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AO RITMO DO ABSOLUTO

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primeiro capítulo e índice da obra "AO RITMO DO ABSOLUTO" de André Louf

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Page 1: andrelouf_excerto (1)

AO RITMO

DO ABSOLUTO

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Colecção «CAMINHOS DO ESPÍRITO»

1. Caminhar no Espírito – 1º vol.: O Deus que Se revela

Dário Pedroso, S.J.

2. O Regresso do Filho Pródigo

Meditações perante um quadro de Rembrandt (2ª ed.)

Henri J. M. Nouwen

3. Este combate não é teu...

Paulette Boudet

4. Alegria de Crer e de Viver

François Varillon, S.J.

5. Agenda da Igreja

Domingos Terra, S.J.

6. Amar com Actos – Intervenções sobre a justiça cristã

Domingos Monteiro da Costa, S.J.

7. A Graça de Ser Mulher

Georgette Blaquière

8. Ser Cristão à Luz do Vaticano II

Manuel Morujão, S.J.

9. Caminhar no Espírito – 2.º vol.: O homem à busca de Deus

Dário Pedroso, S.J.

10. Espiritualidade da Vida Cristã segundo o P. Varillon Paul Meunier

11. A Alegria da Conversão

Ignacio Iglesias, S.J.

12. Ao Ritmo do Absoluto – Viver em Oração

André Louf

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André Louf

AO RITMO

DO ABSOLUTO

Viver em Oração

EDITORIAL A. O. – BRAGA

Page 4: andrelouf_excerto (1)

Título: Au gré de sa grâce

© Lannoo

Kaasteelstraat, 97 8700 TIELT – BÉLGICA

Tradução: Miriam Godinho

Pode imprimir-se: José Carlos Belchior, S.J.

Provincial

Imprima-se: † Eurico Dias Nogueira

Arcebispo Primaz

Dep. Legal nº 137380/99

ISBN 972-39-0509-4

©

SECRETARIADO NACIONAL DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO L. das Teresinhas, 5 – 4714-504 BRAGA – Tel.: 053-20 12 20; Fax: 053-20 12 21

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EM ESTADO DE CONVERSÃO 5

Não existe nada que humilhe

e enalteça tanto como a graça

Abade de Saint-Cyran

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AO RITMO DO ABSOLUTO 6

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EM ESTADO DE CONVERSÃO 7

1

EM ESTADO DE CONVERSÃO

Entre a ira e a graça

Chamamos conversão ao momento em que a graça invade

alguém pela primeira vez. Dizemos que a pessoa está convertida

ou em vias de conversão. Em linguagem corrente, este é um

acontecimento muito importante, se bem que transitório, que

pode ainda vir a dar-se ou ter-se dado já há muito tempo. Mas

parece que ninguém julga necessária a conversão, a não ser em

caso de apostasia. E assim, a palavra derivada, convertido, não

se costuma aplicar senão a uma categoria muito determinada de

crentes: os que receberam a fé numa idade já avançada. Daí re-

sulta que à criança baptizada, que recebeu a fé em tenra idade –

o que, entre nós, acontece na maioria dos casos – nunca lhe

chamarão «convertida». É como se nunca tivesse nada a ver com

a conversão.

Parece que só aqueles que vivem à margem da fé ou que

não vivem de acordo com a sua fé, mas no pecado, teriam de se

preocupar com a conversão, não a pessoa que foi sempre crente,

sobretudo o crente praticante.

No entanto, é preciso notar que a Bíblia fala com frequên-

cia, e muito explicitamente, de conversão, e da conversão de ca-

da um. A primeira Boa Nova que ouvimos dos lábios de João

Baptista, resume-se efectivamente neste vigoroso apelo: «Con-

vertei-vos, porque está próximo o Reino dos céus» (Mt 3, 1). É

esta proximidade que torna a conversão tão necessária. Porque,

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AO RITMO DO ABSOLUTO 8

como diz João aos Fariseus e Saduceus que vêm a ele para se-

rem baptizados, a ira e a vingança de Deus estão próximas: «Ra-

ça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que vai chegar?

Fazei coisas que provem que vos convertestes… O machado já

está posto à raiz das árvores. E toda a árvore que não der bom

fruto será cortada e lançada no fogo. Eu baptizo-vos com água

para a conversão. Mas Aquele que vem depois de mim é mais

forte do que eu… Ele vos baptizará no Espírito Santo e no fogo.

Ele terá na mão uma pá: vai limpar a sua eira e recolher o seu

trigo no celeiro; mas a palha, Ele vai queimá-la no fogo que não

se apaga» (Mt 3, 1-12).

João Baptista relaciona a conversão com a presença de Je-

sus, e também com o Juízo futuro e o fogo repentinamente in-

flamado da ira de Deus, do qual devemos livrar-nos. Ira e vin-

gança, atribuídas a Deus, não são noções muito fáceis. E ainda

menos a imagem do machado que já estaria posto à raiz da árvo-

re. Consciente ou inconscientemente, tínhamo-las relegado para

o Antigo Testamento, como se pudessem desaparecer do hori-

zonte e tivessem perdido a sua razão de ser com a vinda de Je-

sus.

Mas eis que, no limiar do Novo Testamento, a vinda de

Jesus é precisamente anunciada por essa antiga imagem: na pre-

sença de Jesus, Deus pegou na pá e dispôs-Se a limpar a sua eira.

Tal é o baptismo instituído por Jesus: um baptismo em ordem à

conversão, mas igualmente um baptismo no fogo e no Espírito

Santo.

O que acabamos de dizer parece indicar que temos ainda,

de certo modo, de nos enfrentar com a ira de Deus. E que isso

não pode dar-se senão em Jesus. Alguma vez, na minha vida, me

enfrentei com a ira de Deus? Se não, terei ainda necessidade da

graça? Pois não diz esta respeito a essa ira da qual me liberta a

cada instante? Em Jesus, não estou constantemente exposto à ira

e à graça, como entre a espada e a parede, precisamente no pon-

to em que poderia situar-se a minha conversão?

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EM ESTADO DE CONVERSÃO 9

Muito tempo depois de Jesus ter morrido e ressuscitado,

Paulo escreve aos Romanos, no começo da sua grande síntese

teológica sobre a graça: «A ira de Deus manifesta-se…» (Rm 1,

18).

Por outro lado, não há dúvida de que Paulo anuncia que a

glória de Deus também deve manifestar-se (Rm 8, 18), mas esta

glória é sempre precedida pela ira. «Como os outros – dirá ainda

Paulo – éramos, por natureza, merecedores da ira de Deus» (Ef 2,

3). O amor e a graça são excepções em relação à ira, e supõem

que fomos escolhidos de modo especial para ficar livres dela. O

estado de graça é excepção em relação ao estado de ira que é, na

realidade, o nosso primeiro estado: excepção repleta de amor, por

causa de Jesus Cristo, o Filho de Deus.

Em várias passagens do Novo Testamento aprendemos

mais alguma coisa sobre esta ira de Deus, principalmente que ela

não se situa no passado, mas que ainda há-de vir. Espera-nos no

futuro. Paulo emprega frequentemente a expressão: «A ira de

Deus vem» (Ef 5, 6; Cl 3, 6), enquanto João prefere falar da ira

que já veio, mas que permanece sobre nós (Jo 3, 36). O Apoca-

lipse fala do «grande dia da ira», o dia em que Deus «dará o cáli-

ce do vinho do furor da sua ira» (Ap 16, 19).

A imagem do cálice da ira que Deus nos dá a beber está

muito próxima de um outro cálice de que fala a Escritura: o cálice

da paixão de Jesus. Nas mãos de Jesus, o cálice da ira converte-se

em cálice de salvação. A bebida mortal da ira transforma-se em

bebida de amor. Tal como Jesus, nós recebemos este cálice das

mãos de Deus para o bebermos. E para nós, também, esse cálice é

ou um cálice de vingança ou um cálice de ternura. Estamos em-

briagados, quer da ira de Deus quer do amor de Deus. Mas a

passagem de uma ao outro não se pode fazer senão com Jesus e

graças a Ele. Por isso, o nosso cálice de sofrimento não será dife-

rente do de Jesus. Porque só Ele, que o bebeu até ao fim, nos po-

de livrar da ira de Deus. Só Ele pode fazer de modo a que o cáli-

ce da ira se converta para nós também em cálice de salvação.

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AO RITMO DO ABSOLUTO 10

Ainda falta muito antes que isso se cumpra. E nada está

garantido, mesmo que Paulo nos anime a olhar com confiança

para a ira futura: «Mas Deus demonstra o seu amor para connosco

porque Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores.

Assim, tornados justos pelo sangue de Cristo, com maior razão

seremos salvos da ira por meio d’Ele. Se quando éramos inimi-

gos fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho,

muito mais agora, já reconciliados, seremos salvos pela sua vi-

da» (Rm 5, 8-10). Noutro lugar, Paulo diz ainda que é Jesus

«quem nos liberta da ira futura» (1 Tes 1, 10). Fomos salvos,

portanto, da ira, pela primeira vez, quando os nossos pecados

foram apagados pelo Baptismo, mas eis-nos de novo confronta-

dos com essa mesma ira de Deus que ainda permanece diante de

nós. Isto mostra bem como o momento presente é importante. É

o kairós, o tempo de salvação em que vivemos e em que nos é

dado fazer a opção decisiva, no poder da morte e da ressurreição

de Jesus. Assim, o que virá amanhã já acontece hoje, embora em

esperança, uma esperança que cresce cada vez mais até ao coroa-

mento do fim dos tempos.

Esta escolha decisiva entre a ira e a graça, que é a opção

de amanhã mas também de hoje, e opção de hoje para amanhã, é

precisamente o que nós chamamos a conversão. Este termo é a

tradução da palavra neotestamentária metanoein, que procura

substituir o vocábulo hebreu shûb. Esta última raiz semítica signi-

fica muito simplesmente voltar-se, tornar sobre os seus passos

e, só por derivação, converter-se. O acento recai, portanto, na

volta que se dá. A palavra grega metanoein explica esta volta.

Há nela duas raízes: a primeira, tal como no hebreu, sublinha a

inversão, experimentada de alto a baixo. A segunda raiz dá-nos a

conhecer o que se inverte com essa volta: o noûs, isto é, o fundo

espiritual, o mais profundo do nosso coração. Trata-se, portanto,

de uma revolução no interior de nós próprios. Em português,

metanoein traduz-se algumas vezes por penitência, contrição,

termos menos felizes do que conversão. No entanto, mesmo a

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EM ESTADO DE CONVERSÃO 11

palavra conversão, tão gasta pelo uso corrente, parece ainda de-

masiado fraca. Numa passagem da Bíblia, fala-se, num contexto

idêntico, de metanoein kai epistrephein (Act 3, 19): deixar-se in-

verter por completo, revolucionar, a fim de se voltar para qual-

quer coisa ou alguém. Trata-se de um voltar-se radical, pelo qual

uma pessoa torna sobre os seus passos, a fim de se empenhar

numa nova direcção.

Sempre em vias de se converter

Aqui surge de novo a questão colocada no princípio deste

capítulo: em que sentido temos nós, ainda hoje, necessidade de

conversão? Não a recebemos nós no Baptismo, de uma vez por

todas? A conversão seria coisa já feita e nós, agora, encontrar-

-nos-íamos a caminho, com altos e baixos certamente, caindo e

levantando-nos, rumo à perfeição e à santidade. É esta, de facto,

a imagem que temos do caminho por onde avançam todos os

cristãos.

Substancialmente, tal caminho estaria dividido em três

etapas. Primeiro, a ausência de fé e o pecado; depois, o passo

decisivo da conversão; por fim, a procura da perfeição. Nós si-

tuamo-nos, então, espontaneamente – e não sem uma certa inge-

nuidade – em qualquer momento da terceira etapa, num estado

mais ou menos avançado.

A realidade nem é assim tão simples nem tão complicada,

porque a graça é a própria simplicidade. A dificuldade reside an-

tes no facto de que a vida no Espírito Santo não é fácil de dis-

cernir. Cruzam-se constantemente diferentes linhas de força, se

bem que a confusão – e também a ilusão – sejam possíveis: nem

sempre é fácil distinguir essas linhas umas das outras. De facto,

o pecado, a conversão e a graça não são simplesmente três eta-

pas sucessivas. Na vida quotidiana, são por vezes inextricáveis.

Crescem juntas, em interdependência: nunca estou totalmente

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AO RITMO DO ABSOLUTO 12

numa ou noutra; estou constantemente nas três ao mesmo tempo.

O pecado, a conversão e a graça são o meu pão e a minha herança

de cada dia. Mesmo no Reino dos Céus, na medida em que o vi-

vemos neste mundo, não acontece de outra maneira, é o próprio

Jesus quem o diz. Também nele não estão ausentes os pecadores.

Pelo contrário: publicanos e prostitutas são os primeiros a entrar,

precedendo nele todos os outros (Mt 21, 28-32).

Estas três etapas não representam três graus duma escala

de valores. Não vamos passando de um ao outro, como se subís-

semos os degraus duma escada. Não são três galões que possa-

mos coser na manga, um após outro. Não. Antes de morrermos,

não podemos dizer nunca um adeus definitivo a qualquer dos

três. Continuamos sempre a ser pecadores, estamos sempre em

processo de conversão e, nesta conversão, somos continuamente

santificados pelo Espírito de Deus. Porque não podemos, nunca,

pertencer a essa categoria de pessoas de quem Jesus afirma «que

não têm necessidade de conversão» (Lc 15, 2) porque se crêem

justas. Nesse caso, não precisaríamos de Jesus. Talvez nos man-

tivéssemos ainda a caminho rumo a Deus, mas sozinhos, no sen-

tido mais solitário da palavra, irremediavelmente sós, recaindo

constantemente sobre nós próprios, sob a aparência duma santi-

dade que em vão tentaríamos realizar. Cada vez nos sentiríamos

mais profundamente frustrados, porque nunca encontraríamos o

verdadeiro amor.

É sempre uma ilusão julgar-se convertido uma vez por

todas. Não, nós não passamos nunca de pecadores, mas pecado-

res perdoados, pecadores-em-perdão, pecadores-em-conversão.

Neste mundo, não pode haver outra santidade, porque a graça

não pode actuar de outra maneira. Converter-se é sempre reco-

meçar essa mudança interior pela qual a nossa pobreza humana

– o que Paulo chama a carne – se volta para a graça de Deus. Da

lei da letra, passa à lei do Espírito e da liberdade; da ira à graça.

Esta mudança nunca está terminada, está sempre a começar. An-

tão, o Grande, Patriarca e Pai de todos os monges, dizia-o de

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EM ESTADO DE CONVERSÃO 13

uma maneira lapidar: «Todas as manhãs digo a mim mesmo: ho-

je começo». E Abba Poimen, o segundo entre os Padres do de-

serto, o mais ilustre depois de Antão, a quem felicitavam, no lei-

to de morte, de ter vivido uma vida feliz e virtuosa, e de poder

confiadamente apresentar-se perante Deus, respondeu: «Tenho

ainda de começar, apenas comecei a converter-me». E chorava

com pena.

De facto, a conversão é sempre uma coisa que leva tempo.

O homem precisa de tempo, e Deus também quer precisar de

tempo connosco. Partiríamos de uma imagem de homem absolu-

tamente errada se pensássemos que as coisas importantes da vida

humana podem realizar-se imediatamente e de uma vez para

sempre. O homem está feito de tal maneira que precisa de tempo

para crescer, amadurecer e pôr em acção todas as suas capacida-

des. Deus sabe-o melhor do que nós. E, por isso, espera, não

desiste. É indulgente, longânime. Espera-nos como um pescador

paciente, como escrevia um poeta. To chrèston tou Theou eis me-

tanoian se agei (Rm 2, 4), escreve Paulo: «A bondade de Deus

convida-te à conversão». Não a ira, mas antes to chrèston, o seu

afecto, bondade, paciência. No prólogo da sua Regra, S. Bento

comenta-o de modo impressionante: Deus vai todos os dias à pro-

cura do seu operário, diz ele, e o tempo que nos dá é ad inducias,

uma trégua, um dom, um tempo de graça que nos é concedido

gratuitamente. Um tempo de que podemos servir-nos para encon-

trar Deus uma vez mais, e encontrá-l’O sempre mais na sua admi-

rável misericórdia. Não é senão mais tarde, após a morte, que

vamos poder viver fora do tempo e para sempre. Hoje, o tempo

é-nos dado para conhecer a Deus cada vez melhor. É sempre

tempo de conversão e de graça, dom da sua misericórdia.

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AO RITMO DO ABSOLUTO 14

Mesmo o pecador endurecido

É assim que Deus Se ocupa de nós cada dia. Chama-nos à

conversão: «Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso

coração» (Sl 94). Deus fala-nos de muitas maneiras: pela sua Pa-

lavra, através dos homens com quem vivemos e por meio de to-

da a espécie de circunstâncias, agradáveis ou difíceis. São so-

bretudo estas últimas as que mais tememos. Sabemos de sobra

que Deus tem qualquer coisa a dizer-nos através da provação, da

doença, da morte, da contradição. Se este temor habita ainda no

nosso coração é porque só temos presente a ira de Deus. Não es-

tamos ainda em condições de discernir, detrás desse sinal apa-

rente da ira, o amor infinito de Deus. Vimo-lo anteriormente: em

Jesus, a ira de Deus transformou-se em amor; por outras pala-

vras: tornou-se evidente que a sua ira não é senão uma tentativa

provisória de nos fazer compreender o seu amor.

Se ainda temos medo das intervenções de Deus, se as in-

terpretamos espontaneamente como uma expressão da sua ira,

isso significa que, de uma maneira ou de outra, ainda estamos

agarrados ao provisório. Ainda não experimentamos o amor de

Deus, a sua ternura desconcertante.

Dir-se-á, talvez, que esse temor é precisamente o sinal de

que somos culpados, a prova das censuras que nos faz a nossa

consciência e do castigo de Deus que nós merecemos. Só os

pecadores deveriam temer a ira de Deus, e aquele que a teme

demonstra com isso que é pecador.

Um tal raciocínio não é tão evidente quanto parece, mesmo

que reflicta bastante bem a reacção comum do crente mediano ac-

tual. De facto, para quem percorre o Evangelho, não é evidente

que o pecador tenha de temer Jesus. Pelo contrário: não dizia Je-

sus, a cada passo, que tinha vindo, não para os justos, mas preci-

samente para os pecadores? (Mt 9, 13).

Além disso, não está absolutamente provado que só os

pecadores temem a Deus. Na realidade, encontram-se muitos

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EM ESTADO DE CONVERSÃO 15

crentes e muitos justos – para empregar um termo bíblico – que

vêem com a mesma incerteza e temor o seu eventual encontro

com Deus. Fazem tudo quanto podem para se verem livres desse

mal-estar, à força de generosidade e de virtude. Quanto mais o

conseguem – e uma conquista dessas é sempre relativa – mais

possibilidades têm, pensam eles, de evitar a ira de Deus e mere-

cer o seu amor.

Existem, efectivamente, duas categorias de pessoas que

devem, para já, temer a ira de Deus. São, por um lado, os peca-

dores endurecidos; por outro, os justos endurecidos. O pecador

endurecido, isto é, aquele que não quer de maneira nenhuma

ouvir falar de mudança, vai ter de enfrentar, um dia, a ira de

Deus, mesmo que tenha conseguido eludi-la habilmente na vida

de cada dia. Mas é lícito pensar que existem, de facto, muito

poucos pecadores endurecidos.

Pelo contrário, há, sem dúvida, muitos mais justos endure-

cidos – se assim podemos exprimir-nos –, pessoas que não co-

nhecem a misericórdia de Deus e que tratam de agir cada vez

melhor, simplesmente porque têm medo da ira de Deus. Liber-

tar-se-ão mais ou menos deste medo na medida em que conse-

guirem realizar o seu ideal na vida diária. Com o tempo, isso

pode até tornar-se suportável, se bem que vivam, no fim de con-

tas, com escassa compensação. Por isso é que raramente são

convincentes e menos ainda contagiosas. Porque ainda não co-

nhecem o amor, e o pouco que vive nelas procede antes de um

certo contentamento de si mesmas, com o qual correm o risco de

se isolarem ainda mais dos outros. Já receberam a sua recom-

pensa (Mt 6, 2). E porque nunca ouviram falar da graça, nada

mais esperam. A sua vida seria sem perspectiva e sem saída se o

termo «endurecido», atribuído igualmente a pecadores e a justos,

aludisse a um estatuto definitivo.

Muito pelo contrário. Tudo é provisório na vida de qualquer

homem, e ligado ao tempo. Nesse sentido, tanto os pecadores

como os justos vivem no tempo, um tempo que é dom de Deus

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AO RITMO DO ABSOLUTO 16

para eles, um tempo de graça e, portanto, um tempo aberto à

conversão. Nem o pecador endurecido nem o justo endurecido

serão tais para sempre. Todos estão chamados a ser «pecadores

em conversão». É isso o que vamos desenvolver ao longo de to-

do este livro. Não vai ser logo evidente, é verdade. E também

não vai ser fácil explicá-lo. Não se pode fixar numa definição,

mas somente tratar de descrevê-lo, a partir de uma experiência

pessoal, forçosamente limitada, e a partir da experiência daque-

les com quem pude estar em contacto. Afinal, é mais fácil dizer

aquilo que não é, porque é muito mais fácil viver como pecador

endurecido ou como justo endurecido do que como pecador em

conversão. No entanto, é a esta mudança interior que a graça nos

impele dia após dia. Deus toca-nos, de muitíssimas maneiras, a

fim de nos cativar para este estado de conversão. E nós não po-

demos senão preparar-nos para sermos tocados assim por Deus.

Sim, muitas coisas terão de acontecer, e totalmente fora da

nossa boa vontade ou da nossa generosidade natural. Esta mu-

dança não requer unicamente que sejamos interiormente feridos,

mas sobretudo que sejamos abalados até às nossas raízes. É pos-

sível que haja cacos e destroços. Que alguma coisa em nós tenha

de se desmoronar. Como um edifício de betão em que tivésse-

mos trabalhado anos a fio com um cuidado excepcional, e que,

num dado momento, passasse a funcionar como um escudo con-

tra o nosso eu mais profundo e contra os outros, correndo o risco

de nos proteger contra a própria graça de Deus.

Este desmoronamento não é senão um começo, mas já

pleno de esperança. É preciso é não tentar reconstruir o que a

graça demoliu. É também uma coisa que devemos aprender,

porque há sempre a grande tentação de levantar um andaime

qualquer diante da fachada oscilante e retomar o trabalho. Temos

de aprender a ficar junto das nossas ruínas, a sentar-nos nos es-

combros, sem amargura, sem nos censurarmos e sem acusar

Deus. Será preciso que nos apoiemos nesses muros em ruína,

cheios de esperança e de abandono, com a confiança de uma

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EM ESTADO DE CONVERSÃO 17

criança que sonha que o seu pai vai remediar tudo. Porque Ele,

sim, sabe como tudo pode ser reconstruído de outra maneira,

muito melhor do que antes. Exactamente como o filho pródigo,

para quem muitas coisas ficaram em farrapos: o dinheiro, a honra,

o coração; ele, que tinha perdido tudo quanto ainda podia espe-

rar das criaturas e que, no entanto, cheio de confiança, tomou a

resolução de regressar à casa paterna. Sentia instintivamente

que, mais do que o criado que ele desejava ser, podia ainda con-

tinuar a ser filho. Quem foi filho uma vez, sê-lo-á para sempre.

No próprio momento em que o filho perdido se reconcilia com

os seus destroços, já está na sua casa, junto de seu pai. Pelo con-

trário, aquele que luta contra os seus próprios destroços, luta

também contra o seu Pai e seu Deus; continua ainda e sempre

exposto à ira: ainda não é capaz de reconhecer o amor. Mas

aquele que se abandona, ao ponto de se alegrar e de estar con-

tente com a sua miséria, esse já se entregou ao amor libertador.

«Permanecer na conversão» só nos é possível graças a Je-

sus, postos a caminho e fortalecidos pelo Espírito de Deus. Rea-

liza-se em nós o que aconteceu a Jesus no mistério da sua morte

e Ressurreição. A confiança e o abandono de Jesus ao Pai, atra-

vés da morte, tornaram ineficaz para sempre a ira de Deus. Tor-

nam-nos capazes de reconhecer, com Ele, o amor do Pai para

além de cada morte e de cada renúncia, e isso até na nossa fra-

queza mais profunda. Porque estar em conversão é passar con-

tinuamente ao mistério do pecado e da graça. Atenção: não é

passar do pecado à graça, mas sim passar ao mistério do pecado

e da graça. Isto significa o abandono de toda a justificação de si

mesmo, de toda a justiça pessoal, e o reconhecimento do nosso

pecado – para nos abrirmos à graça de Deus.

É isto a maravilha do pecador-em-vias-de-conversão, que o

próprio Jesus reconhece como a maior alegria do Pai nos Céus.

«Em verdade vos digo, haverá mais alegria no Céu por um só

pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que

não precisam de se arrepender» (Lc 15, 7). Esse maravilhoso ho-

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AO RITMO DO ABSOLUTO 18

mem-pascal que morre continuamente em Jesus e ressuscita com

Ele torna-se a alegria e o orgulho do Pai. É um prodígio que se

renova cada dia e nunca terminado. De facto, enquanto estamos

na vida presente, Deus está continuamente operante. Porque o

tempo e a duração da nossa vida representam também um aspecto

da graça que se encarnou: o Amor de Deus ilimitado e indefectí-

vel. Poderemos, assim, cada dia, firmar-nos na conversão, com o

coração repleto de acção de graças. Um passo fora deste estado de

conversão significaria um passo fora de Deus e do seu amor. Isto,

mesmo que continuemos a pensar em Deus, a falar d’Ele e a

anunciá-l’O. Até a oração dirigida a Deus se tornaria impossível,

porque não há verdadeira oração fora de uma contínua conversão.

Fora da conversão, estamos fora do Amor. Nesse caso, não

restam ao homem senão duas possibilidades: ou a satisfação de

si mesmo e a sua justiça pessoal; ou uma profunda insatisfação e

o desespero.

Fora da conversão, não podemos manter-nos na presença

do Deus verdadeiro, porque não estaríamos junto de Deus, mas

junto de um dos nossos inumeráveis ídolos. Além disso, sem

Deus, não podemos permanecer na conversão. Porque esta nunca

é o fruto de bons propósitos ou de qualquer esforço continuado.

Ela é o primeiro passo do amor, do Amor de Deus, muito mais

que do nosso. Converter-se é ceder à conquista insistente de

Deus, é abandonar-se ao primeiro sinal de amor que percebemos

vindo d’Ele. Abandono, portanto, no sentido forte de rendição.

Se nos rendermos perante Deus, entregamo-nos a Ele. Porque,

nesse momento, todas as nossas resistências desaparecem diante

do fogo devorador da sua Palavra e perante o seu olhar, e não

nos resta senão a oração do profeta Jeremias: «Converte-nos (li-

teralmente: faz-nos voltar), Senhor, e nos converteremos» (lite-

ralmente: voltaremos) (Lm 5, 21; cf. Jr 31, 18).

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ÍNDICE 171

ÍNDICE

1. Em estado de conversão .................................................................... 7

Entre a ira e a graça ............................................................................. 7

Sempre em vias de se converter........................................................... 11

Mesmo o pecador endurecido .............................................................. 14

2. Os nossos ídolos e Deus ..................................................................... 19

A esposa infiel ..................................................................................... 19

E os falsos deuses de hoje? .................................................................. 23

Amaldiçoar a Deus .............................................................................. 26

As oportunidades de Deus ................................................................... 30

O Deus de quem ouvimos falar ........................................................... 33

3. O poder da fé ...................................................................................... 36

Como falar da fé? ................................................................................ 36

Jesus surpreendido ............................................................................... 38

Assentimento e abandono .................................................................... 42

A fé que realiza maravilhas ................................................................. 43

4. Crescer através da tentação .............................................................. 47

A fraqueza da carne ............................................................................. 47

Na fraqueza, a força de Deus ............................................................... 52

Reconciliar-se com a própria fraqueza ................................................ 54

5. Entre a fraqueza e a graça ................................................................ 58

Uma virtude evangélica? ..................................................................... 58

Fariseu ou publicano? .......................................................................... 63

A Boa Nova ......................................................................................... 66

6. A compunção ou o coração contrito ................................................. 70

Culpabilidade e arrependimento .......................................................... 72

O monge e o publicano ........................................................................ 75

E quanto à ascese? ............................................................................... 78

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AO RITMO DO ABSOLUTO 172

A ascese de fraqueza............................................................................ 82

O homem restaurado ............................................................................ 88

7. O acompanhamento espiritual.......................................................... 92

Detectar a vida ..................................................................................... 94

Manifestar os seus desejos ................................................................... 102

A censura interior ................................................................................ 106

O Deus-espelho ................................................................................... 112

O Deus verdadeiro para o homem livre ............................................... 115

Os momentos importantes do acompanhamento ................................. 118

8. A propósito de alguns frutos do Espírito Santo .............................. 125

A alegria .............................................................................................. 125

Recolhimento e silêncio ....................................................................... 135

Crescer para dentro .............................................................................. 138

O amor humilde ................................................................................... 141

9. Orar: respirar ao ritmo da graça ..................................................... 147

A propósito da oração .......................................................................... 147

Orar na indigência ............................................................................... 151

A oração: um grito ............................................................................... 157

Unificar-se desde dentro ...................................................................... 162

Liberdade no Espírito .......................................................................... 164

Epílogo ...................................................................................................... 167

Índice ....................................................................................................... 171