anna beatriz ayroza galvão* - ufba

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Anna Beatriz Ayroza Galvão* Gina Veiga Pinheiro Marocci** RESUMO O artigoprocuratecer algumas ccnsi- aeraçOOsa respeitodo uso da cor nas .tachadas, em Salvadorduranteo sécu- lo XIX, assim eatO aas témicas e ma- teriaisutilizadosnas práticas de pinturada !lEsmaépoca. O presente texto 1 procura resgatar aspectos rela- tivos à memória da cor da cidade de Salvador, mais particularmente àqueles vinculados às práticas de coloração de suas fachadas. Ressalta-se, entretan- to, tratar-se de uma abordagem mais específica,que não se atém diretamente às questões inerentes aos processos de percepção da cor. Este estudo se ba- seia nos relatos de viajantes e cronistas do seco XIX, assim como na análise do material iconográfi- co da época, representando os primeiros resultados de uma pesquisa maior em andamento. De maneira geral, falar do colorido tradicional das fachadas no Brasil é falar da pintura que se aplica sobre seus elementos (paredes, esquadrias e ornatos), tendo em vista que os materiais constru- tivos, aqui, quase nunca se mantêm aparentes, com * Arquiteta, Mestranda em Arquitetura e Urbanismo da UFBa'. ** Arquiteta, IPAC/SEC-Ba. RUA,Salvador,v.2,n.3,p.7S-98,1989

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Anna Beatriz Ayroza Galvão*Gina Veiga Pinheiro Marocci**

RESUMOO artigoprocura tecer algumasccnsi-aeraçOOsa respeitodo uso da cor nas.tachadas,em Salvadordurante o sécu-lo XIX, assim eatO aas témicas e ma-teriaisutilizadosnas práticas depinturada !lEsmaépoca.

O presente texto 1 procura resgatar aspectos rela-tivos à memória da cor da cidade de Salvador, maisparticularmente àqueles vinculados às práticas decoloração de suas fachadas. Ressalta-se, entretan-to, tratar-se de uma abordagem mais específica,quenão se atém diretamente às questões inerentes aosprocessos de percepção da cor. Este estudo se ba-seia nos relatos de viajantes e cronistas do secoXIX, assim como na análise do material iconográfi-co da época, representando os primeiros resultadosde uma pesquisa maior em andamento.

De maneira geral, falar do colorido tradicionaldas fachadas no Brasil é falar da pintura que seaplica sobre seus elementos (paredes, esquadrias eornatos), tendo em vista que os materiais constru-tivos, aqui, quase nunca se mantêm aparentes, com

* Arquiteta, Mestranda em Arquitetura e Urbanismoda UFBa'.

** Arquiteta, IPAC/SEC-Ba.RUA,Salvador,v.2,n.3,p.7S-98,1989

sua coloração natural, A pintura, portanto, assumeduas funções: proteção e decoração, Ambas, prova-velmente, variando de acordo com as especificida-des construtivas e a coloração característica decada época e/ou região, assim como com a produçãoe o mercado de tintas do momento, que influenciadiretamente na qualidade de pintura,

Apesar do significado da cor na arquitetura brasi-leira, ainda são poucos os estudos criteriosos so-bre o assunto, o que os torna prementes, poissuas análises são baseadas no conhecimento de ma-teriais perecíveis, ou seja, as tintas e os pig-mentos, cujo aspecto visual, após sua aplicação,pode transformar-se rapidamente em função de fato-res climáticos. Outro dado é que esta perda tambeUlse dá pela própria prática, difundida no Brasil,derepintar-se freqüentemente as fachadas com novascores. Além disso, outras limitações podem ser en-contradas durante os trabalhos de levantamento eanálise de dados. A primeira delas é a escassez,cada vez maior, de exemplares arquitetônicos queainda possuiams~ rebocose canadasd: pinturaoriginais,para serem devidamente analisados em laboratório,Neste sentido, torna-se urgeLte um trabalho de le-vantamento destes poucos casos que estão ameaçadosde se perder. Outra limitação é o próprio fato denão existir uma iconografia suficientemente rica econfiável, que, por si só, permita o resgate deuma imagem urbana a cores.

Estas limitações também terminam por refletir noprocesso de restauração de monumentos e sítios his-RUA,Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

tóricos. Pode-se afirmar que, no geral, as váriasetapas de um projeto arquitetõnico de restauro sãorigorosamente fundamentadas em documentação histó-rica e prospecções nestes edifícios. No entantoeste procedimento é posto de lado no momento dedefinição da cor e da qualidade da tinta a seradotada em cada elemento construtivo de uma facha-da (paredes, esquadrias, ornatos, etc.). Atualmen-te, o que se encontra nesta área é um- trabalho e.fe-tuado de maneira mais intuitiva, baseando-se,quan-do possível, em prospecções locais e raramente emalguma documentação. Isto significa que nao estáclaro qual o "gosto" que determinava a utilizaçãoda cor em cada época, em função das diversas tipo-logias arquitetõnicas que compunham o meio urbano.Sobre esta questão específica da coloração, aafirmativa de que a policromia das cidades brasi-leiras se .firmou apenas no final do séc. XIX podeser questionada, visto que ela se deu em tempo emodo diversos, a depender da região do país.

Salvador reflete esta problemática por ser palcode constantes intervenções de restauro nas edifi-cações de interesse histórico-cultural. Os órgãosoficiais de preservação, inicialmente, registravamalguma preocupação em manter critérios na escolhada cor a ser utilizada nas fachadas, através deprospecçôes e discussões entre o corpo técnico,co-mo indicam os relatórios de algumas obras dos anos30 e 40. A medida que o campo de atuação destesórgãos foi-se ampliando, estes poucos cuidados fo-ram-se perdendo e, hoje, a escolha é praticamentefeita de maneira aleatória, tanto da cor quanto da

tinta, com exceçao de iniciativas isol~ por partede alguns técnicos responsáveis por obras. Estes,por conta própria, buscam detectar a cor da camadamais antiga, adotando-a, então, na pintura final.No entanto, apesar dos esforços, parece nunca terhavido, por parte destes órgãos, uma visão globalque considerasse a relação que um imóvel isoladotem com seu entorno, também em função de sua colo-raçao.

Para completar este quadro, a partir de 1986, aPreÍeitura Municipal de Salvador também passou ainterferir mais diretamente no centro histórico dacidade, imprimindo uma nova conduta no que se re-fere ã pintura das fachadas: pintar as paredes debranco, deixando as esquadrias em madeira aparen-te, terminando por marcar, com esta atitude, a suapresença numa área que se caracteriza, entre ou-tras coisas, pela policromia.

Em termos de conjunto urbano, este desconhecimentopode impedir uma melhor compreensão da imagem quecaracterizava as áreas históricas de Salvador,vis-to que os espaços urbanos (ruas, praças, largos,etc.) organizados no Brasil até primórdios do séc.xx são delimitados pelas fachadas de suas edifica-ções, por estas terem sido construidas sem recuofrontal, geminadas e alinhadas ao arruamento, fi-cando em permanente evidência. Sendo assim, a coratribuída a estas fachadas ê mais um elemento decomposição desta imagem urbana.

A escolha da tinta a ser utilizada nas atuais obrasde restauro também passa a ter papel preponderanteRUA,Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

na definição da coloração de uma fachada. Devido àfacilidade de aplicação e de obtenção no mercado,têm predominado as tintas de base sintetica, masque, por seu aspecto chapado e inerte, acabam pordistorcer visualmente a cor pretendida, pois naotêm a organicidade e a dinâmica que as tintas naosinteticas proporcionam após sua aplicação. Sendoassim, conhecer os antigos processos de composiçãodas tintas - suas "receitas" e seus componentes(pigmentos, solventes, aditivos e veículos) - étambém permitir que certas técnicas tradicionaisainda possam ser apropriadas conjuntamente com asatuais tintas industrializadas, alem de constituirum aspecto de grande importância no campo da pre-servação cultural, que e aquele relativo ao regis-tro dos modos de fazer, ou seja, do processo detransformação das técnicas.

Ainda, a título de esclarecimento, é preciso quese faça uma ressalva sobre o objetivo deste tipode pesquisa: não se pretende impor ou determinar autilização exclusiva das cores reconhecidamentetradicionais, visto que, ainda hoje, existe umprocesso de criação implícito nas pinturas e tra-tamentos de fachadas das casas brasileiras e que,como tal, deve ser respeitado. O que se pode pre-tender com este tipo de trabalho é a formação deum suporte teórico que, além de balizar as obrasde restauro e manutenção de edifícios históricos,evite que certas intervenções cromáticas (do gêne-ro) se justifiquem atraves de falsas referênciashistóricas.

A cor de Salvador segundo documentação escrita doséc. XIX

Os relatos dos viajantes e cronistas da época,ape-sar de sucintos quanto ã questão da cor de imóveisurbanos, são referências fundamentais por nos ofe-recer "pistas", tanto sobre a coloração, quantosobre os materiais e técnicas de pintura.

Neste capítulo serao consideradas as informaçõesrelativas, unicamente, ao aspecto visual, ou seja,as descrições sobre a "cor" de Salvador, feitaspor alguns destes cronistas.

A maioria destas descrições encontradas sobre Sal-vador e seus edifícios diz respeito ã imagem quese tem deste conjunto urbano no momento da chega-da ao porto, ou seja, aquele primeiro impacto vi-sual que se tem da cidade, a partir do mar. O re-verendo Kidder, que aqui esteve em 1839, descreveassim o frontispício da cidade: "Q.ue podvlá havvl

de mai~ lindo que e~~a~ longa~ nilei~a~ Qoleante~de ea~a~ alvaeent~, uma ao alto, out~a a bei~ad'água - ~emp~e ~epa~ada~ po~ uma la~ga 6aixa devegetação ve~de-e~Qu~o, no meio da qual ~e di~tin~gue,de vez em quando, uma e~i..nha b~anQa ••2. Sobreo trecho de Santo Antonio da Barra, Maximiliano deHabsburgo relata: •••••At~á~ do naJtol, na. pontamai~ extJtema, ~odea.da.de palmei~a~ (••• 1 uma. da~mai~ antigas igJteja~ da Bahia, Qom dua~ to~~e~g~aQio~a~, pa~ede~ de um b1LanQo 1Leluzente,.,", e,mais adiante, ainda no trajeto de chegada: ••.•. obJLtUleodtU etU~ de~taQava--6e, Qom -6eu bll.ilho, doveJtde das Qopa~ dM ãJtvo~e-6"3 •RUA, Salvador,v. 2,n. 3,p.75-98,1989

Alem destes, ainda é possível citar os textos deDarwin , Maria Grahan e Gardner , que também fa-zem referências às casas caiadas de branco queexistiam em Salvador no período.

Diante de tais depoimentos, fica-se inclinado acrer que a caiação branca caracterizava a cidadede Salvador, pelo menos até meados do séc. XIX. Noentanto,pelo fato de a cidade estar voltada para oNoroeste, o sol, que incide sobre estas fachadasdurante boa parte do dia, acaba por esbranquecê--Ias, dando a impressão de alvura. ~ interessanteconsiderar este dado, portanto, como uma possívelexplicação às constantes referências sobre a pre-dominãncia do branco em Salvador. E, no caso deKidder, é importante relembrar que ele emprega dis-tintamente o termo "alvacentas", o que nao signi-fica, necessariamente, que seja branco.

Maximiliano de Habsburgo e quem vai, alem da des-crição do fronstipício, transmitindo uma idéiamais precisa dos demais: "... a-ó ,ütumena-ó ca-óa-ópO-ó-óuem eo~e~ aleg~e-6, cla~a~, 5azendo com que tu-do !tia e 6!tilhe"4. E, excepcionalmente, algumasedificações de maior vulto aparecem descritas commais apuro, chegando ate nós informaçoes sobre acoloração utilizada nas fachadas. ~ o que ocorrecom o antigo teatro são João (destruído pelo fogoem 1923), assim descrito: "Ne-ó-óe te!t~aço engue--óeo eno~me edi5Zcio do teat!to. com -óua-ópanede-ó ama-~~lo-la~anja e -óua-ó~nume!ta-ó janela-ó, panecendo

. d d - . .,. d .. ,,5ma~-ó um g!tan e epo-ó~"-o e ce!t~a~-ó... • Ou mesmosobre a igreja N.Sra.da SaGde: ", .. Naquela oca-

~ião a~ pa~ede~ e~xavam apena~ eaiad~; emjâ ~e pinxavam de azuL" 6.

Em relação às esquadrias, encontramos na obra deCarlos Ott algumas infomações sobre a pintura rea-lizada na igreja do Bonfim, entre 1817-1818: "6ieando aI inelulda~, xambêm a~ po~xa~, a ~e~empinxada~1 po~ den~~o, de azul. eom 6il.exe~ dou~ado~e, po~ 6o~a, ~impl.e~men~e eom ~in~a ve~de ã ba~ede óleo de linhaça". Segundo OTlEsmo autor/ "v..xainol1a-ç.ãode emp~egM duM eo~e~ na pinXUM dM POlttM não ê en-eOnXMda em o~ ig~ejM bMMM,que, Me o ~êe. XVIII,

ap~e~enxavam po~xa~ e janela~ pinxada~ de azul e,- 7no ~ee. XIX, de ve~de" • No entanto este tipo de

afimação mais detalhada nao deve ser consideradadefinitiva, sem que haja maiores estudos comproba-tórios.

Dentre a documentação encontrada e disponível nosarquivos de Salvador, a que nos foi de maior valiafoi a fotográfica, que, apesar da restrição da co-loração preta e branca, pôde oferecer-nos, semriscos de distorção, a observação da existência ounão de uma policromia local, ou mesmo quais oselementos das fachadas que eram pintados de brancoe mesmo o estado de conservação aparente das pin-turas. A limitação maior em se trabalhar com foto-grafias e por elas tratarem apenas da segunda me-tade do seco XIX.

traídas das fotografias sao mais completas que asde uma gravura, que, no caso, foi a segunda fonteiconográfica mais encontrada. Esperava-se ter aces-so a exemplares de aquarelas ou mesmo de telas aóleo sobre aspectos da cidade, o que não ocorreu -exceção feita a um 6ac ~imile a cores# do final doséc. XVIII, sobre o Solar Bandeira (bairro da So-ledade), que encontra-se no Instituto GeográficoHistérico (IGH) da Bahia. De qualquer maneira,mes-mo esta documentação a cores só seria fidedigna setivéssemos mais informação ou descrição sobre aimagem retratada ou sobre a confiabilidade do au-tor. Por exemplo, nada nos garante que a referidagravura do Solar Bandeira, de autoria do viajanteJulius Naher, tenha registrado a verdadeira colo-ração da cidade neste período, ou seja, fachadasbrancas com ornamentos de outra cor. Pode ter sidouma mera interpretação do autor, o que não ocorre-ria com uma foto, cujas informações são precisas,podendo ser complementadas e/ou confirmadas atra-vés de prospecções locais, de iconografia colori-da ou mesmo de textos descritivos.

A partir deste esclarecimento, passamos para a in-

terpretação das imagens que foram levantadas. Emse tratando de Salvador, foram especialmente abor-dados os bairros centrais da cidade, por estes te-rem sido os mais registrados pelos fotógrafos doséculo passado, alem de terem sido os mais densa-mente cons~ruidos. Correspondem às áreas do Comer-cio e da Cidade Alta (ladeira de são Bento até Pe-lourinho), sobre as quais foram selecionadas fotosde épocas distintas. Nas mais antigas (nos aüos 50do sec. XIX), a presença da policromia no conjuntoRUA,Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

das fachadas já pode ser observada, como é o casodas fotos atribuídas ao inglês Mulock (Foto 1).são, geralmente, edifícios geminados e sem recuofrontal, cujas fachadas principais se diferenciam~ das outras através do recurso de uso de coresdiferenciadas para cada unidade edificada. Apenasseus elementos decorativos (cimalhas, frisos,emol-duramentos, etc.) e caixilhos sao pintados apa-rentemente de branco, contrastando com as coresmais fortes utilizadas nas paredes. Estas, no ge-ral, aparecem com aspecto limpo e conservado, con-trastando com um ou outro edifício mais malcuidadoda área. Pode-se também observar que as empenas eos fundos destes imóveis não eram pintados com amesma freqüência que as fachadas principais e,mui-tas vezes, eram de coloração branca. Provavelmenteisto ocorria por serem áreas sem maior visibilida-de da rua e, portanto, sem importância ou, no casodas empenas, pela dificuldade de acesso. Da! en"RUA.Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

contrarroos muitas empenas revestidas coro telhascerâmicas, o que evitava a repintura, além do queas protegia mais do desgate das intempéries.

um outro aspecto observado foi a diferença de tra-tamento craroãtico nos pav~ntos ~Brreos de algu-mas fachadas, principalmente por lã existirem al-gun\ tipo de comercio, Na atual Rua Conselheiro Dan-tas, por exemplo, enquanto os demais pavimentosrepetiam a descrição convencional (paredes colori-das, com elementos decorativos e caixilhos bran-cos), ~ muitos dos pavimentos terreos pôde-se ob-servar as cercaduras em pedra aparente ou entãopintadas em escaiole, sendo que, em alguns casos,aprópria parede era pintada de outra cor ou atemesmo revestida de azulejo, destacando-se, assim,do resto do prédio.

um dado importante, extraído destas análises, foio de que os gradis existentes nas sacadas destespredios eram, em muitos casos, pintados em outrascores mais claras e não apenas de "grafite", comose pensa e se pratica nas atuais obras de restau-ro. Já as esquadrias não puderam ser analisadascom maior cuidado, pois em-geral estavam "escondi-das" pelas folhas de vidro ou então abertas parao interior. Apenas pôde-se observar que tanto ha-viam janelas coloridas como tambem brancas,enquan-to as portas eram quase sempre pintadas com cores:mais escuras.

As fachadas mais conservadas, coro aparência de re-cem-pintadas, tinham uma tonalidade mais escura, oque nos leva a concluir que, ao se dar uma colora-RUA,Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

ção mais forte no ato da pintura, já se previa asua descoloração em função do comportamento da tin-ta ã base de cal usada nas paredes,quando em con-tato com o sol e a chuva. Esta transformação decoloração de fachada pode ser cOIllprovadase obser-varmos com maior atenção as suas áreas ~ais prote-gidas contra a ação das intemp~ries ou mesmo daação humana, isto e, os pontos ~is altos e prote-gidos pelos beirais ou ci~lhas, que ao ~esmo tem-po estivessem distantes das possíveis infiltraçõesde água (calhas e condutores). Estas áreas sãosempre mais escuras, ass~ COIllOas fachadas recem--pintadas, o que prova a existência de uma dinâmi-ca da coloração das ruas da cidade,ou seja, não seesperava apenas uma cor quando se pintava um imó-vel,mas sim as várias intensidades desta cor, quepoderia ir de um vermelho, por exemplo, ate um ro-sa, num curto espaço de tempo. Logicamente que naoê possível precisar no tempo tais transformaçõesapenas com este tipo de dado, sendo necessário fa-zer experimentos com tintas ã base de cal.

Quanto às igrejas, parece que gerabnente eramcaiadas, destacando-se da paisagem pela sua bran-cura. Já nos edifícios publicas, pode-se observarcasos diversos: totalmente pintados de branco, comcores claras ou com cores fortes contrastando comos ornamentos em branco, a exemplo da AssociaçãoComercial e do teatro são João.

Ate o ~omento descreveu-se a área central de Sal-vador, a partir de um ponto de vista interno aosseus espaços urbanos. No entanto e i~portante ana-

lisarmos a visual que se tem desta área a partir domar, ou seja, da "entrada" da cidade e, portanto,deonde se tem o primeiro impacto da mesma, inspirandomuitas das descrições de viajantes.

Esta visual de Salvador nos motra, em primeiro pla-no, a Cidade Baixa (Comércio) com seus edifícios damesma altura, quase todos pintados com cores diver-sas entre si e coroados pelas coberturas em telhascerâmicas. Em seguida tem-se a encosta arborizadae,sobre esta, vê-se os fundos do casario da CidadeAlta, também pintados com cores diversas mas apa-rentando serem bem mais claras, esbranquiçadas, oque pode confirmar a idéia de que as fachadas prin-cipais (de coloração mais densa) eram repintadasoammais frequência,enquantoos fundosnem semprerecebiam alIEsnamanutenção,ficando sua pintura mais "desbotada"(foto 2).

Ainda neste panorama de Salvador, é possível ob-servar alguns edifícios que se destacam não só pe-la sua maior volumetria, mas também pela sua bran-cura. ~ o caso das igrejas, de alguns trapiches eda alfândega recém-construída, que se sobressaemna paisagem. No entanto, mesmo que estes edifíciostenham sido caiados de branco, é possível afirmarque a policromia já era um dos elementos caracte-rizadores da cidade em meados do séc. XIX.

Em seguida, como fator de comparaçao, foram anali-sadas algumas fotos de outros centros urbanos bra-sileiros no mesmo período, constatando-se que exis-tiam diferenças quanto ao tratamento cromático emsuas fachadas. Se no Rio de Janeiro foi percebidauma certa semelhança com Salvador, o mesmo nao sepode dizer dos altos sobrados geminados do centroRUA,Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

de Recife, que na .maioriadas vezes erqm bnlnoos,cem seuselementos decorativospintaaosde outra cor, quanéb naototalmente brancos (foto31. &n Ouro Preto,tarnEémse re-pete uma maior incidência de edi~lcios pintados debranco, com elementos de cores diversas.

Para finalizar, nos registros encontrados dos bair-ros mais afastados do centro de Salvador, pôdeser observado que as casas dos núcleos mais pobreseram, num primeiro momento, pintadas de branco,masà medida que tais núcleos se adensavam, inclusivecom casas de veraneio, aumentava o número das fa-chadas principais pintadas com outras cores, coin-cidindo com a introdução de elementos decorativosnas mesmas. ~ o caso dos bairros do Rio Vermeiho eda Barra, onde se comparou fotos de 1870 com fotosde 1885.

Sobre os bairros que se caracterizavam por uma po-pulação de renda mais alta, mesmo nas fotos maisantigas, já se percebe a predominància das facha-das coloridas. No entanto, no que se refere ao es-tado de conservação, notou-se que, nesses bairrosaristocráticos como a Vitória e o Campo Grande, asfachadas eram bem conservadas, o m~smo não aconte-cendo com as casas de Âgua de Meninos ou da ladei-ra dos Aflitos. Sobre as igrejas, em todas estasáreas periféricas elas continuaram a se caracteri-zar pela alvura, destacando-se das demais constru-çoes.

Retomando a idéia de que a cor das fachadas noBrasil está diretamente vinculada ã prática de serevestir os materiais construtivos com pintura(ex-ceção feita às telhas cerâmicas e aos acabamentosem pedra), é fundamental que se façam algumas re-ferênCias, mesmo que sucintas, sobre as tintas,suas técnicas de preparo e de aplicação, seus ma-teriais componentes, procedência, etc.

Primeiramente, sobre a aplicação das tintas, estapode ser feita por diversos processos, que se dis-tinguem pelos produtos que as diluem. As técnicasmais tradicionais são as seguintes: a pintura aágua ou caiação; a pintura a cola ou têmpera; apintura a óleo~ a encáustica e a pintura a fresco,

Desses processos, apenas a caiação e a pintura aóleo são destinadas às fachadas. No primeiro caso,a tinta é feita à base de leite de cal, à qual sepode adicionar diversos corantes, sendo utilizadatanto para paredes externas quanto para as inter-nas. Já na pintura a óleo, se empregava principal-mente o óleo de linhaça como diluente dos coran-tes, podendo ser aplicada em madeiras ou em estu-ques, em rebocos de paredes internas ou mesmo ex-ternas.

As demais técnicas, que se destinavam mais a inte-riores, foram sendo deixadas de lado, mais pelacomplexidade de aplicação e pelo rareamento demão-de-obra especializada. Para isto também con-

tribuiu o surgimento das tintas industrializadas,que simplificaram o processo de pintura na cons-trução civiL

Para cada uma dessas técnicas tradicionais, erautilizada uma mão-de-obra especializada, Segundoa classificação de Santos segurad08, o pintorvu1gar de construção civil era quem faria as com-posições e combinações das tintas, para então em-prega-las. O pintor fingidor, além do conhecimen-to do pintor vulgar, deveria especializar-se emimitar madeiras, marmores, etc. Havia o brochante,um pintor secundario que só aplicava cores lisas,sem saber como preparar as tintas. Quanto às caia-ções, brancas ou coloridas, eram de responsabili-dade do ~iro e seu servente, que preparavamestas tintas à base de agua. Além destes, tem oestucador, que poderia fazer-se de pintor, dese-nhando os traços de painéis interiores, pintandosuas faixas, dando aguadas, etc.

Ha também a recomendação do preparo das superfí-cies: nA p4epanaç~o p4~via da~ ~upen6Zcie~ a pin-ta4, quatque4 que ~eja a ~ua natuneza, de~empenhapapet pnimondiat, chegando qua~i, ao tado deta, a~e4 apticaç~o da~ :tinta~ coi~a ~ecundâ4ia, (...)Ve~te apa4etho ou pnepa40 depende a beteza e a~otidez do tnabathon9•

Assim como as atuais tintas industrializadas, asantigas, de maneira geral, deveriam ser compostasde pigmentos (partículas em pó, que lhe conferemcor); veícu10s (resinas responsáveis pela forroa-RUA,Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

çao de película protetora); solventes (facilitama mistura dos pigmentos e adequâm a tinta ãs con-dições de pintura) e, eventualmente, aditivos(substâncias capazes de modificar certas proprie-dades da tinta, como os secantes, fungicidas,etc.).No caso das tintas antigas, um mesmo componentepoderia ter, ao mesmo tempo, a função de outro(exemplo: certos pigmentos funéionam- também comoaditivos)lO.

Na realidade, esta subdivisão demonstra o grau deespecialização a que chegou a moderna indústria detintas. No entanto são esclarecimentos importan-tes, visto que na consulta a viajantes e cronistasdo século passado encontrou-se o uso indiscrimina-do dos termos "tinta" e "pigmento", cabendo, por-tanto, perceber a diferença entre seus significa-dos.

Em se tratando de pigmentos, estes poderiam ser deorigem vegetal, mineral ou animal (importados ounão). No caso do vegetal, destacou-se a cultura doanil proveniente da anilelra Cindigófera), queteve seu papel de destaque na economia da Provín-cia da Bahia, sendo, inclusive, produto de expor-tação. Segundo o historiador Braz do Amaralll, erade se lamentar o desaparecimento do cultivo destaplanta, que fora tão lucrativa no séc.XIX e que,emdecorrência de possíveis pressões de fabricantesde produtos químicos, passou a ser importada.

Sobre os pigmentos de origem mineral,' destacam-seos pós de óxido de ferro, muito utilizados na com-

posição das tintas, Além destes pós, Vilhena12 ci-ta a tabatinga, ou seja, certas argilas brancas,amarelas ou mesmo encarnadas, que eram encontradasnão só na Bahia, como em todo Brasil. Este produ-to, com sua coloração variada, era usado na prepa-raçao do reboco, substituindo, também, a caiação.

Q "" 1 d - o o 1013uanto a ca , segun o Inac~o Acc~o ~ ,lhor qualidade era a importada, sendoaqui uma de qualidade inferior (cal demesmo existindo jazidas de calcãrio dequalidade.

a de me-fabricadaostras),

excelente

Apesar de nao ter tido informações sobre a cultu-ra da cochonilha (inseto com a feição de perceve-jo) na Bahia, sabe-se, através de estudo realizado~obre o Rio de Janeiro14, que lã a sua produçãoassim como a do anil eram consideradas as mais no-táveis do Brasil, no séc. XVIII. Da cochonilha eraextraído um líquido escarlate que, provavelmente,deve ter sido levado para outras localidades dopaís.

A complementação destes dados fica prejudicada,en-tre outros pontos, pela ausência de referências,nos censos da época, sobre as pequenas indústriase manufaturas de tintas e pigmentos. ~ o que indi-cam os estudos de Pompponet e Bonfim, realizadospelo CPE (Centro de Pesquisas e Estudos do Estadoda Bahia): til:: de .6e e.6:tltarthaJt,.6obJte:tudo, a de.6a-paJtec~mert:to, apõ.6 1868, de ~:tert.6 cama moeda.6. aJt-mamert:to.6, 6eJtJtagert.6, mãqu~rta.6 e qulm~ca (~rtc~u~rtdodJtoga.6 e :t~rt:ta.6),.6em que :tertham .6~do 6urtdada.6

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na Bahia óâbltic.af.> deM ef.>pltodutof.> ,,15.Provavelmen-te, segundo o mesmo estudo, tratav~-~e de setoresde atividade que funcionavam ainda a nível deprodução artesanal.

Quanto aos produtos importados, o mesmo estudo doCPE indica a falta de complementaridade entre pro-dutos importados e produtos locais. Porem existiaa complementação dentro de um mesmo setor; ou se-ja, importava-se o produto Íino para as classes do-minantes, enquanto o produto grosseiro, de Íabri-cação local, era para o uso da população em ge-ral16•

No caso das tintas, isto pode ser comprovado atra-vês de indicações do início do sêc. XIX, contidasem documentos sobre a igreja do Bonfim, onde dizque: "•.. f.>egaf.>tou maif.> tinta a ôR-eo impolttadaque nac.ionaR- ( •.. ) o ôR-eo de R-inhaça, o oc.lte e oamalteR-o ainda vinham de PolttugaC17•

Segundo uma pesquisa financiada pela ABRAFATI (As-sociação Brasileira dos Fabricantes de Tintas)18,tem-se registro de que as primeiras fábricas detintas do Brasil, de caráter industrial, foram aTintas Hering, em Blumenau (1886), e a Usina sãoCristovão, no Rio de Janeiro (1904). A primeirapzoduzia artigos para artistas, enquanto a segundaproduzia tintas em pó, para um mercado mais amplo.Foi durante a Primeira Guerra Mundial, com o blo-queio das importações, que estas se desenvolveram,sendo que a Usina já estava auto-suficiente naprodução de vários componentes químicos. As pes-RUA,Salvador,v.2,n.3,p.75~98,1989

quisas avançaram também no campo dos corantes ve-getais, para substituírem as anilinas e outros ma-teriais importados, A partir daí, pequenas indús-trias foram surgindo ou se incorporando a outrasde médio ou grande porte, alterando o quadro deimportações do país, sendo mais utilizadas as ma-térias-primas locais.

Contudo, apesar dos avanços, a moderna indústriade tintas não responde necessariamente às eXigên-cias do restauro. No caso das antigas paredes dealvenaria mista, as tintas à base de cal ainda têmmelhor desempenho que as sintéticas, por serem~scompatíveis com as argamassas destas construções,permitindo uma melhor respiração das paredes, Suadesvantagem está, principalmente, n 'oto de seruma tinta de difícil conservaçao, exigindo cons-tante manutenção.

Como foi colocado de infcio, nem todos os aspectossobre a questão da cor da cidade foram ,iliordados,cabendo, portanto, que se deixem indicado~ certosdesdobramentos desta pesquisa, que ainda se fazemnecessários para sua complementação. Neste senti-do, alguns vetares foram identificados, sendo queo principal é aquele que se refere à história dosmateriais e.técnicas tradicionais de pintura, paraonde se deveriam centrar os esforços para esgotar--se algumas fontes documentais ainda não pesquisa-das. Tratam-se de informações que, na realidade,servirão de base para os demais desdobramentos;daí

Em seguida, destaca-se uma pesquisa de cunho maistecnológico, que analisaria o comportamento destesmateriais ã luz de uma problemática atual. No cam-po do restauro de edifícios, este conhecimento depintura tradicional de fachadas, acoplado ao co-nhecimento dos modernos materiais de pintura, po-derá contribuir para a definição de novos métodosde intervenção, que respondam mais satisfatoria-mente aos atuais problemas de manutençâo e conser-vaçao de edifícios antigos.

Outro eixo de pesquisa a ser desenvolvida é a iden-tificação da coloração das antigas fachadas, atra-vés de prospecções in lOQO e coleta de amostras.

Para finalizar, ainda citamos uma nova possibili-dade que se abre para os trabalhos de leitura dasantigas fotos da cidade, que é o aproveitamento detécnicas de colorização de imagens em preto ebranco, atravês de computador. Este processo semdúvida enriquecerá profundamente um trabalho comoeste, que pretende resgatar, com maior precisão,ascores tradicionalmente utilizadas nas edificaçõesda cidade de Salvador no séc. XIX.

1. Baseado no relatório conclusivo de uma pesquisaapoiadafeIo CNPq, em 1989, intitu lada "A cor naarquitetura baiana: uma contribuição ã técnicado restauro", e realizada pelas Autoras.

2. Kidder, p.53.RUA,Salvador,v.2,n.3,p.75-98,1989

3. Maximiliano, p.70.4. Ibid., p,72,5. Ibid., p,88,6. Ott, p.297.7. Ibid., p.57.8. Cf. Sesuxado, p.206-20J.9. Ibid., p.277.

10, CÍ. Glasurit do Brasil.11. CÍ. Amaral, p.207-208,12. Cf. Vilhena, v.3, p.730.13. Cf. Silva, v.6, p.196.14. CÍ. S~inara, p,31,15. Cf. Sampaio & Silva, p.253.16. Ibid., p.252.11. Ott, op,cit.,p.46.18, Telles, p.24.

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