anÁlise planejamento estratégico em saúde: uma discussão da … · 2005-07-21 · anÁlise...

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ANÁLISE Planejamento Estratégico em Saúde: Uma Discussão da Abordagem de Mário Testa Ligia Giovanella * * Professora Assistente do De- partamento de Administração e Planejamento em Saúde, ENSP / Fiocruz. A partir de um estudo da produção teórica recente de Mário Testa (1983-7), é feita uma caracterização de sua proposta atual para o planejamento em saúde. Essa caracterização» porém, não leva à conformação de um método de planejamento, pois Testa propõe um modo de entender os problemas de saúde e os processos de planejamento, apresentando apenas alguns elementos para esse processo. Ao compreender os problemas de saúde como socialmente determinados, Testa interessa-se pelo comportamento dos atores sociais, e põe ênfase na analise das relações de Poder e na consideração das práticas de saúde, enquanto práticas ideológicas, conformadoras de seus sujeitos. Testa, assim, avança de uma proposta de planejamento estratégico em saúde para um pensar a ação política em saúde. Poder e Ideologia são categorias que fundamentam esse pensar,, sendo escolhidas para a análise de sua proposta. É realizado um estudo sobre Poder e Ideologia, discutindo-se as compreensões de Testa a respeito. Dessa discussão, conclui-se que as práticas de saúde, enquanto práticas sociais, são práticas ideológicas e afetam as concepções de mundo de seus sujeitos, sendo difícil, porém, garantir a direcionalidade da mudança dessas concepções.E argumenta-se favoravelmente ao conteúdo transformador da proposta de Testa para o planejamento em saúde, por desvendar os conteúdos de Poder nas ações em saúde, não escamoteando as bases reais da dominação, e por ser transparente nos deslocamentos de Poder que objetiva. O enfoque estratégico de planejamento em saúde pode ser entendido como formulações que rompem com a normatividade de um "deve ser" que se impõe sobre a realidade. Nestas, propõem-se processos de planeja- mento que objetivam alcançar o máximo de liberdade de ação a cada ação realizada. Para tanto, considera-se o problema do poder, admitindo-se o conflito entre

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ANÁLISE

Planejamento Estratégico em Saúde:Uma Discussão da Abordagem de Mário Testa

Ligia Giovanella * * Professora Assistente do De-partamento de Administração ePlanejamento em Saúde,ENSP / Fiocruz.

A partir de um estudo da produção teórica recentede Mário Testa (1983-7), é feita uma caracterizaçãode sua proposta atual para o planejamento em saúde.Essa caracterização» porém, não leva à conformaçãode um método de planejamento, pois Testa propõeum modo de entender os problemas de saúde e osprocessos de planejamento, apresentando apenasalguns elementos para esse processo. Ao compreenderos problemas de saúde como socialmentedeterminados, Testa interessa-se pelo comportamentodos atores sociais, e põe ênfase na analise das relaçõesde Poder e na consideração das práticas de saúde,enquanto práticas ideológicas, conformadoras de seussujeitos. Testa, assim, avança de uma proposta deplanejamento estratégico em saúde para um pensara ação política em saúde.Poder e Ideologia são categorias que fundamentamesse pensar,, sendo escolhidas para a análise de suaproposta. É realizado um estudo sobre Poder eIdeologia, discutindo-se as compreensões de Testa arespeito. Dessa discussão, conclui-se que as práticasde saúde, enquanto práticas sociais, são práticasideológicas e afetam as concepções de mundo de seussujeitos, sendo difícil, porém, garantir adirecionalidade da mudança dessas concepções.Eargumenta-se favoravelmente ao conteúdotransformador da proposta de Testa para oplanejamento em saúde, por desvendar os conteúdosde Poder nas ações em saúde, não escamoteando asbases reais da dominação, e por ser transparente nosdeslocamentos de Poder que objetiva.

O enfoque estratégico de planejamento em saúdepode ser entendido como formulações que rompem coma normatividade de um "deve ser" que se impõe sobrea realidade. Nestas, propõem-se processos de planeja-mento que objetivam alcançar o máximo de liberdadede ação a cada ação realizada. Para tanto, considera-seo problema do poder, admitindo-se o conflito entre

forças sociais com diferentes interesses e com umavisão particular sobre a situação-problema na qual seplaneja, fazendo parte do processo de planejamentoa análise e a construção da viabilidade política.

Tendo essa compreensão, postulo a existência detrês vertentes desse enfoque, elaboradas por autoreslatino-americanos: o "planejamento situacional", for-mulação de Carlos Matus para a planificação econômi-co-social global, que vem sendo adaptada para a saúde(Matus 1981, 1982-1987); a "proposta de Medellin",uma linha desenvolvida a partir de discussões promovi-das pela OPAS e na Faculdade Nacional de SaúdePública de Medellin, divulgada em documento da auto-ria de Juan José Barrenechea e Emiro Trujillo Uribe"STP 2000: Implicaciones para la Planificación y Ad-ministración de los Sistemas de Salud" (Barrenecheae Trujillo — 1987); e "as propostas programático-es-tratégicas" de Mário Testa.

Dessas vertentes, escolho a produção de Testapara estudo. Testa é ator importante do planejamentode saúde na América Latina: participa da elaboraçãoe difusão do método Cendes/OPAS e, a partir da críti-ca a esse método e sua autocrítica, faz suas proposi-ções. Como resultado de suas reflexões, propõe parao planejamento de saúde "integrar o cálculo tradicio-nal — referente ao diagnóstico e à proposta adminis-trativa — com a análise estratégica da estrutura depoder setorial, e a análise das repercussões das açõespropostas sobre esta estrutura, na tentativa de dese-nhar uma maneira de aproximar-se da posição de Ha-bermas: criar uma estrutura comunicativa que devolvaao povo as ferramentas científicas necessárias parasua liberação" (Testa — 1986).

Testa não apresenta essa proposta ordenada emtexto único. Para conhecê-la e discuti-la, inicialmente,realizei um estudo de sua produção recente (1983 —1987), identificando os fundamentos e elementos desuas propostas pro gramático-estratégicas.

OS FUNDAMENTOS DA PROPOSTA DE MÁRIOTESTA

Considero como fundamentos dessa proposiçãode Testa para o planejamento: sua compreensão doplanejamento como prática histórica, o postulado decoerência que apresenta sua interpretação dos proble-mas de saúde enquanto problemas sociais e sua com-preensão e análise do Poder, na sociedade e no setor(Testa, 1985 - 1986/1987).

Para Testa, o propósito do processo de planeja-mento em saúde é de mudança social. Pensar na trans-formação social significa pensar na construção de umanova sociedade. Intervir na construção da história.

Pensar o planejamento como prática histórica. Discute,então, as estratégias de transformação social historica-mente gestadas, utilizando conceituação gramsciana.Considera que a análise desses processos históricosmostra uma combinação de estratégias de "ocupaçãode espaços" e de "enfrentamento" ("guerra de trin-cheiras" e "assalto ao poder").

O propósito de mudança determina um diferentemétodo, pois considera o método necessariamente rela-cionado aos propósitos perseguidos. Método e propósi-tos, por sua vez, relacionam-se com a organizaçãodas instituições encarregadas de executar as ações per-tinentes ao alcance dos propósitos. Postula, então,a existência de relações de determinação e condiciona-mento entre propósitos, método e organização. Rela-ções essas que devem ser analisadas nas condiçõesparticulares de cada formação econômico-social, quan-do se discute um método de planejamento. Testa pro-põe um modo geral de análise dessas relações parasociedades capitalistas e dependentes, diferenciando-as dos países capitalistas desenvolvidos. São estas ne-cessárias relações entre propósitos, método e organiza-ção que Testa apresenta em seu "Postulado de Coerên-cia" (Testa, 1987).

Testa entende saúde como "o jeito de andar avida" e os problemas de saúde, tanto de situação desaúde como de organização setorial, como problemassociais complexos nos quais intervém inúmeras variá-veis relacionadas de formas muitas vezes desconhe-cidas.

Considera que, para os problemas de situação desaúde, a análise que mais tem conseguido aproximar-sedessas complexas relações é a realizada pela epidemio-logia social. Na epidemiologia social, o processo saú-de-doença é entendido como expressão particular doprocesso social, sendo as desigualdades, no sofrer eadoecer entre grupos de pessoas, consideradas comodecorrentes de diferenças de classe social.

Os problemas de organização setorial, represen-tados, em grandes termos, pela alocação social de re-cursos para a atenção à saúde, são também problemassociais. Fazem parte das questões relacionadas à repro-dução da força de trabalho, e estão determinados eco-nomicamente por necessidades da acumulação e, politi-camente, pelas lutas dos trabalhadores por sua condi-ção de vida atual, e acerca do futuro ordenamentosocial (Testa, 1985).

No entender de Testa, proposições em Saúde so-mente serão eficazes a longo prazo, quer dizer, levarãoà resolução dos problemas de saúde, se fundamentadasna interpretação da determinação social do processode produção desses problemas, pois esta interpretaçãoé que mais dá conta da sua complexa determinação.

Os problemas de saúde, enquanto problemas so-ciais, só podem ser resolvidos a partir do social mesmo.Pois a totalidade social não é divisível, não pode serseparada em partes. Não e possível modificar o socialcom propostas setoriais, diz Testa. As propostas seto-riais podem, apenas, criar condições que abram o cami-nho para a modificação do social (Testa, 1986).

Para mudar o social, é necessário pensar na ques-tão do Poder, pois o Poder é categoria central naanálise da dinâmica social. Significa pensar em comoa forma de implementar uma ação de saúde — a estraté-gia — leva a alcançar um certo deslocamento de poder— uma política — favorável à resolução do problema.Assim, as estratégias em saúde extrapolam o setorial,abarcando o conjunto social, e dão eficácia às propos-tas a longo prazo. Para isso é necessário conhecero Poder: o que é, suas determinações, suas relações,seus recursos, e encontrar formas para analisá-lo emsua distribuição setorial (Testa, 1986).

A PROPOSTA

Identificados esses fundamentos das suas proposi-ções, seguindo a proposta de Testa para o planeja-mento de saúde inicialmente referida, podemos, assim,ordenar os conteúdos de seus trabalhos: o diagnósticode saúde, constituído pelos diagnósticos administra-tivo, estratégico e ideológico e pela síntese diagnósti-ca; e as suas propostas programático-estratégicas: aconsideração dessas propostas, enquanto processos,pela análise de seus tempos técnicos e políticos, osprogramas de abertura, avanço e consolidação, e suasestratégias de formas organizativas, democráticas eparticipativas (Testa, 1986).

Através do diagnóstico, é feita a análise da reali-dade de saúde. Essa análise não é neutra e está determi-nada pelo propósito que se tenha. O propósito, paraTesta, é de transformação das relações do poder, atra-vés da realização de ações em saúde. Esse propósitoproduz um viés particular no diagnóstico: enfatiza-sea análise das relações de Poder em Saúde.

Para um melhor conhecimento dos problemas desaúde, Testa propõe três tipos de diagnóstico: adminis-trativo, estratégico e ideológico. O diagnóstico admi-nistrativo é parte da análise e cálculo tradicionais doplanejamento de saúde. Através desse diagnóstico, po-pulação, doenças, mortes, recursos disponíveis e ativi-dades realizadas em saúde são enumerados e quantifi-cados. Cadeias epidemiológicas e nós técnicos críticossão identificados. A partir de critérios técnicos e deeficácia e eficiência, recursos e atividades necessáriossão calculados.

O diagnóstico estratégico é a análise das relaçõesde poder no setor. Neste diagnóstico, são identificadase analisadas as desigualdades, na situação de saúdee na atenção à saúde, entre grupos sociais, determi-nadas por diferenças de classe social. Internamenteaos serviços, analisam-se as relações de poder queaí ocorrem, e identifica-se a distribuição dos três tiposde poder em saúde: o técnico, o administrativo e opolítico. Na composição setorial analisa-se o poderadministrativo concretizado pelo manejo de recursose mediado pelo financiamento, diagnosticando os gru-pos sociais relacionados aos processo de financiamen-to.

O diagnóstico ideológico é o diagnóstico da ideo-logia dos grupos sociais com interesses em saúde. Éo diagnóstico de suas compreensões sobre a saúdee a sociedade — consciência sanitária e social — esuas práticas correspondentes.

Após esse esmiuçamento da realidade, através dostrês diagnósticos, é realizada a síntese diagnóstica:um momento integrador que reconstrói a realidade desaúde analisada. Através da síntese, identifica-se oespaço social setorial, enquanto sua estrutura de Po-der. São identificados todos os atores e possíveis ato-res sociais de saúde e seus interesses, e analisadassua força, suas relações e participação no debate dasaúde.

A síntese diagnóstica é momento de início daformulação das propostas programático-estratégicas.Propostas cuja intenção é realizar ações de saúde, obje-tivando mudanças. É pensadas desde a análise de suaviabilidade e de suas repercussões sobre a estruturade poder na sociedade: as relações de poder entreos grupos sociais, dentro e fora do setor saúde. Aação em saúde é a parte programática da proposta.A estratégia é a forma de implementar essa ação, éo comportamento dos atores, objetivando adquirir li-berdade de ação para alcançar o objetivo buscado detransformação das relações de poder.

As propostas programático-estratégicas são pen-sadas enquanto processos que se realizam ao longodo tempo. Tempos técnicos e políticos, desencadeadospelas ações propostas, são avaliados.

Testa propõe três tipos de programas: de abertura,de avanço e de consolidação. A partir do diagnóstico,programas de avanço, contendo as mudanças conside-radas necessárias, são elaborados. Com o intuito decriar viabilidade para as mudanças, através da constru-ção de uma base social de apoio e pela negociaçãoentre as forças sociais, programas de abertura sãoformulados. Pela institucionalização das mudanças eatravés da realização de medidas materiais que demons-trem concretamente a positividade das mudanças, estas

são consolidadas adquirindo permanência. Estes sãoos programas de consolidação. O conjunto de progra-mas, com suas formas organizativas correspondentes,conforma o processo de mudança.

As propostas programático-estratégicas objetivamacumular poder para os dominados e mudar as relaçõesde poder, através da formação de uma consciênciasanitária social e de classe. A implementação dos pro-gramas de avanço, através de formas organizativasdas práticas propostas, democráticas e participativas,dão aos programas essa direcionalidade. Formas orga-nizativas internas democráticas, com a criação de umaequipe de saúde solidária e colaborativa, são propostascomo mecanismo para a construção da igualdade: amudança das relações de poder. Formas organizativasinternas democráticas são inseparáveis da abertura dosetor saúde à participação direta da população. Estaé uma proposta de redistribuição de poder, objetivandoconstituir a população em ator social. A participaçãoda população, através de suas organizações, no debatede saúde, amplia esse debate e torna-a ator socialem saúde.

Nesse ordenamento, como já disse, sigo a acimareferida proposta de Testa para o Planejamento emSaúde. Em síntese, pode-se dizer que seu diagnósticoadministrativo faz referência ao cálculo tradicional:contabilização e análise do rendimento dos recursosexistentes, relação do contabilizado com um ótimoconvertido em norma e cálculo dos recursos necessáriospara a execução das ações propostas. Os diagnósticosideológico e estratégico, juntamente com a síntesediagnóstica, põem ênfase na análise da estrutura depoder setorial. Os programas de abertura, avanço econsolidação, elaborados a partir desta análise, consi-deram as repercussões das ações propostas sobre essaestrutura de poder. As formas organizativas democrá-ticas e participativas pretendem dar direcionalidadeaos processos desencadeados, acumulando poder paraas classes dominadas/subordinadas. Internamente aosserviços, alterando a distribuição de poder em seufavor, e externamente, através da mudança na cons-ciência que podem provocar, influenciando na disputade poder na sociedade e constituindo grupos de popula-ção como atores em saúde.

DISCUSSÃO

Mário Testa faz uma proposta acerca do planeja-mento de saúde, porém, não propõe um método deplanejamento. Propõe um modo de entender o processode planejamento e dá uma direcionalidade a esse pro-cesso, mas não instrumentaliza o processo. Não propõeum conjunto ordenado de procedimentos e técnicas

de intervenção em complexas situações de conflito:um método de planejamento estratégico.

Considero que planejar em situações de conflitorequereria uma série de técnicas e procedimentos quepudessem ser seguidos, seqüencialmente, ou realizadosem momentos simultâneos e que dessem conta: daabordagem da complexidade social, em sua totalidade,expressada, com especificidade, em relação à saúde;da interação entre as diversas forças sociais; e da varia-bilidade e incerteza que significa tratar com o futuro,possibilitando a realização do "deve ser".

Ora, a realidade social não é regida por leis quese repetem. Na realidade social é possível, a partirde sua estruturação econômica, delinearem-se tendên-cias: possibilidades com diferentes probabilidades paraos acontecimentos. Tendências, mas não leis, porquehá uma interação entre o econômico e o político. Por-que uma suposta dinâmica social necessária, determi-nada objetivamente, a partir das relações econômicasatuais, é inseparável das iniciativas subjetivas das pes-soas, das ações humanas livres (Konder, 1988). É inse-parável da ação e luta de homens e mulheres reunidossegundo interesses comuns em classes/grupos sociais.A ação das classes/forças sociais em disputa e lutanão pode ser previamente determinada pelo estabeleci-mento de leis. O resultado de enfrentamentos e alian-ças não é previsível. Querer fazê-lo significa instituiruma normatividade da política, uma normatividade pa-ra as relações de poder.

"Tendência não é destino" (Ansoff, 1983). "Ascircunstâncias fazem os homens, assim como os homensfazem as circunstâncias" (Marx, 1986), e aí estáa possibilidade do planejamento, possibilidade de im-primir direção à ação futura, tanto maior quanto maisampla, mais coletiva, a vontade da modificação. Oque não é possível é dar conta de toda a complexidadeque é a sociedade e o tratar com o futuro — principal-mente em situações de conflitos de vontades advindosde interesses antagônicos — através de uma série detécnicas e procedimentos. É possível, apenas, aproxi-mar-se dessa complexidade, e Testa propõe alguns ele-mentos para o planejamento em saúde.

Um dos principais elementos que Testa apresentapara um processo de planejamento é o diagnóstico.Nos diagnósticos propostos por Testa, são apresen-tadas algumas técnicas para cálculo de indicadores eanálises de problemas, mas essas, no conjunto, nãoconformam um roteiro a ser seguido para a identifi-cação e explicação dos problemas de saúde. Mais doque uma série de procedimentos, os diagnósticos cons-tituem um quadro de análise para se pensarem os pro-blemas de saúde, um modelo explicativo orientador

do esmiuçamento da realidade, necessário para o levan-tamento e compreensão dos problemas de saúde.

Os programas de abertura, avanço e consolidaçãotambém não podem ser considerados, enquanto técni-cas ou procedimentos, partes de um método, pois nãocontêm instrumental para a sua elaboração. São orien-tações para se pensarem processos de planejamentoestratégico e não metodologia de elaboração de progra-mas ou técnicas de análise de viabilidade: são orienta-ções para um pensamento estratégico.

A apresentação de três tipos de programas põeênfase na necessidade da construção ativa da viabili-dade e na importância da permanência da viabilidadepara a consolidação das mudanças implementadas. Osprogramas de abertura põem ênfase nas relações depoder, os de consolidação, na ideologia e os de avançocorrespondem ao "deve ser". Programas de aberturae consolidação têm conteúdos diferentes, mas ambosreferem-se à questão da base de apoio. Os de abertura,apoio para a decisão sobre o avanço, e os de consoli-dação, apoio para garantir a permanência do avanço.Em ambos, Testa afirma a importância do poder, en-quanto ideologia nesse processo de mudança. E, porentender a ideologia como relação dialética entre sabere prática, Testa propõe formas organizativas democrá-ticas e participativas que, no seu entender, contribuempara a formação de uma nova ética de solidariedadee transparência que oriente novas práticas sociaistransformadoras, pois, ao compreender os problemasde saúde, enquanto determinados socialmente, e o se-tor como parte inseparável da totalidade social, paraTesta, somente práticas sociais globais transformado-ras poderão levar a, e consolidar, mudanças em saúde.

Sua proposição deixa de ter, assim, uma especifi-cidade setorial para tratar de influenciar na construçãoda história, imprimir direção aos processos sociais.

Pensar a ação de homens e mulheres na construçãoda história, na construção da realidade social, é pensara ação política: pensar as relações de poder na socieda-de. Imprimir direção aos processos sociais é pensarna ampliação de uma vontade, tornando-a coletiva.Pensar uma vontade que é ação transformadora signi-fica pensar a relação de Poder não apenas como repres-são, mas também como Ideologia.

Este é o caminho de Testa e, por isso, avançade uma proposta de planejamento estratégico em saúdepara um pensamento estratégico, um pensar a açãopolítica em saúde. E, neste pensar a ação política,Poder e Ideologia são as categorias fundamentais e,por isso, as escolho para a análise que realizo de suasproposições.

Testa está interessado no comportamento dos ato-res sociais, pois é no comportamento dos atores que

está a possibilidade de intervenção na construção dahistória direcionada à transformação das relações dePoder na sociedade. Comportamento e consciência —prática e concepção de mundo — são, para Testa, inse-paráveis. Transformando-se as práticas, transforma-sea consciência, transformando-se a consciência, trans-formam-se os comportamentos, por isso, sua ênfasena consideração do Poder como Ideologia, e a impor-tância dessas categorias para analisá-lo.

PODER

Para discutir o Poder em Testa, é necessário estu-dar o Poder. Na relação entre pessoas e coisas, oucoisas e coisas, o Poder tem um significado de capaci-dade que, aplicada sobre um objeto, produz um efeitonesse objeto, modifica esse objeto (Stoppino, 1986).

Na relação entre pessoas, uma a uma ou entregrupos, ainda de forma descritiva, o Poder não é umacapacidade que se detenha, é uma relação de comporta-mentos, onde o comportamento de uma pessoa ou gru-po, de forma intencional e interessada, modifica ocomportamento de outra pessoa ou grupo (Weber,1974). É relação desigual, onde um é sujeito e outroobjeto do Poder e que subentende sempre conflito.

Esta, porém, e apenas uma descrição da relaçãode Poder. É através da discussão da Política e doEstado que podemos aproximar-nos da essência do Po-der, das suas reais determinações. Política pode serconsiderada como tudo o que está relacionado coma distribuição, deslocamento ou conservação de Poder,e o Estado entendido como a maior organização políti-ca. Poder, Política e Estado muitas vezes confundem-se. Bom exemplo dessa confusão, deste ser a mesmacoisa, é quando considera-se a ciência política, porvezes, como a ciência do Poder, por vezes como aciência do Estado.

Desde a origem do Estado Moderno, sua análiseé inseparável da discussão do poder. O Estado é Poderabsoluto, mantido pelo temor, em Maquiavel. Estado-Leviatã, em Hobbes: Poder imanente à natureza huma-na, que é cedido em contrato ao soberano, fundandoo Estado, para garantir a propriedade e acabar coma guerra permanente do "estado de natureza", pois"o homem é o lobo do homem". Estado: Poder absolu-to e irresistível do soberano, garantido pela força.

Em Locke, o contrato funda o Estado e a socieda-de. Estado que garante a propriedade, mas tambéma igualdade e a liberdade do "estado de natureza".Acordo garantido agora pelo consentimento. Homenslivres que se acordam entre si e instituem um governolegítimo.

Na mesma linha de contrato entre homens livrese iguais, Rousseau: "Todos nascem livres e iguaise são iguais perante a lei". A lei expressa a vontadegeral. A vontade geral é soberana. O Poder funda-sena vontade geral, e o Estado representa a vontadegeral (Chevallier, 1980).

Marx e Engels rompem com a teoria do Estado,do Poder fundado no contrato, deixando de lado o"deveria ser" e o "parece que é", ao analisarem associedades capitalistas européias de sua época. Na aná-lise histórica da sociedade e do Estado realizada porMarx e Engels, o Estado é produto da divisão dasociedade em classes, e resulta de um processo atravésdo qual a classe economicamente dominante torna-sepoliticamente dominante afirmando seu Poder sobrea sociedade inteira. Poder organizado de uma classepara a opressão de outra, que garante a reproduçãoda divisão da sociedade em classes. A sociedade queanalisam Marx e Engels não é um imaginário estadode natureza, onde todos seriam, intrinsecamente, bonsou maus, mas a sociedade de seu tempo, onde a igual-dade e a liberdade preconizadas pelos liberais burgue-ses são a liberdade do cidadão, não mais servo emvender a sua força de trabalho, e a livre concorrênciano mercado; igualdade entre trabalhadores livres e ca-pitalistas, quando se encontram no mercado trabalha-dores que vendem a sua força de trabalho e proprie-tários dos meios de produção que a compram e osexpropriam da riqueza que produzem. É sociedade divi-dida em classes, onde o Estado é poder organizadode uma classe para opressão de outra. Estado de inte-resses particulares de uma classe, e não da vontadegeral (Marx e Engels, 1975), (Gruppi, 1986). E, refor-ça Lenin, todo o Estado é ditadura de classe: órgãode opressão de uma classe sobre outra (Lenin, 1974).

É na análise marxista que encontramos, então,a determinação fundamental do Poder: o Estado nascecom as classes e com a luta de classes. Não estamosmais frente a justificativas do Poder, mas, sim, frenteaos fundamentos do Poder: a divisão da sociedadeem classes. Divisão da sociedade, em classes, pelaapropriação privada dos meios de produção. Classesdefinidas pelos diferentes lugares ocupados pelas pes-soas nas relações de produção.

Considerar apenas esta determinação econômicasignifica, para Carlos Nelson Coutinho, ter uma com-preensão restrita sobre o Estado. Esta compreensãoque, enquanto conhecimento, situa-se no nível de abs-tração do modo de produção, onde contrapõem-se bi-polarmente duas classes fundamentais, diz ele, deveser articulada com as determinações mais concretasque resultam da análise de cada formação econômico--social atual, cada vez mais complexas. Deste modo,

amplia-se o conceito de Estado e aproxima-se maisde sua realidade concreta, síntese de múltiplas determi-nações, introduzndo-se novas determinações "... nãoapenas na esfera econômica (articulação hierarquiza-da de diferentes modos de produção) e na social (com-plexificação da estrutura e dos conflitos de classe),mas também na esfera do político (novas característi-cas do fenômeno estatal e maior especificação de seupapel na reprodução global da sociedade" (Coutinho,1987).

A sociedade e o Estado tornam-se mais comple-xos. Mais complexas, também, tornam-se as análisesmarxistas sobre o Estado e o Poder. Gramsci tratade um período histórico onde já ocorreu uma maiorsocialização da política, os direitos políticos estão maisdesenvolvidos, e é na Política a sua ênfase. Sociali-zação da política que amplia o Estado, fazendo-o avan-çar sobre a sociedade civil, e que é presença das massasna política, pré-condição para sua autonomia (Couti-nho, 1987).

Em Gramsci, o Poder de Estado é Poder de classe,mas não se mantém apenas pela violência, mantém-setambém pela Ideologia. Gramsci nos mostra a amplia-ção do Estado, juntando nele Sociedade Política eSociedade Civil, repressão e ideologia, domínio e dire-ção, coerção e hegemonia.

Em Gramsci, é Poder ainda de classe, fundadona relação de produção, mas que se mantém não maisapenas pela coerção. A dominação mantém-se pelaaceitação por parte dos dominados de uma concepçãode mundo que pertence aos seus dominadores. Visãodo mundo da classe dominante que se transforma emsenso comum, em filosofia das massas, que aceitama moral, os costumes e o comportamento institucio-nalizado da sociedade em que vivem. O Estado promo-ve esse conceito único de realidade, impedindo o de-senvolvimento da consciência da classe trabalhadora,ampliando o seu papel na perpetuação das classes(Coutinho, 1981, Gramsci, 1980).

Gramsci retoma os conteúdos sobre o Estado dosescritos de Marx e Engels e avança, encontrando asbases materiais da ideologia no interior da sociedadecivil, num conjunto de organizações privadas que con-formam a mediação necessária entre a infra-estruturaeconômica e o Estado-coerção, a Sociedade Política.Aparelhos privados de hegemonia — escola, partidos,sindicatos, associações, toda organização material dacultura e meios de comunicação — portadores materiaisde diferentes visões de mundo, diferentes valores emdisputa.

Gramsci, preocupado em como as classes domi-nantes capitalistas, a despeito da atuação de organiza-ções operárias revolucionárias, conseguem ter a aceita-ção de grandes parcelas das classes trabalhadoras, e

tentando entender esse consentimento, encontra, por-tanto, suas bases na concepção de mundo, no sistemade crenças e valores morais, nas raízes culturais. En-contra a base da aceitação no controle sobre o pensa-mento, sobre a consciência das pessoas, controle quese exerce em todos os lugares, não só nos, mas atravésdos aparelhos de Estado.

Poulantzas, constatando o avanço nas sociedadescontemporâneas do que denomina de "Estatismo Auto-ritário" — o avanço cada vez maior do Estado emtodos os setores da vida social nos países capitalistas,e do autoritarismo e burocratismo nos países de socia-lismo real — preocupa-se em estudar e esclarecer asbases dessa situação para que, compreendidas e identi-ficadas as estruturas que devem ser transformadas,seja possível traçar trajetórias para um socialismo de-mocrático (Poulantzas, 1985).

Em Poulantzas o fundamento do Estado (não aorigem) está lá onde está a relação de produção. Abase material do Poder está na relação de produçãoe na divisão social do trabalho. Na relação de produ-ção, fundam-se as classes e suas lutas: as relaçõesde Poder. O Estado funda-se nas lutas e é condensaçãomaterial de uma relação de forças entre classes domi-nantes — o bloco no poder. Relações entre os integran-tes deste bloco e as classes dominadas. Lutas queperpassam o Estado. Relação de forças que adquirematerialidade nos aparelhos/instituições do Estado,conformando um conjunto contraditório e fissurado.Classes dominadas inscritas na materialidade institu-cional do Estado como focos de oposição. Em Poulant-zas as lutas populares inscrevem-se na própria materia-lidade da sociedade política.

Estado não acima das classes, mas com uma auto-nomia relativa, frente ao bloco no poder, que lhe per-mite a organização deste bloco e do consenso dasclasses dominadas em relação às dominantes.

Foucault estuda a "Microfísica do Poder". Nãomais o que é o Poder e suas determinações, mas osdispositivos de exercício do Poder, a tecnologia atra-vés da qual obtém-se a sujeição: mecanismos de Poderque controlam o corpo minuciosamente: gestos, atitu-des, discursos. Rede de dispositivos de Poder à qualninguém escapa.

Não existe Poder fora de seu exercício, afirmaFoucault, pois, Poder não é coisa que se possua: nãose possui Poder — exerce-se Poder. O Poder em Fou-cault é também relação: relação Poder-Resistência. Re-lações de Poder que incidem sobre os corpos, tornan-do-os úteis: corpo produtivo e submisso, dócil e lucra-tivo. Relações de Poder presentes em toda parte. Exer-cício de micropoderes em redes mais ou menos hierár-quicas, onde cada um é centro de transmissão de Poder.

Poder que se exerce através de mecanismos disci-plinares. Tecnologia de controle sobre os corpos quereparte, fixa e distribui espacialmente os indivíduos,classifica-os, tira deles o máximo do tempo e o máximode forças, treina os corpos e codifica os comporta-mentos. Mantém os corpos sob visibilidade plena, vigi-lância contínua e permanente, e constitui um aparelhocompleto de observações e registros, produzindo umsaber.

Dispositivos de Poder que tornam o seu exercíciomais rápido e útil: gasto mínimo e eficiência máxima.Mecanismos do exercício cotidiano e físico de micropo-deres: relações inigualitárias e assimétricas.

O Poder é também positivo no sentido produtivo.Ele não é só negativo: pune, recalca, reprime, peloesquadrinhamento disciplinar adestra o corpo, produzo indivíduo (Foucault, 1977, 1982).

Concluindo, podemos dizer que o Poder é relaçãosocial que, na sociedade dividida em classes, tem osseus fundamentos nas relações de produção e na divi-são social do trabalho. Exerce-se na sociedade política/aparelhos de Estado e na sociedade civil/aparelhosprivados de hegemonia, conformando um Estado am-pliado, resultado da condensação material de uma rela-ção de forças entre classes e frações de classes.

Poder sustentado pela repressão e pelo consenti-mento, pela coerção e pela persuasão. Repressão quesuplicia os corpos, sempre pronta para ser deflagrada.Consentimento alcançado pela difusão de uma concep-ção de mundo, de valores morais, normas de conduta,ascendência intelectual. Consentimento alcançadoatravés do controle sobre o pensamento e o controlee adestramento dos corpos, através das disciplinas.

O Poder é relação, é luta. Poder macroexercidonas relações entre classes e frações, entre grupos so-ciais: luta de classes. Poder microexercido nas relaçõesentre as pessoas, nos processos de trabalho, em todasas atividades humanas. Exercício de micropoderes quecontrola, adestra, pune. Relação de controle e sujei-ção, mas sempre luta: Poder-Resistência.

O Poder social não é só Poder fundado na divisãoda sociedade em classes — nas relações de produçãoe na divisão social do trabalho — não é só Poderde Estado, mas articula-se sempre ao Estado.

Poder é, então, relação sempre desigual, presenteem todas as relações sociais. Relação de forças quepossui bases materiais. Controle sobre os corpos, con-trole sobre a consciência.

Temos que tomar cuidado para que, na tentativade encontrarmos as múltiplas determinações, não caia-mos novamente na causa única: poder econômico declasse. Grande tentação, sem dúvida, as relações dePoder fundam-se nas relações de produção e na divisão

social do trabalho, mas são, ao mesmo tempo, relaçõesinstituídas em todos os âmbitos da vida social, susten-tadas por inúmeros mecanismos.

No capitalismo, o Poder Social funda-se nas rela-ções de produção, mas sustenta-se de inúmeras e varia-das maneiras, não estando nem personificado em pou-cos indivíduos, nem materializado apenas nos apare-lhos de Estado. É relação desigual que se sustentapela repressão, pelo consentimento, pela persuasão,por valores morais e raízes culturais, normas de condu-ta, pela organização material da cultura, pelos meiosde comunicação de massa, pelo carisma, através dacrença, do afeto, pela lei, saber, conhecimento científi-co, pela competência funcional da autoridade, pelasdisciplinas (o adestramento e controle dos corpos),por medidas materiais positivas às classes trabalha-doras, pela ampliação de direitos sociais.

Não vamos também reconstruir um novo Leviatã:o monstro Poder, presente em toda a parte. Essassão formas de sustentação e, ao mesmo tempo, lugares/espaços de oposição, pois, Poder é sempre relação,é sempre luta. Ali onde está o Poder está a Resistência:subordinação-insubordinação, sujeição-rebeldia, re-pressão-subversão. Do mesmo modo, não há um deter-minismo econômico inelutável, no qual se funda oPoder. As relações de produção e a divisão socialdo trabalho determinam Poder e, ao mesmo tempo,fundam a contradição que produz o conflito, luta: von-tade de transformar essas relações.

Através desse processo de pesquisa e aprendi-zagem que buscou conhecer o que é o Poder, suasdeterminações e formas de exercício, com o intuitode discutir as noções de Poder que fundamentam asproposições de Mario Testa para a ação em saúde,encontrei grande parte dos autores que informam asreflexões de Testa.

Posso dizer, assim, que, mais que discutir as no-ções de Poder em Testa, acabo por fundamentá-las,o que, sem dúvida, também é uma forma de discussão.

Em Mário Testa, o Poder é uma categoria explica-tiva da realidade, e o seu pensamento estratégico obje-tiva afetar as relações de Poder. De forma abstrata,diz Testa: Poder é, capacidade possuída por alguém,pessoa, ou grupo. É capacidade de um indivíduo lograrque outro faça algo que este não faria, se aquele nãotivesse poder. Submetido às suas múltiplas determina-ções, Poder é a capacidade de uma classe social reali-zar seus objetivos históricos. (Testa, 1981)

Testa aceita o conceito de Poder-relação mas tor-na sempre a reafirmar o Poder como capacidade quese possui. Na literatura consultada, há também umagrande confusão entre considerar o Poder como capaci-dade e como relação. Poulantzas, às vezes, refere-se

ao Poder como uma capacidade e Foucault, por vezes,institui um Senhor-Poder afastando-se da relação.

O Poder só existe em exercício e não é separávelda relação. O Poder não pode ser considerado comona teoria da soma-zero, onde o que um ganha de Podero outro perde, pois não tem substância própria. Arelação de poder, a relação política, é uma relaçãoprodutiva cujo resultado é algo novo, diferente dosinteresses estritos de cada participante.

Mario Testa, no seu diagnóstico estratégico, tentaencontrar formas precisas de quantificar o Poder, ela-borando indicadores de Poder. Por não poder ser consi-derado como tendo substância própria, separável darelação, é que é tão difícil, para não dizer impossível,a construção de indicadores de poder.

Mas o Poder em Testa não é só capacidade, étambém relação que constrói a sociedade e é indissolu-velmente ligado ao Estado. Testa discute o Estadoem vários momentos de seu trabalho e de várias formas.Apresenta-o como monopólio do uso legítimo da forçafísica (Weber). Discute a concepção marxista estritade Estado, em contraposição a uma teoria liberal doEstado, afirmando-o enquanto Estado de classe quemantém a desigualdade. Refere-se também à teoriarelacional do Poder de Poulantzas (Testa, 1986).

Setorialmente o Poder é tipificado por Testa emtécnico, administrativo e político. Capacidades em re-lação a: informações, recursos e mobilização de grupossociais; formas de análise e estudo desses tipos depoder são apresentadas; propõe o conhecimento dadistribuição do Poder técnico pela análise dos grupossociais que manejam cada tipo de informação em cadaespaço; a aproximação à distribuição do Poder adminis-trativo é feita através da análise dos grupos sociaisrelacionados às várias fases do financiamento, poisconsidera o dinheiro como equivalente universal a to-dos recursos. Para a análise do Poder Político, dizTesta, esse deve ser considerado enquanto ideologia(Testa, 1987-1).

Em variada literatura, e no senso comum, o Poderenquanto capacidade é tipificado das mais variadasformas — econômico, administrativo, aquisitivo, marí-timo, médico, ideológico etc, — o que sugere a perti-nência de uma tipificação. Como vimos, porém, o po-der não é capacidade que se detenha, é sempre relação.

Poder-Capacidade é relação pessoa-coisa, pessoa-objeto. A relação pessoa-coisa na relação de Poderé a relação com recursos para o exercício do Poder.Poderíamos, então, considerar, por exemplo, os conhe-cimentos e os variados recursos utilizados na organiza-ção e administração dos serviços de saúde, mediadospelos recursos financeiros, como recursos do exercíciodo Poder. É mais correto, portanto, quando Testa afir-

ma serem estes tipos de Poder referidos a diferentesespaços, do que a diferentes capacidades, ao qual po-deremos agregar formas de exercício de Poder comdiferentes conteúdos, em cujo exercício são utilizadosdiferentes recursos.

Quanto ao Poder-Técnico, o conhecimento nãosó determina um espaço de exercício do Poder, comotambém, freqüentemente, justifica o exercício dessarelação desigual. O Poder-Técnico é fundamentado narelação Poder-Saber. Em Foucault, todo saber tem suagênese numa relação de Poder, e todo saber assegurao exercício de um Poder. O saber só é saber dotadode Poder: saber é verdade, e verdade é Poder (Fou-cault, 1982). Em Poulantzas, a relação Poder-Saberfunda-se na divisão entre trabalho manual e trabalhointelectual, sendo o Estado capitalista o lugar ondea relação orgânica entre Saber e Poder, trabalho inte-lectual e dominação política, efetua-se de maneira maisacabada. O Estado capitalista cristaliza o trabalho inte-lectual através da sua organização burocrática, diz ele.A relação Saber-Poder expressa-se, também, muito cla-ramente, na relação médico-paciente, onde o médico,em nome de um Saber, tem o Poder e o direito legalde manipular, física e moralmente, o doente.

Essa relação entre Poder e Saber é tão forte queFoucault afirma ser impossível separar o saber do Po-der, e, nas análises e propostas de tendências marxis-tas, o saber — o conhecimento sobre a realidade, ointelectual, a vanguarda, consciência, a verdade — con-tém a potencialidade da transformação social. Testatem, portanto, toda razão ao referir-se a um Podertécnico em exercício no espaço social da saúde.

A tipificação de um poder administrativo tem co-mo pressuposto um "poder econômico", onde o dinhei-ro e equivalente universal. Recursos financeiros, po-rém, não podem ser mecanicamente considerados comoequivalentes de todos os recursos, de todas as capaci-dades. Uma capacidade administrativa não compreendeapenas uma disponibilidade de recursos financeiros,mas, também, a organização e gestão dos chamados"recursos-humanos", a força de trabalho — habilidadesadquiridas que transcendem, sem dúvida, à questãofinanceira. Esses outros recursos são capacidades quesó podem ser colocadas em ação a partir da disponibi-lidade dos recursos financeiros, mas que não se confun-dem com estes.

Considerar o poder político como uma capacidadeé uma questão mais complicada. Considerar o PoderPolítico como capacidade, detida por uma pessoa ougrupo social, de desencadear uma mobilização — capa-cidade de manejo de interesses — coloca as pessoasmobilizadas como coisas manipuladas, o que não éadmissível quando a proposta é de criação de uma

sociedade solidária e transparente: verdadeira socie-dade democrática. Mário Testa, porém, ao consideraro Poder político enquanto ideologia, supera essa defi-nição de capacidade, adquirindo grande importânciaas concepções de Gramsci para sua análise. O PoderPolítico, em seu exercício, e relação e não mais capaci-dade que se detém.

Mesmo com essas objeções, considero, portanto,que essa tipificação para o exercício do Poder no setorsaúde proposta por Testa tem um valor analítico, aoajudar a identificar a disponibilidade de certos recursosde exercício do Poder, por parte de cada um dos atoressociais em disputa no debate sobre saúde, e ao identifi-car cenários/espaços onde se exerce o Poder.

O poder é ainda analisado por Testa, quanto aosresultados de seu exercício. Diz ele que, em relaçãoaos resultados do exercício do Poder, existe um Podercotidiano e um Poder societário, um implicando o ou-tro. Um poder cotidiano que se refere ao que fazere como fazer, a cada dia, e que implica a construçãoda sociedade futura, o Poder societário, estabelecen-do-se, assim, dentro das instituições, a relação entreo fazer de cada dia, e a construção da história (Testa,1987).

Sua proposição de formas organizativas democrá-ticas e participativas decorre da compreensão dessarelação entre Poder Cotidiano e Poder Societário, poisuma sociedade verdadeiramente democrática constrói-se no ato de fazer de cada dia. Diz Mário Testa que,na situação de desigualdade em que vivemos, a práticademocrática é mecanismo para construção da igualdadedesejada.

Vimos, assim, que a análise do Poder, em Testa,é informada por concepções de diversos autores, Anoção do poder que orienta suas proposições tem ele-mentos dos micropoderes de Foucault: micropoderesque se exercem nos 'como fazeres' e 'que fazeres'de cada dia; da teoria relacionai do Poder, em Poulant-zas; o espaço social global é o conjunto dos camposde força gerados pelas relações entre os atores sociais,em debate a cada momento; e da concepção de Grams-ci: sujeitos sociais tornados atores sociais pela suaparticipação no Estado, nos organismos da SociedadeCivil e/ou da Sociedade Política, e pela ênfase dadaà consideração do Poder como Ideologia.

IDEOLOGIA

Mário Testa apresenta o que entende por Ideolo-gia em vários momentos e com diferentes nuances.Em geral, uma compreensão de Ideologia inclui umsaber e uma prática: um saber que é uma concepção

da realidade e uma prática que constrói os seus sujeitos(Testa, 1987).

Diz Testa que Ideololgia geralmente e entendida,apenas, como sistema de idéias, no sentido de umaconcepção de mundo, mas que, mesmo não explicita-mente definido como tal, esse sistema é também normade conduta. E que, nos Estados complexos, pela mu-dança do caráter desses Estados, Ideologia é a formaem que todas as práticas sociais, ao mesmo tempoque realizam uma produção específica de seus 'quefazeres', constróem os sujeitos que delas participam(Testa, 1986).

O sujeito social forma-se quando da realizaçãode seu trabalho abstrato, pela sua situação na relaçãode produção, mas o processo de ideologização — pro-cesso que consolida ou transforma a consciência/con-cepção de mundo/uma ética/conjunto de valores —ocorre em todas as práticas sociais perpassadas pelasrelações de Poder, principalmente através das formasorganizativas dessas práticas, as formas organizativasdas relações de Poder, diz Testa.

Para discutir essa concepção de Ideologia, emTesta, é preciso conhecer como outros autores enten-dem Ideologia, e desvendar um pouco (pelo menos)o complexo processo de formação de uma concepçãode mundo e de produção da tomada de consciência.

Ideologia, em sua concepção moderna, é um termoutilizado com diferentes significados. Em 1801, teveum sentido primeiro na acepção literal da palavra:"ciência das idéias". Destutt de Tracy — um dos ideó-logos, "grupo de sábios" que, em 1795, pós-revoluçãofrancesa, fora encarregado de fundar um centro dopensamento revolucionário no "Institut de France" —,em seu "Elementos de Ideologia", pretendeu elaboraruma ciência da gênese das idéias: uma história natural,onde as idéias exprimiam a relação do corpo humano,enquanto organismo vivo, e o meio ambiente (Hall,1983).

Desse primeiro sentido, Ideologia, atualmente,apresenta uma ampla gama de significados. O maiscomum e difundido é de um sistema de idéias, oracom sentido de visão de mundo, ora com sentido decrenças políticas. Nesse último significado, é conjuntode idéias em relação ao sistema social que visa a orien-tar os comportamentos políticos coletivos. "Sistemasde idéias conexas com a ação" (que compreende) "umprograma e uma estratégia para a atuação" e "objeti-vam defender ou mudar a ordem política existente"(Bobbio et all, 1986).

Outro significado de Ideologia é o de pré-noções,pré-científico, idéias vulgares contrapostas ao que écientífico. Esta é a noção em Dürkheim. Segundo esseautor, ideologia é todo conhecimento não-objetivo da

realidade, isto é, toda forma de conhecimento ondenão ocorre a separação entre o sujeito do conhecimentoe o objeto do conhecimento. No entender de Dürk-heim, para estudar a sociedade, o indivíduo deve enca-rá-la como não fazendo parte dela (Hall, 1982). Fou-cault, por sua vez, opõe-se completamente a essa idéia.Para ele, nem a ciência é um conhecimento produzidopor um sujeito que supera as suas condições particu-lares de existência e coloca-se na posição de neutrali-dade objetiva do universal; nem a Ideologia é um co-nhecimento onde o sujeito tem a sua relação com averdade perturbada pela sua condição de existência.Como vimos, Foucault mostra que as relações de Poderconstituem o saber, não existindo sober neutro: "todosaber é político" (Foucault, 1982).

Outras vezes, Ideologia constitui-se da totalidadedas formas de consciência social em referência às supe-restruturas ideológicas. Outras vezes, ainda, Ideologiaé considerada como o conjunto de idéias políticas rela-cionado aos interesses de uma classe.

Diferente dos significados anteriores é o que con-sidera a Ideologia como o pensamento teórico quepretende desenvolver-se sobre seus próprios princípiosabstratos, mas que, na verdade, é a expressão da reali-dade econômica e social, que não é considerada deter-minante deste pensamento. Nesse sentido, Ideologiaé forma invertida do pensamento sobre a realidadesocial, que nasce das contradições sociais e as oculta.Nessa acepção, considera-se que as representações queos homens fazem da situação social são determinadaspelo processo real da sua vida, mas, como nas socieda-des capitalistas os processos e produtos resultantesda ação dos homens são dele alienados, aparecem comoindependentes da sua ação, o mesmo ocorrendo comas idéias, aparecendo como autônomas e separadasda realidade social concreta, representando-a falsamen-te. Esse último significado de Ideologia é o empregadopor Marx e Engels em sua crítica aos neo-hegelianosalemães, em texto de 1845-6 intitulado "Ideologia Ale-mã" (Marx e Engels, 1986).

À compreensão de Ideologia, em Testa, é dife-rente da de Marx na Ideologia Alemã. Em Marx, Ideo-logia é compreensão invertida da realidade que nascedas contradições sociais e oculta estas contradições,objetivando manter a dominação: idéias da classe do-minante tomadas como universais. Testa não nega aexistência de uma Ideologia dominante, mas argumentaque, na sociedade de Estado complexo, o processode ideologização dá-se nas condições do acordo declasses que é o Estado, tornando-se a Ideologia domi-nante não mais Ideologia de uma só classe. Em TestaIdeologia não é, necessariamente, inversão da realida-de, nem se contrapõe ou é critério de Verdade.

Mas há também semelhanças. A concepção deIdeologia, em Testa, aproxima-se do conceito de Ideo-logia de Marx, ao afirmar a base material de produçãodas idéias e distancia-se, ao não conceber Testa aIdeologia como inversão da realidade. Aproxima-se,ainda, pois o conceito de Ideologia, em Marx, tambémsugere o conteúdo de um saber e uma prática, poisé um conjunto de interpretações (uma concepção demundo), acompanhado de normas e regras sociais (nor-mas de conduta, formas de agir).

Com Lenin, há uma ampliação do significado deIdeologia. Numa situação de confronto de classes, dizele, a Ideologia aparece ligada aos interesses da classedominante e a crítica a essa Ideologia ligada aos inte-resses das classes dominadas (Bottomore, 1988). AIdeologia adquire, então, um novo conteúdo: idéias/consciência política, ligadas aos interesses de cadaclasse, concepção esta compartilhada por Testa.

Em Gramsci, Ideologia tem um primeiro significa-do de sistema de idéias orgânico: superestrutura neces-sária a determinada estrutura. No bloco histórico, dizele, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias,a forma. Distinção meramente didática, afirma, poisnão se podem conceber historicamente forças materiaissem forma, e as ideologias seriam apenas caprichospessoais, sem as formas materiais (Gramsci, 1972).

Em Gramsci, Ideologia não significa falsa cons-ciência em contraposição a uma consciência verda-deira. Em Gramsci, todo conhecimento tem um conteú-do ideológico e toda a concepção de mundo orientaa prática dos homens. Consciência/concepção de mun-do e prática política são, para ele, inseparáveis. Ideolo-gia em Gramsci tem, assim, um sentido geral de "uni-dade entre uma concepção do mundo e uma normade conduta adequada a ela"(Coutinho, 1981). Con-cepção de mundo que transcende o mero conhecimen-to, articulando-se diretamente com a prática. A concei-tuação de Testa de Ideologia é próxima, portanto,à concepção gramsciana. As duas compreendem umconhecimento e uma prática. Em ambos, um saberque é uma concepção de mundo inseparável da prática.Em Testa, uma prática cuja forma em que se realizaconstrói seus sujeitos, quer dizer, uma prática cujoconteúdo ideológico encontra-se nas suas formas orga-nizativas e que se transforma ao construir a consciênciade seus sujeitos.

A concepção de Ideologia em Testa é, portanto,próxima da de Gramsci, porém não está claro aindacomo se forma e se muda uma concepção de mundo.Essa compreensão é necessária para poder discutir comTesta sua consideração de que são as formas organiza-tivas, como se realizam as práticas, que constroema consciência de seus sujeitos.

Bourdieu afirma e demonstra, através de suas in-vestigações, que a transformação do sistema de valoresculturais (incluída aí a concepção de mundo) é, aomesmo tempo, conseqüência e condição das transfor-mações econômicas, mas não reflexo imediato dessastransformações (Bourdieu, 1979).

Bourdieu comprova que a consciência é determi-nada pelas condições materiais de existência. Porém,essa relação não é mecânica, é mediada por um "siste-ma de disposições", uma maneira de ser e represen-tações geradas pelas experiências vividas. Sistema ins-crito, por sua vez, na sua condição objetiva de exis-tência.

Bourdieu relaciona a consciência com a condiçãomaterial de existência, e mostra o campo e as condiçõesde desenvolvimento de uma consciência revolucionária— os trabalhadores permanentes submetidos ao cálculoe à previsibilidade — mas não diz por que, entre inte-grantes de uma mesma classe, compartilhando seme-lhantes condições de existência, uns adquirem umaconsciência objetiva dessa situação e participam daconstrução de um projeto coletivo de transformaçãosocial, e outros não.

Indica-nos que, através de todas as práticas reali-zadas e experiências vividas, os sujeitos sociais cons-tróem sua concepção de mundo que, por sua vez, im-pulsiona suas práticas — o que fundamenta positiva-mente as proposições de Testa — mas não discutequais são os tipos de práticas que têm potencial trans-formador da concepção de mundo. Questão fundamen-tal na discussão de Testa.

Em Lukács, as práticas consideradas como poten-cial transformador da consciência são práticas de parti-cipação na luta coletiva por interesses econômicos co-letivos, e pela ação educativa do partido revolucio-nário, organização construída a partir dessa consciên-cia. Essas práticas constróem uma concepção de mundoque inclui a "consciência de classe para si", a partirde um processo de reflexão de cada pessoa sobre essassuas experiências (Lukács, 1977).

Gramsci dá grande importância à formação dasconcepções de mundo, pois encontra, aí, as bases parao consentimento e aceitação da dominação por grandesparcelas da classe trabalhadora, sendo a arena da lutapela consciência, para ele, arena fundamental da lutapolítica.

Em Gramsci, as práticas com potencialidade trans-formadora das concepções de mundo são ampliadase não se dão mais, como em Lukács, apenas no âmbitoda luta reivindicatória e da ação do partido. Essaspráticas estendem-se para o amplo terreno dos apare-lhos privados de hegemonia: todas as organizaçõespolíticas da sociedade civil (partidos, sindicatos, asso-

ciações), os meios de comunicação e toda a organiza-ção material da cultura, incluída aí a escola. EmGramsci, cada um é um pouco filósofo, é portadorde uma concepção de mundo e pode, portanto, contri-buir na formação de novas maneiras de pensar (Grams-ci, 1982). Toda pessoa exerce alguma atividade inte-lectual, e é impossível separar o homo sapiens dohomo faber, ou produzir um gorila amestrado, comoqueria Taylor, diz Gramsci. A transformação da con-cepção de mundo está, então, na possibilidade de ela-boração de maneira crítica da atividade intelectual quecada um exerce. Através da elaboração crítica do con-teúdo intelectual do trabalho de cada um, formam-seintelectuais orgânicos que dão homogeneidade e cons-ciência à classe trabalhadora. Esses intelectuais, porsua vez, impulsionam a transformação da consciênciapela promoção da discussão das práticas de trabalhode cada um, fazendo com que essas práticas tornem-seo fundamento de uma nova e integral concepção demundo.

Encontramos, aqui, a base gramsciana da proposi-ção de Mário Testa de formas organizativas democrá-ticas e participativas para o trabalho em saúde. Testapropõe a formação de uma equipe de saúde organizadademocraticamente, que discuta suas práticas e deci-sões, e a abertura das instituições de saúde à participa-ção das organizações populares, para a discussão daspráticas aí realizadas, objetivando a transformação dasconcepções de mundo desses sujeitos. Testa, portanto,propõe o mesmo que Gramsci: um trabalho consciente,que tome a prática de trabalho de cada um base deuma nova concepção de mundo, cimento da hegemoniada classe trabalhadora.

Isso não significa, porém, que tenhamos esgotadoa discussão da formação e transformação das concep-ções de mundo. Abordar essa questão exaustivamentesignificaria, ainda, pelo menos, conhecer como temsido tratada no estudo da formação das representações,através da linguagem no processo de comunicação,na semiologia, no estudo dos processos educativos,na discussão sobre a socialização, na psicologia social.Essas possibilidades de ampliação do campo de estudomostram bem a complexidade dessa discussão e indi-cam a existência de inúmeras mediações entre a cons-ciência e a condição de existência.

Se podemos, portanto, concordar que a pertinên-cia de classe, pelo lugar ocupado na produção, estru-tura possibilidades de concepções de mundo, possibili-tando uma certa forma de socialização e acesso a dife-rentes compreensões de realidade, não podemos enten-der essa determinação, mecanicamente, pois isso serialinearizar o complexo processo que é a produção daformação de uma concepção de mundo. Processo frag-

mentado, que compreende rupturas, originalidade ecriatividade da sistematização de cada pessoa.

O que, sem dúvida, podemos concluir desse estu-do parcial é que a formação de uma concepção demundo é um longo processo de elaboração das expe-riências pessoais que têm sua base material na condiçãode existência, condição esta entendida não apenas co-mo constituída pelo seu processo de produção material,mas pelo conjunto das relações sociais vividas porcada um. E que, nesse complexo processo, difícil deapreender, de formação e transformação das concep-ções de mundo, as formas organizativas democráticase participativas são práticas que afetam a concepçãode mundo de seus sujeitos e podem contribuir paraa transformação dessas concepções de mundo, e impul-sionar novas práticas, pela elaboração crítica dos con-teúdos das práticas realizadas que possibilitam. É im-possível, porém, afirmar em que medida isso ocorre.

Mário Testa, ao propor formas organizativas de-mocráticas e participativas — visando a construçãode um nova ética, de solidariedade e transparência—, está propondo a formação de sujeitos sociais demo-cráticos imbuídos de uma nova ética integrante desua própria personalidade, transformada, portanto, emforça material. Testa sugere, assim, que a construçãode uma sociedade realmente não-autoritária (um socia-lismo democrático) está na possibilidade da formaçãode sujeitos sociais conscientes não-autoritários e autô-nomos que direcionem suas práticas a esta construção.A construção da sociedade democrática está na possibi-lidade de transformação dos sujeitos sociais pelo esta-belecimento de novas relações, e pela sua participaçãoem práticas sociais diferenciadas.

Argumentamos, assim, favoravelmente ao conteú-do transformador da proposta de Testa para o planeja-mento e a ação em saúde. Podemos concluir que aproposição de estabelecimento de novas formas organi-zativas das práticas tende a mudar a relação de poderexercida naquela prática e a transformar as concepçõesde mundo de seus sujeitos, contribuindo para umamudança nas relações de força, pela potencialidadede realização de novas práticas coletivas impulsionadaspor essa nova concepção de mundo. E que a propostade Mário Testa para o planejamento de saúde temuma potencialidade intrínseca transformadora, ao des-vendar os conteúdos de Poder nas ações em saúde,não escamoteando as bases reais da dominação, e porser transparente em seus próprios conteúdos de Poder:explícita nos deslocamentos de poder que objetiva.

This article characterizes Mario Testa's propositionsregarding health planning, on the basis of his recenttheorethical analysis. The characterization doesn'timply the construction of a planning method, as Testaonly presents some elements for the understanding ofhealth problems and planning processes. Testaconsideres health problems as socially determined, andtherefore he emphasizes the analysis of social actorbehaviour, power relationships and health practicestaken as ideological practices giving orientation toactors. Testa goes beyond the strategical healthplanning proposition and proposes a reflection onpolitical action in health.Testa's thinking is based on such categories as powerand ideology. This article discusses how heunderstands these categories. This discussionconcludes that health practices are social practicesand also are ideological practices influencing actor'sview so, it is difficult to know how these world's viewsare going to change, Testa's propositions are inovatingwithin the field of health planning, as they show thathealth actions have a power basis.The theses of Mario Testa regarding health planningare defended in light of their potential to transformreality, by revealing the role of social power in healthrelated actions, and rendering explicit objectivesregarding power relationships.

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