essa semana, o De Paarl exibe:After Life (2009), Letters to Juliette (2010), Rebel Without a Cause (1955), Kung Fu Panda (2008), Paranormal Activity (2007), entre outros.Erwin Baldew está no ramo do entretenimento há 27 anos. Já foi dono de diversas boates no Suriname e em Miami. Atualmente trabalha na decoração de um novo espaço que será aberto em duas semanas, aqui em Paramaribo. Segundo o Surinamês, com traços claramente indianos, o cinema De Paarl entrou em seu projeto porque ele queria abordar o espaço do Suit como um lugar com diversas opções de entretenimento, mas seu projeto nunca foi fazer um cinema de qualidade. Nas salas do De Paarl, os sistemas de projeção não são antigos, nem novos. São DVD players acoplados a grandes projetores. A exibição dos filmes sequer elimina os avisos de direitos autorais no início da projeção (aquelas telas azuis ou verdes que aparecem antes de começarem os trailers, que nos indicam como e para que o DVD pode ser utilizado). Baldew assume que projeta DVDs comprados em suas salas de cinema. Disse que o faz porque é “legal” nesse país. “Ninguém fiscaliza, portanto é permitido”, afirma o dono do complexo de entretenimento.Ele afirma, ainda, que nunca quis investir em um cinema atualizado porque não achava que valeria o investimento. Segundo ele, um projetor 3D custa cerca de 150 mil dólares americanos. Ele lamenta não ter sido corajoso o suficiente para investir na nova modalidade de entretenimento, agora que vê que o TBL tem grande público. “mas agora é tarde”, afirma. Baldew explica que, com a abertura do TBL, ele considera ainda menos a possibilidade de investir num cinema. Segundo ele, entretenimento precisa abrir na hora certa. E o TBL abriu na hora certa. Agora o momento passou. Se ele investir nisso, ficará para trás. Além do mais, ele teme pelo novo cinema. Acredita que, até certo ponto, o

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público ainda está encantado com a novidade, mas não sabe dizer se o multiplex do Hermitage Mall vai durar.O Suit NV é um complexo de entretenimento formado por dois bares, um esportivo e um fast food, uma boate, que toca todo tipo de música, dependendo do dia, um espaço com pistas de boliche, um espaço com máquinas de vídeo game e, por fim, o cinema De Paarl.Baldew não se considera competição para o TBL. Afirma, ainda, que o cinema De Paarl não vai durar muito mais tempo. Assim que terminar o lançamento da nova boate em Paramaribo, vai começar a repensar o que será feito do complexo Suit que, segundo ele, já não é mais lucrativo. “Vamos construir algo diferente aqui. Talvez eu mantenha as salas de cinema com algum outro propósito, como conferências, ou teatro. Mas o Suit será fechado em breve, assim que eu tiver tempo para pensar no próximo investimento”, completa.Saímos do Suit às 20h30. Enquanto estava a caminho do Suit, mandei um sms para Wijngaarde, dizendo que chegaria atrasada para a nossa entrevista. Ia chamar um taxi para me deixar no Hermitage mall, mas Sr. Baldew insistiu em me deixar no local. Disse que estava indo para a região e que os taxis aqui cobram muito caro dos turistas. (realmente, eu já havia notado a ausência de taxímetros).Encontrei com Eddy Wijngaarde às 21h. Conversamos bastante sobre a lei de direitos autorais que existe no Suriname. Segundo ele, a lei segue o mesmo regimento da Holanda. Como é bastante antiga, foi reformulada em 1985, para incorporar determinados módulos que ainda não existiam quando a lei foi elaborada. Ainda assim, a reformulação aconteceu antes do boom de pirataria no Suriname, e até hoje ninguém fiscaliza as revendas piratas.Em 2004, e novamente em 2005, quando o TBL já planejava a construção do multiplex, houve uma reunião em Paramaribo que contou com a presença de personalidades internacionais, especialistas em direitos autorais. Dessas reuniões, participaram as 19 estações de TV, alguns distribuidores de filmes e produtores. A intenção, nas duas reuniões, era iniciar um acordo entre as diversas áreas do entretenimento, e, em especial, as redes de televisão, para estabelecer um “window regulation”. O “Window regulation” é um acordo que estabelece uma janela de 5 a 10 anos para que as emissoras de TV se adaptem ao contexto de valorização dos direitos autorais. Entretanto, nas duas reuniões, segundo Eddy Wijngaarde, nenhuma emissora concordou em assinar os papéis.A lei que regulamente os direitos autorais no país existe. Ela não é, porém, fiscalizada. As lojas de pirataria, grande maioria chinesas, continuam funcionando normalmente. Enquanto no Brasil a pirataria corre da polícia, no Suriname, ela diz um alô e oferece títulos por 3,5 dólares surinameses. O dono do TBL diz que o acordo que ele fez com as televisões locais tem funcionado em grande parte. Quando não funciona, uma funcionária do TBL, cuja função é fiscalizar o cumprimento dos acordos, liga para os responsáveis das TVs para tirar satisfação. Segundo o dono, quando as TVs exibem filmes que quebram o acordo, a desculpa sempre é relacionada com férias do funcionário encarregado da programação, ou exigência dos anunciantes no horário de exibição de filmes.Caso o acordo desande, e passe a funcionar em menos de 70% dos casos, Wijngaarde e seu sócio já tem um plano B. Eles vão, ao invés de entrar com processos contra as redes de transmissão televisiva, levar à justiça os patrocinadores e anunciantes dos filmes piratas. Dessa forma, ele espera, não haverá mais apoio a esse tipo de reprodução.Ele afirma, ainda, que os homens de negócios encarregados do funcionamento e do lucro das televisões locais ainda são muito mal informados. As teorias de marketing mais recentes dizem que o ciclo normal de exibição de filmes recém lançados – cinema, vídeo locadoras e, só depois, televisões – traz lucros para todas as partes, inclusive para a televisão. Segundo Eddy, apenas 10% da população tem acesso ao cinema. Outros 30, às vídeo locadoras, e quase 100% à televisão. Portanto, quando os 10% assistem no cinema e divulgam os filmes em suas comunidades, quem tem menos acesso vai locá-los. E o mesmo acontece do segundo grupo para o terceiro. Isso significa que a divulgação e a propaganda das vídeo locadoras vai fazer com que o público das TVs seja ainda maior.

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24/09 Sexta feira (uma semana para voltar ao Brasil)

Uma das TV’s locais que mais quebra o acordo vebal é a maior emissora do Suriname, SCCN. Liguei no telefone do website, e pedi informações sobre como marcar uma entrevista. Fui instruída a mandar um email para o CEO. Mandei, mas sem dar muitas explicações sobre o assunto da matéria. Marcamos um afspraak na terça feira pela manhã. Mesmo dia da entrevista com Pâmela, do TBL. Ela é a pessoa encarregada de fiscalizar se as televisões estão cumprindo o acordo.A SCCN, segundo Eddy Wijngaarde, é bastante contraditória. Ela descumpre o acordo da não exibição, mas, ao mesmo tempo, está na justiça contra duas outras emissoras por exibirem shows sob os quais ela comprou os direitos autorais, como Ídolos, e futebol.O CEO perguntou, por email, qual era o assunto da matéria. Difícil dizer, porque acredito que se ele souber que é sobre os cinemas, não vai aceitar muito bem. Estou, ainda, pensando em maneiras diferentes de explicar a matéria, dependendo do estado de humor em que ele se apresentar na terça feira. Acredito que é possível explicar a matéria como sendo sobre as opções de entretenimento no Suriname, considerando os dois lados: dos cinemas, que dizem que as TVs precisam parar de transmitir os filmes recém lançados, e das TVs, que, se o fizerem, vão acabar ficando sem público.

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25/09 Sábado (6 dias para chegar em casa)

Sinto falta da minha casa. A comida do Suriname, que antes parecia um banquete paradisíaco, agora já tem gosto de cansaço. Arroz. No café, almoço, lanche e jantar. Antes era bonitinho. Cultural. Agora, é difícil de aguentar. Nunca fui muito fã de arroz. Principalmente quando é completamente sem tempero. Mas, aqui, ele tem que ser, para balancear com a comida extremamente temperada desse canto do mundo.Hoje é sábado. Muita coisa não funciona na cidade. A barraquinha de smoothies (meu ponto favorito para matar o calor) só abre depois das 5. Vai entender... deve ser porque até 5h da tarde o calor é tanto que as pessoas preferem não sair do ar condicionado, ou da frente do ventilador.Hoje decidi que, na falta de um contato brasileiro que facilite minha integração com os habitantes da “little Belém”, o bairro dos brasileiros em Paramaribo, preciso simplesmente entrar na rua principal e fazer umas amizades. Peguei uma carona até a rua principal. Entrei no supermercado com a desculpa de procurar pão de queijo congelado. Andei por entre os corredores, dando uma olhada no tipo de produto vendido ali. Basicamente enlatados. Nada de frutas verduras ou legumes frescos. Os importados do Brasil tem que durar para não ter prejuízo. Depois de ter passado por 3 corredores, um chinês me aborda. “O que você está procurando?”. “ Pão de queijo”. O homem – devia ter lá seus vinte e poucos anos – espremeu os olhos já cerrados, como quem faz cara de desentendido. Perguntei: “Esse supermercado não é brasileiro?”. Ele abana a cabeça e me guia até duas brasileiras sentadas no freezer.O freezer, ao lado da porta. A porta, ao lado de um homem alto, negro, vestido de segurança, portanto uma metralhadora. Não havia notado a arma quando entrei no supermercado. Será que ela já estava ali? Ou ele achou minha circulação por entre os corredores uma atividade suspeita?É difícil fazer amizades de maneira forçosa. Me apresentei para as brasileiras como jornalista da TV globo – como a chefe do RH me instruiu a fazer-. Explico, sempre, que estou fazendo uma matéria, mas que na verdade essa matéria não é pra TV Globo. E, só depois, explico que na verdade faço estágio na TV Globo, e estou fazendo meu projeto de graduação no Suriname. Sigo o mesmo procedimento com todos os brasileiros que conheci até agora. O nome da emissora ajuda as pessoas

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a ficarem mais tranquilas. Outra informação útil é dizer que a matéria sobre os brasileiros no Suriname que pretendo fazer é diferente das que normalmente são feitas. Estou aqui para mostrar a parte boa, mostrar que existe gente trabalhadora que não está envolvido em prostituição. Isso acalma as pessoas. Na porta do supermercado, fiz dois novos contatos. Uma brasileira que chegou no Suriname há 1 mês, e outra que já mora aqui há 14. As duas tem 1 filho cada. As duas não pretendem voltar ao Brasil. As principais causas são aquelas que todo brasileiro busca: acesso financeiro, educação, menos violência e oportunidade de trabalho.Depois de alguns minutos conversando com as duas mulheres, já era Possível traçar um perfil do brasileiro que vai morar no Suriname. São advindos de comunidades pobres, sem oportunidade de emprego, mesmo nas cidades grandes. A maioria, pelo que parece, vem do Pará. Mas há, também, alguns investidores do sul, que viram a comunidade brasileira como uma forma de ganhar dinheiro no comércio, seja do ouro, seja de alimentos típicos. A maioria dos brasileiros aqui são trabalhadores, no garimpo, ou na cidade. Raros são os donos de negócios que conseguiram enriquecer tendo começado como empregados. O supermercado onde as mulheres trabalham, por exemplo, é administrado por chineses. Tanto o da cidade, quando a franquia no garimpo.As brasileiras contam, em um português rápido e em baixo tom, que os chineses abusam dos trabalhadores. Ao invés de trabalhar 8h às 16h, eles trabalham de 8 às 18. Isso, ganhando a metade do salário dos chineses que também trabalham por lá. O salário é baixo, mas é em dólares americanos, o que torna mais fácil sobreviver. Cerca de meia hora de conversa, e o segurança, que antes segurava a metralhadora como se algo estivesse para acontecer, agora já brincava de dar tiros e exibia a arma para outros “franceses” que papeavam e tomavam cervejas na porta do supermercado. Já eram 18h, hora da primeira leva de brasileiros deixar o trabalho. Uma terceira brasileira se aproxima para dizer tchau. Domingo é sua folga e, diferentemente dos outros brasileiros que trabalham ali, ela não vai se juntar à saída do grupo no domingo. Shell, a terceira Brasileira, explica que a patroa (chinesa) de vez em quando quer agradar os funcionários, e os leva a um clube para passar o domingo. Entretanto, tudo é pago. São RSD30,00 + o transporte. O dinheiro dá direito à entrada no clube, comida e bebidas.Combinei de almoçar na casa de Shell, brasileira de Belém do Pará no dia seguinte. Shell ficou contente. Disse que seria um prazer, e que sua mãe acabara de chegar do Brasil, e gostaria que eu conhecesse sua família. Trocamos telefone e, de lá, fui direto à padaria comprar um guaraná e um pão de queijo.Na porta da padaria, tomei um taxi indicado pelos chineses do supermercado. O motorista era um homem em seus 40 anos, metade chinês, metade javanês, ele explica, apontando para os olhos puxados.Falava um holandês embolado, cheio de gírias e palavras cortadas, mas algumas coisas pude entender. No curto caminho até o Sana Budaya (local onde acontece a Indofair 2010), o Java-chinês me fez 8 elogios e 5 ofensas. A princípio, queria saber de onde eu era. Quando descobriu que era brasileira, insistiu em saber meu nome, alegando que procurava uma namorada brasileira “Gosto muito das brasileiras”, acrescentava.Expliquei pra ele que era casada (mentirinha básica), para ver se ele me deixava em paz. Mas continuou com a história de namorada brasileira. Depois, quando notou meu silêncio ansioso pela chegada ao local, falou que as brasileiras no Suriname fazem muito dinheiro. Eu, calada. Ele continuou “Você ia vender bem se trabalhasse no pérola”. O Pérola é a “boate” brasileira mais famosa na região. Trata-se na verdade de um prostíbulo. Ele continua “Ia vender rápido, porque os homens aqui gostam de brasileiras. E você nem parece brasileira, parece francesa. Vende mais caro ainda”. Sem saber o que responder, fiz uma cara de desgosto, e disse ”Im not interested”. Fiquei calada, sentada ao lado do motorista – porque a porta do banco de trás não funcionava - até chegar no templo javanês. Para finalizar a agradável viagem, me cobrou um absurdo. Eu, sem querer discutir, ainda dentro do carro, paguei e fui embora. E ele completa, “Toma o meu cartão, vou esperar você me ligar na hora de ir embora!”.

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Imaginem minha cara de horror. Na saída, já quase meia noite, conferi os dois lados da via para ter certeza de que o Java-chinês não estava por lá. Suspirei um alivio e abri a janela do carro, para deixar sair um pouco do calor e do cheio de óleo usado das frituras do Teas & Snacks.Eram 00h30, e chegávamos em casa. Jantamos e banhamos. Era hora de sair para conhecer a boate do Suit NV. O cansaço era intenso, mas, como havia prometido ao Sr. Baldew, dono do completo de entretenimento, apareci com minha trupe às 1h40 da madrugada na porta da boate.Mais um vez, uma surpresa: Muitas brasileiras na porta. Levei comigo os colegas do Teas & Snacks. Ficaram super empolgados quando disse que seria entrada grátis. Havia sido instruída por Baldew a procurar um tal de Clyde, na porta do lugar. Perguntei por ele, e logo apareceu. Expliquei que Sr. Baldew havia dito para procurá-lo. O homem de quase 2 metros de altura soltou aquele olhar de soslaio e disse: sim, Mr. Baldew me disse para esperar uma brasileira, mas você parece qualquer coisa, menos brasileira. (falávamos inglês). Acho interessante como a imagem que eles têm dos brasileiros aqui é determinista. Se eu não sou o retrato do Brasileiro no Suriname, então, quem é? Acho que é sobre isso que vai ser a matéria.

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26/09 Domingo, pé de cachimbo, ou pede um cachimbo? (5 dias para comida brasileira).

Acordei cedo com ligação de Shell. Nome engraçado para um brasileiro. Achei que fosse code nome, mas, conversando com sua mãe, descobri que o nome era esse mesmo.A família de Shell tem 8 pessoas: 7 irmãos, dos quais, apenas 1 é homem, e a mãe. No Suriname são 6. Uma das irmãs e a mãe ainda moram em Belém. A primeira da família a ir ao Suriname foi a mais velha, hoje com 40 anos, há 19 no país. Shell conta que a irmã conheceu um surinamês que fazia negócios em Belém. Saíram, se conheceram, se amaram e casaram.Neia, a irmã mais velha, tem um filho que trabalha no garimpo. Os pais temem constantemente pela segurança do garoto. Próximo da maioridade, já está frequentemente cercado por criminosos e traficantes. “No mato...”-diz Neia –“o povo morre e ninguém fica nem sabendo... Lá tem assassinato, assalto, morte todo dia. Todo dia são 4, 5 mortos.”Shell, que trabalha 10h por dia no supermercado dos chineses, mora há 5 anos na casa que é dividida entre 4 dos 7 irmãos. Ali, mora também o marido e a filha de uma delas. É uma casa pequena, alugada, mas tem espaço pra todo mundo, por mais que ele seja dividido. A moça já passou por diversas situações em sua estadia no novo país. Sofreu um acidente grave, e teve que passar por algumas cirurgias de reconstrução facial. Recebeu propostas indecentes “toda semana, alguém oferece um emprego que pague melhor. Mas ele nunca é digno, como este (o do supermercado)”ela afirma. Shell conta que os garimpeiros, cheios da grana, vêm à cidade para comprar suprimentos. Quando chegam no supermercado, o diálogo é sempre o mesmo:Garimpeiro: quanto você ganha aqui?Shell: 300 dólares americanos, porque?Garimpeiro: no cabaré, você ganha isso em uma noite.Shell conta que, nos cabarés, eles oferecem os serviços Vite-Vite (do Frances, rapidinha). Nele, por cerca de 150 dólares americanos – pagos em ouro- o homem tem uma transa rápida, sem beijos ou carícias. Dura aproximadamente 5 minutos. “Dinheiro fácil...”- ela continua – “mas eu não vim aqui pra isso, e, graças a Deus, até hoje, nunca precisei”. E completa: “Não se sabe o dia de amanhã”.Shell trabalhou durante 1 ano em Albina, a cidade onde aconteceu o ataque dos maroons aos brasileiros, no natal de 2009. Me passou o contato de uma amiga, Lúcia, que estava lá quando tudo aconteceu. Segundo Shell, a moça teve que se esconder no meio do mato para não ser morta ou ferida. Marquei uma entrevista com ela para segunda feira à noite.Em geral, os brasileiros daqui reclamam muito da Embaixada. Sentem-se desamparados. Até mesmo para votar é um trabalho enorme. Segundo Shell, há 4 anos atrás, quando houve eleição para

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presidente, ela tentou votar. Foi à Embaixada. Depois de horas de espera, lhe informaram que não era lá. Ela precisava ir até o departamento de imigração. Horas de rua e muitos dólares no taxi. Chegando lá, eles a informaram que precisava ir até os correios para votar. Foi aos correios. Lá, a informaram que precisaria ir até a Embaixada. Até que, por fim, desistiu. “Foram muitas horas e muitos taxis”, afirma. “Eles querem que a gente participe, mas não facilitam nada aqui. Ao contrário, só dificultam. É impossível conseguir um horário na Embaixada. Eles nunca podem te atender. Sempre estão ocupados”. Curiosamente, quando liguei na Embaixada em busca de uma entrevista, o Primeiro Ministro me atendeu no mesmo dia. Pode ter sido um golpe de sorte, peguei um horário que ele havia cancelado com alguém importante. Ou pode, também, ter sido algum tipo de facilidade da imprensa em contatar pessoas.“Aqui paga-se tudo”, ela continua o depoimento. “Até para morrer você tem que pagar uma taxa pro governo. A embaixada trata as pessoas muito mal. Ficamos aqui, pagando caro nos taxis pra tentar resolver os problemas, gastando nosso tempo de trabalho, e o povo da Embaixada lá no ar condicionado... Só carrão”.Outro aspecto interessante da vida dos brasileiros no Suriname é a visão que têm do governo. Shell: “No Brasil, tem Deputado, Governador, mais Deputado, Presidente, Vereador... tem vários representantes. Aqui não tem representante nenhum. É só o Presidente e seusMinistros e olhe lá. É tudo desorganizado.”.Na realidade, parece que os brasileiros do Suriname, como grande parte da população brasileira, é mal informada com relação à política. Conversando com o Surinamês pernambucano – Berwiek -, descobri que a política no Suriname funciona da sequinte forma: existem os representantes municipais. Deles, é feito um conselho, que responde ao representante do distrito ( equivalente ao estado brasileiro). Dos representantes dos distritos, é feito um outro conselho, que responde ao Parlamento. E o Parlamento é quem elege o Presidente. Portanto, há bastante representação, em teoria. Não sei até que ponto funciona na prática. Acredito, porém, que o fato de grande parte dos brasileiros aqui não falarem holandês dificulta a informação. As críticas à Embaixada também foram rebatidas por Berwiek. Segundo ele, existe inclusive programas de TV e rádio organizados pela Embaixada brasileira para melhor informar os 15 a 20 mil conterrâneos que moram por aqui. Fica difícil saber até que ponto cada lado tem razão. Mas é fácil perceber que há falhas na comunicação entre os brasileiros e a embaixada.O clima na casa da família é bem brasileiro. Cadeiras no jardim (mal cuidado), planos de colocar uma piscina nos fundos. Varal com roupas coloridas (no local do X dos planos da piscina). Um puxadinho aqui, outro ali, e temos 3 quartos. Da sala pra cozinha não há paredes. Apenas lençóis separando os ambientes. Parece improvisado, mas, ao mesmo tempo, me pergunto se seria uma boa ideia ter mais paredes. O calor é intenso e a circulação do ar ajuda a refrescar. A única criança da casa, uma garotinha, conversa como adulto. Faz sentido, considerando que, na casa, só tem contato com adultos. Os brasileiros aqui, segundo Shell, não confiam nos brasileiros daqui. Frase mal construída, mas pode ser explicada. Segundo ela, a comunidade brasileira aqui não é, de fato, uma comunidade. São apenas pessoas que, por acaso, moram no mesmo país estrangeiro. Eles não se apóiam, e não se relacionam – na medida do possível-. Shell detesta sair com os brasileiros daqui. “Eles adoram fofoca. Fofocam o dia todo. Se você é gorda, comentam. Se você é magra, comentam. Eles só comentam”, explica. Além do mais, eles não são confiáveis. Todo mundo quer sempre tirar um pouco mais (de dinheiro)”, completa.A única vez, desde que mora no Suriname, em que os brasileiros se juntaram por uma causa foi quando aconteceu o ataque do Natal de 2009. Segundo Shell, alguns brasileiros arranjaram roupas, suprimentos, comida e artigos de higiene para levar ao hotel onde as vítimas foram instalados.Shell conta, ainda, que uma amiga foi morta durante os ataques. A Embaixada alega que ninguém foi morto. Houve apenas feridos. Quando questionei Shell a respeito do corpo, se foi encontrado, enterrado, ela mudou de assunto. Tem uma linha de pensamento bastante confusa de seguir. Depois, não tive a oportunidade de perguntar novamente. Mas Lúcia, a brasileira que estava em Albina (aqui pronunciado Albiná), também era amiga da moça supostamente assassinada no ataque.

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Vou questioná-la a respeito.Nesse ponto da conversa, o assunto voltou para violência. Shell acha maravilhoso poder sentar-se numa cadeira, ao final da tarde, em frente sua casa sem medo de ser assaltada. “Se fosse em Belém, as janelas e portas estariam todas fechadas”. “aqui é tudo barato, menos comida. Carro é barato, eletro doméstico é barato. Você devia levar uma dessa panela de arroz! É SRD30,00, baratinho!”. Falava da panela chinesa, muito utilizada também pelos javaneses para fazer arroz. “ela faz outras coisas também! Carne, batata. Tudo quanto é legume, pode colocar que ela cozinha. É elétrica. Muito prática”.A tecnologia sempre impressionou muito as pessoas. A facilidade, praticidade, com que tudo pode ser feito. “TV aqui também é bem barato. E celular. Todo mundo tem Black Berry. Se você for comprar, compre aqui. É bem mais barato que no Brasil”. Achei interessante ela imaginar que eu fosse levar um celular de volta pra casa. Como quem diz: não é possível que a brasileira vai perder a oportunidade de comprar um celular barato.Essa situação me lembrou um pouco o “Guia do mochileiro das galáxias”, quando a garota principal explica para outro terráquio que foi pro espaço porque lá eles têm facas que tostam o pão enquanto o fatiam. Bom, esse foi um dos motivos. E acredito que, para os brasileiros, também pode ser um motivo para buscar um novo lugar para viver. Não só tecnologia, mas o acesso à tecnologia. O preço dos artigos tecnológicos, aqui, realmente é muito mais baixo do que no Brasil.Na casa, o Surinamês javanês me disse que a prostituição não é legalizada no Suriname, “só em Amsterdã”, ele disse.Entretanto, o representante da Embaixada já havia me garantido que a prostituição é legal no país. Fiquei confusa. Vou confirmar a informação com o Embaixador.Shell conta que deu entrada nos papéis de permanência no país há dois anos. O interessante é que, segundo ela, eles só valem dois anos. Até hoje não recebeu o carimbo no passaporte. Já sua irmã mais nova, que deu entrada nos papéis há menos de 1 mês, já recebeu seu carimbo. Shell acredita que o departamento de imigração do Suriname é tão desorganizado que eles “Devem ter perdido os papéis”. “Não vou correr atrás. Se eles perderam, eles que têm que achar”. O problema de pensamentos desse tipo é que sem os papéis ela pode ser deportada. O governo, acredito, não vai se importar com o fato de terem sido eles mesmos que perderam os papéis. Acredito que a demora nos papéis possa ter mais a ver com o fato de Shell não ser casada com um surinamês, como duas de suas irmãs, que já receberam os papéis, do que com a desorganização da repartição.Mai à noite, já na Indofeira, liguei para a brasileira que estava em Albina quando aconteceu o ataque de Dezembro de 2009. Por telefone, disse que havia ficado presa no trabalho, e que passaria na Indofeira mais tarde. Nada. Não apareceu, nem ligou. Ficou tarde para ligar de volta. Afinal, não quero uma fonte de achando mal educada. Preciso dela pra concluir a matéria sobre os brasileiros.

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27/09 Segunda feira (4 dias para tomar banho no meu chuveiro.)

Hoje, em teoria, a Indofeira seria mais devagar, com menos público. Na prática, entretanto, percebe-se que os javaneses adoram bollywood. As apresentações culturais de hoje são muito mais indianas do que javanesas. Dançarinas de bollywood, seguido por um filme projetado no telão.O dia hoje foi reservado para 3 entrevistas: O CEO da maior rede de televisão e rádio do Suriname: SCCN, seguido por uma entrevista com a pessoa do cinema TBL, cujo trabalho consiste em revisar a programação dos canais e ligar para as estações para tirar satisfação, quando eles quebram parte do acordo de não transmissão de filmes, enquanto estiverem em cartaz.Saí cedo para encontrar o diretor da SCCN às 10h. Peguei carona com Nadya até lá. A porta de entrada é pequenina, como uma porta de pessoal de um pequeno galpão. Lá dentro, 4 funcionários sentados em mesas de escritório. O escritório ( na verdade um galpão transformado por divisórias pré montadas) continha 3 computadores, e uma televisão. Uma espécie de sala de espera sem sofá ou cadeiras para os visitantes se sentarem. Aqui, sempre, as portas estão fechadas. Entra-se e sai-se

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abrindo e fechando portas. Nenhuma delas pode ficar aberta, ou o fresco ar recém condicionado pode escapar.Entrando pela segunda porta, um corredor. Chão de cimento, e escritórios arranjados com as mesmas divisórias pré montadas. Lá dentro, uma salinha de espera com 3 sofás e duas poltronas. Chão de cimento.O CEO da SCCN, Isfahani Nagassersing é um hindustano. Surinamês descendente de Indiano. Começou a carreira como jornalista esportivo. Durante muitos anos teve um programa de esportes no mesmo canal. Hoje, é ele quem faz contratos milionários de transmissão do Champions League com os canais europeus.Conversamos durante cerca de 40 minutos, sobre a programação, o país e o Brasil. Nagassersing afirma que se juntou à luta pelos direitos autorais no país, ao lado do TBL. Afirma, também, que é o único canal Surinamês a pagar direitos de exibição para determinados programas, como American Idol, e os jogos do Champions League. “Queremos legalizar nossa situação como empresa. Apesar de não existirem leis de direitos autorais no pais, nós, da SCCN, queremos fazer a coisa certa. E a coisa certa é pagar os direitos para aqueles que produzem os programas. É assim que deve funcionar”.O que Nagassersing não admite, entretanto, é o fato de sua emissora ter recentemente transmitido filmes que estão na lista do acordo com TBL. Na semana passada, a programação da televisão no jornal mostrava o filme “Piranhas” na sessão da noite. O remake do filme de terror ainda está em cartaz nos cinemas TBL. Quando questionado a respeito disso, Nagassersing disse que está lado a lado na luta contra a pirataria, junto ao TBL. Não reconhece atividades ilegais no espaço de sua emissora.Há duas semanas, o programa mostra o filme “Salt”, com Angelina Jolie como protagonista principal. Na mesma época, o filme estava em cartaz no único cinema comercial do país.O Chefe Executivo da emissora conta que já precisaram entrar com processos contra 6 emissoras de televisão de Paramaribo por roubo de direitos de transmissão. Algumas, por causa da pirataria do programa norte americano American Idol, cujos direitos foram comprados pela SCCN. Outras por transmitires clandestinamente (ainda que anunciado nos jornais) jogos do campeonato europeu de futebol de campo.Um destes processos já foi finalizado nos tribunais. A SCCN ganhou o direito de tirar do ar nas outras emissoras os jogos de futebol. “Quando saiu o resultado...”, conta Nagassersing, “...eles pararam de transmitir o American Idol, então paralisamos o processo”. O CEO conta, ainda, que a batalha na justiça foi difícil, justamente pelo fato de não existirem leis de direitos autorais no país.Entretanto, pesquisando na internet, achei uma lei de direitos autorais que foi revisada em 1985, a mesma sobre a qual Eddy Wijngaarde falou há alguns dias. Questionei Nagassersing a respeito da lei. Ele explica que, mesmo existindo essa lei, que diz respeito a propriedades intelectuais na música e na literatura, o vídeo e o DVD ainda não existiam nessa época. Havia muito pouca informação sobre transmissão televisiva no Suriname e, portanto, ela não cobre todos os aspectos.Para ganhar a batalha, a advogada encarregada do caso, Senhorita Monique Vos, precisou apelar para o roubo de propriedade, seja ela, ou não, propriedade intelectual.Logo após a entrevista com Nagassersing, com a cortesia do motorista da emissora, fomos até o Seksbioscoop Liberty. O prédio, que antigamente era um cinema de rua, agora é dividido entre o cinema pornô e uma loja de fogos de artifício. Tentamos entrar, mas o dono não estava no local, e o funcionário não deixou. Tentamos falar com o proprietário, mas ele não quis mostrar a cara.De volta à van de volante à direita, o motorista me levou até o escritório da produtora TBL. Lá, tive a oportunidade de conversar com Pâmela, a funcionária encarregada de confirmar se o acordo de não exibição de determinados filmes nos canais televisivos está sendo cumprido.Pâmela, uma jovem de aproximadamente 24 anos, conta que desde o início dos negócios do cinema, a rede transmissora que mais descumpre o acordo é a SCCN – a mesma que afirma estar lado a lado com o TBL na luta contra a pirataria-.A jovem confirma, ainda, que a programação nos jornais indica a transmissão de filmes que ainda estão em cartaz. Segundo ela, quando liga para tirar satisfação na SCCN, eles afirmam que foi um

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pedido direto do patrocinador do horário na TV.Quatro horas e duas entrevistas mais tarde, estava exausta. Em teoria, fazer entrevistas não é algo que demanda um esforço muito grande. É uma atividade, em sua maior parte, mental. Mas sempre depois das entrevistas que tenho feito, fico absolutamente cansada. Parece que as informações, apesar de terem sido anotadas em papel, ou gravadas no gravador, ficam pairando na mente, ocupando o espaço da memória RAM. Você fica mais lento, e faz tudo mais devagar. Não consegue lembrar de coisas básicas, como o nome daquele cantor que faz sucesso, ou o nome da marca da pasta de dente. Pode parecer ridículo, mas preciso de alguns minutos no escuro para organizar os pensamentos e, somente depois, colocá-los no papel. O calor também não ajuda. Fica difícil pensar e lembrar quando a cabeça está fritando no sol.Por isso, todo mundo aqui (ou todo mundo que pode) anda de carro. E é muita gente que pode. Um carro que no Brasil custa caro, como um Honda, ou um Toyota, aqui custa muito barato. Hoje estive andando pelas ruas de Paramaribo e de dentro da janela do meu carro, vi um Toyota Corola semi novo, 2008, sendo vendido por 8 mil SRD, o equivalente a cerca de 5 mil reais. Será Possível?A brasileira que esteve em Albina quando aconteceu o ataque da noite de natal não atende ao telefone. Acho que está tentando fugir de mim. Fui ingênua. Se tivesse perguntado o endereço na primeira vez que nos falamos por telefone, poderia ter ido à casa dela, esperá-la na porta, como um jornalista assaltante, que ao invés de jóias, leva informações.

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28/09 Terça Feira

Hoje foi um dia devagar. Planos de encontrar a brasileira foram por água abaixo. Ela não responde e não atende ao telefone. Não sei dizer se morreu no garimpo, ou se está fugindo dos jornalistas. É no mínimo curioso. Se ela afirma que a amiga foi assassinada durante o ataque aos brasileiros em Albina, porque não quer falar com os jornalistas? Por telefone, insistiu que a Embaixada estava escondendo informações, mas ela também não quer vir a limpo com a situação.Passei o dia tentando entrar em contato com ela, bem como com a advogada Ms. Vos, que ganhou o processo de propriedade intelectual em nome da TV SCCN. O telefone do escritório termina na secretária, que com péssima atitude e uma preguiça intensa (que pode ter sido desencadeada pelo calor) se recusa a anotar recados. Disse que o papel é pequeno e ela só pode anotar algumas palavras. A frase “Jornalista brasileira pede entrevista sobre copyrights SCCN” parece ter sido longa demais para o post it. A moça desistiu de anotar e me pediu que enviasse um email. “Ela lê os emails”, disse com um suspiro de cansaço, às 11h30 da manhã – o escritório fecha às 14h.Mandei o email solicitando a entrevista. Como resposta, aprendi que seria impossível encontrá-la nos próximos dois dias. A advogada disse que está extremamente ocupada. Pediu que eu voltasse a entrar em contato na semana que vem, mas na semana que vem estarei no Brasil, muito longe de Paramaribo.Perguntei se a senhorita poderia responder a algumas perguntas por email. Ela disse que sim, mas queria saber mais sobre o projeto. Parece que todo mundo tem medo da mídia. Quando se fala “Gostaria de entrevistá-lo”, as pessoas fogem do microfone, do gravador e da câmera. Em Paramaribo, todo mundo foge da câmera. Até mesmo na rua, quando se tira fotos de paisagens, as pessoas ficam bravas e soltam xingamentos em Srana Tongo, a língua local.O calor hoje foi intenso. Foi difícil de pensar. Ter ar condicionado no quarto de dormir facilita muito o andamento do trabalho. Por outro lado, torna praticamente impossível começar o dia. Por vezes, fico sem beber água para não ter que ir à cozinha abafada.Há um dilema muito grande na hospedagem com amigos. Por um lado, eles conhecem o local, as ruas, o andamento dos processos e os meios de transporte. Sabem indicar onde e quando procurar informações de determinados tipos. Ainda do lado positivo, têm-se abrigo e comida gratuitos, o que é extremamente importante quando o orçamento é curto. Outra vantagem é a inserção cultural. Ficando na casa dos javaneses, tudo é javanês. Até a língua falada no jantar – que também era feito com vegetais e temperos tipicamente javaneses. A grande desvantagem, entretanto, é que, em troca

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do abrigo, da comida, da ajuda e da atenção, você, o estrangeiro, também precisa prestar ajudas e atenções ao cotidiano dos habitantes locais. No caso dos javaneses, por exemplo, a Indofeira, que acontece durante nove dias, exige muita preparação e toda a mão de obra que for possível reunir. Dessa forma, o abrigo e a alimentação vêm em troca do trabalho e da ajuda na feira de 2010. Não que isso seja algo ruim, afinal, é mais uma forma de se inserir no cotidiano javanês no país. O problema é que a atividade demanda muito do curto tempo que se tem para desenvolver o projeto. Muitas vezes, os horários coincidem, e é preciso tomar taxis de um lado para outro, da correria de entrevistas, para a organização da barraca na feira. Isso significa não prestar toda a atenção que o projeto dos cinemas demanda para que a matéria fique bem feita. Um exemplo claro é a tentativa de dar um pulinho no seksbioscoop Liberty. Durante dias tentei passar pelo local. Entretanto, sendo longe da casa dos javaneses e longe da feira, a única forma de ir até lá é de taxi. Por sorte o motorista da SCCN foi gentil o suficiente para passar no local durante a ida ao escritório do TBL. Entretanto, não foi possível entrar e fazer imagens do local, o que seria de enorme interesse para o projeto. O dono do local sugeriu que voltássemos mais tarde, mas, mais tarde, era hora da indofeira. Como deixar a família que te alimenta e te dá abrigo na mão? Situação difícil. Acredito que, se fosse um jornalista numa situação de trabalho, financiada pelo trabalho e pressionada pelo mesmo, meu comportamento teria sido diferente. Poderia ficar hospedada em um hotel, e ter a liberdade e o orçamento para andar de taxi para cima e para baixo, sem estabelecer compromissos com a família. Entretanto, essa não é a realidade. É pegar os limões, e fazer limonada. Ou, no Suriname, pegar as frutas que me restam, e fazer um Power Smoothie.

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29/09 Quarta feira (tomorrow, tomorrow... always a Day away)

Acordei cedo, preparada para aproveitar os últimos dois dias da melhor maneira possível.Às 11h, entrevista com o Embaixador José Luis. Às 11h, esperança de obter informações um pouco mais concretas a respeito dos acontecimentos de Albina.Segundo o Embaixador brasileiro no Suriname, José Luis, os acontecimentos de Albina geraram um grande fuzuê em cima de muito pouco. Padre Vergílio, uma figura carismática da região, foi a fonte direta da imprensa brasileira. Entretanto, o Embaixador afirma que a fonte não é confiável. Exagerou nas informações. Divulgou um número de mortos inexistente. Enquanto a rádio Katólica, onde padre Vergílio trabalhava, estimava 14 mortos e dezenas de feridos, os números oficiais após as investigações mostram que não houve mortos, e foram apenas 14 ferimentos graves.A Embaixada afirma que, após ter entrevistado as vítimas, e feito investigações na região em que ocorreu o ataque de Dezembro de 2009, foi elaborada uma lista de 7 pessoas desaparecidas. Com a lista na mão, a Embaixada fez buscas pela mata, na capital e nas cidades natais das pessoas desaparecidas, já no Brasil. “uma a uma...” afirma o Embaixador, “as pessoas foram encontradas. Muitas delas haviam fugido para a Guyana Francesa, ou de volta para o Brasil, em passar pela embaixada ou pelo aeroporto, mas da mesma maneira que vieram parar aqui, ilegalmente pelas fronteiras terrestres”.As notícias dos jornais encontradas na internet que dizem respeito ao acontecimento de Albina não condizem com a declaração de zero mortes.Ainda segundo o Embaixador, 28 habitantes do Suriname, em sua maioria maroons, foram confirmados pela justiça do país como sendo participantes do crime. Eles ficaram algum tempo na prisão, foram processados, presos, e alguns respondem em liberdade. A antropóloga Marjo De Theije havia afirmado que viu uma notícia no jornal do Suriname há alguns meses, dizendo que presos haviam sido libertados por um grupo de resgate maroon, que entrou na prisão de Paramaribo, fazendo alguns reféns e acabou libertando os malfeitores do ataque.Questionei o Embaixador sobre esta matéria (pessoalmente, não achei a reportagem em jornal algum, em holandês, inglês e português). Ele afirma que, segundo lhe consta, a informação não procede. A Embaixada não sabe de nenhuma entrada forçada à prisão, ou fuga de prisioneiros.

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O Embaixador conta que, até hoje, há relatos de assassinato no episódio. Mas, sempre que se faz uma pesquisa mais profunda, a informação não procede.“Os brasileiros que vêm parar no Suriname, em maioria, vêm de regiões com os menores índices de desenvolvimento humano do Brasil. Aqui, eles são acusados de poluir, de sujar, de crimes e de abusos, mas há uma conivência do Suriname. Porquê? Porque o país precisa dos brasileiros. Há um lucro saído do garimpo que é repassado para a comunidade local. Como os brasileiros são ilegais, há, por exemplo, propinas e chantagens às quais eles são submetidos que geram lucros para o pais. Talvez não diretamente para o governo, claro, mas para a comunidade local, que vai ter dinheiro para investir na economia do país.”, completa o Embaixador.“Os brasileiros daqui ficam apenas com uma fração do que produzem. O resto fica no país, e passa na mão de muita gente. O ouro é o único commodity que teve alta no preço recentemente. A produção artesanal do ouro, segundo o Embaixador, supera o ouro extraído artificialmente pelas grandes empresas. Para o Embaixador, não é interessante para o Suriname dispensar o trabalho dos brasileiros. “Eles saem no jornal como criminosos, mas não são impedidos de fazer negócios no país”.A Embaixada do Brasil no Suriname tenta, já há dois anos, desenvolver um projeto bilateral, entre as autoridades locais e os consulares brasileiros no país para obter informações diretas que dizerem respeito a qualquer brasileiro no país. Este grupo acompanharia de perto a questão migratória. Segundo o Embaixador, têm sido difícil desenvolver o projeto, uma vez que o país acabou de passar por um série de mudanças no governo. A partir deste projeto bilateral, o Itamaraty ficaria sabendo em primeira mão de informações sobre a migração brasileira no Suriname. “Vamos dizer para o governo que os brasileiros contribuem para a economia do pais, e devem ser tratados como cidadãos, e não criminosos.”Da forma como a relação é estabelecida, hoje, entre a Embaixada e o governo local, qualquer tipo de interferência dos consulares brasileiros em assuntos internos do Suriname seria considerado ingerência de assuntos internos, e poderia gerar um conflito internacional. “Por isso...”, diz o Embaixador, “foi tão difícil obter informações e intervir no conflito de Albina. Não temo autoridade para agir. A Embaixada pode agir na medida em que os brasileiros a procurem com alguma demanda, seja reclamação o não”.No avião da Força Aérea Brasileira foram levados de volta ao Brasil 80 vítimas, sendo 30 no primeiro vôo e 50 no segundo. O último vôo levou, também, famílias das vítimas que estavam instaladas na capital. De Albina para Paramaribo, foram trazidos 90 pessoas. A cidade ficou vazia. Até algumas semanas mais tarde, não havia a sombra de ninguém no garimpo” .Das 90 pessoas que foram encaminhadas aos hospitais da capital, cerca de 50 tinham algum tipo de ferimento. Desses, 7 eram mais graves. A Embaixada ofereceu às vítimas passagens para Belém, mas não foram todos que aceitaram. Muitos deles não tinham documentos pessoais, ou de permanência no país. Muitos alegaram ter perdido todos os documentos durante o ataque. Para todos aqueles que não mais possuíam os documentos, a Embaixada formou um grupo de emergência de confecção de novos documentos. Esse grupo ficou encarregado de recolher todas as informações possíveis das vítimas, e conferir nos cartórios brasileiros, para poder gerar novos documentos gratuitamente.

O Embaixador acredita piamente que o ataque os brasileiros em Albina não foi fruto de um ódio pelos brasileiros, mas poderia ter sido contra os chineses, ou contra os surinameses. “Foi uma questão de ocasião. Naquela região, vivem os antigos guerrilheiros, aqueles que lutaram contra a ditadura de Boutersi. Aquela região não segue as regras do país. É um caos total. Eles têm suas próprias leis. Os habitantes locais são muito pobres, sem perspectiva de vida. Quando eles viram os brasileiros celebrando, com uma imensidão de comes e bebes, música, festa, luzes coloridas, e pensaram a respeito da própria situação eles chegaram à seguinte conclusão: Nós, habitantes locais, estamos aqui, sem nada, enquanto os forasteiros invadem nossas terras, garimpam o nosso ouro e ficam ricos, fartos, festejando e celebrando. Porque permitir isso? Se eles não obedecem ao governo central, por que obedecer às leis dos brasileiros?”. Segundo José Luis,

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isso poderia ter acontecido com qualquer grupo étnico, de qualquer origem. Por uma questão de coincidência, quem festejava na hora eram os brasileiros, os mesmos brasileiros que haviam matado um deles algumas noites antes. Por isso houve o conflito.Um maroon começou a provocar um brasileiro bem menor do que ele. Pediu o dinheiro relativo ao uso da terra, mas o brasileiro já havia pagado. O maroon disse que queria o pagamento novamente, porque ele mandava naquele pedaço de terra. Começou a bater no brasileiro que, mais uma vez, era bem menor do que ele. A cena se passou em um bar local. O brasileiro, sabendo que corria o risco de eventualmente tomar uma surra, por ser pequeno e fraco, carregava sempre consigo uma faca. Tirou a faca da calça e atingiu o maroon. Segundo os moradores locais, ele não esperava que fosse resultar em morte. Tirou a faca para se defender.“O local não é um problema contra os brasileiros. É uma questão de política interna do Suriname, sobre a qual não temos controle – nem eles (o governo)-. Por sorte, ou falta de, acabou envolvendo um grupo de brasileiros.

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O acontecimento de Albina foi grande parte do assunto discutido na entrevista, mas abordamos também os motivos migratórios, além do óbvio, o garimpo.Segundo o Embaixador, os brasileiros do Suriname têm medo da Embaixada. Eles temem retaliação por conta da ilegalidade. “...Mas a Embaixada não existe para retaliar. Ela existe para ajudar. Se um brasileiro bate na nossa porte sem os documentos de permanência no país, não vamos expulsá-lo. Vamos tentar conseguir para este brasileiro os tais documentos de permanência”.Do lado de cá da fronteira, são estimados cerca de 30 mil brasileiros.O trabalhador que vai tentar a vida no Suriname não tem mais o mesmo perfil que antigamente. Antes, os homens iam ao garimpo e acabavam gastando todo o ouro em bebidas e mulheres, e as mulheres eram intimadas a participar dos cabarés (prostituição). Havia histórias de passaportes retidos e mulheres que apanhavam quando tentavam fugir dos cabarés. Hoje, em geral, isso não acontece mais. Muitos dos homens são empreendedores. Eles trabalham no garimpo e investem o ouro em maquinário, em lojas de suprimentos, qualquer coisa que lhes possa garantir um futuro estável uma vez que não mais puderem participar do garimpo.As mulheres têm perfis variados, mas aquela mulher que tem seu passaporte retido e é forçada a trabalhar nos cabarés e nos prostíbulos, segundo os brasileiros e o Embaixador, não existe mais. A Embaixada brasileira no Suriname monta, de tempos em tempos, um consulado itinerante. Consiste em um grupo de pessoas (maioria mulheres), que vão até as corrutelas, no interior do Suriname, conversar com as mulheres dos cabarés para instruí-las com relação a seus direitos e deveres. O Embaixador conta que, antes de o consulado itinerante entrar no cabarés, eles pedem a permissão dos donos (em sua maioria também mulheres), para conversar com as brasileiras de forma privada, só a cônsul e a moça. São oferecidos uma série de serviços, desde apoio médico, até telefones gratuitos de podem ser contatados 24h, de qualquer telefone, seja celular ou fixo, caso as moças queiram dar queixa ou precisem de ajuda. O serviço já existe há muitos anos, mas, até hoje, o consulado não recebeu sequer uma ligação com pedido de ajuda ou queixa de maus tratos.As mulheres que trabalham nos cabarés ganham muito dinheiro. Elas são pagas em ouro pelos garimpeiros locais. Com esse dinheiro, muitas sustentam as famílias no Brasil, além de poderem pagar uma vida confortável, cheia de roupas caras e luxos tecnológicos no Suriname. O Embaixador não foi o único a mencionar esse perfil das mulheres dos cabarés. Os brasileiros com os quais conversei durante minha estadia no Suriname, todos têm a mesma impressão da situação. No aeroporto mesmo, na ida a Paramaribo, as mulheres vaidosamente vestidas com suas bolsas Gucci e calças Dolce & Gabana eram muitas. Todas falando português em seus celulares Black Berry, a febre tecnológica do país.Difícil dizer qual das moças vaidosas trabalhava, ou não, no cabaré. Mas era fácil dizer que a vida lhes parecia financeiramente confortável.

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Na tentativa de passar informações sobre os direitos e deveres dos brasileiros no Suriname, a Embaixada desenvolveu dois programas de rádio e TV, que são transmitidos mais de uma vez por dia. Nele, são transmitidas instruções, informações, para a comunidade brasileira. É, também, o canal de divulgação cultural do Brasil no Suriname. Bandas famosas no norte e nordeste, com frequência, são convidadas para fazerem shows naquela região do Suriname. Além disso, exposições, festas juninas e missas são celebradas em português. É a partir destes programas que a comunidade brasileira se informa. É um canal direto, da Embaixada para a comunidade. O problema maior é fazer com que os brasileiros estabeleçam o canal inverso, da comunidade para a Embaixada. “O feedback é pouco, quase inexistente” afirma o Embaixador.Duas zonas eleitorais foram montadas na Embaixada brasileira. Os funcionários foram treinados pelo TRE para melhor atender os brasileiros que vivem no país e quiserem participar das eleições de 2010. O espaço é novo e organizado. Limpo, iluminado, oferece ar condicionado e acesso à internet. Mas, até o dia da entrevista, menos de 1000 pessoas haviam se registrado para exercer o direito à cidadania.

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Após a entrevista com o Embaixador, ainda tentei por algumas horas falar com a brasileira Lúcia. Entretanto, agora já creio que ela ignora as ligações do meu telefone.

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Mais tarde, já na Indofeira. O público intenso, todos loucos por uma raspadinha de gelo com xarope de frutas, para aliviar a sensação de calor – que depois de alguns minutos gelados, volta para te atormentar.O casal de brasileiros que havia conhecido na feira me ligou. Disseram que iam passar para me buscar (muito gentil, mas parece que por aqui todo mundo é gentil quando se trata de caronas). Havíamos combinado uma entrevista para essa semana. Esperei na porta do festival pelo casal. Um carro caríssimo, cheirando a bancos de couro recém comprados estaciona do meu lado. Para minha surpresa, dentro, o casal do Pará.É engraçado como tem razão o ditado que diz: a primeira impressão é a que fica. Tendo conversado com alguns brasileiros, nunca pude imaginar que alguns deles viviam em uma situação economicamente agradável sem trabalhar no garimpo ou nas casas de prostituição. O casal, que na feira parecia um casal humilde que lutava para sobreviver, se provou um casal que venceu os contratempos da pobreza, pelo menos por enquanto.

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Nalva e Cleo vieram para o Suriname há 14 anos. À época, a imigração era acompanhada pelo sonho juntar dinheiro o suficiente para voltar ao Brasil e comprar um carro. O plano era ficar um ano no país estrangeiro, trabalhando muito e gastando pouco. O irmão mais velho de Cleo já estava no garimpo há algum tempo. Era um homem muito influente no local. Foi um dos sortudos que encontraram muito ouro numa época em que haviam poucos brasileiros no Suriname. Ele iniciou Cleo no garimpo, enquanto Nalva procurava um emprego no comércio local. A experiência, entretanto, não deu certo. Cleo não teve sorte no garimpo e Nalva não conseguiu achar um emprego.Durante o primeiro ano no Suriname o casal precisou pegar qualquer tipo de trabalho que aparecesse. Não chegaram nem perto de realizar o sonho que os moveu até lá. Depois de um ano, se viram numa situação complicada: não tinham nem dinheiro para comer, quanto menos para voltar a Belém.Nalva conta que quando Cleo teve malária no garimpo, eles não tinham dinheiro para comprar remédios. Precisaram revender 17 garrafas de coca cola, acumulando um lucro irrisório, para comprar o almoço do dia.

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O tempo foi passando, e a situação foi melhorando para o casal. Cleo já havia trabalhado em uma casa de câmbio. Conheceu um chinês que precisava de um brasileiro para manter uma de suas filiais. Foi assim que conseguiu seu emprego atual. Trabalha na casa há 12 anos. Nalva, com o dinheiro que conseguiram acumular, e alguns empréstimos, montou uma loja de roupas brasileiras “De qualidade!”afirma, “Não são vagabundas (as roupas) como as dos chineses. Eles copiam tudo, e conseguem vender muito parecido e muito mais barato que a nossa mercadoria”. Nalva, com frequência, viaja ao Brasil para comprar novas mercadorias. “A cada mudança de estação”, ela acrescenta. Vai a São Paulo e Belo Horizonte, “onde as roupas são de boa qualidade”.Os planos de manter a loja, porém, já estão expirando. Segundo Nalva, a concorrência dos chineses tornou o negócio pouco lucrativo. Eles consideram novas possibilidades de comércio. A família, o casal e uma filha adolescente, afirma que a maior vantagem de morar no Suriname é o índice de violência. “Não há violência. Você pode andar na rua tranquila” afirma Cleo.A família já foi assaltada 4 vezes, Duas em casa e duas no trabalho. Mas insiste que a violência, aqui, é menor do que no Brasil. “Aqui, temos uma caminhonete Hilux, que no Brasil custa 300.000 mil reais. Aqui, andamos nela tranquilamente, sem medo de ser feliz. Lá, andar num carro desses é pedir para ser sequestrado em troca de resgate”, explica Cleo.A comunidade de brasileiros no Suriname parece ser diferente de comunidades em outros países do mundo. Na Holanda, por exemplo, os brasileiros se reúnem, e se ajudam. Eles ficam amigos e, até certo ponto, se interpretam como família. No Suriname, segundo os próprios imigrantes, “Ninguém é amigo de ninguém”. Eles se relacionam muito pouco, apenas quando necessário. Não se integram ou passam fins de semana juntos. A família de Shell havia afirmado: “Quem tem família no país, fica tranquilo. Quem não tem, fica sozinho”. Da mesma forma que Shell tem medo das fofocas e dos comentários dos brasileiros que vivem por ali, a família de Nalva e Cleo sente um receio em se relacionar com os brasileiros locais. “Muitos deles não são confiáveis. E todo mundo fofoca... O tempo todo. Quando você não tem dinheiro, eles até ficam amigos, tem dó. Parece que gostam de te ver em situação pior que a deles. Quando você passa a ter algum dinheiro – e não digo nem ficar rico, não, só ter o suficiente para não passar tanta dificuldade -, todo mundo olha para você torto, como se estivesse traficando drogas, ou roubando dinheiro de alguém.” E Nalva completa: “Ganhamos o nosso pão honestamente. Só porque não mais passamos fome, os brasileiros passaram a não gostar mais da gente. Acho que é inveja.”.Cleo conta, ainda, que antigamente, quando começou a ganhar algum dinheiro, ele bebia muito. Bebia tanto, que uma vez foi ao médico, e ele lhe perguntou como estava vivo. O colesterol estava tão alto que mal se podia imaginar um ser humano funcional com um colesterol tão alto. Não confiando no médico local (um surinamês, indicado pelo plano de saúde particular pago pelo casal), foi até Belém consultar com seu antigo médico. Infelizmente, ele tinha razão. Cleo precisou cortar a cerveja e diminuir os churrascos. “Como passei a não beber, eu não comprava mais cerveja pros outros. Não bancava mais a cerveja de ninguém. Aí todo mundo passou a me odiar. Eles dizem: ‘O Cleo ficou metido agora que ta rico!’ Mas eu não estou nem rico, nem metido, só precisei cuidar da minha saúde. Já tem 3 anos que não bebo uma gota. Me sinto melhor e agora invisto o dinheiro nos negócios, ao invés de ficar desperdiçando com álcool”.O casal conta que a inveja é tão grande dentro da comunidade brasileira que as quatro vezes que foram assaltados, os assaltantes eram brasileiros. Atualmente tem surgido uma onda de assaltos estimulada pelos brasileiros na região. “Eles ficam dando bobeira na rua, andando com ouro e muito dinheiro, a policia surinamesa chega... às vezes nem é policia, mas tem um distintivo; E diz que vai confiscar tudo o que você está carregando... E você fica sem nada. Hoje foram assaltados dois na rua brasileira.”. Conta Nalva, que se informou com consumidoras na casa de câmbio.E acrescenta: “Aqui, Luiza, só se pode confiar em Deus”. Nalva é evangélica, mas Cleo afirma não frequentar à igreja local. O casal pensa em voltar ao país de origem. “O Brasil é bom, mas aqui a gente tem mais segurança”, diz Cleo.O plano de Nalva consiste na volta ao Brasil somente quando estiver bem mais velha. “Os planos

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de saúde aqui não são tão bons. Não dá pra confiar nos médicos”. Ela teme que um diagnóstico enganado possa arruinar sua saúde. Segundo o casal, o garimpo não é tão perigoso quanto as pessoas afirmam. Eles já estiveram lá, e garantem: “Perigoso é na Guyana. Lá, sim, morrem 5 por dia. Aqui, não... O que tem de perigoso no Suriname é a macumba. Tem macumba demais.”Os brasileiros têm uma imagem ruim dos outros brasileiros que moram no Suriname, mas se irritam quando um veículo da mídia vai visitá-los, e só mostra partes polêmicas da vida dos brasileiros no país. Segundo o casal, a Rede Record foi ao Suriname recentemente. Há cerca de 2 meses, eles mostraram drogas, tráfico, prostituição, maus tratos e mortes. “E só!”, reclama Cleo. “Como se fossemos um bando de selvagens... A gente sabe que existem problemas aqui, e que muita gente é pilantra, mas tem muita gente honesta também. Não gosto da imagem que o Brasil tem da gente que mora aqui. Parece que somos um bando de animais”. Cleo afirma que a televisão mostrou o depoimento e um sujeito, posicionado na sombra, que afirmava que a amiga era prostituta, e morreu de overdose em uma das casas de prostituição. Mas Cleo conhece o sujeito e sabe que ele foi pago para dizer “aquelas bobagens”, nas palavras de Cleo. E completa “Nada daquilo era verdade. Ninguém é torturado nas casas de prostituição. Elas são muito bem pagas”.

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30/09 Quinta feira (último dia)

Último dia de comida étnica. Último dia de calor intenso. Último dia de convivência com a família que passei a interpretar como minha. Último dia de trabalho na Indofeira e últimas entrevistas.Hoje, entrevista com Embaixadora indonésia no Suriname e com personagem da feira. Estive pensando em desenvolver uma reportagem sobre a cultura javanesa no Suriname. Acredito que as fotos da feira e da casa da nadya seriam bons exemplos visuais do que se passa por aqui. A convivência com a família pode ser descrita em detalhes culturais e os costumes e hábitos podem dizer muito sobre os traços culturais de Java que foram trazidos, ou adaptados no Suriname.Na Indofeira, hoje não trabalhei. Apenas observei e passeei. Tirei muitas fotos de detalhes que me interessam como estrangeira. Conversei com um dono de uma das bancas, Dino Ngadino. (nome engraçado).Dino é um comerciante de 44 anos. Com meus olhos, talvez um pouco exaustos de tanto observar detalhes nos últimos 15 dias, lhe daria menos de 30. Sua loja comercializa CD’s e DVD’s piratas. Segundo ele, o comércio dá um dinheiro bom. “mas a Indofair não me acrescenta muito em lucro. Só acrescenta mesmo para quem vende móveis e comida. Os javaneses gostam de móveis da Indonésia, e todo mundo gosta de comer”, acrescenta com um sorriso piadista no rosto. Concordei e disse que eu também era uma dessas pessoas que gostam de comer. Dino conta que sua família veio ao Suriname em um dos barcos famosos dos imigrantes, mas não soube dizer o nome. O primeiro a pisar por essas terras da família de Dino foi sua bisavó, em 1917. Seus pais são Indonésios, mas ele já nasceu no Suriname. O comerciante tem planos de visitar a Indonésia, e procurar seus parentes por lá. Mas disse que nunca teve a oportunidade financeira – a passagem custa cerca de 2.500 dólares. Sua família é de tradição Islâmica. Eles frequentam uma das várias mesquitas espalhadas pela capital. Segundo Dino, a família ainda carrega muita tradição da ilha de Java. Os festivais são os mesmos, e datas são comemoradas em família. Ele se diz contente de ver todos os javaneses interagindo na Indofeira. “É um acontecimento importante”, afirma. “Nos lembra das independências e da primeira imigração oficial”.Mais tarde, tive a oportunidade de conversar com a Ministra da Embaixada Indonésia no Suriname (2nd secretary of the embassy) – aprendi que a Embaixada estava, no momento, sem Embaixador designado. Ela seria a representante N1 no país. Endah R. Yuliarti conta que a imigração javanesa para o Suriname começou por conta dos holandeses. Foi em uma época em que, tendo abolido a escravidão, os dutchmen ficaram sem trabalhadores no país. Acabaram tendo que importar estes trabalhadores. Em troca da imigração, ofereceram

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aos javaneses um pedaço de terra no país e um salário – que para os javaneses era significante, enquanto para os holandeses, praticamente nulo.Hoje, os javaneses constituem cerca de 17% da população do país. Um índice muito alto, para um país de apenas 500 mil habitantes – 250 mil deles na capital.A Ministra conta, também, que a imigração tem um caráter especial porque não foi feita de todas as partes da Indonésia: “a Indonésia tem várias culturas. Várias etnias diferentes, estabelecidas em diversas ilhas. A imigração pro Suriname foi, e ainda é, tipicamente javanesa (da ilha de Java). Portanto, a cultura que temos aqui é muito diferente de todo o resto da Indonésia. Lá temos de negros tipicamente africanos a brancos, no estilo nórdico europeu. Todos eles indonésios.Realmente, a Ministra tinha razão. Eu não imaginava tanta diversidade em um país tão pequeno quanto a Indonésia. Não imaginava, inclusive, que tanta gente pudesse caber em tão pouco espaço. Endah conta que, no pequeno espaço territorial da Indonésia (apenas 700 mil Km quadrados), vivem mais habitantes do que em todo o espaço brasileiro (mais de 8 milhões de km quadrados). Lá, são mais de 240 milhões de pessoas, enquanto aqui somos apenas 190.O Suriname tem sido visto pela indonésia como uma porta para exportação. Como, até lá, o produtos indonésios tem certa facilidade alfandegária, os planos de negócios entre os dois países giram em torno de elaborar uma rota comercial que espalhe os produtos importados da indonésia para todo o resto do caribe e da America latina. Segundo a ministra, esse seria um primeiro passo para maior reconhecimento da importância e da potencia comercial indonésia no resto do mundo.

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Hora de ir embora. Às 21h, o taxi (motorista Hindustani) me buscou no Sana Budaya, onde acontecia o festival Indofair 2010. Foram 1h e 10 minutos até chegar ao aeroporto. Lá, somente brasileiros na fila de embarque. Apenas um vôo marcado, o vôo para Belém.Os brasileiros falam alto e ocupam muito espaço. O aeroporto que, apesar de pequeno, parecia vazio quando cheguei, foi tornando-se muito parecido com a rodoviária da capital mineira quando foi chegando próximo do horário de embarque. Todos carregavam sacolas. Dentro dessas, travesseiros, bichos de pelúcia, brinquedos e cobertores. Tudo com uma pontinha para fora, então, fácil de identificar.Considerada uma estrangeira pelos brasileiros, muitas vezes ouvi comentários sobre mim mesma, como se interpretassem que eu não falava português. Tive muito tempo para pensar. Foram duas horas de espera para passar pela imigração (nada gentil), e mais uma hora para o embarque.Com a saudade dos amigos do Suriname já apertando no peito, cheguei à seguinte conclusão:Quando você chega num país estrangeiro, estranha tudo. Daí a palavra Es-tran-gei-ro. Estranha a paisagem, a comida, as pessoas... Quando você deixa o país, a sensação de angústia é muito grande.Por mais que hoje, com várias opções de transporte aéreo e preços razoavelmente acessíveis, seja mais fácil pisar em outros solos, tudo demanda tempo e, com esse tempo, dinheiro.O ser humano se adapta rápido. Ele é flexível, e pode aguentar diversos tipos de pressão e situação. Mas, se adaptar significa se integrar em determinado contexto.Você vira parte daquele contexto, e o contexto vira um pedaço de você. Ele espreme tudo o que já existe dentro de ti, e arranja um espacinho para se acomodar no seu coração. Quando você vai embora, o contexto perde uma peça, e você perde todos aqueles laços que foram tão difíceis de se construir.Cada palavra explicada, cada expressão de gosto ou desgosto – que você descobriu ser a forma mais fácil de se fazer entendido pelos habitantes locais - tudo se perde.No final de uma jornada de trabalho, para tentar entender o mundo, o jornalista nele se insere. E, quando vai embora, parece que foi arrancado dalí. Parece que faltam pingos nos I’s e cortes nos T’s. E é assim que termina... com abraços de saudade antecipada lembrados de um banco no aeroporto, entre dois brasileiros que não se conhecem, mas têm algo em comum e conversam entre si. Sem, sequer, notar a sua presença. Como se o contexto já tivesse lhe esquecido.

FIM.

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Conclusão:

A princípio, a meta do trabalho era vivenciar a experiência de um enviado especial ao exterior a partir da criação de uma reportagem especial sobre a “estiagem” dos cinemas no Suriname. Entretanto, durante a experiência, percebe-se que cada passo dado gerava mais dois, em direções diferentes. O que era para ser uma matéria com algumas imagens, tornou-se três reportagens especiais que, juntas, poderiam se tornar uma revista de pequeno formato. A experiência foi enriquecedora, tanto em termos culturais, quanto acadêmicos. No decorrer do projeto, determinadas habilidades precisaram ser desenvolvidas de forma a facilitar a construção das reportagens.Um ponto de grande foco durante as experiências no Suriname, por exemplo, foi o estabelecimento de relações sociais. Como afirmam os antropólogos, para entender um contexto, é preciso tempo para se estabelecer relações de confiança entre os habitantes locais. Dado o limite de tempo, como enviado especial em outro país é preciso agir como um turista que se comporta como um nativo. Dessa forma, a estadia na casa de uma família javanesa (que inclusive tinha boas conexões sociais, com Embaixadores e pessoas influentes no país) foi essencial para o desenvolvimento do trabalho. Falar a língua local é outro aspecto de suma importância para se entender os contextos e ter certeza das situações às quais se adentra. Portanto, não só para o correspondente, mas também para o enviado especial, é preciso dominar várias línguas, ou, pelo menos, as mais difundidas.Ser um turista que se comporta como nativo é exaustivo. Durante a experiência, foram relativamente frequêntes as dores de cabeça por excesso de novidades. Enquanto turista, as novidades lhes perpassam, sem deixar marcas. Enquanto jornalista ou antropólogo, cada novidade precisa ser cuidadosamente coletada e relatada no diário. Ao final do dia, as novidades são tantas que pensar em português tornara-se difícil.Trabalhar em contextos diferentes requer adaptação. Trabalhar em contextos e climas diferentes requer muita paciência. O calor no Suriname é intenso. Se os próprios habitantes locais não saem de casa durante o dia, fica difícil fazer render o pouco tempo que se tem para coletar dados. Além disso, condições de transporte e apoio financeiro são sempre pontos importantes que devem ser considerados de forma logística antes de se aventurar como jornalista em um país estrangeiro. A experiência de construção das reportagens no Suriname foi intensa. Entretanto, o mais interessante de toda a experiência foi perceber o quão interessados em culturas desconhecidas os brasileiros são. Da mesma forma que me senti uma estrangeira quando cheguei ao Suriname, me senti “gringa” quando retornei ao Brasil. Conhecidos, amigos e amigos de amigos, todos queriam saber como era o Suriname: o clima, as pessoas, a comida, os temas das reportagens. Ao final da primeira semana de volta ao Brasil, já havia relatado as mesmas histórias centenas de vezes. Sempre com os mesmos detalhes e expressões das impressões de um repórter no estrangeiro. Apesar de poucas pessoas saberem onde fica o país, muitas se interessam sobre o que se passa por lá. E isso pode ser um indício de que existe público para matérias em antropojornalismo no país, um campo pouco explorado e repleto de possibilidades.

Sala de embarque do aeroporto Internacional de Paramaribo (Zandery).

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