antonio candido e outros - a personagem de ficção (doc)(rev)

Upload: judy-nails

Post on 08-Apr-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    1/98

    A Personagem

    de FicoAntonio Candido, Anatol Rosenfeld,

    Decio de Almeida Prado e Paulo Emlio Sales Gomes

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    2/98

    http://groups.google.com/group/digitalsource

    A Personagem de FicoDebates

    por J. Guinsburg

    Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, AnitaNovinsky, Aracy Amaral, Bons Schnaiderman, CelsoLafer, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, RosaKrausz, Sbato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares.

    Antonio Candido Anatol Rosenfeld

    Decio de Almeida Prado Paulo Emlio Sales Gomes

    A Personagem de Fico

    2a edio

    Equipe de realizao: Geraldo Gerson de Souza, reviso; MoyssBaumstein, capa e trabalhos tcnicos.

    Editora Perspectiva

    So Paulo

    1

    1Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a inteno defacilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos DeficientesVisuais a oportunidade de conhecerem novas obras.

    http://groups-beta.google.com/group/digitalsourcehttp://groups-beta.google.com/group/digitalsource
  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    3/98

    PREFCIO

    (pag. 5)

    O livro seguinte reproduz, com o mesmo ttulo, o Boletim n.

    284 da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da. Universidade de

    So Paulo, publicado em 1964. Nascido de uma experincia de

    ensino, julgo oportuno reproduzir a parte do Prefcio que explicava a

    sua elaborao.

    ste Boletim resulta das atividades do Seminrio

    Interdisciplinar, iniciativa pela qual procuro dar aos cursos a meucargo o carter de interrelao com outros pontos de vista,

    indispensveis ao estudo da Teoria Literria. Esta matria toca no

    apenas em outros domnios do saber,como a Filosofia e a Lingstica,

    mas na realidade viva das diversas artes. Da se encontrarem nesta

    publicao, como se encontraram nas atividades do Seminrio,

    estudiosos da Filosofia, da Literatura, do Teatro e do Cinema.

    O curso de 1961 para o 4. ano versou Teoria e Anlise do

    Romance; dentre os seus tpicos, foi selecionado o referente

    Personagem (explanado no ms de abril), para os trabalhos do

    Seminrio. Eles se estenderam de outubro a novembro, depois de

    terminadas as aulas, constando de exposies sbre o problema geral

    Se quiser outros ttulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazerreceb-lo em nosso grupo.

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    4/98

    da fico pelo Professor Anatol Rosenfeld; sbre a personagem de

    teatro, pelo Professor Dcio de Almeida Prado; sbre a personagem

    de cinema, pelo Professor Paulo Emlio Sales Gomes. A seguir, vieram

    outras atividades, como uma Mesa Redonda, com participao dos

    alunos e dos quatro docentes, para balano e esclarecimento de

    problemas; a projeo do filme La Dolce Vita, de Federico Fellini,

    comentado pelo Professor Paulo Emilio Sales Gomes do ngulo das

    tcnicas de caracterizao psicolgica; a representao da pea A

    Escada, de Jorge Andrade, seguida de debate sbre a caracterizao

    cnica, orientado pelo Professor Dcio de Almeida Prado, com a

    participao central do encenador, Flvio Rangel, e a colaborao da

    crtica de teatro Brbara Heliodora Carneiro de Mendona. Dessa

    maneira, procurou-se pr os estudantes em contato com vrias faces

    de um problema complexo, a fim de que a teoria e a anlise, do ponto

    de vista literrio, ficassem o mais esclarecidas possvel pela

    incidncia de outros focos.

    Neste Boletim, recolhem-se as aulas sbre personagem do professor

    do curso e as contribuies do Seminrio, redigidas especialmente

    para o caso. Como se ver, as exposies crticas sbre o problema

    no romance, no teatro e no cinema giram estruturalmente em trno

    da exposio bsica sbre o problema geral da fico, embora cada

    autor tenha escrito a sua contribuio independentemente e com

    tda a liberdade.

    Na presente edio, suprimiu-se a pequena bibliografia final, de

    intersse meramente indicativo, e corrigiram-se alguns erros

    tipogrficos.

    So Paulo, 31 de janeiro de 1968

    Antonio Candido de Mello e Souza

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    5/98

    Literatura e Personagem

    (Pag. 9)

    Conceito de Literatura

    Geralmente, quando nos referimos literatura, pensamos no que

    tradicionalmente se costuma chamar belas letras ou beletrstica.

    Trata-se, evidentemente, s de uma parcela da literatura. Na acepo

    lata, literatura tudo o que aparece fixado por meio de letras

    obras cientficas, reportagens, notcias, textos de propaganda, livros

    didticos, receitas de cozinha etc. Dentro dste vasto campo das

    letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu trao

    distintivo parece ser menos a beleza das letras do que seu carter

    fictcio ou imaginrio1. A delimitao do campo da beletrstica pelo

    carter ficcional ou imaginrio tem a vantagem de basear-se em

    momentos de lgica literria que, na maioria dos casos, podem ser

    verificados com certo rigor, sem que seja necessrio recorrer a

    valorizaes estticas. Contudo o critrio do carter ficcional ou

    imaginrio no satifaz inteiramenente o propsito de delimitar o

    campo da literatura no sentido restrito. A literatura de cordel tem

    carter ficcional, mas no se pode dizer o mesmo dos Sermesdo

    1 O significado dste trmo, no sentido usado neste trabalho, se esclarecer mais adiante, sem que haja

    qualquer pretenso de uma abordagem ampla e profunda dste conceito tradicional, desde a antiguidade

    objeto de muitas discusses. Contribuies recentes para a sua anlise encontram-se nas obras de 3.-P.

    Sartre, LImagination e LImaginaire, Roman Ingsrden, Das literarische Kunstwerk(A obra-de-arteliterria) e Untersuchungen zur Ontol,ogle der Kunst(Investigaes acrca da ontologia da arte) M.Dufreune, Phnomnologje de lexprlence esthtique tdas baseadas nos mtodos de E. Husseri.

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    6/98

    Padre Vieira, nem dos escritos de Pascal, nem provvelmente dos

    dirios de Gide ou Kafka. Ser fico o poema didtico De rerum

    natura, de Lucrcio? No entanto, nenhum historiador da literatura

    hesitar em eliminar das suas obras os romances triviais de baixo

    entretenimento e em nelas acolher os escritos mencionados. Parece

    portanto impossvel renunciar por inteiro a critrios de valorizao,

    principalmente esttica, que como tais no atingem objetividade

    cientfica embora se possa ao menos postular certo consenso

    universal.

    A Estrutura da Obra Literria

    A estrutura de um texto qualquer, ficcional ou no, de valor

    esttico ou no, compe-se de uma srie de planos, dos quais o nico

    real, sensivelmente dado, o dos sinais tipogrficos impressos no

    papel. Mas ste plano, embora essencial fixao da obra literria,

    no tem funo especfica na sua constituio, a no ser que se trate

    de um texto concretista. No nexo dste trabalho, ste plano deve ser

    psto de lado, assim como tdas as consideraes sbre tendncias

    literrias recentssimas, cuja conceituao ainda se encontra em

    plena elaborao.

    Como camadas j irreais por no terem autonomia ntica,

    necessitando da atividade concretizadora e atualizadora do

    apreciador adequado encontramos as seguintes: a dos fonemas e

    das configuraes sonoras (oraes), percebidas apenas pelo

    ouvinte interior, quando se l o texto, mas diretamente dadas

    quando o texto recitado; a das unidades significativas de vrios

    graus, constitudas pelas oraes; graas a estas unidades, so

    (projetadas atravs de determinadas operaes lgicas, contextos

    objectuais (Sachverhalte), isto , certas relaes atribudas aos

    objetos e suas qualidades (a rosa vermelha; da flor emana um

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    7/98

    perfume; a roda gira). stes contextos objectuais determinam as

    objectualidades, por exemplo, as teses de uma obra cientfica ou o

    mundo imaginrio de um poema ou romance.

    Merc dos contextos bjectuais, constitui-se um plano intermedirio

    de certos aspectos esquematizados que, quando especialmente

    preparados, determinam concretizaes especificas do leitor. Quando

    vemos uma bola de bilhar deslizando sbre o pano verde,

    vivenciamos um fluxo continuo de aspectos variveis de um disco

    eliptide, de uma cr clara extremamente matizada; atravs dsses

    aspectos variveis -nos dada e se mantm inalterada a percepo

    da esfera branca da bola. Em geral, os textos apresentam-nos tais

    aspectos mediante os quais se constitui o objeto. Contudo, a

    preparao especial de selecionados aspectos esquemticos de

    importncia fundamental na obra ficcional particularmente quando

    de certo nvel esttico j que desta forma solicitada a imaginao

    concretizadora do apreciador. Tais aspectos esquemticos, ligados

    seleo cuidadosa e precisa da palavra certa com suas conotaes

    peculiares, podem referir-se aparncia fsica ou aos processos

    psquicos de um objeto ou personagem (ou de ambientes ou pessoas

    histricas etc.), podem salientar momentos visuais, tteis, auditivos

    etc.

    Em poemas ou romances tradicionais, a preparao especial dos

    aspectos bem mais discursiva do que, por exemplo, em certos

    poemas elpticos de Ezra Pound ou do ltimo Brecht, em que a

    justaposio ou montagem de palavras ou oraes, sem nexo lgico,

    deve, como num ideograma, resultar na sntese intuitiva de uma

    imagem, graas participao intensa do leitor no prprio processo

    da criao (a teoria da montagem flmica de Eisenstein baseia-se nos

    mesmos princpios).

    Num quadro figurativo h s umaspecto para mediar os objetos, mas

    ste de uma concreo sensvel nunca alcanada numa obra

    literria. Esta, em compensao, apresenta grande nmero de

    aspectos, embora extremamente esquemticos. O cinema e o teatro

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    8/98

    apresentam muitos aspectos concretos, mas no podem, como a obra

    literria, apresentar diretamente aspectos psquicos, sem recurso

    mediao fsica do corpo, da fisionomia ou da voz.

    s camadas mencionadas devem ser acrescentadas, numa obra

    ficcional de elevado valor, vrias outras as dos significados

    espirituais mais profundos que transparecem atravs dos planos

    anteriores, principalmente o das objectualidades imaginrias,

    constitudas, em ltima nlise, pelas oraes 2.ste mundo fictcio

    ou mimtico que freqentemente reflete momentos selecionados e

    transfigurados da realidade emprica exterior obra, torna-se,

    portanto, representativo para algo alm dle, principalmente alm da

    realidade emprica, mas imanente obra.

    A Obra Literria Ficcional

    1) O problema ontolgico: A verificao do carter ficcional

    de um escrito independe de critrios de valor. Trata-se de problemas

    ontolgicos, lgicos e epistemolgicos.Como foi exposto antes uma das funes essenciais da orao a de

    projetar, como correlato,um contexto objectual que transcendente

    ao mero contedo significativo, embora tenha nle seu

    fundamento ntico. Assim, a orao Mrio estava de pijama projeta

    um correlato objectual que constitui certo ser fora da orao. Mas o

    Mrio assim projetado deve ser rigorosamente distinguido de certo

    Mrio real, possivelmente visado pela orao. Como tal, o correlatoda orao pode referir-se tanto a um rapaz que existe

    independentemente da orao, numa esfera ntica autnoma (no

    caso, a da realidade), como permanecer sem referncia a nenhum

    mo real. Todo texto, artstico ou no, ficcional ou no, projeta tais

    contextos objectuais puramente intencionais que podem referir-se

    ou no a objetos nticamente autnomos.

    Imaginemos que eu esteja vendo diante de mim o Mrio real;

    evidente que na minha conscincia h s uma imagem dle, alis no

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    9/98

    notada por mim, j que me refiro diretamente ao Mrio real. Posso

    chamar ste objeto o Mrio real de tambm intencional, visto

    o mesmo existir no por graa do meu ato, mas ter plena autonomia,

    mesmo quando visado por mim num ato intencional, como agora.

    Todavia, a imagem dle, a qual o representa na minha conscincia

    (embora no a note), puramente intencional, visto no possuir

    autonomia ntica e existir por graa do meu ato. Posso reproduzi-la

    at certo ponto na minha mente, mesmo sem ver o rapaz autnomo;

    posso tambm transform-la merc de certas operaes

    espontneas. bvio que as oraes s podem projetar tais

    correlatos puramente intencionais, j que no lhes dado

    tampouco como minha conscincia encerrar os objetos tambm

    intencionais.

    Ainda assim, as objectualidades puramente intencionais projetadas

    por intermdio de oraes tm certa tendncia a se constiturem

    como realidade. Se a orao Mrio estava de pijama apresenta o

    mo pela primeira vez, ste torna-se portador do traje a ele

    atribudo; portador graas funo especfica de sujeito da orao; e

    portador de algo, em virtude da funo significativa da cpula. O

    pretrito, apesar de em certos casos ter o cunho fictcio do era uma

    vez, tem em geral mais fra realizadora e individualizadora do

    que a voz do presente (O elefante pesano mnimo uma tonelada

    pode ser o enunciado de um zologo sbre os elefantes em geral;

    mas o elefante pesava no mnimo uma tonelada refere-se a um

    elefante individual, existente em determinado momento). De

    qualquer modo, a orao projeta o objeto Mrio como um ser

    independente. Com efeito, ela sugere que Mrio j existia e j estava

    de pijama antes de a orao assinalar ste fato. Ao seguir a

    prxima orao: le batia uma carta na mquina de escrever, Mrio

    j se emancipou de tal modo das oraes,. que os contextos

    objectuais, embora estejam pouco a pouco constituindo e produzindo

    o mo, parecem ao contrrio apenas revelarpormenores de um ser

    autnomo. E isso ao ponto de o mundo objectual assim constitudo

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    10/98

    pelas oraes (mas que se insinua como independente, apenas

    descritopelas oraes) se apresentar como um contnuo, apesar de

    as oraes serem naturalmente descontnuas como os fotogramas de

    uma fita de cinema. base das oraes, o leitor atribui a Mrio uma

    vida anterior sua criao pelas oraes; coloca a mquina sbre

    uma mesa (no mencionada) e o rapaz sbre uma cadeira; o conjunto

    num quarto, ste numa casa, esta numa cidade embora nada disso

    tenha sido mencionado.

    Uma das diferenas entre o texto ficcional e outros textos reside no

    fato de, no primeiro, as oraes projetarem contextos objectuais e,

    atravs dstes, sres e mundos puramente intencionais, que no se

    referem, a no ser de modo indireto, a sres tambm intencionais

    (nticamente autnonios), ou seja, a objetos determinados que

    independem do texto. Na obra de fico, o raio da inteno detm-se

    nestes sres puramente intencinais, smente se teferindo de um

    modo indireto e isso nem em todos os casos a qualquer tipo de

    realidade extraliterria. J nas oraes de outros escritos, por

    exemplo, de um historiador, qumico, reprter etc., as objectualidades

    puramente intencionais no costumam ter por si s nenhum (ou

    pouco) pso ou densidade, uma vez que, na sua abstrao ou

    esquematizao maior ou menor, no tendem a conter em geral

    esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o

    preenchimento concretizador. O raio de inteno passa atravs delas

    diretamente aos objetos tambm intencionais, semelhana do que

    se verifica no caso de eu ver diante de mim o mo acima citado,

    quando nem sequer noto a presena de uma imagem interposta.

    H um processo semelhante no caso de um jornal

    cinematogrfico ou de uma foto de identificao. Trata-se de

    imagens puramente intencionais que, no entanto, procuram omitir-

    se para franquear a viso da prpria realidade. J num retrato

    artstico a imagem puramente intencional adquire valor prprio, certa

    densidade que fcilmente ofusca a pessoa retratada. Alis, mesmodiante de um fotgrafo despretensioso a pessoa tende a compor-se,

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    11/98

    tomar uma pose, tornar-se personagem; de certa forma passa a ser

    cpia antecipada da sua prpria cpia. Chega a fingir a alegria que

    deveras sente.

    2) O problema lgico. Os enunciados de uma obra cientfica e, na

    maioria dos casos, de notcias, reportagens, cartas, dirios etc.,

    constituem juzos, isto , as objectualidades puramente intencionais

    pretendem corresponder, adequar-se exatamente aos sres reais

    (ou ideais, quando se trata de objetos matemticos, valores,

    essncias, leis etc.) referidos. Fala-se ento de adequatio orationis

    ad rem. H nestes enunciados a inteno sria de verdade.

    Precisamente por isso pode-se falar, nestes casos, de enunciados

    errados ou falsos e mesmo de mentira e fraude, quando se trata de

    uma notcia ou reportagem em que se pressupe inteno sria.

    O trmo verdade, quando usado com referncia a obras de arte ou

    de fico, tem significado diverso. Designa com freqncia qualquer

    coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (trmos que

    em geral visam atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhana,

    isto , na expresso de Aristteles, no a adequao quilo que

    aconteceu, mas quilo que poderia ter acontecido; ou a coerncia

    interna no que tange ao mundo imaginrio das personagens e

    situaes mimticas; ou mesmo a viso profunda de ordem

    filosfica, psicolgica ou sociolgica da realidade.

    At neste ltimo caso, porm, no se pode falar de juzos no

    sentido preciso. Seria incorreto aplicar aos enunciados fictcios

    critrios de veracidade cognoscitiva. Sentimos que a obra de Kafkanos apresenta certa viso profunda da realidade humana, sem que,

    contudo, seja possvel verificar a maioria dos enunciados individuais

    ou todos les em conjunto, quer em trmos empricos, quer

    puramente lgicos. Na obra de Knut Hamsun h uma viso profunda

    inteiramente diversa da realidade, mas seria impossvel chamar a

    maioria dos enunciados ou o conjunto dles de falsos. Quando

    chamamos falsos um romance trivial ou uma fita medocre, fazemo-lo, por exemplo, porque percebemos que nles se aplicam padres do

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    12/98

    conto de carochinha a situaes que pretendem representar a

    realidade cotidiana. Os mesmos padres que funcionam muito bem

    no mundo mgico-demonaco do conto de fadas revelam-se falsos e

    caricatos quando aplicados representao do universo profano da

    nossa sociedade atual (a no ser que esta prpria aplicao se torne

    temtica). Falso seria tambm um prdio com portal e trio de

    mrmore que encobrissem apartamentos miserveis. esta

    incoerncia que falsa. Mas ningum pensaria em chamar de falso

    um autntico conto de fadas, apesar de o seu mundo imaginrio

    corresponder muito menos realidade emprica do que o de qualquer

    romance de entretenimento.

    Ainda assim a estrutura das oraes ficcionais parece ser em geral a

    mesma daquela de outros textos. Parece tratar-se de juzos. O que os

    diferencia dos verdadeiros a inteno diversa isto , a inteno

    que se dtm nas objectualidades puramente intencionais (e nos

    significados mais profundos por elas sugeridos), sem atravess-las,

    diretamente, em direo a quaisquer objetos autnomos, como

    ocorre, no nosso exemplo, na viso do mo real. essa inteno

    diversa no necessriamente visvel na estrutura dos enunciados

    que transforma as oraes de uma obra ficcional em quase-juzos3.

    A sua inteno no sria4.

    O autor convida o leitor a deter o raio de inteno na imagem de

    Mrio, sem buscar correspondncias exatas com qualquer pessoa real

    dste mesmo nome5.

    Todavia, os textos ficcionais, apesar de seus enunciados costumarem

    ostentar o hbito exterior de juzos, revelam nitidamente a inteno

    ficcional, mesmo quando esta inteno no objetivada na capa do

    livro, atravs da indicao romance, novela etc. Ainda que a obra

    no se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer

    valor especfico, notar-se- o esfro de particularizar, concretizar e

    individualizar os contextos objectuais, mediante a preparao de

    aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores

    circunstanciais, que visam a dar aparncia real situao imaginria.

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    13/98

    paradoxalmente esta intensa aparncia de realidade que revela a

    inteno ficcional ou mimtica. Graas ao vigor dos detalhes,

    veracidade de dados insignificantes, coerncia interna, lgica

    das motivaes, causalidade dos eventos etc.,

    3. A expresso usada por Roman Ingarden em Das literarische

    Kunstwerk. J.-P. Sartre, em LImagination, formula: Il y a l un type

    daffirmation, un type dexistence intermdiaire entre les assertions fausses du rve

    et les certitudes de la veille: et ce type dexistence est videmment celui des

    crations imaginaires. Faire de celles-ci des actes judicatifs, cest leur donner trop

    (p.137).

    4. Quando da publicao de seus Buddenbrooks, Th. Mann foi violentamenteatacado devido ao retratamenso de pessoas e aspectos da cidade de Lbeck. Tais

    incidentes so freqentes na histria da literatura. Num ensaio sbre o caso (Bilse

    und ich), Th. Mann declarou: Quando fao de uma coisa uma orao que tem

    que ver esta coisa com a orao? O fato que mesmo uma cidade realmente

    existente torna-se fico no contexto fictcio, j que representa determinado papel

    no mundo imaginrio. Isso se refere tambm s imagens de filmes tomadas no

    ambiente real correspondente ao enrdo: o ambiente, embora em si real, situa-se

    agora num espao fictcio e torna-se igualmente fictcio. Um enunciado como dois

    e dois so quatro sempre verdico; mas quando preferido por uma personagem,

    com inteno sria, esta inteno sria , por sua vez, fictcia; e quando ocorre na

    prpria narrao, a inteno fictcia transforma o enunciado em quase-juzo,

    embora em si certo. Quando, em Lio, de Ionesco, o professor e a aluna se

    debatem com multiplicaes astronmicas, ningum pensaria em verificar os

    resultados. A funo dos juzos aritmticos, no contexto fictcio, no esta.

    5.A conscincia do carter ficcional no tem sido sempre ntida. Wolfgang

    Kayser (em:Die Wahrheit der Dlchter A verdade dos Poetas)demonstra

    que no sculo XVI os leitores de romance no tinham a noo ntida de que os

    enunciados respectivos eram fictcios.

    tende a constituir-se a verossimilhana do mundo imaginrio.

    Mesmo sem alguns dstes elementos o texto pode alcanar tamanha

    fra de convico que at estrias fantsticas se impem como

    quase-reais. Todavia, a aparncia da realidade no renega o seu

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    14/98

    carter de aparncia. No se produzir, na verdadeira fico, a

    decepo da mentira ou da fraude. Trata-se de um verdadeiro ser

    aparencial (Julian Matias), baseado na conivncia entre autor e leitor.

    O leitor, parceiro da emprsa ldica, entra no jgo e participa da no

    -seriedade dos quase-juzos e do fazer de conta.

    Uma orao como esta: Enquanto falava, a mulherzinha deitava

    sbre o marechal os grande olhos que despediam chispas. Floriano

    parecia incomodado com aqule chamejar; era como se temesse

    derreter-se ao calor daquele olhar. . . (Lima Barreto, Triste Fim

    de Policarpo Quaresma) revela de imediato, apesar do contexto

    histrico, a inteno ficcional. O autor parece convidar o leitor a

    permanecer na camada imaginria que se sobrepe e encobre a

    realidade histrica.

    3) O problema epistemolgico (a personagem). porm a

    personagem que com mais nitidez torna patente a fico, e atravs

    dela a camada imaginria se adensa e se cristaliza. Isto pouco

    evidente na poesia lrica, em que no parece haver personagem.

    Todavia, expresso ou no, costuma manifestar-se no poema um Eu

    lrico que no deve ser confundido com o Eu emprico do autor. Sem

    dvida, houve no decurso da histria grandes variaes neste campo.

    No se devem aplicar os mesmos padres e conceitos a poemas da

    Grcia antiga, a poemas romnticos e a poemas atuais. Parece,

    contudo, que se pode negar em geral a opinio de que nas oraes

    de poemas lricos se trata de juzos, de enunciados existenciais

    acrca de determinada realidade psquica do poeta ou qualquer

    realidade exterior a le. precisamente no poema que so

    mobilizadas tdas as virtualidades expressivas da lngua e toda a

    energia imaginativa.

    No caso de versos como stes:

    A chuva de outono molha

    O pso da minha altura

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    15/98

    E tal rosa que desfolha

    Tenho ptalas na figura 6

    seria absurdo falar de juzos, mesmo subjetivos, referentes,

    passo a passo, a estados psquicos reais da poetisa 7. perfeitamente

    possvel que haja referncia indireta a vivncias reais; estas, porm,

    foram transfiguradas pela energia da imaginao e da linguagem

    potica que visam a uma expresso mais verdadeira, mais

    definitiva e mais absoluta do que outros textos.

    O poema no uma foto e nem sequer um retrato artstico de

    estados psquicos; exprime uma viso estilizada, altamente simblica,

    de certas experincias.

    Mesmo em versos aparentemente confessionais como stes de Safo:

    A lua se ps e as Pliades, pelo meio

    anda a noite, esvai-se a juventude, mas eu estou deitada, szinha

    no se deve confundir o Eu lrico dentro do poema com o Eu emprico

    fora dle. ste ltimo se desdobra e objetiva, atravs das categorias

    estticas, constituindo-se na personagem universal da mulher ansiosa

    por amor. At um poeta como Goethe que, na sua fase romntica,

    considerava a poesia a mais poderosa expresso da verdade, como

    revelao da intimidade, chegou, j aos vinte anos, concluso de

    Fernando Pessoa (o poeta finge mesmo a dor que deveras sente),

    porque o poema , antes de tudo, Gestalt, forma viva, beleza.

    Variando concepes de Plato, declara que a beleza no luz e no

    noite; cre-

    6 Lupe Cotrlm Garaude, Raiz Comum.

    7. Tal , contudo, a opinio de Kaethe Hamburger emDie Logik der Dichrung (A

    Lgica da Fico); segundo a autora, os enunciados de um poema lrico seriam

    juzos existenciais, juzos subjetivos, mas juzos.

    psculo; resultado da verdade e no-verdade. Coisa

    intermediria. So quase os trmos com que Sartre descreve a

    fico.

    Contudo, a personagem do poema lrico no se define nitidamente.

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    16/98

    Antes de tudo pelo fato de o Eu lrico manifestar-se apenas no

    monlogo, fundido com o mundo (A chuva de outono molha / O pso

    da minha altura), de modo que no adquire contornos marcantes;

    depois, porque exprime em geral apenas estados enquanto a

    personagem se define com nitidez smente na distenso temporal do

    evento ou da ao.

    Como indicadora mais manifesta da fico por isso bem mais

    marcante a funo da personagem na literatura narrativa (pica). H

    numerosos romances que se iniciam com a descrio de um ambiente

    ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma

    carta, um dirio, uma obra histrica. geralmente com o surgir de

    um ser humano que se declara o carter fictcio (ou no-fictcio) do

    texto, por resultar da a totalidade de uma situao concreta em

    que o acrscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaborao

    imaginria. No nosso exemplo de Mrio seria possvel que as oraes

    Mrio estava de pijama. ele batia uma carta na mquina de

    escrever constassem de um relato policial que prosseguisse assim:

    . . . quando entrou o ladro. . . Se o texto, porm, prosseguir assim:

    Sem dvida ainda iria alcan-la. Afinal, Lcia decerto no podia

    partir depois-de-amanh, sabemos que se trata de fico. Notamos,

    talvez sem reconhecer as causas, que Mrio no urna pessoa e sim

    uma personagem. Certas palavras sem importncia aparente nos

    colocam dentro da conscincia de Mrio, fazem-nos participar de sua

    intimidade: sem dvida, afinal, decerto, depois-de-amanh.

    Tais palavras indicam que se verificou uma espcie de identificao

    com Mrio, de modo que o leitor levado, sutilmente, a viver a

    experincia dle. Mais evidentes seriam verbos definidores de

    processos psquicos, como pensava, duvidava, receava, os

    quais, quando referidos experincia temporalmente determinada de

    uma pessoa, no podem, por razes epistemolgicas, surgir num

    escrito histrico ou psicolgico. Numa obra histrica pode constar que

    Napoleo acreditava poder conquistar a Rssia; mas no que,

    naquele momento, cogitava desta possibilidade. S com o surgir da

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    17/98

    personagem tornam-se possveis oraes categorialmente diversas

    de qualquer enunciado em situaes reais ou em textos no-fictcios:

    Bem cedo ela comeava a enfeitar a rvore. Amanh era Natal

    (Alice Berend, Os Noivos de Babette Bomberling); ... and of

    course he was coming to her party to-night (Virgnia Woolf, Mrs.

    Dallowcry); A revolta veio acabar da a dias (Lima Barreto, Triste

    Fim de Policarpo Quaresma); Da a pouco vieram chegando da

    direita muitas caleas. . . (Machado de Assis, Quincas Barba).

    altamente improvvel que um historiador recorra jamais a tais

    oraes. Advrbios de tempo (e em menor grau de lugar) como

    amanh, hoje, ontem, da a pouco, da a dias, aqui, ali,

    tm sentido smente a partir do ponto zero do sistema de

    coordenadas espcio-temporal de quem est falando ou pensando. Se

    surgem num escrito, so possveis smente a partir do narrador

    fictcio, ou do foco narrativo colocado dentro da personagem, ou

    onisciente, ou de algum modo identificado com ela. O amanh do

    primeiro exemplo citado pe o foco dentro da personagem, cujo

    pensamento expresso atravs do estilo indireto livre:

    no caso, os pensamentos so reproduzidos a partir da perspectiva da

    prpria personagem, mas a manuteno da terceira pessoa e do

    imperfeito finge o relato impessoal do narrador. Seriam possveis

    outros recursos:

    Ela pensava: Amanh serNatal; Ela pensava que no dia seguinte

    seria Natal; mas nenhum como o indicado (alis j usado na

    literatura latina, na literatura francesa desde o sculo XII e com bem

    mais freqncia no romance do sculo XIX, desde Jane Austen e

    Flaubert) revela o carter categorialmente singular do discurso

    fictcio. Em nenhuma situao real o amanh poderia ser ligado ao

    era; e o historiador teria de dizer no dia seguinte j que no pode

    identificar-se com a perspectiva de uma pessoa, sob pena de

    transform-la em personagem.

    Embora tais formas no surjam nem na poesia lrica, nem na

    dramaturgia, e no necessriamente na literatura narrativa, o

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    18/98

    fenmeno como tal extremamente revelador para todos os tipos de

    fico, j que a anlise dste sintoma da fico indica, ao que

    parece, estruturas inerentes a todos os textos fictcios, mesmo nos

    casos em que o sintoma no se manifesta. O sintoma lingstico

    evidentemente s pode surgir no gnero pico (narrativo), porque

    nle que o narrador em geral finge distinguir-se das personagens, ao

    passo que no gnero lrico e dramtico, ou est identificado com o Eu

    do monlogo ou, aparentemente, ausente do mundo dramtico das

    personagens. Assim, smente no. gnero narrativo podem surgir

    formas de discurso ambguas, projetadas ao mesmo tempo de duas

    perspectivas: a da personagem e a do narrador fictcio. Mas a

    estrutura bsica do discurso fictcio parece ser a mesma tambm nos

    outros gneros.

    O sintoma lingstico, bvio nos exemplos apresentados, revela,

    precisamente atravs da personagem, que o narrar pico

    estruturalmente de outra ordem que o enunciar do historiador, do

    correspondente de um jornal ou de outros autores de enunciados

    reais. A diferena fundamental que o historiador se situa, como

    enunciador real das oraes, no ponto zero do sistema de

    coordenadas espcio-temporal, por exemplo, no ano de 1963 (e na

    cidade de So Paulo), projetando a partir dste ponto zero, atravs do

    pretrito plenamente real, o mundo do passado histrico igualmente

    real de que le, naturalmente, no faz parte. Ao sujeito real

    (emprico) dos enunciados corresponde a realidade dos objetos

    projetados pelos enunciados (e s neste contexto possvel falar de

    mentira, fraude, rro etc.). Na fico narrativa desaparece o

    enunciador real. Constitui-se um narrador fictcio que passa a fazer

    parte do mundo narrado, identificando-se por vzes (ou sempre) com

    uma ou outra das personagens, ou tornando-se onisciente etc. Nota-

    se tambm que o pretrito perde a sua funo real (histrica) de

    pretrito, j que o leitor, junto com o narrador fictcio, presencia os

    eventos. O pretrito mantido com a funo do era uma vez, mero

    substrato fictcio da narrao, o qual, contudo, preserva a sua funo

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    19/98

    de posio existencial, de grande vigor individualizador, e continua

    fingindo a distncia pica de quem narra coisas h muito

    acontecidas. A modificao do discurso indica que na fico (e isso se

    refere tambm poesia e dramaturgia) no h um narrador real em

    face de um campo de sres autnomos. ste campo existe smente

    graas ao ato narrativo (ou ao enunciar lrico, dramtico). O narrador

    fictcio no sujeito real de oraes, como o historiador ou o qumico;

    desdobra-se imaginriamente e torna-se manipulador da funo

    narrativa (dramtica, lrica), como o pintor manipula o pincel e a cr;

    no narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas

    (personagens), eventos e estados. E isso verdade mesmo no caso

    de um romance histrico 8. As pessoas (histricas), ao se tornarem

    ponto zero de orientao, ou ao serem focalizadas pelo narrador

    onisciente, passam a ser personagens; deixam de ser objetos e

    transformam-se em sujeitos, sres que sabem dizer eu.

    8. Kaethe Hamburger, na obra citada, estuda

    agudamente os vrios problemas envolvidos.

    A rainha se lembrava neste momento das palavras que

    dissera ao rei tal orao no pode ocorrer no, escrito de um

    historiador, j que ste, nos seus juzos, smente pode referirr-se a

    objetos, apreendendo-os exclusivamente de fora, mesmo nos casos

    da mais sutil compreenso psicolgica, baseada em documentos e

    inferncias. Smente o criador de Napoleo, isto , o romancista

    que o narra, em vez de narrar dle, lhe conhece a intimidade de

    dentro.

    A personagem nos vrios gneros literrios e no

    espetculo teatral e cinematogrfico.

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    20/98

    Em trmos lgicos e ontolgicos, a fico define-se

    nitidamente como tal, independentemente das personagens. Todavia,

    o critrio revelador mais bvio o epistemolgico, atravs da

    personagem, merc da qual se patenteia s vzes mesmo por meio

    de um discurso especificamente fictcio a estrutura peculiar da

    literatura imaginria. Razes mais intimamente poetolgicas

    mostram que a personagem realmente constitui a fico.

    A descrio de uma paisagem, de um animal ou de objetos quaisquer

    pode resultar, talvez, em excelente prosa de arte. Mas esta

    excelncia resulta em fico smente quando a paisagem ou o animal

    (como no poema A pantera, de Rilke) se animam e se

    humanizam atravs da imaginao pessoal. No caso da poesia lrica,

    atravs da fuso do Eu, do foco lrico, com o objeto. No fundo, isso

    que Lessing pretende dizer no seu Laocoonte ao criticar um poema

    descritivo por lhe faltar o que chama segundo a terminologia do

    sculo XVIII a iluso (Taeuschung), ou seja, a impresso da

    presena real do objeto. Tal iluso smente possvel pela

    colocao do leitor dentro do mundo imaginrio, merc do foco

    personal que deve animar o poema e que lhe d o carter fictcio.

    No poema isto conseguido, antes de tudo, atravs da fra

    expressiva da linguagem, que transforma a mera descrio em

    vivncia duma personagem que erradamente se costuma confundir

    com o autor emprico. Mas, enquanto a poesia, na sua forma mais

    pura, se atm vivncia de um estado, o gnero narrativo (e

    dramtico) transforma o estado em processo, em distenso temporal.

    Smente assim se define a personagem com nitidez, na durao de

    estados sucessivos. A narrao mesmo a no-fictcia , para no

    se tornar em mera descrio ou em relato, exige, portanto, que no

    haja ausncias demasiado prolongadas do elemento humano (ste,

    naturalmente, pode ser substitudo por outros sres, quando

    antropomorfizados) porque o homem o nico ente que no se situa

    smente no tempo, mas que essencialmente tempo 9.

    Se Lessing recomenda, no ensaio acima citado, a dissoluo da

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    21/98

    descrio em narrao porque a palavra, recurso sucessivo, no pode

    apreender adequad amente a simultaneidade de um objeto,

    ambiente ou paisagem (que a nossa viso apreende de um s

    relance), o que no fundo exige a presena de personagens que

    atuam. Homero, em vez de descrever o traje de Agamenon, narra

    como o rei se veste, e em vez de descrever o seu cetro, narra-lhe a

    histria desde o momento em que Vulcano o fz. Assim, o leitor

    participa dos eventos em vez de se perder numa descrio fria que

    nunca lhe dar a imagem da coisa.

    Antes de abordar, mesmo marginalmente, a fico dramtica,

    convm ressaltar que verbos como dizer, responder etc.,

    desempenham na fico em geral funo semelhante aos que

    revelam processos psquicos (recear, pensar, duvidar),

    particularmente quando

    9. Pode-se escrever e j se escreveram contos sbre baratas. Mas h

    de se tratar, ao menos, de uma baratinha. O diminutivo afetuoso desde logo

    humaniza o bicho. O mais terrvel na Metamorfose de Kafka a lentadesumanizao do inseto. As fbulas e os desenhos cinematogrficos baseiam-se

    nesta humanizao. O homem, afinal, s pelo homem se interessa e s com ele

    pode identificar-se realmente.

    acompanham uma fala em voz direta, referida a momentos

    temporais determinados (determinados no tempo irreal da fico).

    Tais verbos indicam em geral a presena do foco narrativo no campofictcio. Ademais, personagens, ao falarem, revelam-se de um modo

    mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou

    procuram disfarar a sua opinio verdadeira. O prprio disfarce

    costuma patentear o cunho de disfarce. Esta franqueza quase

    total da fala e essa transparncia do prprio disfarce (pense-se no

    aparte teatral) so ndices evidentes da oniscincia ficcional.

    A funo narrativa, que no texto dramtico se mantm

    humildemente nas rubricas ( nelas que se localiza o foco), extingue-

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    22/98

    se totalmente no palco, o qual, com os atres e cenrios, intervm

    para assumi-la. Desaparece o sujeito fictcio dos enunciados pelo

    menos na aparncia , visto as prprias personagens se

    manifestarem diretamente atravs do dilogo, de modo que mesmo o

    mais ocasional disse le, respondeu ela do narrador se torna

    suprfluo. Agora, porm, estamos no domnio de uma outra arte. No

    so mais as palavras que constituem as personagens e seu ambiente.

    So as personagens (e o mundo fictcioda cena) que absorveram

    as palavras do texto e passa a constitu-las, tornando-se a fonte delas

    exatamente como ocorre na realidade. Contudo, o mundo mediado

    no palco pelos atres e cenrios de objectualidade puramente

    intencionais. Estas no tm referncia exata a qualquer realidade,

    determinada e adquirem tamanha densidade que encobrem por

    inteiro a realidade histrica a que, possivelmente, dizem respeito. A

    fico ou mimesis reveste-se de tal fra que se substi tu ou

    superpe realidade. talvez devido velha teoria da iluso da

    realidade supostamente criada pela cena, devido, portanto, ao

    altssimo vigor da fico cnica, que no se atribui ao teatro o

    qualificativo de fico.

    Contudo, o dilogo tem na dramaturgia a mesma funo do

    amanh era Natal.Compe-se, para o pblico, de quase-juzos,

    embora os atres se comportem como se se tratasse de juzos, j que

    as personagens levam os enunciados a srio. Embora seja

    apresentado ao pblico em forma semelhante s condies reais, o

    dilogo concebido de dentro das personagens, tornando-astransparentes em alto grau. verdade que, no teatro moderno, esta

    conveno da franqueza dialgica ficou abalada ao ponto de se tornar

    temtica (Tchecov, Pirandello, Th.Wilder, Ionesco, Beckett etc.).

    Temos aqui uma das razes para a mobilizao de recursos picos,

    narrativos. Quando Brecht pede ao ator quenose identifique com a

    personagem, para poder critic-la, pe um foco narrativo fora dela,

    representado pelo ator que assume o papel de narrador fictcio. Issoindica claramente que a identificao do ator com a personagem

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    23/98

    significa que o foco se encontra dentro dela: a aparente ausncia do

    narrador fictcio, no palco clssico, explica-se pelo simples fato de que

    ele se solidarizou ou identificou totalmente com uma ou vrias

    personagens, de tal modo que j no pode ser discernido como foco

    distinto. por isso tambm que, o palco dssico depende

    inteiramente do ator-personagem, porque no pode haver foco fora

    dle. O prprio cenrio permanece papelo pintado at surgir o foco

    fictcio da personagem que, de imediato, projeta em trno de si o

    espao e tempo irreais e transforma, como por um golpe de magia, o

    papelo em paisagem, templo ou salo.

    No que se refere ao cinema, deve ser concebido como de carter

    pico-dramtico; ao que parece, mais pico do que dramtico.

    verdade que o mundo das objectualidades puramente intencionais se

    apresenta neste caso, semelhana do teatro, atravs de imagens,

    como espetculo percebido (espetculo visto e ouvido; na verdade

    quase-visto e quase-ouvido; pois o mundo imaginrio no

    exatamente objeto de percepo). Mas a cmara, atravs de seu

    movimento, exerce no cinema uma funo nitidamente narrativa,

    inexistente no teatro. Focaliza, comenta, recorta, aproxima, expe,

    descreve. O close up, o travelling, o panoranomizar so recursos

    tipicamente narrativos.

    Em tdas as artes literrias e nas que exprimem, narram ou

    representam um estado ou estria, a personagem realmente

    constitui a fico. Contudo, no teatro a personagem no s constitui

    a fico mas funda, nticamente, o prprio espetculo (atravs do

    ator). que o teatro integralmente fico, ao passo que o cinema e

    a literatura podem servir, atravs das imagens e palavras, a outros

    fins (documento, cincia, jornal). Isso possvel porque no cinema e

    na literatura so as imagens e as palavras que fundam as

    objectualidades puramente intencionais, no as personagens.

    precisamente por isso que no prprio cinema e literatura ficcionais as

    personagens, embora realmente constituam a fico, e a evidenciem

    de forma marcante, podem ser dispensadas por certo tempo, o que

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    24/98

    no possvel no teatro. O palco no pode permanecer vazio.

    stes momentos realam o cunho narrativo do cinema. A imagem

    (como a palavra) tem a possibili dad de descrever e animar

    ambientes, paisagens, objetos. Estes sem personagem podem

    mesmo representar fatres de grande importncia. A fita e o romance

    podem fazer viver uma cidade como tal. Ademais, no teatro uma s

    personagem presente no palco no pode manter-se calada; tem de

    proferir um monlogo.

    Uma personagem muda no pode permanecer szinha no palco. J no

    cinema ou romance, a personagem pode permanecer calada durante

    bastante tempo, porque as palavras ou imagens do narrador ou da

    cmara narradora se encarregam de comunicar-nos os seus

    pensamentos, ou, simplesmente, os seus afazeres, o seu passeio

    solitrio etc. o homem centro do universo. O uso de recursos picos

    o cro, o palco simultneo etc., so recursos picos indica que o

    homem no se concebe em posio to exclusiva.

    A pessoa e a personagem.

    A diferena profunda entre a realidade e as objectualidades

    puramente intencionais imaginrias ou no, de um escrito, quadro,foto, apresentao teatral etc. reside no fato de que as ltimas

    nunca alcanam a determinao completa da primeira. As pessoas

    reais, assim como todos os objetos reais, so totalmente

    determinados apresentando-se como unidades concretas, integradas

    de uma infinidade de predicados, dos quais smente alguns podem

    ser colhidos e retirados por meio de operaes cognoscitivas

    especiais. Tais operaes so sempre finitas, no podendo por issonunca esgotar a multiplicidade infinita das determinaes do ser real,

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    25/98

    individual, que inefvel. Isso se refere naturalmente em particular

    a sres humanos, sres psicofsicos, sres espirituais, que se

    desenvolvem e atuam. A nossa viso da realidade em geral, e em

    particular dos sres humanos individuais, extremamente

    fragmentria e limitada.

    De certa forma, as oraes de um texto projetam um mundo bem

    mais fragmentrio do que a nossa viso j fragmentria da realidade.

    Uma expresso nominal como mesa projeta o objeto na sua

    unidade concreta, mas isso apenas formaliter, como esquema que

    contm apenas potencialmente uma infinidade de determinaes.

    Atravs das funes significativas da orao posso atribuir (ou

    retirar) a essa unidade uma ou outra determinao (a mesa azul,

    alta, redonda, bem lustrada); mas por mais que a descreva ou lance

    mo de aspectos especialmente preparados, capazes de suscitar o

    preenchimento imaginrio do leitor (a mesa era um daqueles mveis

    tradicionais em trno do qual, antes do surgir da televiso, a famflia

    costumava reunir-se para o jantar), as objectualidades puramente

    intencionais constitudas por oraes sempre apresentaro vastas

    regies indeterminadas, porque o nmero das oraes finito. Assim

    psmiagemde um romance (e ainda mais de um poema ou de uma

    pea teatral) eum configurao esquemtica, .tanto no sentido fsico

    como psquico, emboraformaliterseja projetada como um indivduo

    real, totalmente determinado.

    ste fato das zonas indeterminadas do texto possibilita at certo

    ponto a vida da obra literria, a variedade das concretizaes,

    assim como a funo do diretor de teatro, chamado a preencher as

    mltiplas indeterminaes de um texto dramtico. Isso, porm, se

    deve variedade dos leitores, atravs dos tempos, no variabilidade

    da obra, cujas personagens no rnutabilidade e a infinitude das de de

    seres humanos reais. As concretizaes podem variar, mas a obra

    como tal no muda.

    Comparada ao texto, a personagem cnica tem a grande vantagem

    de mostrar os aspectos esquematizados pelas oraes em plena

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    26/98

    concreo e, nas fases projetadas pelo discurso literrio descontnuo,

    em plena continuidade. Isso comunica representao a sua fra de

    presena existencial. A existncia se d smente percepo (o

    fato de que o mundo imaginrio tambm neste caso no

    prpriamente percebido quase negligencivel). Isso naturalmente

    no quer dizer que a representao no tenha zonas mdeterminadas

    caractersticas de tdas as objectualidades puramente intencionais.

    Os atres, stes sim, so reais e totalmente determinados, mas no

    os sres imaginrios de que apresentam apenas alguns aspectos

    visuais e auditivos e, atravs dles, aspectos psquicos e espirituais,

    O fato que a pea e sua representao mostram em geral muito

    menos aspectos das personagens do que os romances, mas stes

    poucos aspectos aparecem de modo sensvel e contnuo, dando s

    personagens teatrais um poder extraordinrio. ste poder no

    diminudo pelo fato de no teatro clssico (por exemplo, Racine) as

    personagens terem o carter quase de silhuetas, porque se

    confrontam com poucas personagens, aparecem em poucas situaes

    e se esgotam quase totalmente nos aspectos proporcionados pela

    ao especfica da pea, de modo que seria difcil imagin-las fora do

    contexto desta ao peculiar. J nas peas de cunho mais aberto

    pico pense-se em diversas obras de Shakespeare as figuras

    adquirem maior plasticidade, podendo ser imaginadas fora da

    pea. Tais diferenas, porm, no implicam um juzo de valor. Trata-

    se de outros estilos.

    O curioso que o leitor ou espectador no nota as zonas

    indeterminadas (que tambm no filme so mltiplas). Antes de tudo

    porque se atm ao que positivamente dado e que, precisamente

    por isso, encobre as zonas indeterminadas; depois, porque tende a

    atualizar certos esquemas preparados; finalmente, porque costuma

    ultrapassar o que dado no texto, embora geralmente guiado por

    le.

    De qualquer modo, o que resulta que precisamente a limitao da

    obra ficcional a sua maior conquista. Precisamente porque o

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    27/98

    nmero das oraes necessriamente limitado (enquanto as zonas

    indeterminadas passam quase despercebidas), as personagens

    adquirem um cunho definido e definitivo que a observao das

    pessoas reais, e mesmo o convvio com elas, dificilmente nos pode

    proporcionar a tal ponto. Precisamente porque se trata de oraes e

    no de realidades, o autor pode realar aspectos essenciais pela

    seleo dos aspectos que apresenta, dando s personagens um

    carter mais ntido do que a observao da realidade costuma a

    sugerir levando-as, ademais, atravs de situaes mais decisivas e

    significativas do que costuma ocorrer na vida. Precisamente pela

    limitao das oraes, as personagens tm maior coerncia do que as

    pessoas reais (e mesmo quando incoerentes mostram pelo menos

    nisso coerncia); maior exemplaridade (mesmo quando banais;

    pense-se na banalidade exemplar de certas personagens de Tchecov

    ou Ionesco); maior significao; e, paradoxalmente, tambm maior

    riqueza no por serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim

    em virtude da concentrao, seleo, densidade e estilizao do

    contexto imaginrio, que rene

    os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padro firme e

    consistente. Antes de tudo, porm, a fico nico lugar em

    trmos epistemolgicos em que os sres humanos se tornam

    transparentes nossa viso, por se tratar de seres puramente

    intencionais a sres autnomos; de sres totalmente projetados por

    oraes. E isso a tal ponto que os grandes autores, levando a fico

    fictciamente s suas ltimas conseqncias, refazem o mistrio do

    ser humano, atravs da apresentao de aspectos que produzem

    certa opalizao e iridescncia, e reconstituem, em certa medida, a

    opacidade da pessoa real. precisamente o modo pelo qai p autor

    dirige o nosso olhar, atravs de aspectos selecionados de certas

    situaes de aparncia fsica e do comportamento sintomticos de

    certos estados ou processos psquicos ou diretamente atravs de

    aspectos da intimidade das personagens tudo isso de tal modo que

    tambm as zonas indeterminadas comeam a funcionar

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    28/98

    precisamente atravs de todos sses e outros recursos que o autor

    torna a personagem at certo ponto de nvo inesgotvel e

    insondvel.

    A valorizao esttica

    A exposio do problema da fico foi numerosas vzes

    ultrapassada por descries que de fato j introduziam certas

    valorizaes estticas. Quando, por exemplo, foi afirmado que os

    grandes autores tendem a refazer o mistrio humano, o campo dalgica ficcional, assim como os aspectos puramente epistemolgicos

    e ontolgicos, foram abandonados em favor de consideraes

    estticas; a mesma falta de rigor se verificou na abordagem da

    vibrao verbal da poesia do problema da verdade ficcional (que

    no fundo de ordem esttica) e da questo dos aspectos

    esquemticos especialmente preparados para suscitar

    preenchimentos determinados do leitor. A preparao de taisaspectos depende em alto grau da escolha da palavra justa,

    insubstituvel da sonoridade especfica dos fonemas, das conotaes

    das palavras, da carga de suas zonas semnticas marginais, do jgo

    metafrico, do estilo ou seja, da organizao dos contextos de

    unidades significativas e de muitos outros elementos de carter

    esttico. stes momentos inerentes s camsdsas exteriores da obra

    literria esto, naturalmente, relacionados com a necessidade deconcretizar e enriquee a camada das objectualidades puramente

    intencionais, e de dar a ste piano imaginrio certa transparncia ou

    iridescncia em direo a significados mais profundos, em que se

    revela o sentido, a idia da obra. No pocesso da criao stes

    planos mais profundos certamente condicionaram, de modo

    consciente ou inconsciente, o rigor seletivo aplicado s camadas mais

    externas (embora num poema todo o processo criavo possa iniciar-

    se a partir de uma sequncia rtmica de palavras).

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    29/98

    A dificuldade de abordar o fenmeno da fico sem recorrer a

    valorizaes estticas indica que ste problema e o do nvel esttico

    no mantm relaes de indiferena. Sem dvida, h fico de baixo

    nvel esttico, de grande pobreza imaginativa (clichs), com

    personagens sem vida e situaes sem significado profundo, tudo isso

    relacionado com a inexpressividade completa dos contextos verbais

    (que por vzes, contudo, so afetados e pretensiosos, sem economia

    e sem funo no todo, sem que sua exagerada riqueza corresponda

    qualquer coisa na camada imaginria e nos planos mais profundos).

    Todavia a criao de um vigoroso mundo imaginrio, de personagens

    vivas situaes verdadeiras, j em si de alto valor esttico, exige

    em geral a mobilizao de todos os recursos da lngua, assim como

    de muito outros elementos da composio literria, tanto no plano

    horizontal da organiza das partes sucessivas, como no vertical das

    camadas; enfim, de todos os rneios tendem a constituir a obra-de-

    arte literria. De outro lado, a mobilizao plena dsses recursos dar

    obra, mesmo a despeito da inteno possivelmente cientfica ou

    filosfica, um carter seno imaginrio, ao menos imaginativo, que

    a aproximar at certo ponto da fico. Exemplos caractersticos

    seriam os dilogos de Plato (que, em parte, podem ser lidos como

    comdias), certos escritos deKierkegaard, Pascal, Nietzsche, a obra

    de Schopenhauer (cuja vontade metafsica se torna quase

    personagem de uma epopia) etc. Deve-se admitir, na delimitao do

    que seja literatura no sentido restrito, amplas zonas de transioem

    que se situariam obras de grande poder e preciso verbais, na

    medida em que se ligam agudeza da observao, perspiccia

    psicolgica e riqueza de idias.

    Na descrio da estrutura da obra literria em sentido lato (pp. 2-3)

    verificou-se que, em essncia, se trata da associao de camadas

    mais sensveis (das quais a nica realmente foi posta de lado) e de

    planos mais profundos projetados por aquelas. Esta estrutura

    fundamentalmente a de tdas as objetivaes espirituais (todos os

    produtos humanos) e, em especial, de tdas as obras de arte. Em

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    30/98

    tdas as objetivaes espirituais associam-se a uma camada

    material, sensvel, real, uma ou vrias camadas irreais, no

    apreendidas diretamente pelos sentidos, mas mediadas pelos

    exteriores.

    Entretanto, graas ao material em jgo no caso de uma sinfonia, de

    um quadro ou de uma apresentao teatral, evidencia-se a sua

    inteno esttica, mesmo que no se tenha cristalizado em relevante

    obra de arte. No. caso da literatura, bem ao contrrio, o material em

    jgo a lngua tanto pode servir para fins tericos ou prticos

    como para fins estticos. a isso que Hegel se refere quando chama

    a literatura (as belas letras) aquela arte peculiar em que a arte...

    dissolver-se..., passando a ser ponto de transio para a prosa do

    pensamento cientfico. Principalmente neste campo, portanto, surge

    o problema de diferenciar entre prosa comum e arte.

    A diferena entre um documento literrio qualquer e a obra-de-arte

    literria reside, antes de tudo, no valor diverso da camada quase-

    sensvel das palavras (sensvel quando o texto lido a viva voz). ste

    plano quase-sensvel das palavras e de seus contextos maiores tem

    na literatura em sentido lato funo puramente instrumental: a de

    projetar, como vimos, objectualidades puramente intencionais que,

    por sua vez, sem serem notadas como tais, se referem aos objetos

    visados. O que importa so os significados que se identificam com os

    objetos visados, no os significantes. stes ltimos ai palavras

    se omitem por completo (da mesma Forma que as objectualidades

    puramente intencionais); podem ser substitudos por, quaisquer

    outros que constituam os mesmos significados. A relao entre a

    camada quase-sensvel e a camada espiritual , portanto,

    inteiramente convencional. A inteno do leitor passa diretamente ao

    sentido e aos objetos visados.

    Na obra-de-arte literria, esta relao deixa de ser convencional,

    apresenta necessidade e grande firmeza e consistncia. Em casos

    extremos (particularmente na poesia), a mais ligeira modificao da

    camada exterior (e na poesia concretista, mesmo da distribuio dos

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    31/98

    sinais tipogrficos) destri o sentido de tda a obra, devido ao valor

    expressivo das palavras, agora usadas como se fssem relaes de

    cres ou sons na pintura ou msica. A camada verbal adquire, pois,

    valor prprio e passa a fazer parte integral da obra. Isso vale

    particularmente para contextos maiores, que passam a constituir o

    ritmo, o estilo, o jgo das repeties e associaes e que se tornam

    momentos inseparveis do todo, de modo que a modificao da

    estrutura das oraes e da maneira como se organizam os

    significados afeta profundamente o sentido total da obra (imagine-se

    uma edio de Proust com as oraes simplificadas!) ao passo que

    num texto cientfico ou filosfico as mesmas teses podem ser

    mediadas por contexto diversos de oraes (isso no se refere a

    filsofos como Heidegger; mas neste caso a prosa comum do

    pensamento cientfico abandonada em favor de especulaes

    teosficas que requerem o uso da arquipalavra admica). isso

    que Lessing tem em mente

    quando chama o poema um discurso totalmente sensvel ou

    quando Hegel, num sentido mais geral, define a beleza como o

    aparecer (luzir) sensvel da idia.

    O significado disso que os planos de fundo (os mais

    espirituais) se ligam na obra de arte (literria ou no)

    de um modo indissolvel ao seu modo de aparecer, concreto,

    individual, singular. a isso que Croce chama de intuio.

    O sentimento do valor esttico, o prazer especfico em que se anuncia

    a presena do valor esttico, refere-se precisamente totalidadeda

    obra literria ou, mais de perto, ao modo de aparecer sensvel

    (quase-sensvel) dos objetos mediados. As camadas exteriores

    impem a sua presena em virtude da organizao e vibrao

    peculiares de seus elementos. O raio de inteno, ao atravessar estas

    camadas exteriores, conota-as, assimila-as no mesmo ato de

    apreenso das camadas mais profundas. Isso, em parte, se verifica

    tambm em virtude de uma atitude diversa em face de escritos de

    valor esttico.

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    32/98

    Na vida cotidiana ou na leitura de textos no-estticos, a nossa

    inteno geralmente atravessa a superfcie sensvel devido

    imposio de valores prticos, vitais, tericos etc. O raio da inteno,

    sem deter-se nas exterioridades sensveis, dirige-se diretamente ao

    que interessa, por exemplo, s atitudes e palavras, amabilidade,

    clera, disposio geral do interlocutor (a no ser que se trate de

    pessoa de grande encanto fsico, dificilmente nos lembramos de seus

    traos e jgo fisionmico) ou topografia de um bosque (quando o

    observador um engenheiro de estradas de ferro) ou ao valor til das

    rvores (quando se trata de um negociante de madeiras) ou teoria

    dos genes (exposta num tratado de gentica). A experincia esttica,

    bem ao contrrio, desinteressada, isto , o objeto j no meio

    para outros fins, nada nos interessa seno o prprio objeto como tal

    que, em certa medida, se emancipa do tecido de relaes vitais que

    costumam solicitar a nossa vontade. o fenmeno da moldura que,

    nas vrias artes, de modo diverso, isola o objeto esttico, como rea

    ldica, de situaes reais (s quais, contudo, pode referir-se

    indiretamente). Esta atitude desinteressada j condicionou a

    elaborao do objeto e a configurao altamente seletiva das

    camadas exteriores. A experincia do apreciador adequado,

    atendendo s virtualidades especficas do objeto, se caracterizar por

    uma espcie de repouso na totalidade dle. le no se ater apenas

    idia expressa, nem smente configurao sensvel em que ela

    aparece, mas ao aparecer como tal, ao modo como aparece; ao

    todo, portanto. No primeiro caso, um atesta seria incapaz de apreciar

    Dante ou um antimarxista, Brecht. No segundo caso, tratar-se-

    provvelmente de um crtico que s examina fenmenos tcnicos,

    sem referi-los ao todo. Nem aqules, nem ste apreendero o objeto

    com aquela peculiar emoo valorizadora do prazer esttico, que se

    liga a atos de apreenso referidos ao objeto total.

    ste tipo de apreciao, facilitado pelo isolamento em face de

    situaes vitais, permite uma experincia intensa, quase arcaica, das

    objectualidades mediadas (particularmente quando se trata de

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    33/98

    objectualidades imaginrias), que se apresentam com grande

    concreo, graas aos aspectos especialmente preparados e forte

    co-apreenso dos momentos mais sensveis. A apreenso do mundo

    fictcio acompanhada de intensas tonalidades emocionais, tudo se

    carrega de mood, atmosfera, disposies anmicas. Em obras de

    inteno filosfica ou cientfica, ste cunho esttico pode representar

    fator de perturbao, j que desvia o raio de inteno da passagem

    reta aos objetos visados. Contudo, mesmo na obra fictcia, ste

    retrocesso a tipor mais puros e intensos de percepo e

    emocionalidade no realmente, uma volta a fases mais primitivas

    no provoca tiros contra o palco ou a tela. As prprias lgrimas tm,

    por assim dizer, menos teor salino. Ao forte envolvimento emocional

    liga-se, no apreciador adequado, a conscincia do Contexto ldico, da

    moldura. Mantm-se intata a distncia contemplativa. O prazer

    esttico no modo de aparecer do mundo mediado integra e suspende

    em si a participao nas dores e mgoas do heri. ste prazer

    possvel smente porque o apreciador sabe encontrar-se em face

    de quase-juzos, em face de objectualidades puramente intencionais,

    sem referncia direta a objetos tambm intencionais.

    A obra-de-arte literria ficcional

    Os momentos descritos so de importncia na valorizao

    esttica da obra literria fictcia. Na fico. em geral, tambm na decunho trivial, o raio de inteno se dirige camada imaginria, sem

    passar diretamente s realidades empricas possivelmente

    representadas. Detm-se, por assim dizer, neste plano de

    personagens, situaes ou estados (lricos), fazendo viver o leitor,

    imaginriamente, os destinos e aventuras dos heris. Boa parte dos

    leitores, porm, pe o mundo imaginrio quase imediatamente

    referncia coma realidade exterior obra, j que as objectualidades

    puramente intencionais, embora tendam a prender a inteno, so

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    34/98

    tomadas na sua funo mimtica, como reflexo do mundo emprico.

    Isto , em muitos casos, perfeitamente legtimo; mas esta apreciao,

    quando muito unilateral, tende a deformar e empobrecer a apreenso

    da totalidade literria, assim como o pleno prazer esttico no modo

    de aparecer do que aparece.

    Na medida em que se acentua o valor esttico da obra ficcional o

    mundo imaginrio se enriquece e se aprofunda, prendendo o raio de

    inteno dentro da obra e tornando-se, por sua vez, transparente a

    planos mais profundos, imanentes prpria obra. S agora a obra

    manifesta tdas as virtualidades de revelao revelao que no

    se deve confundir com qualquer ato cognoscitivo explcito, j que

    em plena imediatez concreta que o mediado se revela, na

    individualidade quase-sensvel das camadas exteriores e na

    singularidade das personagens e situaes. Neste sentido, a

    cogitatio pode de certa forma ser contida na apreenso esttica,

    mas ela ultrapassada por uma espcie de visio, ou viso intuitiva,

    que ao mesmo tempo superior e inferior ao conhecimento cientfico

    preciso. Tampouco deve-se comparar o prazer desta revelao ao

    prazer do conhecimento. esttico integra e suspende a distncia da

    contemplao, o intenso envolvimento emocional e a revelao

    profunda; pode manifestar-se mesmo nos casos em que o contedo

    desta revelao se ope a tdas as nossas concepes (bem tarde T.

    S. Eliot reconheceu isso com referncia a Goethe e Shakespeare,

    visceralmente contrrios sua concepo do mundo).

    Seria tautolgico dizer que essa riqueza e profundidade da camada

    imaginria e dos planos por ela revelados pressupem uma

    imaginao que o autor de romances triviais no possui, assim como

    capacidades especiais de observao, intuio psicolgica etc. Tudo

    isso, porm, adquire relevncia esttica smente na medida em que

    o autor consegue projetar ste mundo imaginrio base de oraes,

    isto , merc da preciso da palavra, do ritmo e do estilo, dos

    aspectos esquemticos especialmente preparados, sobretudo no que

    se refere ao comportamento e vida ntima das personagens;

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    35/98

    aspectos stes cujo preparo, por sua vez, se relaciona mntimamente

    composio estilstica e camada sonora dos fonemas.

    Na medida em que a obra ficcional tambm uma de obra-de-arte,

    estas camadas exteriores so co-percebidas com muito mais fra

    do que ocorre em geral. Se, na obra cientfica, a inteno atravessa

    estas e a camada objectual, sem not-las, para incidir sbre os

    objetos exteriores obra (que, como tal, quase no notada, j que

    ela apenas meio) e na obra de fico em geral h certo repouso

    na camada objectual, na obra-de-arte ficcional h, alm disso, ainda

    certo repouso nas camadas exteriores; h como que um

    fraccionamento do raio (sem que isso afete a unidade do ato de

    apreenso), em virtude do fascnio verbal e estilstico. Falando

    metafisicamente, o raio adquire certo effet e, graas a isso, maior

    capacidade de penetrao nas camadas mais profundas da obra.

    Na cena do sonho do heri de A Morte em Veneza(Thomas Mann),

    o acmulo de certos ditongos faz-nos ouvir as flautas e o ulular do

    squito dionisaco; as oraes assindticas, as aliteraes, o ritmo

    acelerado, os aspectos tteis e olfativos apresentados que

    sugerem um mundo pnico e primitivo reforam a impresso do

    xtase e da presena embriagadora do Deus estranho, assim como

    a sugesto de todo um plano de fundo arcaico, de evocaes mticas,

    j antes suscitadas por trechos de prosa que tomam, quase

    imperceptivelmente, o compasso dactlico do hexmetro. O enrdo

    a camada imaginria trata do amor de um escritor envelhecido por

    um formoso rapaz. As camadas exteriores retiram a ste tema algo

    do seu aspecto melindroso por cerc-lo de atmosfera grega,

    colocando-o, de certo modo, numa constelao mais universal e

    numa grande tradio. o estilo, atravs das sugestes arcaicas por

    ele mediadas, que nos leva a intuir os planos mais profundos, o

    significado das objectualidades puramente intencionais: o perigo de

    retrocesso arcaico que ameaa o homem, particularmente o artista

    fascinado pela beleza, pelo puro aparecer, independentemente do

    que aparece; o perigo, portanto, da existncia esttica. H nisso

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    36/98

    uma parfrase levemente irnica da expulso dos artistas do Estado

    platnico ironia que se anuncia na grecizao do estilo, no uso de

    palavras homricas (tambm Homero deveria ser expulso do Estado

    platnico).

    Seria fcil prosseguir na interpretao da novela, atravs da

    anlise da organizao polifnica das camadas; todavia, em

    determinado ponto a interpretao deve deter-se. A grande obra de

    arte inesgotvel em trmos conceituais; stes s podem aproximar-

    se dos significados mais profundos. O essencial revela-se, em tda a

    sua fra imediata, smente prpria experincia esttica.

    O Papel de Personagem

    Se reunirmos os vrios momentos expostos, verificaremos que

    a grande obra-de-arte literria (ficcional) o lugar em que nos

    defrontamos com sres humanos de contornos definidos e definitivos,

    em ampla medida transparentes, vivendo situaes exemplares de

    um modo exemplar (exemplar tambem no sentido negativo). Como

    sres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores

    de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, poltico-social e tomam

    determinadas atitudes em face dsses valores. Muitas vzes

    debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da coliso de

    valores, passam por terrveis conflitos e enfrentam situaes-limite

    em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos

    trgicos, sublimes, demonacos, grotescos ou luminosos. Estes

    aspectos profundos, muitas vzes de ordem metafsica,

    incomunicveis em tda a sua plenitude atravs do conceito,

    revelam-se, como num momento de iluminao, na plena concreo

    do ser humano individual. So momentos supremos, sua maneira

    perfeitos, que a vida emprica, no seu fluir cinzento e cotidiano,

    geralmente no apresenta de um modo to ntido e coerente, nem de

    forma to transparente e seletiva que possamos perceber as

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    37/98

    motivaes mais intmas, os conflitos e crises mais recnditos na sua

    concatenao e no seu desenvolvimento.

    O prprio cotidiano, quando se torna tema da fico, adquire outra

    relevncia e condensa-se na situao-limite do tdio, da angstia e

    da nusea.

    Todavia, o que mais importa que no s contemplamos stes

    destinos e conflitos distncia. Graas seleo dos aspectos

    esquemticos preparados e ao potencial das zonas indeterminadas,

    as personagens atingem a uma validade universal que em nada

    diminui a sua concreo individual; e merc dsse fato liga-se, na

    experincia esttica, contemplao, a intensa participao

    emocional. Assim, o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as

    possibilidades humanas que a sua vida pessoal diflcilmente lhe

    permite viver e contemplar, pela crescente reduo de possibilidades.

    De resto, quem realmente vivesse sses momentos extremos, no

    poderia contempl-los por estar demasiado envolvido nles. E se os

    contemplasse distncia (no crculo dos conhecidos) ou atravs da

    conceituao abstrata de uma obra filosfica, no os viveria.

    precisamente a fico que possibilita viver e contemplar tais

    possibilidades, graas ao modo irreaal de suas amadas profundas,

    graas aos quase-juzos que fingem referir-se a realidades sem

    realmente se referirem a sres reais; e graas ao modo de aparecer

    concreto e quase-sensvel dste mundo imaginrio nas camadas

    exteriores.

    importante observar que no poder apreender estticamentea

    totalidade e plenitude de uma obra de arte ficcional, quem no fr

    capaz de sentir vivamente tdas as nuanas dos valores no-

    estticos religiosos, morais polticos-sociais, vitais, hedonsticos

    etc. que sempre esto em jgo onde se defrontam sres humanos.

    Todos stes valores em si no-estticos, assim como o valor at certo

    ponto cognoscitivo de uma profunda interpretao do mundo e da

    vida humana, que fundam o valor esttico, isso , que so

    pressupostos e tornam possvel o seu aparecimento, de modo algum

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    38/98

    o determinam. O fato de os valores morais representados numa

    tragdia serem mais elevados do que os de uma comdia no influi

    no valor esttico desta ou daquela. O valor esttico aparece nas

    costas (expresso usada por Max Scheler e Nicolai Hartmann) dstes

    outros valores, mas o nvel qualitativo dste valor no condicionado

    pela elevao dos valores morais ou religiosos em choque, nem pela

    interpretao especfica do mundo e da vida. O valor esttico

    suspende o peos real dos outros valores (embora os faa aparecer

    em tda a sua seriedade e fra); integra-os no reino ldico da fico,

    transforma-os em parte da organizao esttica lhes d certo papel

    no todo.

    A isso corresponde o fenmeno de que o prazer esttico integra no

    seu mbito o sofrimento e a risada, o dio e a simpatia, a

    repugnncia e a ternura, a aprovao e a desaprovao com que o

    apreciador reage ao contemplar e participar dos eventos. Tanto a

    nobre Antgone como o terrvel Macbeth sucumbem; as emes com

    que participamos de seus destinos so profundamente diversas. Mas

    o prazer suscitado pelo valor esttico, pelo modo como aparecem

    stes destinos diversos, tal prazer, como que consome estas

    emoes divergentes; nutrindo-se delas, ele as assimila; e embora

    no renegue a variedade das emoes que contribuem para fund-lo

    e que o tingem de tonalidades distintas, o prazer como tal, na sua

    qualidade de prazer esttico e na sua intensidade, tende a convergir

    em ambos os casos.

    Quanto ao valor cognoscitivo que como tal no pode ser

    plenamente visado por quase-juzos substitudo pela revelao e

    vivncia de determinadas interpretaes profundas da vida humana,

    pela contemplao e participao de certas possibilidades humanas.

    Todavia, a profundeza e coerncia dessas interpretaes no tm

    valor por si, como teriam numa obra filosfica, mas smente na

    medida em que so integradas no todo esttico, tomando se viso

    e vivncia, enriquecendo o prazer esttico. O extraordinrio que

    podemos, de certo modo, participar destas interpretaes por mais

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    39/98

    que na vida real nos sejam contrrias, por mais que as combatamos

    na vida real. evidente que h, nesta apreciao esttica, limites. Ao

    que esta descrio visa expor o fenmeno esttico como tal na sua

    mxima pureza. Contudo, no existe o Homo aestheticus. Mesmo

    dentro da moldura da rea ldica no ocorre a suspenso total das

    responsabilidades. Normalmente, o homem um ser incapaz de

    valorizar apenas estticamente o mundo humano mesmo quando

    imaginrio; a literatura no uma esfera segregada. Glorificar a arte,

    maneira de Schopenhauer, como quietivo ou entorpecente da

    nossa vontade, resulta em desvirtuamento da funo que a arte

    exerce na sociedade.

    Isso, porm, no exclui, antes pressupe que a grande obra de arte

    literria nos restitua uma liberdade o imenso reino do possvel

    que a vida real no nos concede. A fico um lugar ontolgico

    privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, atravs

    de personagens variadas a plenitude da sua condio, e em que se

    torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se

    imaginriamente no outro, vivendo outros papis e destacando-se de

    si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condio fundamental de ser

    autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si

    mesmo e de objetivar a sua prpria situao. A plenitude de

    enriquecimento e libertao, que desta forma a grande fico nos

    pode proporcionar, torna-se acessvel smente a quem sabeater-se,

    antes de tudo, apreciao esttica que, enquanto suspende o pso

    real das outras valorizaes, lhes assimila ao mesmo tempo a

    essncia e seriedade em todos os matizes. Smente quando o

    apreciador se entrega com certa inocncia a tdas as virtualidades da

    grande obra de arte, esta por sua vez lhe entregar tda a riqueza

    encerrada no seu contexto.

    Neste sentido pode-se dizer com Ernst Cassirer que

    afastando-se da realidade e elevando-se a um mundo simblico o

    homem, ao voltar realidade, lhe apreende melhor a riqueza e

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    40/98

    profundidade. Atravs da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao

    mesmo tempo aproximamo-nos da realidade.

    A PERSONAGEM DO ROMANCE

    (pag. 51)

    Geralmente, da leitura de um romance fica a impresso duma

    srie de fatos, organizados em enrdo, e de personagens que vivem

    stes fatos. uma impresso prticamente indissolvel: quando

    pensamos no enrdo, pensamos simultneamente nas personagens;

    quando pensamos nestas, pensamos simultneamente na vida que

    vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino

    traada conforme uma certa durao temporal, referida a

    determinadas condies de ambiente. O enrdo existe atravs das

    personagens; as personagens vivem no enrdo. Enrdo e

    personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a viso da

    vida que decorre dle, os significados e valores que o animam.

    Nunca expor idiasa no ser em funo dos temperamentos e dos

    caracteres1. Tome-se a palavra idia como sinnimo dos

    mencionados valores e significados, e ter-se- uma expresso

    sinttica do que foi dito. Portanto, os trs elementos centrais dum

    desenvolvimento novelstico (o enrdo e a personagem, que

    representam a sua matria; as idias, que representam o seu

    significado, e que so no conjunto elaborados pela tcnica), stes

    trs elementos s existem intimamente ligados, inseparveis, nos

    romances bens realizados. No meio dles, avulta a personagem, que

    representa a possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor,

    pelos mecanismos de identificaes, projeo, transferncia etc. A

    personagem vive o enrdo e as idias, e os torna vivos. Eis uma

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    41/98

    imagem feliz de

    Gide: Tento enrolar os fios variados do enrdo e a complexidade dos

    meus pensamentos em tmo destas pequenas bobinas vivas que so

    cada uma das minhas personagens (ob. cit., p. 26).

    No espanta, portanto, que a personagem parea o que h de mais

    vivo no romance; e que a leitura dste dependa bsicamente da

    aceitao da verdade da personagem por parte do leitor. Tanto

    assim, que ns perdoamos os mais graves defeitos de enrdo e de

    idia aos grandes criadores de personagens. Isto nos leva ao rro,

    freqentemente repetido em crtica, de pensar que o essencial do

    romance a personagem, como se esta pudesse existir separada

    das outras ralidades que encarna, que ela vive, que lhe do vida.

    Feita esta ressalva, todavia, pode-se dizer que o elemento mais

    atuante, mais comunicativo da arte novelstica moderna, como se

    configurou nos sculos XVIII, XIX e como do XX; mas que s adquire

    pleno significado

    1. Gide, Journal des Faux-Monnayeurs, 6.me dition, Gallmard, Pule1927, p. 12.

    no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construo

    estrutural o maior responsvel pela fra e eficcia de um romance.

    A personagem um ser fictcio, expresso que soa como paradoxo.

    De fato, como pode uma fico ser? Como pode existir o que no

    existe? No entanto, a criao literria repousa sbre ste paradoxo, e

    o problema da verossimilhana no romance depende desta

    possibilidade de um ser fictcio, isto , algo que, sendo uma criao

    da fantasia, comunica a impresso da mais ldima verdade

    existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes

    de mais nada, num certo tipo de relao entre o ser vivo e o ser

    fictcio, manifestada atravs da personagem, que a concretizao

    dste.

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    42/98

    Verifiquemos, inicialmente, que h afinidades e diferenas essenciais

    entre o ser vivo e os entes de fico, e que as diferenas so to

    importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade,

    que a verossimilhana. Tentemos uma investigao sumria sbre

    as condies de existncia essencial da personagem, como um tipo

    de ser, mesmo fictcio, comeando por descrever do modo mais

    emprico possvel a nossa percepo do semelhante.

    Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos

    dados fundamentais do problema o contraste entre a

    continuidade relativa da percepo fsica (em que fundamos o

    nosso conhecimento) e a descontinuidadeda percepo, digamos,

    espiritual, que parece freqentemente romper a unidade antes

    apreendida. No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a

    convivncia espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de

    qualidades por vzes contraditrias.

    A primeira idia que nos vem, quando refletimos sbre isso, a de

    que tal fato ocorre porque no somos capazes de abranger a

    personalidade do outro com a mesma unidade com que somos

    capazes de abranger a sua configurao externa. E conclumos,

    talvez, que esta diferena devida a uma diferena de natureza dos

    prprios objetos da nossa percepo. De fato, pensamos o

    primeiro tipo de conhecimento se dirige a um domnio finito, que

    coincide com a superfcie do corpo; enquanto o segundo tipo se dirige

    a um domnio infinito, pois a sua natureza oculta explorao de

    qualquer sentido e no pode, em conseqncia, ser aprendida numa

    integridade que essencialmente no possui. Da concluirmos que a

    noo a respeito de um ser, elaborada por outro ser, sempre

    incompleta, em relao percepo fsica inicial. E que o

    conhecimento dos sres fragmentrio.

    Esta impresso se acentua quando investigamos os, por assim dizer,

    fragmentos de ser, que nos so dados por uma conversa, um ato,

    uma seqncia de atos, uma afirmao, uma informao. Cada um

    dsses fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade total,

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    43/98

    no uno, nem contnuo. le permite um conhecimento mais ou

    menos adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base

    num juzo sbre o outro ser; permite, mesmo, uma noo conjunta e

    coerente dste ser; mas essa noo oscilante, aproximativa,

    descontnua. Os sres so, por sua natureza, misteriosos,

    inesperados. Da a psicologia moderna ter ampliado e investigado

    sistemticamente as noes de subconsciente e inconsciente, que

    explicariam o que h de inslito nas pessoas que reputamos

    conhecer, e no entanto nos surpreendem, como se uma outra pessoa

    entrasse nelas, invadindo inesperadamente a sua rea de essncia e

    de existncia.

    Esta constatao, mesmo feita de maneira no-sistemtica,

    fundamental em tda a literatura moderna, onde se desenvolveu

    antes das investigaes tcnicas dos psiclogos, e depois se

    beneficiou dos resultados destas. claro que a noo do mistrio dos

    sres, produzindo as condutas inesperadas, sempre estve presente

    na criao de forma mais ou menos consciente, bastando lembrar

    o mundo das personagens de Shakespeare. Mas s foi

    conscientemente desenvolvida por certos escritores do sculo XIX,

    como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistrio psicolgico

    dos sres, seja o mistrio metafsico da prpria existncia. A partir de

    investigaes metdicas em psicologia, como, por exemplo, as da

    psicanlise, essa investigao ganhou um aspecto mais sistemtico e

    voluntrio, sem com isso ultrapassar necessriamente as grandes

    intuies dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa visona

    literatura. Escritores como Baudelaire, Nerval, Dostoievski, Emily

    Bronte (aos quais se liga por alguns aspectos, isolado na segregao

    do seu meio cultural acanhado, o nosso Machado de Assis), que

    preparam o caminho para escritores como Proust, Joyce, Kafka,

    Pirandello, Gide. Nas obras de uns e outros, a dificuldade em

    descobrir a coerncia e a unidade dos sres vem refletida, de

    maneira por vzes trgica, sob a forma de incomunicabilidade nas

    relaes. ste talvez o nascedouro, em literatura, das noes de

  • 8/7/2019 Antonio Candido e Outros - A personagem de fico (doc)(rev)

    44/98

    verdade plural (Pirandello), de absurdo (Kafka), de ato gratuito (Gide),

    de sucesso de modos de ser no tempo (Proust), de infinitude do

    mundo interior (Joyce). Concorrem para isso, de modo direto ou

    indireto, certas concepes filosficas e psicolgicas voltadas para o

    desvendamento das aparncias no homem e na sociedade,

    revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e com

    relao ao seu meio. o caso, entre outros, do marxismo e da

    psicanlise, que, em seguida obra dos escritores mencionados,

    atuam na concepo de homem, e portanto de personagem, influindo

    na prpria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro.

    Essas consideraes visam a