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António Manuel Bravo

Vinho e literatura

2 de Setembro de 2017

(Extraído em sua maior parte da obra de Hugh Johnson "The Story of Wine" da editora Mitchell-Beazley, Londres, 1989)

Não se pode apontar precisamente o local a época em que o vinho foi feito pela primeira vez, do mesmo modo que não sabemos quem foi o inventor da

roda. Uma pedra que rola é um tipo de roda; um cacho de uvas caído, potencialmente, torna-se, um tipo de vinho.

O vinho não teve que esperar para ser inventado: ele estava lá, onde quer que uvas fossem colhidas e armazenadas em um recipiente que pudesse reter

seu suco. Há 2 milhões de anos já coexistiam as uvas e o homem que as podia colher.

Seria, portanto, estranho se o "acidente" do vinho nunca tivesse acontecido ao homem nômade primitivo. Antes da última Era Glacial houve seres

humanos cujas mentes estavam longe de ser primitivas como os povos Cro-Magnon que pintaram obras primas nas cavernas de Lascaux, na França,

onde os vinhedos ainda crescem selvagem. Esses fatos fazem supor que, mesmo não existindo evidências claras, esses povos conheceram o vinho, .

Vinho

Os arqueólogos aceitam acúmulo de sementes de uva como evidência (pelo menos de probabilidade) de

elaboração de vinhos. Escavações em Catal Hüyük (talvez a primeira das cidades da humanidade) na

Turquia, em Damasco na Síria, Byblos no Líbano e na Jordânia revelaram sementes de uvas da Idade da Pedra (Período Neolítico B), cerca de 8000 a.C.

As mais antigas sementes de uvas cultivadas foram descobertas na Georgia (Rússia) e datam de 7000 -

5000 a.C. (datadas por marcação de carbono). Certas características da forma são peculiares a uvas cultivadas e as sementes descobertas são do tipo de transição entre a

selvagem e a cultivada.

Apenas se conhecem épocas, povos e locais de onde se deram os primeiros registros escritos, os chamados

cuneiformes, desenvolvidos pelos sumérios na Mesopotâmia, por volta de 4.000 a.C., embora alguns historiadores situem seu aparecimento há mais de seis mil anos. “o primeiro registro que se conhece é uma

pequena lápide, encontrada nos alicerces de um templo em Al Ubaid. O construtor do templo escreveu nela o

nome do seu rei. Esse rei pertenceu a uma dinastia entre 3150 e 3000 a.C.”.

Escrita

O vinho é tão presente na Bíblia, que, segundo estudiosos, são mais de 225 referências ao vinho, no total.

O Vinho no Velho Testamento

Três vocábulos distintos são empregados no Antigo Testamento para designar três espécies de vinho.

1º) Yayin – Gên. 9:21.

É o mais usado, porque aparece nada menos de 140 vezes. Esta palavra é empregada indistintamente sem considerar se o vinho é fermentado ou não.

2º) O segundo vocábulo é Tirôsh, empregado 38 vezes. Ao contrário da palavra anterior, esta indica que o vinho não é fermentado! Algumas vezes é traduzido como vinho novo ou "mosto". Deut. 12:17.

3º) Shekar é a terceira palavra usada. Tem a conotação negativa, normalmente é traduzida por bebida forte. Os escritores do Velho Testamento a empregam 23 vezes. Prov. 31:6 – "Dai bebida forte (shekar) aos que perecem, e vinho (yayin) aos amargurados de espírito."

Vinho no Novo Testamento

As referências ao vinho nesta segunda parte da Bíblia são mais escassas do que as encontradas no Velho Testamento.

Os escritores do Novo Testamento também empregaram três vocábulos gregos, que podem ser traduzidos para a nossa língua por vinho: oinos; sikera; gleulos . Destas três a mais usada é oinos (aparece 36 vezes), tendo o mesmo sentido de Yayin no hebraico, e que na Septuaginta, como já vimos traduz também o hebraico Tirôsh. A palavra sikera aparece apenas uma vez em Luc. 1:15 – "João Batista não bebia vinho (oinos) nem bebida forte (sikera)." De modo idêntico o vocábulo gléukos só foi usado uma vez em Atos 2:13. Outros zombando diziam: "Estão cheios de mosto (gléukos)."

O principal problema no estudo do vinho é este: embora a 1íngua grega seja especialista em empregar palavras distintas para idéias diferentes, ela não possui uma palavra para vinho com álcool e outra para vinho sem álcool. O Novo Testamento emprega oinos tanto para o vinho fermentado como não fermentado.

São várias referências bíblicas ao vinho. A história de Noé é uma delas, e é das mais interessantes: Noé teria sido o primeiro homem a plantar uma vinha.

Coincidentemente ou não, as primeiras evidências da Vitis Vinifera estão localizadas perto do Monte Ararate, no leste da Turquia, perto da fronteira com o Irão e com a Armênia, onde Noé supostamente teria cultivado a uva.

Uma das histórias mais bonitas relacionadas ao vinho vem do Cristianismo, no momento em que Jesus realiza seu primeiro milagre.

Esse fato aconteceu durante uma cerimônia de casamento, na aldeia de Caná, na Galileia, a cerca de 7 km de distância de Nazaré.

Jesus pede que os serventes encham com água 6 jarros, e esse líquido transforma-se em vinho!

Uma curiosidade: segundo estudiosos bíblicos, os 6 jarros usados no milagre continham algo como 720 litros de vinho! Ou seja, o equivalente a quase mil garrafas...

Em seguida tomou um cálice, deu graças e o entregou aos seus discípulos, proclamando: “Bebei dele todos vós. Pois isto é o meu sangue da aliança, derramado em benefício de

muitos, para remissão de pecados.” (Mateus 26:27-28)

“Digite uma citação aqui.” Estrabão, historiador, geógrafo e filósofo grego, do século anterior à Era Cristã, já mencionava em seus escritos - sobre aquele Portugal Celta - o cultivo do vinho na região do Douro, consumido nos banquetes familiares.

Estrabão(64 a.C. — 24 d.C.)

–Séneca e Plinio

Sec. I A.C. As mais antigas referências históricas que se conhecem da existência de vinho no que hoje é a Região Demarcada dos Vinhos Verdes, são as dos romanos Séneca, filósofo, e Plínio, naturalista e a legislação de Dominiciano, nos anos 96-51.

. William Shakespeare mencionou o Vinho Madeira nas suas obras? As referências ao vinho, em especial o malvasia, são frequentes. Na peça sobre Henrique IV, Shakespeare põe John Falstaff a vender a sua alma "por um copo de Madeira e uma perna de capão".

William Shakespeare

A celebração da independência dos Estados Unidos, no dia 4 de julho de 1776, foi comemorada com um brinde de vinho Madeira. Muitas foram as personalidades, estadistas e personagens míticas, que se deixaram deslumbrar por este vinho, de que são emblemáticos exemplos George Washington, Thomas Jefferson e Winston Churchil, sem esquecer as referências ao vinho Madeira em obras literárias, tais como as de Shakespere, Tolstoi e Dostoievski, assim como a paragem de Napoleão a caminho do exilio para levar um tonel para a ilha de Santa Helena.

–Luiz vaz de Camões

"Ali, com mil refrescos e manjares, Com vinhos odoríferos e rosas, Em cristalinos passos singulares, Fermosos leitos, e elas mais fermosas. Enfim, com mil deleites não vulgares, Os esperem as ninfas amorosas, De amor feridas, pera lhe entregarem Quando delas os olhos cobiçarem." (IX, XLI)

"MOÇA: E ostras trazerei delas? LEMOS: Se valerem caras, não: antes traze mais um pão e o vinho das estrelas. MOÇA: Quanto trazerei de vinho? LEMOS: Três pichéis deste caminho. MOÇA: Dais-me um cinquinho, nô mais? LEMOS: Toma aí mais dous reais."

Gil vicente Auto da Índia Pag 71

Perdi-me vendo a pipa, o torno aberto; Minha alma está metida em vinho tinto; Tão bêbado estou que já não sinto Ser bêbado coberto ou encoberto.

Tenho a cama longe, o sono perto, No chão estou e erguer-me não consinto, A barriga de inchada aperta o cinto, Falando estou dormindo qual desperto.

Venha mais vinho e dêem-mo vezes cento, Que alegra o coração, sustenta a vida, E pouco vai que engrosse o entendimento.

Vingar-me quero, que é grande a bebida; Tudo o que não é beber é lixo e vento, Que para tão grande gosto é curta a vida.

“António Barbosa Bacelar, retrato de um bêbado”

–Fernando Pessoa

Boa é a vida, mas melhor é o vinho. Não só vinho, mas nele o olvido, deito Na taça: serei ledo, porque a dita É ignara. Quem, lembrando Ou prevendo, sorrira? Dos brutos, não a vida, senão a alma, Consigamos, pensando; recolhidos No impalpável destino Que não 'spera nem lembra. Com mão mortal elevo à mortal boca Em frágil taça o passageiro vinho, Baços os olhos feitos Para deixar de ver.

“- E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora. O vinho, no divino sacrifício, deve ser branco ou tinto? D. Josefa parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor. - Emende a menina, mugiu o cônego de dedo em riste para Amélia.” (p. 218)

Eça de QueirozCrime do Padre Amaro

Segundo Alfredo Campos Matos no livro “Dicionário de Eça de Queiroz” pode-se contar 2.650 citações gastronômicas em sua obra. Algumas delas são bem completas, com receitas ou detalhes sobre os vinhos. Somente o jantar ao banqueiro Cohen no Hotel Central ocupa 28 páginas em “Os Maias” – talvez a obra mais comestível do autor.

No que se refere à bebidas na obra Eciana, o embaixador brasileiro Dario Moreira de Castro Alves no livro “Era Porto e Entardecia” compilou 1.196 citações de 211 bebidas diferentes, sendo 484 sobre vinhos. Segundo Alves “o vinho nunca faltou na obra de Eça de Queiroz, qualquer que fosse o cenário – fino, rico, modesto, pobre ou tosco. Os personagens servem ou sorvem vinhos e outras bebidas segundo seus recursos e status social”.

Dentre os vinhos portugueses o Porto é mais presente no universo de Eça e o Vinho Verde também não foi esquecido, aparecendo inúmeras vezes em sua obra. Com a palavra o próprio Eça:

“Serviu o Vinho do Porto para acalmar os convidados do jantar, enchendo os copos devagar, com precauções clássicas!

– 1815! – dizia. – Disto não se bebe todos os dias!”Crime do Padre Amaro páginas 137 e 138

–Eça de Queiroz

“Digite uma citação aqui.”

Só que, agora, chega um caldo de galinha que rescendia; tinha fígado e tinha moela. E, logo, Jacinto, surpreendido, iria exclamar: «Está bom!». Mas a grande surpresa viria a seguir, como conta Zé Fernandes: «E (Jacinto) já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto em Paris sempre abominara favas!… Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala… Depois um brado: – Óptimo!… Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia! E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio… – Deste arroz com favas nem em Paris, Melchior amigo!». Está tudo dito. Ponhamos de lado, então, o prato que se segue, o «louro frango assado no espeto», acompanhado de salada. Não ponhamos de parte, contudo, aquele vinho de Tormes, “Santa cruz do Douro-Baião”.

«caindo do alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo».

"Há trinta e cinco anos que um bretão anónimo lavrou na "Westminster Review" a condenação do vinho do Porto como deletério e empeçonhado por acetato de chumbo e outros tóxicos anglicidas. O homem, pelas rábidas violências do estilo, parece ter redigido a calúnia depois de jantar, numa exaltação capitosa do tanino do alvarilhão que ele confundiu com as aflições dos venenos metálicos. Relembra lamentosamente, com a lágrima das bebedeiras ternas, o século dezoito, em que o genuíno licor do Porto era um repuxo de vida que irrigara a preciosa existência de grandes personagens da Grã-Bretanha.

Camilo Castelo Branco

O vinho do Porto-Processo de uma bestialidade Inglesa

«”São horas de merendar”, diz Guerra. “Vamos a casa de minha irmã.” Descem pelo caminho que trouxeram, lá está o Cidadão de sentinela, e vão primeiro a uma adega beber um copo de tinto-claro, ácido, mas de uva franca, e depois sobem os degraus da casa, vem Laura ao limiar: “Entre, esteja na sua casa.” A voz é branda, o rosto sossegado e não é possível que haja no mundo mais límpidos olhos. Está na mesa o pão, o vinho e o queijo. O pão é grande, redondo, para o cortar é preciso apertá-lo contra o peito, e nesse gesto fica a farinha agarrada à roupa, à blusa escura da dona da casa, e ela sacode-a, sem pensar nisso. O viajante repara em tudo, é a sua obrigação, mesmo quando não entender tem de reparar e dizer. Pergunta Guerra. “Conhece o ditado do pão, do queijo e do vinho?” “Não conheço.” “É Assim: pão com olhos, queijo sem olhos, vinho que salte aos olhos. É o gosto da terra.” O viajante não crê que as três condições sejam universais, mas em Cidadelhe aceita-as, nem é capaz de conceber que possam ser diferentes.

José Saramago-Viagem a Portugal

“O homem inventou o vinho para esquecer ou superar a condição humana.”

Se eu gosto de poesia? Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor. Acho que a poesia está contida nisso tudo.

Dizem que no vinho está a verdade…depende do vinho!

Carlos Drummond de Andrade

Vinho cor do dia vinho cor da noite

vinho com pés púrpura o sangue de topázio

vinho, estrelado filho

da terra vino, liso

como uma espada de ouro, suave

como um desordenado veludo vinho encaracolado

e suspenso, amoroso, marinho

nunca coubeste em um copo, em um canto, em um homem,

coral, gregário és, e quando menos mútuo.

O vinho move a primavera

cresce como uma planta de alegria caem muros, penhascos,

se fecham os abismos, nasce o canto.

Oh tú, jarra de vinho, no deserto com a saborosa que amo,

disse o velho poeta. Que o cântaro do vinho

ao peso do amor some seu beijo. Amo sobre uma mesa,

quando se fala, à luz de uma garrafa de inteligente vinho.

Que o bebam, que recordem em cada

gota de ouro ou copo de topázio

ou colher de púrpura que trabalhou no outono

até encher de vinho as vasilhas e aprenda o homem obscuro,

no ceremonial de seu negócio, a recordar a terra e seus deveres,

a propagar o cântico do fruto.

Pablo Neruda

Ode ao vinho

JayMackintosh, em tempos um escritor de sucesso, encontra-se em crise, leva uma vida sem sentido e entrega-se à bebida. Até ao dia em que abandona Londres e se instala em França, na aldeia de Lansquenet (a mesma aldeia que serviu de cenário a Chocolate, o primeiro romance de Joanne Harris). A partir daí a sua vida vai modificar-se, nomeadamente por acção da solitária Marise (que esconde um terrível segredo por detrás das persianas fechadas) e das recordações de Joe, um velho muito especial que conheceu na infância e que lhe ofereceu precisamente essa garrafa de propriedades invulgares e misteriosas...Joanne Harris nasceu no Yorkshire, de mãe francesa e pai inglês. Estudou Línguas Modernas e Medievais em Cambridge e foi professora durante quinze anos. Durante este período publicou três livros: Maligna (1989), Valete de Copas e Dama de Espadas (1993) e o marcante Chocolate (1999), um retumbante sucesso internacional que a adaptação ao cinema (com Juliette Binoche e Johnny Depp) veio intensificar. A sua obra está atualmente publicada em quarenta países e foi galardoada com inúmeros prémios literários internacionais.

Joanne Harrisrecomendação literária

Uma obra com uma historia envolvente, escrita de forma acutilante sem perder a elegância !

Não contei quantas referências tem ao vinho, mas as que tem são de muito bom gosto, e não são poucas…

António Manuel Bravo

Fim