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UMA HISTÓRIA DE

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Ano zero é um livro sobre o dramaque se seguiu ao hm da SegundaGuerra Mundial, em 1945. Umaera terminava, e outra, leita de novidadese incertezas, tinha início.Por toda a As ia — China, Coréia,Indochina, Filipinas e japão— e Europa continental, governoscaíram e novos regimes tomaram opoder. Das inúmeras disputas quesurgiram nesse momento, nasceu omundo atual.A escala da

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  • UMA HISTRIA DE

  • O novo e e legante livro de Ian B u ru m a ilu m in a um dos m om entos m ais im p o rtan tes da m odernidade: a p rim avera e o vero de 1945, im ediatam ente aps a S egunda G u erra M undia l.

    A norm alidade voltou n as dcadas aps a S egunda G uerra g raas b rav u ra e determ inao daqueles que su p e ra ram os h o rro re s de 1945. O livro de B u ru m a h o n ra seus esforos.

    Em anos recentes, h isto riado res tm m ostrado um a verso da S egunda G uerra M undial pouco edificante do ponto de v ista m oral, dos es tu p ro s com etidos po r soldados am ericanos n a F ra n a m orte desnecessria de civis alem es p o r bom bardeios aliados. O livro de B u ru m a sobre os vrios m odos como a S egunda G u erra p rejud icou m ilhes de pessoas e fez bem a quem no m erecia.

    F i m i l L TIMES

    THEECONOMIST

    THE HEU YORK TIMES

    ISBN 978-85-359-2541-8

  • Ano zero um livro sobre o drama que se seguiu ao hm da Segunda Guerra Mundial , em 1945. Uma era terminava, e outra, leita de no vidades e incertezas, tinha incio.

    Por toda a As ia China , C o ria, Indochina, Filipinas e japo e Europa continental, governos caram e novos regimes tomaram o poder. Das inmeras disputas que surgiram nesse momento , nasceu o mundo atual.

    A escala da transformao difcil de conceber. Grandes cidades estavam em runas, seus habitantes d i z i i n a d os, d esal o j a d os, I a m i 11 tos. Atos de vingana eram extremamente freqentes.

    Ao mesmo tempo, na esteira de perdas irreparveis, a euforia liberada foi indescritvel; os testejos, sem precedentes. Dos anos de ps- -guerra emergiram a Organizao

    das Naes Unidas, a descolonizao, a Unio Europia. Uma reeducao social, cultural e poltica loi imposta pelos vitoriosos t am bm em escala indita.

    Os direitos humanos e as novas formas de proto social garantidas pelo Estado,de bem-estar so apresentados como legados decisivos do perodo. O enloque abrangente de Buruma vai alm das particularidades nacionais: ele mostra como a tenso entre povos e gover-

  • nos7 nos diversos pases, deu origem a um sentido novo de respon

    sabilidade por parte dos Estados, que renovaram as relaes com seus cidados em termos mais humanos.

    Um trabalho de escopo imenso e centrado num drama humano de propores picas, capaz de abranger os dilemas da sia e da Europa com igual erudio, Ano zero um livro que apenas Ian Buruma poderia ter escrito. sua obra-prima.

    IAN BURUMA nasceu em Haia, em 1951. Foi educado na Holanda e no Japo e trabalhou como jornalista e autor de documentrios. Colabora com as publicaes The New York Review of Books, I he New York Times M agazine, The New Yorker e F in an cia l Tim es. Atualmente, professor no Bard College.

    www.ianburuma.com

  • 1. Meu pai, S. L. Buruma (o primeiro esquerda), com seus colegas estudantes em Utrecht.

  • 2. Soldados soviticos danando em Berlim.

    3. Garotas holandesas em celebrao com soldados canadenses.

  • 4. Marinheiros britnicos e suas namoradas no Dia da Vitria, em Londres.

    5. g i fraternizando com um a garota japonesa num parque, em Tquio.

  • 6. Cidados holandeses saudando os bombardeiros que lanam comida,

    em maio de 1945.

    7. Uma colaboradora horizonta' escarnecida por uma multido na Holanda.

    8. Gregos recebendo ajuda dos Aliados.

  • 9. Mulher sendo coberta de piche por colaboracionismo, em Amsterdam.

  • 10. Despiolhando um prisioneiro em Bergen-Belsen.

    11. Prisioneiros de guerra subalimentados num campo japons de

    prisioneiros de guerra na pennsula Malaia.

  • 12. O Exrcito britnico incendeia o ltimo barraco em Bergen-Belsen.

  • 14. Crianas refugiadas em Berlim.

  • 16. Mulheres gregas choram os mortos.

  • 17. Prisioneiros de guerra alemes cuidam de tmulos de soldados americanos perto da praia de Omaha, na Normandia.

  • 18. General do Exrcito alemo amarrado a uma estaca antes de sua execuo na Itlia.

    19. Crianas alems entram na classe, numa escola de Aachen.

  • 20. O general De Gaulle em Lorient, antiga base de submarinos alemes na Frana, severamente danificada pelas bombas aliadas.

    2 1 .0 general Yamashita jura dizer a verdade em seu julgamento, em Manila.

  • 22. Lavai presta testemunho em Paris no julgamento do marechal Ptain (sentado, direita, atrs de Lavai).

    23. O lder nacional-socialista holands Anton Mussert preso pela resistnciaholandesa em Haia.

  • 24. Japoneses rendem-se r a f em Saigon.

  • 25. Combatentes da liberdade indonsios.

    26. Winston Churchill em sua campanha pela reeleio.

  • 27. Clement Attlee aps sua vitria nas eleies.

  • IAN BURUMA

    Ano ZeroUma histria de 1945

    Traduo

    Paulo Geiger

    PTfof

    Companhia Das Letras

  • Copyright 2013 by Ian Buruma Todos os direitos reservados.

    Grafia atualizada segundo 0 Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Ttulo originalYear Zero: A History of 1945

    CapaClaudia Espnola de Carvalho

    Foto de capaUniversal Images Group/ Getty Images

    Preparao Alexandre Boide

    ndice remissivo Luciano Marchiori

    RevisoJane PessoaAna Maria Barbosa

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (c i p )(Cmara Brasileira do Livro, s p , Brasil)

    Buruma, IanAno Zero: Uma histria de 1945 / Ian Buruma; traduo Paulo

    Geiger. i*ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2015.

    Ttulo original: Year Zero: A History of 1945 is b n 978-85-359-2541-8

    1. Guerra Mundial, 1939-1945 - Influncias 2. Guerra Mundial, 1939-1945 - Paz 3. Histria moderna-1945*19891. Titulo.

    14-13320_________________________________ CPD-940.5309

    ndice para catlogo sistemtico:1. Guerra Mundial, 1939-1945 : Histria 940.5309

    [2015]Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ S.A.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo s p Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

  • H um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos esto escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da histria deve ter esse aspecto. Seu rosto est dirigido para o passado. Onde ns vemos uma cadeia de acontecimentos, ele v uma catstrofe nica, que acumula incansavelmente runa sobre runa e as dispersa a nossos ps. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraso e prende-se em suas asas com tanta fora que ele no pode mais fech-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de runas cresce at o cu. Essa tempestade o que chamamos progresso.

    Walter Benjamin, Sobre o conceito de histria.Obras escolhidas, v. i: Magia e tcnica, arte e poltica:

    Ensaios sobre literatura e histria da cultura

  • Sumrio

    Prlogo......................................................................................... 11

    P A R T E I: C O M P L E X O DE L IB E R T A O

    1. Regozijo.................................................................................. 272. Fome....................................................................................... 783. Vingana...............................................................................105

    P A R T E II: R E M O V E N D O O E N T U L H O

    4. A caminho de casa........................................................... 1755. Drenando o veneno..............................................................2236. O imprio da lei....................................................................265

    P A R T E III: N U N C A M A IS

    7. Um luminoso e confiante alvorecer....................................3118. Civilizando os brutos........................................................... 3539. Um mundo s.......................................................................393

  • Eplogo.......................................................................................427

    Agradecimentos........................................................431Notas.................................................................... 433Crditos das imagens................................................. 451ndice remissivo........................................................453

  • Prlogo

    Havia algo na histria de meu pai que me deixou intrigado durante muito tempo. Sua experincia na Segunda Guerra Mundial no fora particularmente incomum para um homem de sua idade e condio. H muitas histrias piores, embora a sua j tenha sido bastante ruim.

    Eu era muito jovem quando ouvi meu pai falar da guerra pela primeira vez. Ao contrrio de algumas pessoas, ele no era reticente quanto a isso, ainda que algumas memrias devessem ser dolorosas quando evocadas. E eu gostava de ouvi-las. Havia tambm uma espcie de acompanhamento grfico de vrios aspectos do relato, proporcionado por pequenas fotos em preto e branco enfiadas num lbum que resgatei de uma gaveta em seu escritrio, para meu deleite particular. No eram imagens dramticas, mas eram estranhas o bastante para me fazer refletir: um precrio alojamento de trabalhadores no leste de Berlim, meu pai fazendo uma careta grotesca para sabotar uma fotografia oficial, alemes com aparncia formal usando te rnos adornados com o emblema nazista, excurses dominicais

  • num lago suburbano, jovens ucranianas louras sorrindo para o fotgrafo.

    Esses foram os tempos relativamente bons. Confraternizar com ucranianos com certeza era proibido, mas a lembrana daquelas mulheres ainda produzia um brilho melanclico nos olhos de meu pai. No h fotos dele quase morrendo de fome e de exausto, atormentado por insetos e vermes, usando uma cratera de bombardeio inundada como latrina e como nica fonte de banho disponvel. Mas no foram essas penrias que me incomodaram. Foi algo que aconteceu mais tarde, depois que ele voltou para casa.

    Sua casa era a cidade de Nijmegen, no leste da Holanda, localidade de maioria catlica onde ocorreu a batalha de Arnhem, em 1944. Nijmegen foi tomada pelos Aliados depois de pesados combates, e Arnhem era o alvo inatingvel. Meu av tinha sido enviado para l em 1920 como ministro protestante para cuidar de uma pequena comunidade de menonitas.* Nijmegen u m a cidade de fronteira. Era possvel ir Alemanha a p da casa de meu pai. Como as coisas na Alemanha eram relativamente baratas, a maior parte dos feriados em famlia era desfrutada do outro lado da fronteira, at que a presena nazista tornou-se insuportvel para turistas, por volta de 1937. Ao passar um dia por um acampamento da Juventude Hitlerista, minha famlia testemunhou uma cena em que alguns meninos eram espancados de forma severa por jovens uniformizados. Num passeio de barco

    * Para evitar confuso, devo mencionar que os menonitas holandeses so muito diferentes de seus pares americanos. Os menonitas holandeses tendem a ser bastante progressistas, abertos a outras crenas e nem um pouco reclusos. So o oposto dos menonitas americanos e alemes, que, com suas figuras barbadas e seus temos pretos e antiquados, causaram certo grau de estranheza quando apareceram numa visita formal a meu av, em Nijmegen.

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  • pelo Reno, meu av causou (talvez deliberadamente) embarao entre os passageiros alemes recitando a ode potica de Heinrich Heine s donzelas do Reno, Lorelei (A sereia). (Heine era judeu.) Minha av ento decidiu que era hora de se afastar. Trs anos depois chegaram as tropas alems, irrompendo atravs da fronteira.

    A vida continuou, mesmo sob ocupao. Para a maioria do povo holands, contanto que no fossem judeus, tudo continuou estranhamente normal, ao menos no primeiro ou nos dois primeiros anos. Meu pai entrou na Universidade de Utrecht em 1941, onde estudou direito. Para ter um futuro como advogado, era (e em certa medida ainda ) imperioso tornar-se membro da fraternidade, como se costuma chamar a corporao estudantil, uma instituio exclusiva e muito dispendiosa. Como pastor protestante, embora ocupasse uma posio socialmente respeitvel, meu av no ganhava o suficiente para pagar todas as contas de meu pai. Assim, um tio materno de um lado mais abastado da famlia decidiu subsidiar as obrigaes sociais de meu pai.

    No entanto, na poca em que meu pai chegou ao ensino superior, as fraternidades de estudantes j tinham sido banidas pelas autoridades alems como nichos potenciais de resistncia. Isso foi logo aps os professores judeus terem sido expulsos das universidades. Em Leyden, o reitor da faculdade de direito, Rudolph Cleveringa, protestou contra essa medida num clebre discurso, j carregando consigo uma escova de dente e uma muda de roupa para o caso de ser preso, o que efetivamente aconteceu. Os estudantes, muitos deles pertencentes corporao estudantil, entraram em greve. Leyden foi fechada. A fraternidade em Amster- dam j havia sido dissolvida por seus prprios membros depois que os alemes baniram os estudantes judeus.

    Mas Utrecht continuou aberta, e a fraternidade se mantinha em atividade, embora subterraneamente. Isso queria dizer que os

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  • brutais rituais de trote para novos estudantes tinham de ser conduzidos em segredo. Os estudantes do primeiro ano, conhecidos na corporao como fetos, no eram mais obrigados a raspar a cabea, pois isso os entregaria aos alemes, mas ainda era costume fazer os fetos andar aos saltos como sapos, priv-los do sono, trat-los como escravos e humilh-los numa variedade de brincadeiras sdicas, de acordo com o que desse na telha dos veteranos. Meu pai, como outros de sua classe e formao, submeteu-se a esse suplcio sem protestar. Assim eram (e ainda so) as coisas. Era mos (o costume), como eles de maneira bem pedante denominavam em latim.

    No incio de 1943, os jovens foram submetidos a outro teste, bem mais srio. As foras de ocupao alems ordenaram que todos os estudantes assinassem um voto de lealdade, jurando eximir-se de qualquer ao contra o Terceiro Reich. Os que se recusassem seriam deportados para a Alemanha e obrigados a trabalhar para a indstria blica nazista. Assim como 85% de seus colegas, meu pai recusou-se e passou a viver escondido.

    Mais tarde, no mesmo ano, recebeu um chamado da resistncia estudantil em Utrecht para que voltasse cidade. O motivo disso permanece obscuro. Talvez um erro estpido, cometido num momento de pnico, ou ento s um caso clssico de incompetncia; afinal, eram estudantes, e no empedernidos combatentes de guerrilha. Meu pai chegou estao com meu av. Infelizmente, os nazistas tinham escolhido aquele mesmo momento para arrebanhar jovens que iriam trabalhar na Alemanha. A plataforma foi bloqueada nos dois lados pela polcia alem. Fizeram ameaas de que os pais seriam considerados responsveis por eventuais fugas. Preocupado em no causar problemas para a famlia, meu pai assinou. Foi um ato de altrusmo, mas no especialmente heroico, cuja lembrana ainda o incomoda de vez em quando. Ele foi transportado, com outros homens, para um

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  • pequeno e horroroso campo de concentrao, onde capangas holandeses eram treinados pela ss nas tcnicas selvagens de seu mtier. Aps um breve perodo ali, meu pai passou o resto da guerra trabalhando numa fbrica em Berlim, produzindo freios para composies ferrovirias.

    No foi uma experincia detestvel, ao menos no comeo. Caso no resistissem ativamente aos alemes, os estudantes holandeses que trabalhavam l no eram confinados em campos de concentrao. O tdio do trabalho na fbrica, a vergonha de estar trabalhando para o inimigo e os desconfortos fsicos de dormir em barraces gelados e infestados tinham at suas compensaes. Meu pai se recorda de ter assistido a concertos da Filarmnica de Berlim regida por Wilhelm Furtwngler.

    As coisas na fbrica de freios Knorr tambm podiam no ser exatamente o que pareciam. Um homem taciturno de cabelos pretos chamado Herr Elisohn tendia a se esquivar quando dele se aproximavam os estudantes holandeses, e havia outros que evitavam muito contato, homens com nomes como, por exemplo, Rosenthal. Muito mais tarde, meu pai conjecturou que a fbrica podia estar escondendo judeus.

    As coisas ficaram bem piores em novembro de 1943, quando a Fora Area Real (r a f , na sigla em ingls) iniciou sua longa campanha de bombardeio na capital alem. Em 1944, aos Lancas- ters da r a f juntaram-se os B-17 americanos. Mas a destruio total de Berlim, e de seu povo, comeou realmente nos primeiros meses de 1945, quando bombas e incndios em grande escala eram mais ou menos constantes. Os americanos atacavam durante o dia, os britnicos durante a noite, e em abril os rgos de Stlin* passaram a fustigar a cidade a partir do leste.

    * Referncia s katichas, lanadores mtliplos de foguetes utilizados pelo Exrcito Vermelho. (N. T.)

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  • s vezes os estudantes conseguiam se espremer em abrigos antiareos, privilgio que no era permitido aos prisioneiros em campos de concentrao. s vezes uma trincheira cavada apressadamente era sua nica proteo contra os ataques e bombardeios, os quais, na lembrana de meu pai, os estudantes ao mesmo tempo saudavam e temiam. Um dos piores tormentos era a falta de sono, pois o bombardeio areo e de artilharia na realidade nunca se interrompia. Havia o barulho constante de sirenes, exploses, gritos e do desmoronar e estilhaar de alvenaria e vidro. Mesmo assim, os estudantes aplaudiam os bombardeiros anglo-americanos que to facilmente poderiam mat-los, o que em alguns casos de fato aconteceu.

    Em abril de 1945, o alojamento de trabalhadores tornou-se inabitvel: telhados e paredes tinham sido varridos por vento e fogo. Atravs de um contato, possivelmente feito por meio de uma das menos nazifcadas igrejas protestantes, meu pai encontrou refugio numa quinta suburbana. Sua senhoria, Frau Lenhard, j tinha recebido vrios outros refugiados das runas de Berlim central. Entre eles havia um casal alemo, dr. Rmmelin, um advogado, e a esposa judia. Sempre com medo de que ela fosse presa, o marido mantinha em casa um revlver, para que pudessem morrer juntos se isso viesse a acontecer. Frau Lenhard gostava de cantar lieder alemes. Meu pai a acompanhava ao piano. Era, nas palavras dele, uma rara reminiscncia da civilizao em pleno caos da batalha final de Berlim.

    A caminho do trabalho no leste de Berlim, meu pai passava pelas ruas em runas onde tropas soviticas e alems combatiam de casa em casa. Na Potsdamer Platz, ele ficou atrs dos rgos de Stlin que bombardeavam a chancelaria de Hitler, com seu sinistro e azucrinante barulho. Disso lhe adveio um horror permanente a grandes exploses e fogos de artifcio.

    Em algum momento de fins de abril, ou talvez incio de maio

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  • de 1945, soldados soviticos chegaram casa de Frau Lenhard. Visitas como essa comumente implicavam estupro de mulheres, no importava quo velhas ou jovens elas fossem. Isso no aconteceu. Mas meu pai quase perdeu a vida quando o revlver do dr. Rmmelin foi descoberto. Nenhum dos soldados falava uma palavra de ingls ou alemo, o que tornou inteis as tentativas de explicao sobre o motivo da presena da arma. Os dois homens na casa, o dr. Rmmelin e meu pai, foram encostados numa parede para serem executados. Meu pai lembra-se de se ter reagido a isso de maneira fatalista. quela altura ele havia presenciado tantas mortes que seu prprio e iminente fim no lhe veio como uma surpresa. Mas ento, por um desses caprichosos lances de sorte que fazem a diferena entre vida e morte, apareceu um oficial russo que falava ingls. Ele resolveu acreditar na histria do dr. Rmmelin. O fuzilamento foi cancelado.

    Estabeleceu-se uma certa conexo entre meu pai e outro oficial sovitico, um professor de ensino mdio de Leningrado. Eles se comunicavam cantarolando trechos de Beethoven e de Schu- bert, pois no havia nenhuma lngua em comum que os dois falassem. Esse oficial, chamado Valentin, levou-o a um ponto de triagem em algum lugar dos escombros daquilo que costumava ser um subrbio da classe trabalhadora no oeste de Berlim. De l meu pai teria de encontrar um caminho para um campo de deslocados de guerra no leste da cidade. Em seu percurso atravs das runas, juntou-se a ele outro holands, possivelmente um colaborador dos nazistas, ou ex-membro da ss. Como j fazia vrias semanas que meu pai no se alimentava ou dormia de maneira adequada, ele quase no conseguia andar.

    Antes que chegassem muito longe, meu pai desfaleceu. Seu duvidoso companheiro de jornada o arrastou at um prdio destrudo no qual sua namorada, uma prostituta alem, vivia num quarto vrios lances de escada acima. Meu pai no se lembrava do

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  • que acontecera depois; provavelmente ficou inconsciente na maior parte do tempo. Mas a prostituta salvou sua vida, alimentando-o e deixando-o num estado que lhe permitiu chegar ao campo de deslocados, onde mais de mil pessoas de todas as nacionalidades, inclusive sobreviventes de campos de concentrao, tinham de se virar com a gua de uma nica torneira.

    Numa fotografia de meu pai tirada na Holanda mais de seis meses depois, ele ainda parece inchado de um edema causado pela fome. Est vestindo um terno que no corresponde s suas medidas. Talvez fosse um que recebera de uma organizao de caridade menonita dos Estados Unidos, com manchas de urina nas calas. Ou talvez fosse um que restara de seu pai. Mas, embora atarracado e um pouco plido, na fotografia meu pai parece estar bem alegre, cercado por outros homens de sua idade, erguendo suas canecas de cerveja, as bocas bem abertas, celebrando, ou cantando alguma cano de estudante.

    Ele estava de volta sua fraternidade de Utrecht. Devia ser setembro de 1945. Meu pai tinha 22 anos. Como os rituais de iniciao para a fraternidade tinham ocorrido em segredo em tempo de guerra, fora decidido pelos lderes da entidade que teriam de ser realizados de novo. Meu pai no se lembra de ter saltado como um sapo, ou de ter sido severamente molestado. Esse tipo de tratamento era reservado a rapazes mais jovens, recm-chegados universidade, alguns deles talvez vindos de campos de prisioneiros ainda piores que o de meu pai. Talvez houvesse estudantes judeus entre eles, escondidos durante anos debaixo do assoalho das casas de corajosos gentios dispostos a arriscar o pescoo. Mas meu pai no se lembra de ningum que tenha ficado especialmente preocupado com coisas desse tipo; ningum estava interessado em histrias pessoais, e isso no valia s para os judeus; todos tinham experincias a narrar, na maioria desagradveis. Como parte da iniciao na fraternidade, os novos fetos eram

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  • alvo de gritos, humilhaes, e chegavam a ser espremidos em minsculas celas (um ritual que mais tarde foi conhecido nos crculos da fraternidade como brincar de Dachau).

    E foi isso que me deixou intrigado. Como pde meu pai contemporizar com um comportamento to grotesco depois de tudo por que tinha passado? No estranho, peculiar, para dizer o mnimo?

    Meu pai sempre dizia que no. Para ele, parecia tudo normal. Era assim que se faziam as coisas. Era mos. Ningum questionava. Ele mais tarde explicou melhor essa postura, dizendo que teria achado indecoroso molestar um sobrevivente judeu, mas que no podia falar pelos outros.

    Isso me deixou intrigado, porm, gradualmente, creio que acabei entendendo. A ideia de que isso era normal, parece-me, era a chave da questo. As pessoas estavam to desesperadas para retornar ao mundo que tinham conhecido antes da ocupao nazista, antes das bombas, dos campos de prisioneiros e dos assassinatos, que azucrinar os fetos parecia uma coisa normal. Era uma forma de voltar ao jeito que as coisas eram, supostamente uma maneira de estar de novo em casa.

    H outras possibilidades. Talvez, para homens que tinham testemunhado grandes violncias, as brincadeiras de estudantes parecessem inofensivas o bastante, meras travessuras da juventude. mais provvel, porm, que os mais entusiasmados em perseguir os calouros fossem aqueles que no houvessem passado por tais experincias. Aqui eles tinham uma oportunidade de agir com dureza, prazer que seria sentido mais profundamente se as vtimas fossem pessoas que tivessem passado por muito mais do que isso.

    A histria de meu pai como j disse, no to ruim quanto tantas outras, mas assim mesmo bem ruim foi o que me deixou

    19

  • curioso sobre o que aconteceu logo aps a guerra mais devastadora da histria humana. Como o mundo emergiu dos destroos? O que acontece quando milhes esto passando fome, ou dispostos a uma vingana sangrenta? Como se reorganizam novamente sociedades, ou a civilizao (termo popular na poca)? O desejo de recobrar um sentido de normalidade uma reao muito humana catstrofe; humana e fantasiosa. Porque a ideia de que era possvel simplesmente restaurar o mundo para que voltasse a ser como antes da guerra como se uma dcada mortfera, que comeara bem antes de 1939, pudesse ser descartada tal qual uma memria ruim era sem dvida uma iluso.

    No entanto, foi uma iluso mantida tanto pelos governos como pelos indivduos. Os governos francs e holands pensaram que suas colnias poderiam ser recuperadas, e a vida retomada como era antes de os japoneses invadirem o Sudeste da sia. Mas era s isso, uma iluso. Pois o mundo no poderia voltar a ser o mesmo. Muita coisa tinha acontecido, muita coisa tinha mudado, pessoas demais, at sociedades inteiras, haviam sido desarraigadas. E muitas pessoas, inclusive muitos governos, no queriam que o mundo voltasse a ser o que tinha sido. Trabalhadores britnicos, que arriscaram a vida pelo rei e pelo pas, no estavam mais dispostos a viver no velho sistema de classes, e com seu voto depuseram Winston Churchill apenas dois meses aps a derrota de Hitler. Issif Stlin no mostrava inteno de deixar que a Polnia, a Hungria ou a Tchecoslovquia restaurassem qualquer tipo de democracia liberal. Mesmo na Europa Ocidental, muitos intelectuais viam no comunismo, envolto na aconchegante vestimenta moral do antifascismo, uma alternativa mais vivel do que a velha ordem.

    Na sia, a incipiente mudana era ainda mais drstica. Depois de indonsios, vietnamitas, malaios, chineses, birmane- ses, indianos e outros terem visto como uma nao asitica pde humilhar senhores coloniais do Ocidente, a noo da onipotncia

    20

  • ocidental estava destruda para sempre, e as relaes nunca poderiam voltar a ser o que foram antes da guerra. Ao mesmo tempo, os japoneses, assim como os alemes, tendo visto os sonhos de vangloria de seus lderes virar cinzas, estavam receptivos a mudanas, que eram em parte incentivadas e em parte impostas pelos Aliados vitoriosos que ocupavam seu territrio.

    As mulheres britnicas e americanas, que as circunstncias da guerra tinham introduzido na fora de trabalho, no estavam mais to dispostas a trocar sua independncia econmica pela subservincia domstica. Muitas ainda o fizeram, claro, assim como levou certo tempo para que as colnias conquistassem sua independncia total. O desejo conservador de voltar ao normal sempre estar em oposio ao desejo de mudana, de comear de novo do zero, de construir um mundo melhor, onde as guerras devastadoras no mais aconteam. Essas esperanas inspiravam-se num idealismo autntico. O fato de a Liga das Naes ter falhado em evitar uma (segunda) guerra mundial no tolhia o idealismo daqueles que esperavam, em 1945, que a Organizao das Naes Unidas mantivesse a paz para sempre. O fato de que tais ideais, com o decorrer do tempo, se mostrassem to ilusrios quanto a ideia de que era possvel fazer o relgio andar para trs no diminui seu poder nem deprecia seu propsito.

    A histria do ps-guerra em 1945 , em alguns aspectos, uma narrativa bem velha. Os antigos gregos conheciam a fora destrutiva da sede humana por vingana, e seus autores de tragdias dramatizavam maneiras pelas quais conflitos de sangue podiam ser superados pela prevalncia da lei; julgamentos em lugar de vendetas. E a histria, no Oriente no menos que no Ocidente, est abarrotada de sonhos de recomear, de encarar as runas da guerra como um terreno para a construo de sociedades baseadas em novos ideais, que muitas vezes no so to novos quanto pensam as pessoas.

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  • Meu prprio interesse no perodo imediato do ps-guerra foi despertado em parte pelos acontecimentos atuais. Nos anos mais recentes temos visto diversos exemplos de grandes esperanas depositadas em guerras revolucionrias para depor ditadores e estabelecer novas democracias. Mas, principalmente, eu queria recuar no tempo para entender o mundo de meu pai e sua gerao. Talvez um pouco pela curiosidade natural de um filho quanto experincia vivida por um de seus familiares mais prximos, curiosidade que cresce ainda mais quando o filho fica mais velho do que era o pai naquela poca. Essa curiosidade especialmente aguda porque o pai foi testado por situaes que o filho mal capaz de imaginar.

    Mas isso no explica tudo. O mundo que meu pai ajudou a criar das runas de uma guerra que to perto esteve de mat-lo o mundo no qual crescemos. Minha gerao foi alimentada pelos sonhos de nossos pais: o modelo europeu de Estado de bem-estar social e prosperidade, a Organizao das Naes Unidas, a democracia norte-americana, o pacifismo japons, a Unio Europia. E h tambm o lado escuro do mundo formado em 1945: a ditadura comunista na Rssia e na Europa Oriental, a ascenso de Mao na guerra civil chinesa, a Guerra Fria.

    Grande parte desse mundo de nossos pais j foi desmantelada ou est rapidamente se desfazendo. Na verdade, em quase todo lugar atingido pela ltima guerra mundial a vida hoje muito melhor do que em 1945; em termos materiais, sem dvida nenhuma. Algumas das coisas que as pessoas mais temiam no chegaram a acontecer. O imprio sovitico caiu. Os ltimos redutos da Guerra Fria esto na pennsula coreana, ou possivelmente nos estreitos de Taiwan. Contudo, como j escrevi, em toda parte as pessoas falam do declnio do Ocidente, tanto dos Estados Unidos como da Europa. Se alguns dos temores do perodo imediato do ps-guerra desvaneceram, o mesmo vale para muitos de seus

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  • sonhos. Poucos ainda acreditam que uma paz eterna h de vir de uma espcie de governo mundial, ou mesmo que as Naes Unidas possam proteger o mundo de conflitos. As esperanas de uma social-democracia e de um Estado de bem-estar social o verdadeiro motivo da derrota de Churchill em 1945 foram gravemente comprometidas, se no esmagadas, por ideologias e coer- es econmicas.

    Pessoalmente, encaro com ceticismo a noo de que podemos aprender muita coisa com a histria, pelo menos no sentido de que o conhecimento dos desatinos do passado nos impedir de cometer os mesmos erros crassos. A histria , toda ela, matria de interpretao. Com frequncia as interpretaes equivocadas do passado so mais perigosas do que seu desconhecimento. Lembranas de antigas feridas e dios engendram novas conflagraes. Mesmo assim, importante saber o que j aconteceu, e tentar encontrar nisso algum sentido. Porque, se no o fizermos, no poderemos compreender nossa prpria poca. Eu quis saber o que meu pai enfrentou e viveu porque isso me ajuda a compreender minha prpria existncia e na verdade a de todas as pessoas sombra longa e escura daquilo que houve antes de ns.

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  • PARTE I

    COMPLEXO DE LIBERTAO

  • i . Regozijo

    Quando as tropas aliadas libertaram na Alemanha os milhes de prisioneiros do derrotado Reich de Hitler em campos de concentrao, campos de trabalhos forados, campos de prisioneiros de guerra , esperavam encontr-los dceis, devidamente agradecidos e felizes em colaborar como pudessem com seus libertadores. Em alguns casos, sem dvida, foi isso que aconteceu. Muitas vezes, no entanto, eles depararam com o que se tornou conhecido como complexo de libertao. Nas palavras um tanto burocrticas de uma testemunha ocular: Isso envolvia um sentimento de vingana, fome e regozijo, caractersticas que, combinadas, faziam dos refugiados, quando recm-libertados, um problema em termos de comportamento e conduta, assim como de cuidados, alimentao, desinfeco e repatriao.1

    O complexo de libertao no se limitava aos internos nos campos de refugiados; a expresso poderia ser empregada para descrever pases inteiros, e at mesmo, em certos aspectos, as naes derrotadas na guerra.

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  • Nasci muito tempo depois, num pas demasiadamente prspero, para perceber os efeitos da fome. Mas havia ainda, embora dbeis, ecos do sentimento de vingana e de regozijo. A vingana contra pessoas que tinham colaborado com o inimigo ou, pior, dormido com ele, continuava a ser exercida de maneira silenciosa, quase sub-reptcia, na maioria das vezes num nvel muito baixo. No se compravam mantimentos em determinados estabelecimentos, ou cigarros em outro, pois todos sabiam que seus donos tinham procedido mal durante a guerra.

    O regozijo, por outro lado, foi institucionalizado na Holanda, transformado num ritual anual: o dia 5 de maio, Dia da Libertao.

    Pelo que me lembro de minha infncia, o sol sempre brilhava em 5 de maio, com os sinos das igrejas a repicar, e bandeiras com vermelho, azul e branco drapejando na leve brisa primaveril. O dia 5 de dezembro, festa de so Nicolau, talvez constitua um evento familiar maior, mas o Dia da Libertao o grande espetculo da alegria patritica, ou ao menos era quando eu era criana, nas dcadas de 1950 e 1960. Como os holandeses no se libertaram sozinhos em 5 de maio de 1945, e sim foram libertados da ocupao alem por tropas canadenses, britnicas, americanas e polonesas, a exploso anual de orgulho patritico um tanto estranha. Mas, uma vez que os holandeses, assim como os americanos e os britnicos, gostam de acreditar que sua identidade nacional se define pela liberdade, faz sentido que a derrota alem se confunda na conscincia nacional com a memria coletiva de terem derrotado a Coroa espanhola na Guerra dos Oitenta Anos, durante os sculos xv i e xv n .

    Lgrimas de emoo afloram facilmente nos olhos de algum de minha gerao, nascido apenas seis anos aps a guerra, quando depara com imagens de escoceses tocando suas gaitas de fole enquanto enfrentam o fogo de metralhadoras numa praia da Normandia, ou de cidados franceses cantando a Marselhesa,

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  • imagens que no vm, claro, de nossas prprias memrias, e sim de filmes de Hollywood. Mas presenciei um pouco desse antigo regozijo, exatamente cinqenta anos aps 5 de maio de 1945, quando, para comemorar a data, foi reencenada a entrada de soldados do Exrcito canadense em Amsterdam. O fato de as tropas aliadas na verdade s terem chegado a Amsterdam em 8 de maio no tem mais tanta importncia. A ocasio original deve ter sido extraordinria. No relato de um correspondente de guerra britnico que estava l: Fomos beijados, aclamados, abraados, amassados, gritavam e berravam para ns at ficarmos machucados e exaustos. Os holandeses saquearam seus jardins, e a chuva de flores que caiu sobre os veculos aliados no teve fim.2

    Cinqenta anos depois, canadenses idosos com medalhas espetadas em suas fardas de combate apertadas e desbotadas entraram mais uma vez na cidade em seus velhos jipes e carros blindados, saudando as multides com lgrimas nos olhos, lembrando os dias em que eram reis, sobre os quais seus netos j esta- vam cansados de ouvir, dias de regozijo antes que os heris de guerra se estabelecessem em Calgary ou Winnipeg para se tornarem dentistas ou contadores.

    O que me impactou mais do que aqueles senhores revivendo seus melhores dias foi o comportamento de holandesas idosas, vestidas como as respeitveis matronas que sem dvida elas eram. Essas mulheres estavam num estado de exaltao, uma espcie de xtase adolescente, gritando como garotas num show de rock, estendendo os braos para os homens em seus jipes, tentando tocar suas fardas. Obrigada! Obrigada! Obrigada! No conseguiam se conter. Para elas, tambm, era momento de reviver suas horas de regozijo. Foi uma das cenas erticas mais esquisitas que j presenciei.

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  • Com efeito, como citado, os canadenses no chegaram a Amsterdam em 5 de maio, nem a guerra estava oficialmente terminada nessa data. verdade que, em 4 de maio, o grande almirante Hans-Georg von Friedeburg e o general Eberhard Hans Kinzel tinham vindo tenda do marechal de campo Bernard Montgomery (Monty), na charneca de Lneburg, para assinar a rendio das foras alems no noroeste da Alemanha, na Holanda e na Dinamarca. Um jovem oficial do Exrcito britnico chamado Brian Urquhart viu passar os alemes em suas Mercedes-Benz por uma estrada rural em direo ao quartel-general de Monty. No muito tempo antes disso, ele tinha sido um dos primeiros oficiais aliados a entrar num campo de concentrao prximo dali, o de Bergen-Belsen, onde a maioria dos prisioneiros libertados parecia no ser capaz de emitir uma fala articulada, mesmo que supostamente encontrssemos uma linguagem comum. O que ele distncia pensou serem achas de lenha eram na verdade pilhas de cadveres, at onde a vista alcanasse.3 Quando o almirante Von Friedeburg, ainda vestindo um esplndido casaco de couro, foi confrontado alguns dias depois com um relato americano das atrocidades cometidas pela Alemanha, tomou isso como um insulto a seu pas e ficou enfurecido.

    Em 6 de maio, houve outra cerimnia numa fazenda semi- destruda perto de Wageningen, onde o general Johannes Blasko- witz rendeu suas tropas ao general de diviso canadense Charles Foulkes. Pouco tinha sobrado de Arnhem depois de ter sido arrasada por um bombardeio em setembro de 1944, quando tropas britnicas, americanas e polonesas tentavam abrir caminho atravs da Holanda, num desastre militar conhecido como Operao Market Garden. Uma das pessoas que previram que o desastre se aproximava foi Brian Urquhart, ento oficial da inteligncia a servio de um dos principais planejadores da operao, o general F. A. M. Boy Browning, um homem arrojado e com muito san

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  • gue nas mos. Quando Urquhart mostrou a seu comandante a evidncia fotogrfica de que brigadas de tanques alems estavam esperando nos arredores de Arnhem para repelir os Aliados, recebeu ordens para tirar uma licena mdica. Ningum, e certamente no um oficial de inteligncia de baixo escalo, teria permisso para estragar a festa de Monty.*

    Mas a guerra ainda no tinha acabado, nem mesmo na Holanda. Em 7 de maio, multides reuniram-se na praa Dam, no centro de Amsterdam, em frente ao Palcio Real, celebrando, danando, cantando, agitando a bandeira laranja da famlia real holandesa, antecipando-se chegada das vitoriosas tropas britnicas e canadenses, que era iminente. Observando a feliz aglomerao de uma janela de um clube para cavalheiros na praa, oficiais navais alemes decidiram num impulso de ltimo momento atirar na multido com uma metralhadora montada no telhado. Vinte e duas pessoas morreram e mais de cem foram gravemente feridas.

    Essa tampouco foi a ltima ao violenta da guerra. Em 13 de maio, mais de uma semana aps o Dia da Libertao, dois homens foram executados. Eram alemes antinazistas que tinham desertado do Exrcito alemo e se escondido entre os holandeses. Um tinha me judia. Eles saram de seus esconderijos em 5 de maio e se entregaram a membros da resistncia holandesa, que os entregaram aos canadenses. Foram ento vtimas de uma trapalhada tpica de tempos de guerra. Quando Montgomery aceitou a rendio alem, em 4 de maio, no havia na Holanda tropas aliadas suficientes para desarmar os nazistas ou alimentar os prisioneiros de guerra. Por ora, permitiu-se que os oficiais alemes con

    * De fato, em seus estgios de planejamento, a operao foi comumente referida como a festa. Um dos mais famosos oficiais na batalha de Arnhem, o coronel John Frost, tinha at pensado em mandar trazer seus tacos de golfe para a Holanda.

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  • tinuassem a comandar seus homens. Os dois infelizes desertores alemes foram alocados entre outros compatriotas numa fbrica da Ford desativada nos arredores de Amsterdam. Uma corte militar foi improvisada s pressas por oficiais desejosos de exercer sua autoridade pela ltima vez, e os homens foram condenados morte. Os alemes pediram aos canadenses as armas para executar os traidores. Os canadenses, sem saber de fato quais eram as regras e sem querer comprometer aquela acomodao temporria, aceitaram. Os homens foram prontamente executados. Ao que tudo indica, outros tiveram a mesma sina, at que os canadenses, um tanto tarde demais, pusessem fim a essas prticas.4

    A data oficial do fim da guerra na Europa, o v - e Day, ou Dia da Vitria na Europa, na verdade 8 de maio. No obstante a rendio incondicional de todas as tropas alems ter sido assinada numa escola em Rheims na noite de 6 de maio, as comemoraes ainda no podiam comear. Stlin estava furioso com o fato de o general Eisenhower ter presumido que podia aceitar a rendio da frente oriental junto com a da frente ocidental, pois esse privilgio deveria caber aos soviticos, e em Berlim Stlin quis adiar o Dia da Vitria para 9 de maio. Isso, por sua vez, deixou Churchill aborrecido.

    Em toda a Gr-Bretanha as pessoas j se ocupavam em assar po para os sanduches da comemorao; bandeiras e estandartes tinham sido preparados; os sinos das igrejas esperavam para ser repicados. Em meio confuso geral, foram os alemes que primeiro anunciaram o fim da guerra numa transmisso radiofnica a partir de Flensburg, onde o almirante Dnitz ainda comandava oficialmente o que restava do esfarrapado Reich alemo. O informe foi captado pela b b c . Edies especiais dos jornais franceses, britnicos e americanos logo chegaram s ruas. Em Londres, grandes multides se reuniram no entorno de Piccadilly Circus e Trafalgar Square, esperando que Churchill anunciasse a

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  • vitria para que a maior festa da histria pudesse finalmente comear. Em Nova York, tinha incio uma chuva de papel picado. Mas ainda no havia o anncio oficial dos governantes aliados de que a guerra com a Alemanha tinha terminado.

    Pouco antes da meia-noite de 8 de maio, no quartel-general sovitico em Karlshorst, perto do antigo campo de trabalhos forados de meu pai, o marechal Georgi Zhukov, o brutal gnio militar, por fim aceitou a rendio alem. Uma vez mais, o almirante Von Friedeburg ps sua assinatura na derrota alem. O marechal de campo Wilhelm Keitel, sem exprimir emoo nenhuma no rosto, um rgido soldado prussiano da cabea aos ps, disse aos russos que estava horrorizado com a extenso da destruio imposta capital alem. Ao que um oficial russo perguntou a Keitel se havia ficado igualmente horrorizado quando, por suas ordens, milhares de aldeias e cidades soviticas tinham sido arrasadas, e milhes de pessoas, inclusive muitas crianas, ficaram soterradas sob as runas. Keitel deu de ombros e no disse nada.5

    Zhukov pediu ento aos alemes que se retirassem, e os russos, juntamente com seus Aliados americanos, britnicos e franceses, comemoraram em grande estilo, com olhos marejados e enormes quantidades de vinho, conhaque e vodca. No dia seguinte, realizou-se um banquete na mesma sala, quando Zhukov num brinde saudou Eisenhower como um dos maiores generais de todos os tempos. Os brindes continuaram, e os generais russos, inclusive Zhukov, danaram at que poucos restassem de p.

    Em 8 de maio, as multides j estavam alucinadas em Nova York. As ruas em Londres tambm estavam lotadas, mas um silncio peculiar ainda reinava nas multides londrinas, como se estivessem esperando ouvir a voz de Churchill para dar incio s comemoraes. Churchill, que tinha decidido ignorar o desejo de Stlin de adiar o Dia da Vitria para o dia 9, ia fazer um pronun

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  • ciamento s trs horas da tarde. O presidente Truman j tinha feito o seu mais cedo. O general Charles de Gaulle, recusando-se a perder os holofotes para Churchill, insistira em fazer seu anncio aos franceses exatamente no mesmo momento.

    A fala de Churchill na b b c foi ouvida pelo rdio no mundo inteiro. J no havia espao nem para se mexer na Parliament Square, junto a Westminster, onde tinham sido instalados os alto-falantes. Pessoas espremiam-se de encontro s grades do Palcio de Buckingham. Os carros no conseguiam passar pelas multides no West End. O Big Ben soou trs vezes. A multido calou-se, e finalmente a voz de Churchill irrompeu nos alto-falantes: A guerra com a Alemanha chega pois ao fim [...] quase o mundo inteiro se uniu contra os agentes do mal, que agora esto prostrados diante de ns [...]. Temos agora de dedicar toda a nossa fora e nossos recursos para completar nossa tarefa, tanto em casa quanto no exterior.... Aqui sua voz ficou embargada: Avante Britnia! Longa vida causa da liberdade! Deus salve o rei. Pouco depois ele fez o sinal do V da vitria na sacada do Ministrio da Sade. Deus os abenoe a todos. Esta vitria de vocs! E a multido gritou de volta: No, ela sua!.

    O Daily Herald relatou:

    Houve fantsticas cenas de tumultuadas comemoraes no corao da cidade, quando multides incontrolveis a clamar, a danar e a rir cercaram nibus, pularam no teto dos carros, arrancaram tapumes para fazer fogueiras, beijaram policiais e os arrastaram para a dana [...]. Motoristas faziam soar suas buzinas com o sinal em cdigo Morse do V da vitria. No rio, barcaas e navios faziam o eco e o eco do eco da noite com o V da vitria em suas sirenes.

    Em algum lugar da multido estava minha me, ento com dezoito anos, que recebera licena de seu internato para sair, e seu

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  • irmo mais moo. Minha av, Winifred Schlesinger, filha de imigrantes judeus alemes, tinha todos os motivos para estar feliz, e no havia limites para seu culto a Churchill. Mas estava apreensiva, temendo que seus filhos se perdessem na multido excitada e bbeda especialmente entre os ianques.

    Em Nova York, 500 mil pessoas comemoravam nas ruas. O toque de recolher foi suspenso. Os clubes como o Copacabana, o Versailles, o Quartier Latin, o Diamond Horsehoe, o El Morocco ficaram superlotados e abertos durante metade da noite. Lionel Hampton tocava no Zanzibar, Eddie Stone no Grill do Hotel Roosevelt, e no Jack Dempseys ofereciam-se pores jumbo de comida.

    Em Paris, na Place de la Rpublique, um reprter do jornal Libration observava uma massa de gente em movimento, agitando bandeiras dos Aliados. Um soldado americano cambaleava sobre suas longas pernas, num estranho estado de desequilbrio, tentando tirar fotografias, com duas garrafas de conhaque, uma vazia e outra ainda cheia, despontando dos bolsos de sua roupa cqui. Um piloto de bombardeiro dos Estados Unidos fez a multido vibrar passando seu Mitchell B-25 num voo rasante pelo vo na base da torre Eiffel. No Boulevard des Italiens, um enorme marinheiro americano e um esplndido negro resolveram engajar-se numa competio. Eles apertavam mulheres contra seus imensos peitorais e contavam o nmero de marcas de batom que elas deixavam em suas faces. As pessoas ao redor faziam apostas nos dois rivais. No Arco do Triunfo, a maior multido j vista por ali expressava sua gratido ao general De Gaulle, que exibia um raro sorriso. As pessoas cantavam a plena voz a Marselhesa, e a favorita da Primeira Grande Guerra, Madelon:

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  • There is a tavern way down in BrittanyWhere weary soldiers take their libertyThe keepers daughter whose name is MadelonPours out the wine while they laugh and acarry on [...]O Madelon, you are the only one O Madelon, for you well carry on Ifs so longsince we have seen a miss Won ytyou give usjust a kiss... *

    Mesmo assim, o Dia da Vitria em Paris foi considerado por alguns como uma espcie de anticlmax. A Frana, afinal, j tinha sido libertada em 1944. Simone de Beauvoir escreveu que sua lembrana daquela noite era

    muito mais nebulosa do que a das nossas antigas festas, talvez por conta da confuso dos meus sentimentos. Aquela vitria fora conseguida muito longe de ns; no a esperramos, como a liberao, na febre e na angstia; ela estava prevista h muito tempo e no abria novas esperanas: apenas punha um ponto final na guerra; de certo modo, aquele fim se assemelhava a uma morte.6

    Os moscovitas, por outro lado, foram para as ruas assim que o Dia da Vitria foi anunciado, nas primeiras horas da manh do dia 9. Massas de gente, alguns ainda em suas camisolas ou pijamas, danaram e celebraram durante o resto da madrugada, gri

    * A cano, originalmente francesa, tornou-se bastante difundida tambm na verso em ingls, cuja correspondncia com a original no exata. Em traduo livre do ingls: Existe uma taberna no caminho da Bretanha/ Onde um soldado exausto no se acanha/ de rindo paquerar a garota bela/ que lhe serve o vinho; Madelon o nome dela [...]/ Madelon, para mim s voc existe/ Madelon, com voc nunca serei triste/ H quanto tempo no sinto esse desejo/ De que voc pelo menos me d um beijo. (N. T.)

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  • tando Vitria! Vitria!. Numa carta ao historiador britnico Martin Gilbert, um dos intrpretes de Stlin, chamado Valentin Berezhkov, relatava:

    O orgulho de uma vitria finalmente obtida sobre um inimigo traioeiro e torpe, o lamento pelos que caram (e no sabamos ento que cerca de 30 milhes tinham sido mortos nos campos de batalha), as esperanas de uma paz duradoura e uma continuada cooperao com nossos aliados na guerra tudo isso suscitou um sentimento especial de alvio e esperana.7

    O Libration de 8 de maio provavelmente estava certo: a festa foi, acima de tudo, para os jovens.

    S os jovens sentiram-se animados. S os jovens pularam para os jipes, como se fosse a tribuna de honra no hipdromo de Long- champ durante as corridas, atravessando a Champs-lyses, com bandeiras envolvendo a cabea e canes em seus lbios. E assim que deveria ser. Para os jovens, o perigo passou.

    Minha av, na Inglaterra, ansiando pela volta do marido, que ainda servia no Exrcito ingls na ndia, no podia compartilhar da animao dos filhos. E seus sentimentos sem dvida eram compartilhados por muitas pessoas que se preocupavam com seus maridos ou filhos, ou por aqueles cujas perdas tinham sido grandes demais para que pudessem se rejubilar. A reao dessa filha de imigrantes tambm era peculiarmente inglesa. Eu sentia demais a sua falta para poder comemorar, ela escreveu a meu av, por isso aproveitei melhor as horas de claridade fazendo um trabalho extra no jardim.

    Meu pai nem sequer consegue lembrar o dia em que a guerra terminou oficialmente. Ele guarda vagas recordaes do som dos

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  • canhes russos atirando em comemorao. O marechal Zhukov menciona isso em suas memrias: Samos do salo do banquete [em 9 de maio] com o acompanhamento de um canhoneio desfechado por vrios tipos de armas [...] havia tiros por todas as partes de Berlim e de seus subrbios.8 Mas meu pai estava habituado ao som de canhes e no notou nada de especial naquilo.

    Brian Urquhart, o jovem oficial da inteligncia britnica, alocado no norte da Alemanha e recm-sado do choque de testemunhar o que houvera em Belsen, tampouco poderia sentir uma alegria plena.

    difcil reconstituir o que realmente sentia no momento de to avassaladora ocasio. Quase seis anos transcorridos do desespero vitria, muitos amigos mortos, desperdcio e destruio fantsticos [...]. Eu pensava em todos aqueles rostos annimos nas fotografias da guerra, refugiados, prisioneiros, civis sob bombardeio, russos na neve e nos destroos de seu pas, tripulaes de cargueiros que afundavam quantos deles suas famlias tomariam a ver?9

    Mas pensamentos desse tipo no baixaram o nimo dos que festejavam em Nova York, Paris e Londres. Era um festival da juventude, mas tambm da luz. Em sentido bem literal. As luzes da cidade foram acesas!, afirmava a manchete do New York Herald Tribune em 9 de maio. O cu noturno de Londres brilhou novamente, dizia o Daily Herald de Londres em 8 de maio. Em Paris, as luzes do Opra foram acesas pela primeira vez desde setembro de 1939, em vermelho, branco e azul. Uma aps a outra, as luzes voltaram a iluminar o Arco do Triunfo, a Madeleine e a Place de la Concorde. E o Herald Tribune retratava com orgulho as grandes bandeiras sob os holofotes, a americana com suas estrelas e faixas, a Union Jack britnica e a tricolor francesa, que tremulavam na fachada de seu prdio, na Rue de Berri.

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  • A cidade de Nova York vinha ficando cada vez mais escura desde o dim out [escurecimento parcial] em abril de 1942 e depois o brownout [blecaute parcial] a partir de outubro de 1943. Apenas a tocha da Esttua da Liberdade permanecera acesa, mas no com a luminosidade total. Mas s oito da noite de 8 de maio, segundo o New York Daily News, todas as joias na coroa da Broadway estavam em seu brilho mximo, e as grandes e compactas massas humanas pareciam nadar na luz, e seus nimos eram aquecidos por ela.

    A Coluna de Nelson, na Trafalgar Square de Londres, foi capturada por um holofote. St. PauTs, a catedral de so Paulo, que permanecia de p quase sozinha em meio ao distrito financeiro bombardeado, estava banhada pela luz de projetores. As fachadas dos cinemas iluminavam Leicester Square com cores vividas. E havia ainda o suave brilho avermelhado de dezenas de milhares de fogueiras acesas por toda Londres e alm, preenchendo toda a distncia at a Esccia.

    A sensao de que as luzes podiam ser acesas outra vez, agora que no havia mais o temor das bombas e das doodlebugs (as bombas voadoras alems), no produzia apenas alvio. Havia algo simbolicamente tocante no retorno da luz. Lendo esses relatos, lembrei-me de uma histria que certa vez me contou uma acadmica russa em Moscou. A literatura francesa era seu tema e sua paixo. Sonhara a vida inteira em ver a Frana e outras partes da Europa Ocidental, lugares que s conhecia dos livros. Finalmente, em 1990, depois da queda do Muro de Berlim, seu sonho realizou-se; permitiram-lhe viajar de trem para Paris. Eu lhe perguntei o que a deixara mais impressionada. Disse que foi o momento em que, durante a noite, o trem passou da Berlim Oriental para a Ocidental, e de repente havia luzes.

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  • Festivais de luz, to universais e antigos quanto a primeira tocha acesa pelo homem, tm muitas vezes uma origem mstica, relacionada com as estaes do ano e o incio de uma vida nova. Algumas reminiscncias dos primeiros dias da libertao tm o aspecto caracterstico de frenesi religioso. Isso especialmente verdadeiro no que tange recepo extasiada da populao feminina aos soldados aliados. Maria Haayen, uma jovem de Haia, lembra-se de quando viu o primeiro tanque canadense rugindo e avanando em sua direo, com a cabea de um soldado do lado de fora da torre do canho. Todo o sangue esvaiu-se de meu corpo, e eu pensei: a vem nossa libertao. E quando o tanque chegou mais perto fiquei sem ar, e o soldado se levantou era como um santo.10

    Talvez esse tipo de sentimento fosse mais comum entre as mulheres, mas tambm era compartilhado pelos homens. Um holands lembrou que era um privilgio at mesmo tocar a manga de um uniforme canadense. Cada soldado raso canadense era Cristo, um salvador..

    Em certo e importante sentido, a experincia dos soldados aliados nos pases libertados no vero de 1945 pode ser comparada ao que aconteceu vinte anos depois, quando os Beatles apareceram. Na ocasio, do mesmo modo, a libertao foi expressa em forma de mania, que era acima de tudo ertica. Em 1945, os homens em pases como a Holanda, a Blgica e a Frana, e ainda mais nos derrotados Alemanha e Japo, estavam ou ausentes, ou prisioneiros, ou pobres, subnutridos e desmoralizados. A ocupao estrangeira e a derrota tinham, em maior ou menor medida, destrudo a autoridade masculina, ao menos por ora. Um historiador holands expressou isso assim na poca: Os homens holandeses foram derrotados militarmente em 1940; sexualmente em 1945.12 O mesmo poderia ser dito na Frana, ou Blgica, ou em qualquer dos pases que haviam conhecido a ocupao. Uma

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  • das conseqncias da guerra era que muitas mulheres perderam grande parte da subservincia feminina. Tinham assumido empregos, trabalhado para a resistncia ou se encarregado de cuidar de suas famlias. Haviam sido, na expresso francesa de desaprovao profunda daquela poca, hominise; comearam a se comportar como homens.

    Comparados com os magrrimos holandeses, ou franceses, ou alemes, sem banho, maltrapilhos, os bem vestidos canadenses e os esbeltos americanos, bem alimentados, bem pagos, tinindo em suas fardas sensuais de conquistadores, realmente deviam parecer deuses. Nas palavras de uma das tantas mulheres holandesas que acabaram se casando com canadenses: Vamos reconhecer: depois de tudo pelo que passamos, os canadenses pareciam ser deliciosos.

    Nada expressava melhor o erotismo da libertao do que a msica que acompanhava as tropas aliadas, ritmos que tinham sido banidos pelos nazistas: msica de suingue, jazz, In the Mood, de Glenn Miller, Tommy Dorsey, Stan Kenton, Benny Goodman, Lionel Hampton, Hey, Ba-Ba-Re-Bop. Em Paris, jovens danavam ao som dos discos da Vitria, gravaes de jazz distribudas para as tropas americanas. E o esprito franco- americano penetrou nas canes francesas tambm. O grande sucesso de 1945, cantado por Jacques Pill, era assim:

    Oh! L l!Bonjour mademoiselleOh! L l!Hlio, quellefait comme aOhlLl!Je pense you are trs belleOh! L l!You very beau soldat...

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  • Em 1945 a confraternizao com os locais ainda era, em termos oficiais, proibida aos Aliados ocidentais em solo alemo. Na Holanda e na Frana, era ativamente estimulada. Havia at mesmo algo chamado Operao Confraternizao. Em julho, foi fundado o Comit de Entretenimento dos Pases Baixos, sob os auspcios da princesa Juliana e do prncipe Bernhard, com o propsito especfico de oferecer aos mais de 100 mil canadenses a companhia de mulheres que falavam ingls. A ideia era que essas jovens acompanhassem os soldados em espetculos de arte, museus, filmes e sales de baile devidamente supervisionados.

    A esperanosa e devotadamente expressa expectativa era que as mulheres preservassem a honra de nossa nao. Foi pedido minha av holandesa, como mulher de um ministro protestante, que supervisionasse as danas, para se assegurar de que nada ocorresse entre os canadenses e suas namoradas holandesas que pudesse comprometer a honra nacional. Seu colega nessa empreitada era um sacerdote catlico chamado padre Ogtrop, cujo nome era gritado pelos danarinos na melodia de Hey, Ba-Ba- -Re-Bop. No sei muito bem o que acabava acontecendo nesses bailes. Mas, nas palavras de um soldado canadense, ele nunca tinha conhecido uma populao feminina to solcita quanto a que encontramos na Holanda.13

    Isso era at bom, do ponto de vista das tropas aliadas, uma vez que seus comandantes no eram lenientes com a prostituio. As zonas de luz vermelha eram reas interditas para os soldados, mesmo na Frana, onde as maisons de tolrance tinham prosperado durante a ocupao alem. Alguns dos veteranos de guerra americanos mais velhos guardavam boas lembranas da Paris de 1918, aps a Primeira Guerra Mundial, onde os prostbulos de Pigalle (que chamavam de Pig Alley, beco dos porcos) tinham oferecido clidas boas-vindas aos soldados. Mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, a proibio de

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  • recorrer s prostitutas nem sempre foi observada. Em pelo menos um caso documentado, na cidade de Cherburgo, vrios bordis eram mantidos indiretamente pelo prprio Exrcito dos Estados U nidos.14 Alguns eram reservados para soldados negros, outros apenas para brancos, e soldados da Polcia do Exrcito americana garantiam a ordem nas filas que se formavam nas portas. Mas na maioria das vezes, nesse momento para desgosto daqueles que, com boas razes, se preocupavam com a proliferao de doenas venreas devido falta de um comrcio sexual organizado , a confraternizao se fazia numa base de estrita livre-iniciativa.

    No que as relaes entre as tropas e as mulheres locais se baseassem na equidade. Os homens tinham dinheiro, mercadorias de luxo, cigarros, meias de seda e, o mais importante, a comida da qual as pessoas precisavam desesperadamente para sobreviver. As muitas expresses de um verdadeiro culto aos libertadores sugeriam um potencial e humilhante desequilbrio. No entanto, encarar as mulheres ansiosas por confraternizao como mocinhas espera de heris ou vtimas indefesas no seria totalmente exato. Simone de Beauvoir menciona em suas memrias uma jovem mulher parisiense cuja principal distrao era a caa ao americano (la chasse VAmricain).

    Benoite Groult, que mais tarde tornou-se uma popular autora de romances, escreveu com sua irm Flora um relato de suas proezas na caa a americanos. Elas afirmavam que seu Journal Quatre Mains era romance, mas trata-se de um dirio quase sem fico. Groult falava ingls e era uma das mulheres francesas que, por intermdio da Cruz Vermelha americana, tinham se voluntariado para confraternizar. Mas os lugares que ela realmente freqentava eram menos saudveis. Passava a maior parte de suas noites em clubes de Paris que atendiam aos soldados aliados e tinham as portas abertas para as francesas, mas barravam os

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  • homens franceses estabelecimentos com nomes inofensivos como Clube Canadense, Independncia, Esquina do Arco-ris.

    As detalhadas descries fsicas que Groult fez dos soldados americanos e canadenses revelavam uma adorao similar de pessoas que imaginavam estar diante de santos a no ser pelo fato de suas descries serem surpreendentemente realistas e de os homens em questo estarem longe da santidade. Ela escreve sobre suas conquistas da mesma maneira que os homens se gabam de pegar garotas. Os clubes so descritos como mercados de escravos. Mas os escravos, no caso, so os heris conquistadores.

    Eis o que Benoite Groult tem a dizer sobre Kurt, um piloto de caa americano: O nariz um pouco curto, ou melhor, uma coisinha virada para cima, o que lhe dava um ar infantil comum a todos os americanos; sua pele bronzeada pela estratosfera; mos fortes, os ombros de um orangotango [...] quadris perfeitos, retos, corrigindo a fora levemente pesada do resto de seu corpo... . Kurt nunca l livros, e s se interessa por comida e avies. Mas que diferena isso faria para ela? Na verdade, ela escreve: Quero os braos de um idiota, os beijos de um idiota. Ele tem um sorriso adorvel, com os cantos da boca curvando-se para cima sobre esses perfeitos dentes americanos.15

    Em resumo, Groult seria considerada pelos homens franceses terrivelmente homminise. Tinha sido casada, mas perdera o marido durante a guerra. A libertao, no vero de 1944, deu-lhe a permisso, e o desejo, de encontrar prazer nos braos de homens que nunca mais tornaria a ver. Era uma liberdade preciosa. No fim, foi Kurt quem quis uma relao mais sria, mostrou o retrato dela a seus pais e esperava lev-la aos Estados Unidos como sua noiva de guerra. Para Groult, uma jovem intelectual parisiense com aspiraes literrias, isso estava, claro, fora de questo.

    Talvez Benoite Groult fosse, ou fingisse ser, excepcionalmente insensvel e decidida. Mas seu relato ilustra um aspecto

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  • apontado por um historiador francs da ocupao alem. Segundo Patrick Buisson, a presena de um grande nmero de jovens alemes na Frana durante a guerra ofereceu a inmeras mulheres a oportunidade de se rebelarem: mulheres que se sentiam presas a casamentos infelizes, ou a famlias burguesas opressoras, empregadas achacadas por seus empregadores, solteironas condenadas a ficar para titia, ou simplesmente mulheres de todas as classes que desejavam livrar-se, mesmo que por pouco tempo, das restries de uma sociedade conservadora e patriarcal. O fato de as relaes com o exrcito de ocupao tambm trazerem benefcios materiais, permitindo que muitas dessas mulheres vivessem melhor do que outras em alguns casos, melhor at do que suas patroas , tornava ainda mais doce a sensao de vingana.16

    E isso no valia s para as mulheres. Minorias de todos os tipos frequentemente forjavam alianas com poderosos agentes externos para se livrar da opresso das maiorias. Essa era uma faceta de todas as sociedades coloniais. Mas o nmero desproporcional de franceses homossexuais que colaboraram com os alemes ou usaram a Paris dos tempos de guerra como seu play- ground sexual pode tambm ter algo a ver com o ressentimento costumeiro contra a respeitvel burguesia. O fato de a propaganda dos nazistas e de Vichy ser homofbica no constituiu impedimento. A ocupao no estava sendo necessariamente endossada; ela era uma oportunidade.

    Fraternizar com os libertadores aliados era, em todo caso, mais tentador do que colaborar com os alemes, pois no era tido como traio. difcil saber quantas relaes homossexuais aconteceram, j que obviamente um assunto que as pessoas tratam com bastante discrio. Um dos casos narrado de maneira belssima por Rudi van Dantzig, o bailarino, escritor e coregrafo do Bal Nacional Holands. Ele escreveu um romance, Para um sol

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  • dado perdido, baseado em sua prpria experincia, aps ter sido evacuado de Amsterdam para um vilarejo do norte durante o inverno da fome de 1944-5. Quando os canadenses chegaram a seu vilarejo, ele era um menino de doze anos, mas tinha anseios que ele mesmo mal compreendia. Um jipe para numa estrada rural. Uma mo estendida. Ele recebido a bordo. assim que Jeroen, o menino, encontra Walt, o soldado canadense, que o acabaria seduzindo. Mas o livro no de forma nenhuma uma denncia de pedofilia. Ao contrrio, escrito como uma elegia: O brao em volta de mim quente e confortvel, como se eu estivesse agasalhado numa poltrona. Deixo que tudo acontea quase com um sentimento de alegria. E penso: Isso libertao. assim que deveria ser, diferente dos outros dias. Isso uma festa.17

    Benoite Groult tem total conscincia dos benefcios materiais de manter relaes sexuais com um americano. Ela torna bastante explcita a conexo entre o apetite sexual e o apetite por alimento. Estar deitada na cama sob o corpo de Kurt, ela observa, como dormir com um continente inteiro: E no se pode recusar um continente. Depois, eles comiam: Meu apetite estava aguado por quatro anos de ocupao e 23 de castidade, bem, quase isso. Eu devorava ovos descascados dois dias antes em Washington. Apresuntado enlatado em Chicago. Milho que amadureceu a mais de 6 mil quilmetros daqui... uma coisa e tanto, a guerra!.

    Embutidos, ovos e barras de chocolate Hersheys podiam ser logo consumidos. Meias podiam ser usadas. Mas cigarros Lucky Strike, Camel, Chesterfield ou Caporal podiam ser trocados no mercado negro por mais comida. Os soldados tinham suprimentos em abundncia. Isso, tanto quanto seus ombros largos, sorrisos doces, quadris estreitos e belos uniformes, era um atrativo inestimvel. S o livre acesso a cigarros j os tornava homens ricos em pases muito pobres. Era fcil concluir, portanto, que as

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  • mulheres que dormiam com eles na realidade no eram muito diferentes das prostitutas.

    Com efeito, era assim que pensava muita gente, em especial mulheres que mal conseguiam sobreviver com o que tinham, ou homens que eram barrados dos sales de baile, cinemas e centros de diverso reservados aos libertadores e suas namoradas locais. As suspeitas eram incrementadas pelo fato de que algumas das jovens que se agarravam aos soldados aliados ainda usavam echarpes na cabea para esconder a evidncia dos cabelos recentemente raspados, a marca do castigo aplicado quelas que pouco tempo antes eram amantes de alemes.

    Sem dvida, algumas mulheres eram prostitutas autnomas, em especial nos pases derrotados nos quais os servios sexuais eram a nica forma de sobrevivncia para elas e seus filhos. Mas, mesmo no caso de mulheres que haviam trocado com indecorosa pressa seus amantes alemes por amantes aliados, nem sempre os motivos eram to diretos ou venais. Uma colaboradora horizontal de uma pequena cidade da Frana que havia pouco tivera os cabelos raspados disse a um autonomeado comit de expurga- dores que a ameaava com mais punies por seu comportamento imoral: No me importo que vocs raspem meu cabelo. No estou mais em contato com meu marido [um ex-prisioneiro de guerra]. E no vou deixar que isso me impea de me divertir com os americanos, se eu assim decidir.18

    Lendo relatos daquela poca e comentrios na imprensa, pode-se ter a impresso de que o vero de 1945 foi uma prolongada orgia a que se entregaram soldados estrangeiros e mulheres locais, por ganncia, luxria ou solido. Essa impresso parece ser confirmada pelas estatsticas: em 1945, foram hospitalizadas em Paris por causa de doenas sexualmente transmissveis cinco vezes mais mulheres do que em 1939. Na Holanda, mais de 7 mil bebs de pais no casados nasceram em 1946, trs vezes mais do que em

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  • 1939. As altas taxas de d st podem ser explicadas pela ausncia de orientao mdica e de contraceptivos, higiene deficiente em reas de pobreza ou inmeros outros motivos. O fato que muitas mulheres e muitos homens estavam em busca de calor humano, companhia, amor e at mesmo casamento. Na mesma medida em que os primeiros meses da libertao ofereciam uma oportunidade para um abandono desenfreado, as pessoas ansiavam tambm pela volta normalidade. No se deve esquecer que os 277 mil bebs nascidos de pais legalmente casados na Holanda em 1946 constituem o maior nmero registrado na histria da nao.

    Bergen-Belsen foi libertado em 12 de abril. Foras britnicas comandadas pelo tenente Derrick Sington receberam ordens para chegar l o quanto antes. A guerra ainda no havia acabado, mas as condies no campo de concentrao eram to aterradoras que a populao local receava que uma epidemia de tifo a mesma epidemia que tinha matado Anne Frank apenas algumas semanas antes pudesse se disseminar. Como as autoridades alems no podiam ou no queriam lidar com o risco de uma irrupo de tifo, concordaram em deixar as tropas britnicas entrar em Belsen, apesar de ainda estarem em guerra.

    Passando com seus veculos em meio a pilhas de cadveres e barraces que fediam a excremento e carne em putrefao, os soldados no conseguiam acreditar no que estavam testemunhando com os prprios olhos. As imagens de Belsen estiveram entre as primeiras publicadas na imprensa ocidental, e na Gr-Bretanha o campo tornou-se o maior smbolo do assassinato em massa conduzido pelos nazistas. Brian Urquhart lembrou que j tinha conhecimento do antissemitismo alemo: Mesmo assim, a soluo final, o extermnio de milhes de pessoas, era simplesmente inimaginvel. Estvamos completamente despreparados para

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  • Belsen.19 O que ele e outros soldados britnicos no perceberam foi que Belsen nem ao menos era um campo de extermnio. Esses campos ficavam na Polnia, e a maioria j havia sido destruda pelos alemes antes de recuarem para oeste.

    O tenente Sington continuou dirigindo, avisando aos sobreviventes, por um alto-falante, que estavam livres. A maioria se encontrava em um estado to debilitado que mal esboou reao. Ento ele chegou ao principal campo das mulheres, ainda com o alto-falante na mo:

    Em poucos segundos o carro foi cercado por centenas de mulheres. Elas gritavam e choravam histericamente, incontrolavelmente, e era impossvel ouvir qualquer palavra que sasse do alto-falante. Os terrenos do campo estavam plantados com jovens vidoeiros, e as mulheres colhiam ramos cheios de folhas e pequenos galhos e os lanavam sobre o carro.20

    Essas mulheres podiam dar-se por felizes. Ainda podiam caminhar. Um estudante de medicina britnico, que se voluntariara para ajudar, deparou com a seguinte cena em um dos barraces:

    Eu estava ali de p no meio daquela imundcie, tentando me acostumar com o cheiro, que era uma mistura de necrotrio, esgoto, suor e pus ftido, quando ouvi algo raspando no cho. Olhei para baixo naquela meia-luz e vi uma mulher agachada a meus ps. Tinha o cabelo preto e emaranhado, espesso, e suas costelas se projetavam como se nada houvesse entre elas [...]. Ela estava defe- cando, mas estava to fraca que no conseguia erguer as ndegas do cho, e como estava com diarria as fezes lquidas e amarelas borbulhavam sobre suas coxas.21

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  • Os mdicos e paramdicos voluntrios estavam desesperados por mais alimento, drogas e equipamento mdico. Enfrentavam a doena e a fome numa escala que nunca tinham vivenciado nem sequer imaginado que fosse possvel. Centenas de pessoas ainda estavam morrendo todo dia, s vezes por comer raes militares que eram nutritivas demais para seus intestinos atrofiados. Mas nem sempre o Exrcito uma instituio eficiente, e as condies na Alemanha eram caticas. Um dia, no final de abril, chegou uma misterioa entrega, que consistia em grandes quantidades de batom.

    Acabou sendo uma ddiva divina. O oficial britnico que comandava uma unidade de ambulncias, tenente-coronel Gonin, rememora:

    Creio que nada ajudou mais essas internas do que o batom. Mulheres deitadas em camas sem lenis, sem camisolas, mas com lbios escarlates, e voc as v perambulando sem nada a no ser um cobertor sobre os ombros, mas com lbios escarlates. Finalmente fizeram algo para torn-las algum outra vez, elas eram algum, no mais um nmero tatuado no brao. Enfim podiam interessar-se por sua prpria aparncia. Aquele batom comeou a trazer de volta sua humanidade.22

    Richard Wollheim, britnico que mais tarde se tornaria um famoso filsofo, era um oficial da inteligncia. Como Urquhart, foi enviado por um breve perodo para Belsen, em maio, quando as condies ainda eram terrveis, mas no to catastrficas quanto tinham sido antes. Em algum lugar da hierarquia do Exrcito tinha se decidido que seria uma boa ideia organizar uma festa danante para os soldados e os sobreviventes em Belsen. Wollheim foi encarregado de planejar o evento. Foi uma coisa horrvel, um desastre, pois quando a banda de guardas

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  • hngaros do campo (que tinham reputao de serem brutais), vestidos em suas roupas folclricas, comeou a tocar um som danante em suas concertinas, houve um mal-entendido. Sem terem uma lngua comum, as mulheres desnudaram seus braos para mostrar os nmeros neles tatuados. Os soldados, literalmente sem saber o que falar, seguraram os braos das mulheres, na expectativa de danar com elas. As mulheres, aterrorizadas, comearam a bater neles, enquanto os hngaros tocavam num ritmo cada vez mais acelerado.23

    Mas esse fiasco foi uma exceo. Houve outra festa danante realizada mais ou menos na mesma poca num espao entre os barraces do campo, com a banda da r af encarregada da msica. Segundo o relato de um soldado britnico, foi um enorme sucesso, apesar de algumas das garotas quase no conseguirem andar, enquanto outras pareciam que iam se quebrar ao meio. Um oficial canadense muito alto abraava uma garota minscula, cuja cabea s lhe chegava ao peito. Eles danaram juntos uma valsa. Ela parecia to feliz que para os que a observavam foi difcil no sorrir ou chorar.24

    Essa talvez tenha sido uma histria mais comum que a de Wollheim para muita gente que trabalhou nos campos, de rabinos americanos a assistentes sociais da o n u , e foi marcada por vrios graus de aprovao ou reprovao da rpida recuperao da sexualidade entre os sobreviventes. Assim como o batom, o desejo sexual restaurou um sentido de humanidade para as pessoas, que tinham sido deixadas sem nada.

    Se a taxa de natalidade na Holanda foi elevada em 1946, a que se verificou nos campos de deslocados foi maior. S na zona de ocupao americana nasciam 750 bebs por ms nesses campos. Cerca de um tero das judias entre dezoito e 45 anos de idade j tinha dado luz ou estava esperando bebs.25 Antigos campos de concentrao, inclusive Bergen-Belsen, onde milhares de pessoas

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  • tinham morrido nas piores condies possveis, tomaram-se lugares de febricitante atividade sexual, como se os sobreviventes no pudessem esperar para provar a si mesmos e ao mundo que ainda estavam vivos, e no apenas isso, eram capazes de produzir vida.

    Os que trabalhavam na assistncia social ficavam s vezes chocados e diziam que os deslocados de guerra, frequentemente judeus, expunham-se, sem conteno, ao deboche. Alguns atribuam isso ao tdio. O que havia l alm de beber e fazer sexo? Outros eram mais moralistas. Um mdico francs que trabalhava para uma organizao de caridade escreveu com evidente desaprovao: O padro moral de muitos desses sobreviventes dos campos de concentrao bem baixo [...] a irregularidade sexual atingiu propores terrveis. Mas ele prprio admitiu que havia circunstncias atenuantes. No era possvel repreender com rigor aquelas jovens que haviam passado por um inferno, e agora so presas de um irresistvel desejo de afeio e de esquecimento, que buscam satisfazer com os meios de que dispem.26

    Outros observadores tinham explicaes mais elaboradas. Uma assistente social polonesa chamada Marta Korwin acreditava que as vtimas de campos de concentrao tinham sonhado que o fim de seus tormentos levaria ao alvorecer de um mundo perfeito: Todas as dificuldades de seu passado seriam esquecidas, a liberdade os levaria de volta a um mundo no qual nada jamais tinha desandado.... Quando em vez disso se viram vivendo na misria dos campos de deslocados, tendo perdido seus entes queridos, sem esperanas, as pessoas se refugiaram na bebida ou no sexo.27

    Todas essas explicaes so perfeitamente plausveis. Mas havia tambm uma dimenso biolgica. Uma pessoa em situao de grave crise tem de se reproduzir para sobreviver. Muitos judeus nos campos de deslocados no eram sobreviventes de campos de extermnio, desses havia poucos. Muitos tinham vindo

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  • de regies da Unio Sovitica, para onde fugiram dos nazistas. Mas a maioria dos judeus tinha perdido filhos, pais, irmos ou outros familiares. Os mais velhos no dispunham de muita escolha a no ser conviver com seus fantasmas. Os jovens, porm, podiam forjar novos laos de famlia para os quais pudessem viver. E a regenerao biolgica era oficialmente promovida pelos sionistas e outras lideranas judias. Casamentos aconteciam em questo de semanas, at mesmo dias, depois de um primeiro encontro. Contraceptivos eram malvistos nos campos de deslocados de guerra judeus. Eles sentiam ter a obrigao de produzir tantos filhos quanto pudessem. O sexo no era apenas um prazer; era um ato de desafio contra a extino.

    Ser alemo ou japons em 1945 era, obviamente, uma experincia bem diferente de ser francs, holands ou chins, sem mencionar a de ser judeu. Isso tambm se aplica a seu encontro com as tropas estrangeiras. Para eles, os amis (gria em alemo para ianques) ou ameko (o mesmo, em japons), assim como canadenses, australianos, britnicos e soviticos, no tinham vindo como libertadores, mas como conquistadores. Em certa medida, isso tambm valia at mesmo para muitos italianos, especialmente no sul da Itlia, onde as invases aliadas fizeram com que sua vida, que j era difcil, ficasse ainda pior. Cidades foram bombardeadas at ficar em pedaos, as condies econmicas eram medonhas. Em muitos casos, a prostituio era uma necessidade.

    Em Berlim, eram conhecidas como Ruinenmuschen, ratos das runas, as garotas e mulheres que perambulavam pelos escombros do que fora sua cidade tentando pegar um soldado por um pouco de dinheiro, comida ou cigarros. Algumas meninas, nem bem entradas na adolescncia, praticavam seu comrcio em bordis improvisados nas runas, controlados pelo mercado

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  • negro. Meninos tinham seu prprio Trmmerbordellen (bordis nas runas), onde se vendiam a soldados americanos, e um deles, conhecido como Tante (tia) Anna, tornou-se figura notria no submundo de Frankfurt.

    A necessidade de sobreviver tambm dissolvia distines de classes. Norman Lewis era um jovem oficial do Exrcito britnico estacionado em Npoles. Em seu magnfico relato Naples 44 , ele descreve a visita de um grande aristocrata italiano, dono de um pa lazzo em algum lugar do sul, a seu quartel-general. Ele chegou com a irm:

    Os dois so notavelmente semelhantes na aparncia: magros, com uma pele palidssima e uma expresso nobre, fria, beirando a severidade. O propsito da visita era perguntar se poderamos conseguir que a irm entrasse para um bordel do Exrcito. Explicamos que no Exrcito britnico no existia tal instituio. Que pena, disse o prncipe. Ambos falavam um excelente ingls, que tinham aprendido com uma governanta inglesa. aBem, Luisa, suponho que, se no possvel, ento no possvel. Eles nos agradeceram com uma tranqila polidez e partiram.28

    No Japo, a prostituio foi institucionalizada desde o incio. Eles tinham suas razes. As autoridades japonesas estavam aterrorizadas, temendo que os soldados aliados fizessem a seus cidados o que as tropas japonesas tinham feito aos chineses e outros asiticos. Quando Nanquim foi saqueada, em 1937, e Manila quase destruda numa batalha travada at a ltima trincheira, em 1945, dezenas de milhares de mulheres foram estupradas, mutiladas e com frequncia mortas isso quando no morriam devido ao suplcio pelo qual passavam. Essas foram duas situaes particularmente ruins. Houve muitas mais. Na China, o estupro por soldados do Japo Imperial eram perpetrados em escala to

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  • grande que se tornou um problema de ordem militar, ao suscitar uma resistncia mais ferrenha dos chineses. Para lidar com essa dificuldade, s vezes mulheres eram convocadas mas na maioria das vezes eram raptadas, especialmente na Coreia e em outros pases sob controle japons para servir como mulheres de conforto, ou seja, escravas sexuais, nos bordis do Exrcito japons.

    O governo e a propaganda militar tinham amedrontado os cidados com predies constantes de que, no caso de derrota, as japonesas seriam estupradas, torturadas e assassinadas por soldados estrangeiros. Para impedir to horrvel e desonroso destino, os japoneses eram instrudos a combater at a morte, ou ento se matar. Mulheres e crianas nas ilhas do Pacfico e em Okinawa receberam ordem de explodir seus corpos usando granadas de mo, ou de saltar de penhascos. Muitas o fizeram.

    E assim, em 18 de agosto, trs dias depois de o Japo ter se rendido, o ministro do Interior ordenou a oficiais da polcia local que criassem instalaes de conforto para os conquistadores aliados. Mulheres foram recrutadas para sacrificar seus corpos na Associao de Recreao e Diverso (r a a , na sigla em ingls), como um dever patritico. O ex-primeiro-ministro, prncipe Fumimaro Konoe, que carregava a grande responsabilidade de ter comeado a guerra do Pacfico, disse ao comissrio nacional de polcia que por favor defendesse as jovens do Japo.29 Talvez essa medida aplacasse os invasores estrangeiros, e assim as japonesas respeitveis poderiam sair de seus esconderijos e andar pelas ruas sem serem molestadas.

    Deve ter sido um negcio srdido. Instalaes para Recreao e Diverso foram providenciadas com tamanha pressa que no havia camas para acomodar os soldados e as mulheres sacrificiais. Relaes sexuais aconteciam em qualquer lugar que se arranjasse, na maioria das vezes no cho, nos vestbulos e cor

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  • redores dos bordis improvisados. Levou alguns meses para que os japoneses implementassem arranjos mais eficientes. Um enorme bordel em formato de hangar foi construdo em Funa- bashi, nos arredores de Tquio, conhecido como o International Palace, ou ip. O ip oferecia sexo numa espcie de linha de montagem, conhecida como willow run , nome de uma fbrica de bombardeiros erguida pela Ford perto de Detroit. Os homens podiam deixar seus sapatos na entrada do comprido prdio e peg-los de volta, engraxados e reluzentes, na outra extremidade.

    Alojamentos de soldados, como o Nomura Hotel, em Tquio, ficavam lotados de mulheres, que figuravam como recepcionistas ou encarregadas da limpeza e l pernoitavam com frequncia. Algumas levavam suas famlias, aproveitando para se refugiar do frio do inverno. Um grande salo de baile no centro de Tquio tinha um letreiro em japons no qual se lia: Moas patriotas! Ajudem a reconstruo do Japo servindo como parceiras de dana!.30 Preservativos eram vendidos nas p x s (lojas especiais para venda de comida, roupas e outros suprimentos aos membros das foras de ocupao).

    Ao contrrio do que ocorreu na Alemanha, no havia no Japo, de incio, uma proibio estrita firaternizao com pessoal nativo. O general Douglas MacArthur, o comandante supremo das Foras Aliadas (Scap, na sigla em ingls), reconhecia a inutilidade de tal regra. Ele disse a seus assessores: Ficam tentando me fazer parar com toda essa Madame Butterflyzao que acontece aqui. No vou fazer isso [...]. No emitiria uma ordem de no fraternizao nem por todo o ch da China.31

    No comeo da ocupao havia cerca de 600 mil soldados dos Estados Unidos no Japo, alm dos australianos, britnicos e um punhado de outras nacionalidades. Portanto, a fraternizao ocorria em larga escala. Uma carta escrita por William Theodore de Bary, um oficial da Marinha dos Estados Unidos que depois se

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  • tornou um destacado estudioso da China e do Japo, descreveu como eram as coisas em Sasebo, uma grande base naval na ilha de Kyushu, em outubro de 1945:

    A fraternizao por si s tem sido um problema. A Polcia do Exrcito, de fato, teve de proibir que houvesse mais aglomeraes na grande ponte junto a nossos quartis, de to congestionada que ela ficava com excitados fuzileiros falando e usando a linguagem dos sinais para se comunicar com sorridentes e amistosas japonesas. Tem sido assim desde o incio.32

    Tudo isso se deu apesar da propaganda extraordinariamente racista que circulava pelos Estados Unidos. Veja-se, por exemplo, este trecho de um artigo sobre a ocupao do Japo publicado na revista Saturday Evening Post: A mulher japonesa mediana, de peito liso, nariz em forma de boto, ps chatos, to atraente para a maioria dos americanos quanto um dolo de pedra com mil anos de idade. Na verdade, menos que isso. Dos dolos eles gostam de tirar fotos.33

    O autor desse artigo, se quisermos ser generosos no comentrio, estava totalmente por fora. A maioria dos oficiais mais graduados do Scap tinha amantes japonesas j em 1945. Como as mulheres ocidentais eram pouqussimas, era de esperar que assim o fosse. As coisas s mudaram quando chegou uma nova leva de militares, homens menos tolerantes que no tinham experincia direta de combate. Mesmo tendo sido suspensas as restries na Alemanha, eles decidiram impor uma disciplina maior no Japo, declarando interdita a maioria dos lugares pblicos, como restaurantes locais, estncias termais, cinemas ou hotis do Exrcito.

    Como conseqncia, a fraternizao continuou a existir, porm mais discretamente, e cada vez mais com prostitutas autnomas, que nada faziam para manter baixa a incidncia de d s t .

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  • Nas ruas arrasadas pelas bombas e nos parques das cidades, as prostitutas tinham seu prprio territrio, conhecido como ilhas. Algumas podiam ser possudas por um msero dlar, que era mais ou menos o preo de meio mao de cigarros no mercado negro. Essa forma de negcio prosperou, especialmente depois que a administrao aliada decidiu, muito contra a recomendao japonesa, abolir a prostituio organizada, em 1946.

    Os japoneses gostam de categorizar as coisas com muita preciso. As meretrizes autnomas, conhecidas com garotas panpan, eram divididas entre as que se especializavam em soldados brancos estrangeiros, em soldados negros estrangeiros e s em japoneses, embora algumas das mais empreendedoras se recusassem a fazer distines to estritas. Algumas prostitutas, as assim chamadas onrii (algo como somente um), conseguiam limitar seus vnculos a um nico cliente. As mais promscuas que o habitual eram as batafurais (borboletas). Certas reas do centro de Tquio, como o Hibiya Park, em frente ao qg do general MacArthur, ou a estao prxima de Yrakuch, eram territrio tpico das panpan.34

    As panpan, com seus lbios carregados de batom e seus sapatos de salto alto, eram objeto do escrnio dos japoneses como smbolo da degradao nacional, mas tambm de fascinao, com um toque de inveja. Em termos materiais, estavam em situao melhor do que a maioria dos cidados sem-teto, fam intos e empobrecidos do pas. Essas garotas trabalhadoras tambm eram as primeiras e mais vidas consumidoras de mercadorias americanas, alm de mais familiarizadas com a cultura popular dos vitoriosos do que a maioria dos japoneses. Com seu jargo peculiar, uma mistura de gria japonesa com o deturpado linguajar em ingls dos soldados, elas estavam mais prximas de falar a lngua da ocupao do que a maioria dos japoneses iria conseguir.

    Em certo sentido, as panpan se encaixam numa linha de tradio anticonvencional japonesa que combina a vida no sub

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  • mundo com o glamour. As prostitutas da Tquio pr-moderna, ento ainda chamada Edo, estavam em total sintonia com as roupas da moda, e foram notabilizadas em xilogravuras e no teatro Kabuki. Nos primeiros anos da ocupao aliada, a cultura associada s panpan era em grande medida menos refinada. A derrota militar e a libertao da censura e da educao militarista do tempo de guerra fizeram reviver uma cultura do sexo comercial que tinha razes no passado, mas com boa dose de influncia americana. Revistas obscenas com ttulos como Lovely, Venus, Sex B izarre e P in-U p proliferavam. Casas de striptease foram abertas nos antigos distritos de entretenimento, frequentemente espeluncas construdas em torno de crateras de bombas. Cafe-