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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ANALUCIA GRAZIANO RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA POR ERRO DE DIAGNÓSTICO Critérios para a identificação do erro de diagnóstico e o resultado falso-positivo e falso-negativo. MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

ANALUCIA GRAZIANO

RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA POR ERRO DE DIAGNÓSTICO Critérios para a identificação do erro de diagnóstico e

o resultado falso-positivo e falso-negativo.

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

ANALUCIA GRAZIANO

RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA POR ERRO DE DIAGNÓSTICO Critérios para a identificação do erro de diagnóstico e

o resultado falso-positivo e falso-negativo.

SÃO PAULO 2010

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Civil Comparado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Civil Comparado, sob a orientação da Professora Doutora Maria Helena Diniz.

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BANCA EXAMINADORA

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À minha família, sempre, por toda a minha vida.

Ao meu irmão Paschoal, meu eterno príncipe (in memorian).

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Aos meus pais e minha irmã, por terem me incentivado em todos os momentos. Ao Marcelo, pelas palavras de encorajamento e pelo amor.

Meu especial agradecimento à Maria Helena Diniz, ser humano dos mais elevados, pela atenção e carinho na condução deste trabalho.

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Quando eu me encontro em tempos difíceis Mãe Maria vem pra mim

Falando palavras de sabedoria, deixa estar E nas minhas horas de escuridão

Ela está em pé bem na minha frente Falando palavras de sabedoria, deixa estar.

Deixa estar, deixa estar. (…)

Sussurrando palavras de sabedoria, deixa estar.

E quando as pessoas de coração partido Morando no mundo concordarem, Haverá uma resposta, deixa estar.

Pois embora possam estar separados há Ainda uma chance que eles verão Haverá uma resposta, deixa estar.

Deixa estar, deixa estar. (...)

Haverá uma resposta, deixa estar.

(John Lennon e Paul McCartney)

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RESUMO

Em consonância com a idéia de Estado de direito e consequente incompatibilidade com a irresponsabilidade dos seus membros, a grande expansão da área da responsabilidade civil é acompanhada do crescente interesse da sociedade em buscar soluções que tornam efetiva a reparação do dano. Forma-se nova doutrina, preocupada com a proteção aos cidadãos mais frágeis e desamparados. Ocorre que o crescente número de queixas começa perturbar a sociedade em geral, por aumentar o custo financeiro para o profissional e para o paciente em razão especialmente do aumento no pedido de exames complementares mais sofisticados e recusa em procedimentos de maior risco, contribuindo para uma consolidação de uma medicina defensiva. O objetivo do presente trabalho é fornecer medidas capazes de prevenir os questionamentos do paciente-consumidor, relativos aos serviços de saúde utilizados por ele. São trazidos à baila alguns critérios como tempo, sensibilidade e especificidade do método de diagnóstico para a identificação do erro médico. O termo de consentimento esclarecido é também apontado como medida capaz de prevenir os questionamentos, eliminando ou reduzindo algumas causas ligadas a conflitos de relacionamento ou de falha de comunicação entre médico e paciente. No âmbito das instituições públicas a privadas, se faz necessária uma minuciosa análise sobre os regimes jurídicos adotados. De tão rico, o tema não se esgota no aspecto material, por isso pincela algumas particularidades processuais, que diretamente influenciam as demandas indenizatórias, tal como o ônus da prova. O estudo de mecanismos alternativos de recomposição dos acidentes médicos ajuda, também, a compreender melhor que a simples decisão de criar novas hipóteses de responsabilidade objetiva ou adotar um sistema alternativo de solidariedade nacional deve levar em conta a sua viabilidade em termos práticos, e não apenas teórico. Da jurisprudência e doutrina nacional comparada colhe-se o fundamento e a utilidade prática de cada questão discutida.

Palavras-Chave: Erro de diagnóstico médico. Responsabilidade médica. Termo de consentimento. Gerenciamento de riscos da conduta médica.

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ABSTRACT

In line with the idea of rule of law and consequent incompatibility with the irresponsibility of its members, the vast expansion of the area of liability is accompanied by the growing interest of society to find solutions that make effective compensation for damage. It forms new doctrine, concerned with protecting the citizens most vulnerable and helpless. It turns out that the increasing number of complaints begins to disrupt society in general, to increase the financial cost for the professional and the patient because of the increase especially in the application of more sophisticated laboratory tests and refusal to higher-risk procedures, contributing to a consolidation of defensive medicine. The aim of this paper is to provide measures to prevent the questioning of the patient-consumer for the health services used by it. Are brought to bear upon some criteria such as time, sensitivity and specificity of diagnostic method for identification of medical errors. The consent form is also shown as a measure capable of preventing the questions, eliminating or reducing some complications related to relationship conflict or miscommunication between doctor and patient. In the context of public institutions to private, is necessary a detailed analysis of the legal systems adopted. So rich, the issue is not limited to the material aspect, so deals some specific procedural rules, which directly influence the demand indemnification, as the burden of proof. Case law and doctrine and comparative national basis and reap the practical utility of each issue discussed.

Keywords: Error medical diagnosis. Medical liability. Consent. Risk management of medical management.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.............................................................................. 10

2. NOÇÕES GERAIS SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA . ..................................................................................................... 13

2.1 Visão Histórica 13

2.1.1 Primeiras considerações ....................................................................................................... 13

2.1.2 História externa dos antecedentes da responsabilidade civil médica................................... 14

2.1.3 História interna da responsabilidade civil .............................................................................. 19

2.2 Os direitos da personalidade e a importância da bioética e do biodireito 22

3. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA POR ERRO DE DIAGNÓSTICO .................................................................................... 28

3.1 Possibilidade de Aplicação de Regime Misto 29

3.2 O Código de Defesa do Consumidor e as Relações Firmadas Entre Médico e Pacientes 34

3.2.1 Caracterização da relação de consumo................................................................................ 34

3.2.2 Conceito de profissional liberal ............................................................................................. 39

3.2.3 O §4º do art 14 do CDC e a responsabilidade civil dos profissionais liberais ...................... 44

3.3 O Código Civil Aplicado às Relações Consumeristas 48

3.3.1 Atividade de risco e o parágrafo único do art. 927 do CC/02 ............................................... 48

3.4 Particularidades dos Pressupostos da Responsabilidade Civil Médica no Erro de Diagnóstico 52

3.4.1 A conduta: o diagnóstico médico .......................................................................................... 53

3.4.1.1 O resultado falso-positivo: defeito do serviço médico?...............54

3.4.2 Culpa no diagnóstico médico ................................................................................................ 61

3.4.3 Dano médico, perda de uma chance e erro de diagnóstico ................................................. 68

3.4.4 Relação de causalidade ........................................................................................................ 74

3.5 Excludentes de Responsabilidade Civil no Diagnóstico 76

3.5.1 Inexistência de defeito........................................................................................................... 77

3.5.2 Culpa exclusiva do paciente ou de terceiro .......................................................................... 78

3.5.3 Caso fortuito e iatrogenias decorrentes de fatores individuais e próprios do paciente ........ 81

3.5.4 Fato de terceiro ..................................................................................................................... 82

3.5.5 Risco do desenvolvimento .................................................................................................... 83

4. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA POR ERRO DE DIAGNÓSTICO EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS DE SAÚDE................................................................................................. 86

4.1 Responsabilidade Civil Médica-Hospitalar em Instituições Privadas e Operadoras de Plano de Saúde: A Questão do Defeito na Prestação de Serviços 86

4.1.1 Da inaplicabilidade do artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor aos serviços médicos às instituições públicas de saúde.......................................................................................................... 94

4.1.2 A duplicidade de relações jurídicas e dos sistemas de responsabilidade: a responsabilidade objetiva e subjetiva.............................................................................................................................. 101

4.1.3 A reserva do possível: excludente de responsabilidade estatal? ....................................... 107

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4.1.4 A questão da solidariedade, o direito de regresso do Estado e o quantum sobre que se exerce ............................................................................................................................................. 112

5. GERENCIAMENTO DE RISCOS LIGADOS À ATIVIDADE MÉDICA: O TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO .............. 116

5.1 Aspectos Legais da Autonomia do Paciente no Direito Brasileiro 116

5.2 Do Dever de Aconselhar, Informar e Documentar das Entidades Prestadores de Cuidados de Saúde 122

5.3 Pressupostos de Admissibilidade do Consentimento Informado e Esclarecido 128

5.3.1 Capacidade ......................................................................................................................... 133

5.3.2 Informação........................................................................................................................... 138

5.3.3 A forma do consentimento livre e esclarecido .................................................................... 141

5.4 Efeito do Consentimento Informado e Esclarecido: Gerenciamento de Riscos de Conduta 146

5.5 Direito Comparado 150

6. PROVA NA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA.................... 153

6.1 Compatibilidade da Inversão do Ônus da Prova com a Responsabilidade Subjetiva do Médico 153

6.2 Os Requisitos de Hipossuficiência 158

6.2.1 Conceito de hipossuficiência............................................................................................... 158

6.2.2 Conceito de verossimilhança das alegações ...................................................................... 162

6.2.3 Alternatividade ou cumulatividade dos requisitos ............................................................... 163

6.3 Momento da Inversão do Ônus da Prova 165

6.4 A Inversão do Ônus Financeiro 168

6.5 Novas Teorias a Respeito do Ônus da Prova: Teoria da Carga Dinâmica do Ônus da Prova e Res Ipsa Loquitur 172

7. SISTEMAS ALTERNATIVOS DE RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO COMPARADO..................................................................... 176

7.1 Sistema no Fault 177

7.2 Sistema misto 180

CONCLUSÃO..................................................................................... 183

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 188

APÊNDICE......................................................................................... 196

ANEXO............................................................................................... 200

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1. INTRODUÇÃO

É extremamente tormentoso para o médico saber até que ponto deve pedir

exames para melhor firmar o seu diagnóstico e quando a omissão pode ser tida

como negligência ou imprudência. De qualquer forma, em caso de dúvida sobre a

necessidade ou não do exame, a prudência recomenda a solicitação, de acordo com

o art. 32 do Código de Ética1, não devendo o médico deixar de utilizar todos os

meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente.

Além do erro médico, devem-se verificar outras circunstâncias que favorecem

o mau resultado, como as características pessoais do paciente, a sensibilidade e

especificidade do método de diagnóstico complementar, a incidência do falso-

positivo e falso-negativo. A aferição do elemento culpa é, ainda hoje, inafastável,

conquanto complexa, no intuito de se qualificar a conduta médica como lesiva e apta

a gerar obrigação de indenizar.

A responsabilidade civil do profissional não pode ocorrer como forma de

substituição da implementação de política que favoreça a vida e saúde da

população. A melhoria efetiva da saúde pública não depende do Judiciário, que

cuida apenas das consequências. A imposição da responsabilidade objetiva sob o

fundamento de solidariedade pode anular a liberdade. E liberdade e

responsabilidade são dois conceitos complementares e indissociáveis da sociedade.

Deve-se atentar ainda que a pura e simples adoção de regras da responsabilidade

objetiva não contribuirá para a estabilização das relações entre médicos e pacientes,

mas, sim, para a consolidação de uma “medicina defensiva”, exercida sob uma

mentalidade litigiosa, contrária à paz social e a liberdade.

Em todo o corpo do trabalho, houve uma preocupação de tentar estabelecer

uma comparação com a doutrina estrangeira, principalmente a portuguesa,

uruguaia, argentina, dentre outras. O estudo foi baseado no Código Civil brasileiro

de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que os conceitos de

1 Resolução Conselho Federal de Medicina nº 1.931, de 17 de setembro de 2009: Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

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consumidor e fornecedor alcançam paciente e médico, respectivamente, inclusive no

que se refere à prestação de serviços públicos em geral.

Este trabalho foi dividido em sete partes. De início, é feita uma análise

estruturalista do conceito de responsabilidade civil sob a forma externa (tradicional)

e interna, com o fim de compreender sistematicamente os elementos envolvidos

nessa lenta e gradativa construção da noção da responsabilidade, bem como

assimilar o significado especificamente contemporâneo da responsabilidade civil. É

feita também a análise dos direitos da personalidade e da importância da bioética e

do biodireito, especialmente quanto às novas situações ligadas à atividade médica.

No capítulo segundo, o estudo volta-se às generalidades da responsabilidade

civil médica e as particularidades em relação ao erro de diagnóstico. No que tange

às generalidades, a afirmação tradicionalmente aceita é que os médicos são

devedores de uma obrigação de meio, em que a mera atividade, consciente e

dedicada, com o fim único de cuidar (e não necessariamente curar), já concretiza o

adimplemento contratual. No entanto, o Judiciário está revelando certa tendência de

considerar exames laboratoriais e radiológicos como atividades de resultado,

atribuindo, equivocadamente, ao médico responsabilidade civil objetiva, e não

responsabilidade civil subjetiva com presunção de prova (CAVALIERI FILHO, 2005).

No que se refere às particularidades, o estudo aponta que a identificação da falha

depende da análise de diversos critérios a fim de configurar o erro de diagnóstico

médico. Por exemplo, deve ser analisada a sensibilidade e especificidade do método

de diagnóstico, características que ajudam, a saber, com que frequência ocorrem os

resultados falsos. E ainda, constatado que os conceitos de consumidor e fornecedor

alcançam, respectivamente, paciente e médico, o estudo volta-se ao âmbito de

aplicação do CDC e a aplicabilidade do art. 14, §4º (conceito de profissional liberal),

tendo em vista o caráter excepcional deste dispositivo no âmbito do CDC quanto à

disciplina jurídica da responsabilidade civil subjetiva. Nesta parte, debruça-se

também nas causas excludentes de responsabilidade civil previstas não apenas no

Código de Defesa do Consumidor (rol não taxativo), incluindo o tratamento dado

pelo Código Civil. São elas: inexistência de defeito; culpa exclusiva da vítima

(paciente) ou de terceiro, caso fortuito, força maior e risco de desenvolvimento. O

médico, portanto, pode eximir-se de indenizar desde que demonstre a ruptura do

nexo de causalidade.

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O capítulo terceiro versa sobre a responsabilidade civil médica por erro de

diagnóstico em instituições públicas e privadas de saúde, principalmente quanto à

solidariedade da relação médico-hospitalar.

O capítulo quarto é destinado à nova situação ligada à atividade médica: o

consentimento informado. Ressalta-se que o consentimento informado tem por

finalidade formalizar ou documentar o dever do médico e direito de informação do

paciente sobre as consequências e os riscos “normais e previsíveis” do ato médico.

O consentimento informado possui, ao contrário do que afirma a doutrina, efeito

preventivo, devendo ser considerado uma medida de gerenciamento de riscos. Isto

porque o cumprimento do dever de informação, principalmente documentado através

do consentimento informado, oferece ao paciente elementos suficientes para

distinguir os riscos da falha do ato médico, e, por consequência, evitar eventual

discussão sobre a conduta.

O capítulo quinto versa sobre os aspectos processuais da responsabilidade

civil médica por erro de diagnóstico, especificamente o ônus da prova, retratando a

preocupação de tentar estabelecer um paralelo com a doutrina e jurisprudência

estrangeiras.

O capítulo sexto é destinado ao estudo dos mecanismos alternativos de

recomposição dos acidentes médicos. Ressalta-se a compreensão de que a simples

decisão de criar novas hipóteses de responsabilidade objetiva ou adoção de um

sistema alternativo de solidariedade nacional deve levar em conta as suas

vantagens e, principalmente, a viabilidade de ser recepcionado em termos práticos

(transposição com as devidas adaptações) ou apenas na teoria.

O fecho do trabalho vem com uma conclusão acerca do que foi analisado,

considerando a tendência da moderna jurisprudência brasileira, influenciada pela

estrangeira.

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2. NOÇÕES GERAIS SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL

MÉDICA

2.1 Visão Histórica

2.1.1 Primeiras considerações

Segundo Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, o instituto da

responsabilidade civil, ao contrário do que afirmam muitos juristas (DIAS, 1983)2, é

um instituto contemporâneo, produzido dentro das inovações introduzidas pelo

direito revolucionário francês, no final do século XVIII3. Afirma a autora que, na

realidade, a maneira pela qual a responsabilidade civil foi definida pela nova

legislação, pela jurisprudência e doutrina lembra a definição do dever de

compensação, de reparação, de punibilidade em função da ofensa ao direito alheio,

preconizada por sistemas jurídicos muito antigos, dentre os quais a lex Aquilia.

Trata-se apenas de uma aproximação aparente, com mais diferenças do que

semelhanças (HIRONAKA, 2005)4.

Segundo a autora, a historiografia pode ser objeto de uma análise

estruturalista do conceito de responsabilidade civil, isto é, estudada sob a forma

externa (tradicional) e a sob a forma interna. Tal abordagem permite não apenas

compreender seu significado dentro das forças da sua própria definição, como

permite ver os conceitos que efetivamente estão ou não atrelados a ele, em especial

a moral. 2 José de Aguiar Dias defende a dinamicidade do instituto, que se adapta e se transforma na mesma proporção em que envolve a civilização com o fim de oferecer, em qualquer época, o meio ou processo pelo qual, em face das novas técnicas e conquistas, a finalidade de restabelecer o equilíbrio desfeito por ocasião do dano. 3 Isto porque somente a partir do século XVIII a “reparação” se desvencilhou da exigência de “casos especiais”, quando foi enunciado um princípio geral, obrigando a reparar todos os danos que uma pessoa causar a outra por sua culpa. 4 (...) na busca da investigação histórica, dita evolutiva, desse instituto, é preciso reconhecer com honestidade quais são os seus limites, sob pena de perder de vista o significado racional dos seus verdadeiros fundamentos. O que tem sido considerado, por analogia ou apego aos antigos, como fonte da responsabilidade civil, pertence a mundos históricos e jurídicos nos quais não apenas a concepção do Estado contemporâneo é ainda um fenômeno inexistente e, por algumas vezes, até mesmo inimaginável, mas também, e em especial, essa distância institucional e conceitual é consequência de se conceber, de formas diversas, a fundamentação desse dever de reparação – ou compensação diante da ofensa, ou agravo a direito alheio -, circunstância que hoje recebe o nome de responsabilidade civil em determinadas situações muito precisas, mas que antes do surgimento desse nome recebia as mais variadas denominações e, especialmente, concepções.”

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A composição de um panorama histórico que reconheça os antecedentes do

conceito contemporâneo da responsabilidade civil será útil no sentido de

compreender sistematicamente os elementos envolvidos nessa lenta e gradativa

construção da noção da responsabilidade, bem como assimilar o significado

especificamente contemporâneo da responsabilidade civil.

2.1.2 História externa dos antecedentes da responsabilidade

civil médica

Ensina Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka que a função da história

externa do instituto jurídico é, simplesmente, registrar a cronologia das suas

formulações normativas, de forma a demonstrar que, não obstante as diferenças e

evolução do instituto, a sua essência é a mesma.

No âmbito da responsabilidade civil médica, o dano advindo da atuação

médica era inicialmente tido como inevitável, passando a uma situação totalmente

contrária, em que qualquer mau resultado era imputado ao profissional, seguindo-se

a demanda indenizatória.

No período histórico, anterior às primeiras culturas com vida política

organizada e sistema jurídico positivo, destaca-se o período do talião, com traços na

Lei das XII Tábuas, marcado pela autotutela, prática da vingança como forma de

compensação por danos causados por outrem com a anuência das autoridades

sociais e religiosas. Nesta fase, não se podia cogitar da idéia de culpa, dada a

relevância do fato mesmo de vingar (LISBOA, 2006)5. No entanto, esta equivalência

da punição do mal com o mal já esboçava a perspectiva de uma composição

voluntária entre a vítima e o ofensor, já que a vítima, ao invés de imposição de igual

sofrimento ao agente, recebia, a título de pena, uma importância em dinheiro ou

outros bens. Nesta fase, não havia diferença entre a responsabilidade civil e a penal,

que somente aparece a partir do momento em que a pena privada perde o caráter

de punição, assumindo a função de reparação. Portanto, não se encontra, na Lei

das XII Tábuas, um princípio determinante da responsabilidade civil, senão a

cogitação de casos concretos.

5 Conforme observa Roberto Senise Lisboa, nos primeiros tempos, a responsabilidade era objetiva, dissociada da noção de culpa e baseada na idéia de vingança privada, embora não tivesse nenhuma relação com o risco profissional, como hoje é concebido.

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Conhecido como o mais antigo conjunto de leis escritas, o Código de

Hammurabi (1790-1770 a.C.) inventou, entre outras coisas, a idéia de obrigação de

reparar ou de compensar alguém por um dano. De forma idêntica ao talião, o Código

manteve a justiça vingativa, introduzindo os casos passíveis de compensação e

como deveria ser feita através de lei escrita. É também o primeiro documento

histórico que trata do erro médico: alguns dos artigos dessa lei (215 e SS.)

estabeleciam que, em caso de morte ou lesão ao paciente, a falta de atenção e

perícia no exercício da profissão desencadeavam penas severas que iam até a

amputação da mão do médico cirurgião imperito6.

Cronologicamente posterior ao Código de Hammurabi, o Código de Manu foi

a primeira codificação das leis e costumes hindus. O Código de Manu representou a

fundação de uma noção não violenta de compensação dos danos, substituindo a

prática da vingança pessoal pelo pagamento em dinheiro. Mostrou-se que o dano

causado não poderia ser resolvido por meio de uma nova agressão, mas, sim,

através de uma nova ação com o fim de trazer à reordenação das coisas ao seu

estado anterior ou, ao menos, reaproximação o máximo possível da situação

original. Essa inspiração pacifista, semelhantemente aos institutos ocidentais,

propunha e exigia a superação da idéia de vingança.

Antes do aparecimento do direito romano, o antigo direito grego, em linhas

gerais, trouxe a idéia de que o dano constituía numa ação contrária à natureza de

alguém ou contrária à própria natureza interna. No campo da medicina, vai-se

firmando lentamente o princípio de que a culpa médica não se presume somente

pelo fato de não ter ele obtido êxito no tratamento, mas deve ser analisada e

individualizada com base na conduta seguida do profissional.

Como maior fonte de todos os sistemas jurídicos ocidentais, o direito romano

trouxe, como primeiro precedente de uma formulação estabelecida no século III a.C.,

a lex Aquilia damnum, segundo a qual fica obrigado a reparar aquele que é culpado

de causar dano a outrem7. Segundo Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, a

6 Sobre o exercício da Medicina: “Art. 215 – Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos. Art. 218 – Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata, ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, dever-se-lhe-á cortar as mãos. Art. 219 – Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo”. 7 Dividida em três capítulos, ainda predominava a reparação de danos originários de fatos concretos (morte de um escravo ou de um animal do rebanho). O terceiro capítulo tinha em vista o damnum

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peculiaridade do direito romano na matéria foi a concepção aquiliana, isto é, a idéia

de causalidade do agente gera a obrigação de indenizar ou reparar,

independentemente da vontade do lesado. Pela primeira vez, surgia a idéia de que

para cada ato ilícito há uma compensação (PEREIRA, 1997)8, uma pena

proporcional ao dano causado; a responsabilidade foi determinada pela causalidade

diante da ação voluntária na produção do dano ou ilícito (HIRONAKA, 2005)9.

Vale a pena ressaltar que, mesmo diante da Lex Aquilia, o legislador romano

permaneceu intervindo somente para resolver os casos de espécie, admitindo-se a

responsabilidade civil somente onde existissem esses casos. Somente em razão da

multiplicação de casos particulares, no último estágio do direito romano, avançou a

necessidade de reparação mesmo que inexistisse um corpo lesado, mas prejuízos

morais, encontrando-se fora da Lei Aquília solução mediante a utilização da actio

utilitatis causa (PEREIRA, 1997).

No direito brasileiro pré-codificado, há diversas fases distintas, no tocante à

responsabilidade civil.

Na primeira, observou-se que as Ordenações do Reino tinham presente o

direito romano, aplicado de forma subsidiária por força da Lei da Boa Razão (Lei de

18 de agosto de 1769), art. 2º: “que o direito romano servisse de subsídio, nos casos

omissos, não por autoridade própria, que não tinha, mas por serem muitas as suas

disposições fundadas na boa razão”.

A segunda fase foi inaugurada pelo Código Criminal de 1830, esboçando uma

idéia de ressarcimento através do instituto da satisfação (Dias, 1983).

A terceira fase iniciou-se com Teixeira de Freitas, através de considerações a

respeito da Consolidação das Leis Civis. Cogitou da responsabilidade do iniuria datum, conceito mais genérico ampliado pela jurisprudência a fim de atingir tanto o dano a uma coisa corpórea (damnum corpore datum) como o dano a uma coisa incorpórea (damnum non corpore datum). 8 (...) a edição da lex Aquilia desempenhou função importante na evolução da responsabilidade civil. Sem haver derrogado o direito anterior, substituiu as multas fixas por uma pena proporcional ao dano causado. Toda a estrutura do dever reparatório, que antes o lesado procurava efetuar por suas próprias mãos, converteu-se no poder de pedir ao Estado a imposição de uma penalidade, não a título de vingança, porém de reparação. 9 (...) quando eu atravesso sem querer o terreno de outro cidadão e acabo, com a minha travessia, danificando o terreno ou, diferentemente, quando atravesso o terreno de outro cidadão e acabo, com minha travessia, danificado sem querer o terreno, qual a minha culpa, tanto num caso como no outro? No primeiro caso (onde a travessia, pelo menos, é involuntária), cabe verificar se a produção do dano o é ou não, pois em caso negativo, de nada tenho culpa, ainda que sem mim nenhum dano viesse a ser causado; no segundo caso (a produção do dano é que é involuntária), cabe saber se haveria alguma causalidade inevitável entre minha travessia (talvez voluntária) do terreno e a produção de danos, e se isso seria de minha parte previsível, pois em caso negativo, de nada eu poderia ter culpa, apesar de, novamente, eu mesma ter sido elemento necessário da produção do dano.

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delinquente, estabelecendo a necessidade de ser pedida a indenização por via da

ação cível, na qual o dano à pessoa e aos bens do ofendido seria avaliado por

árbitros; estabeleceu-se a solidariedade dos co-delinquentes, a responsabilidade

indireta e diversos aspectos da reparação e liquidação do dano.

Da influência dessas idéias, e particularmente do Código Civil francês, não se

esquivou o Código Civil de 1916, que consagrou a teoria da culpa (DIAS, 1983)10,

sem olvidar casos especiais de responsabilidade sem culpa. O Código Civil dispôs

expressamente sobre a obrigação dos médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras

e dentistas, de satisfazer o dano dos quais resultasse morte, inabilitação de servir ou

ferimento.

Como centro irradiador e marco de reconstrução de um direito privado

brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis11, um direito privado mais

solidário12, a Constituição Federal, em seus artigos 5º, XXXII, e art. 170, assegurou,

10 A Comissão do projeto do Código Civil de 1916 justificou os dispositivos que contemplavam a responsabilidade civil nos seguintes termos: “Na reparação civil, predominou, ainda, o conceito de culpa, que por sua elasticidade permite a extensão suficiente no enfrentar as exigências atuais do comércio jurídico (art.151). Acentuou-se, por isso, que a reparação não resulta apenas de procedimento contrário à lei, mas de qualquer procedimento desviado dos bons costumes e das normas de vida social, princípio que, com dutilidade, se afeiçoa à mudança, contínua das exigências da atividade moderna (art.152). Ressalvados ficaram, todavia, os preceitos especiais reguladores da reparação civil em matéria de acidente de trabalho, transporte e concorrência desleal, onde a responsabilidade puramente objetiva já tomou definitivamente o campo ou vê crescer cada dia sua influência dominadora (art.185). (...) O abuso de direito passou da fórmula indireta, extraída por argumento ‘a contrario sensu’ do art. 160 do Código Civil, para uma conceituação expressa, que prescindirá, em regra, da prova do elemento subjetivo (art.156). (...) Acolhendo certa corrente de opinião, que embora não predominante, atende a necessidade de ordem prática, ficou assentado que o juiz fixará a indenização, de acordo com a gravidade da culpa (art.172), precisando-se embora, os limites da reparação nos casos de ofensa à pessoa, como no Código Civil. Preferiu-se, nesses casos, a fórmula da pensão, garantindo o capital por títulos inalienáveis, que reverterão, todavia, à livre disponibilidade do prestador, quando cessada a percepção do auxílio. Fazer passar esse capital aos herdeiros da vítima não pareceu razoável à Comissão, por envolver enriquecimento sem motivo. Em verdade seria criar um capital, que o de cujus não possuía e, por outro lado, aplicar uma pena, além de justa indenização, ao responsável por simples reparação (art.178). Adotou-se, ainda, a reparação do dano moral, arbitrado com moderação, não só cumulativamente com o de caráter patrimonial, mas também nos casos em que este não se verifica ou surge com importância insignificante (artigo 181-182). Assim, invertida restou a regra dos primeiros tempos: a responsabilidade sem culpa tornou-se exceção à responsabilidade subjetiva e passou a ser tida como um sistema mais rigoroso. 11 Antônio Herman Benjamin, Cláudia Lima Marques, Leonardo Roscoe Bessa. ensinam que o início da evolução em direção à identificação de grupos de sujeitos de direito ou pessoas consideradas e presumidas como vulneráveis (como os consumidores) foi através da máxima favor debilis, que estabeleceu a limitação dos poderes dos credores e do crédito através do reconhecimento de direitos mínimos aos devedores a fim de garantir a igualdade material entre os fortes e fracos. 12 Segundo os mesmos autores, esta expressão é da nova doutrina alemã e procura simbolizar o processo contemporâneo de mudança e de re-sistematização do direito privado através do conjunto de valores e ideais da modernidade (liberdade, igualdade e fraternidade).

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como direito fundamental e, portanto, com hierarquia de cláusula pétrea13, a

proteção distintiva do consumidor (BENJAMIN, et al, 2009).

Em consonância com a ordem constitucional, o Código de Defesa do

Consumidor disciplina a responsabilidade do fornecedor pela reparação dos danos

decorrentes do fato do produto ou do serviço independe de culpa14. Contudo, a

responsabilidade pessoal do profissional liberal prevista no art. 14, §4º deve ser

apurada mediante a verificação da culpa.

O Código Civil de 2002 mostrou-se comedido e conservado no que é

pertinente à responsabilidade civil, mantendo a maior parte dos preceitos contidos

no Código Civil de 1916, sem modificar a sua substância ou filosofia. Não

estabeleceu, por exemplo, a extensão e os contornos do dano moral, relegando

novamente à jurisprudência essa tarefa15. Destacou-se, por outro lado, quanto ao

grande avanço no campo relativo aos contratos, adotando os princípios da função

social do contrato (art. 421), da probidade e da boa-fé (art. 422), colocando em

segundo plano o princípio da autonomia da vontade.

Uma grande conquista do Código Civil de 2002 de importância fundamental

no presente estudo é a tutela civil dos direitos da personalidade (art. 11 ao 21) e sua

repercussão no plano da responsabilidade civil. Trata-se de uma conquista da

pessoa humana, enquanto detentora de direitos intrínsecos fundamentais,

13 A importância de um direito estar incluído no rol dos direitos fundamentais e expresso na Constituição reside no plano da eficácia. Sendo o direito do consumidor um direito fundamental, que é um direito subjetivo, influencia as relações privadas, impõe valores a serem respeitados nas relações entre dois sujeitos iguais. Assim, o direito do consumidor possui, segundo denomina a doutrina constitucional alemã, eficácia horizontal. Esta eficácia pode ser direta ou imediata, podendo o aplicador da lei utilizar o direito fundamental diretamente retirado da Constituição, mesmo sem que uma lei infraconstitucional o defina; ou pode ser uma eficácia indireta ou mediata, mediada justamente por uma lei infraconstitucional que defina mais e delimite este direito fundamental (como, no caso do consumidor, temos o CDC). Por outro lado, sendo o direito do consumidor um direito fundamental deve ser respeitada pelo Estado. Assim o direito do consumidor possui, segundo denomina a doutrina constitucional alemã, eficácia vertical. Em suma, como direito fundamental, o direito do consumidor deve ser respeitado pelos dois sujeitos de direito privado, bem como pelo Estado, sempre de acordo e em conformidade com a lei infraconstitucional (eficácia indireta do CDC) e as exigências da dignidade da pessoa humana (eficácia direta: CF). 14 Vale lembrar que o direito do consumidor pertence ao ramo de direito privado não porque suas normas sejam todas de direito privado – ao contrário, como comprova o Código de Defesa do Consumidor, muitas de suas normas tutelares (a maioria) são de natureza pública – mas justamente em razão do seu objeto de tutela ser o consumidor uma pessoa privada, agente privado diferenciado, vulnerável, nas relações frente os fornecedores (que podem ser entes privados ou públicos, nacionais ou estrangeiros, de acordo com o art.3º do CDC). Melhor dizendo, o direito do consumidor pertence ao ramo do novo direito privado, com função social, não regulando apenas interesses individuais e disponíveis. 15 O Código Civil apenas faz uma menção do dano moral no art.186, tratando timidamente a admissão de uma reparação sem expressão econômica.

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intransmissíveis e irrenunciáveis, que se refere a uma reivindicação antiga dos

juristas, agora resgatada.

Não obstante as relevantes inovações, o Código Civil de 2002 manteve a

orientação adotada no Código de 1916, dispondo, porém, de forma mais genérica ao

se referir à obrigação de indenizar daquele que “no exercício da atividade

profissional”, por negligência, imprudência ou imperícia, causar “morte do paciente,

agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão ou inabilitá-lo para o trabalho”.

Enfim, constata-se que no direito brasileiro a responsabilidade, no âmbito da

atividade médica, assume relevante significado. É importante, agora, a investigação

sob uma visão histórica interna, especificamente no que tange ao estudo do

elemento culpa, que será analisado no capítulo a seguir.

2.1.3 História interna da responsabilidade civil

Conforme apontado, a outra forma de análise do instituto jurídico, qual seja, a

história interna, é uma investigação do significado próprio que cada concepção de

responsabilidade oferece, em razão da sua estrutura.

Sob esse enfoque interno, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

destaca que a responsabilidade civil concebida na Lex Aquilia não é,

essencialmente, a mesma concebida pelo Código Civil de 1916. Na verdade, são

concepções diferentes.

Segundo a autora, a idéia de culpa é fundamento de determinação do dever

tanto na lex Aquilia como no instituto contemporâneo de responsabilidade civil. No

entanto, no caso da primeira, é índice de obrigação, pois depende de ser exigido por

quem se sente lesado, enquanto que no segundo caso, há simultaneidade entre

culpa e dever.

Isso significa dizer que, no direito romano, a obrigação de indenizar não

nasce por si só da prática do ato, mas depende da constatação estatal da

antijuridicidade do ato, que define quem é o devedor da compensação; a culpa não é

causa suficiente para a intervenção do poder, porque falta a noção de necessidade

moral e de reparação demonstrada pela parte lesada (DIAS, 1983)16. Na

contemporaneidade, a concepção do dever de indenizar também depende de uma 16 No mesmo sentido afirma José de Aguiar Dias, para quem a noção de culpa sempre foi precária no direito romano, em que jamais chegou a ser estabelecida como princípio geral ou fundamento da responsabilidade civil, o que de nenhum modo exclui a convicção de que a evolução se operou definitivamente nesse sentido.

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imposição do Estado, porém a culpa é causa suficiente do dever de indenizar, pois o

seu reconhecimento oficial se reflete como marca pública da moralidade privada

representada na lei.

O fator fundamental na responsabilidade civil vigente no direito romano é,

segundo a autora, a causalidade diante da ação, em razão da escolha de realizar a

ação ilícita ou danosa. Sem esse aspecto voluntário, isto é, a consciência de que

não pode agir daquela forma e de que agindo de tal maneira causa dano, sendo

possível agir de outra forma, não há responsabilidade civil. A culpa na concepção

romana da lex Aquilia significa, exatamente, escolher não agir licitamente, escolher

produzir dano com sua ação ilícita17. Enfim, o fator fundamental da responsabilidade

civil, na lex Aquilia, segunda a autora, é a causalidade do agente em relação ao

dano, ter sido autor de um dano, e não ter desejado causar dano que efetivamente

causou18. É a imputação em razão da escolha consciente do ato ilícito, e não em

razão da escolha quanto ao resultado (PEREIRA, 1997)19.

Na realidade, enorme controvérsia divide os autores sobre a idéia de culpa

como elementar na responsabilidade civil na Lei Aquilia. De um lado os que

sustentam que a idéia de culpa era estranha à Lei Aquilia; de outro lado, os que

defendem a sua presença como elementar na responsabilidade civil, com base na

parêmia célebre: In Lege Aquilia et levíssima culpa venit. Dentro dessa polêmica, 17 José de Aguiar Dias cita a doutrina de Raymond Saleilles, para quem a necessidade de substituir a culpa pela causalidade advém exatamente da interpretação objetiva da palavra faute no art.1.382 do Código Francês, que, no seu entender, se refere ao próprio fato causador do dano, sem indagação do elemento psicológico no agente. O autor estrangeiro classifica de falsa e humilhante a idéia de culpa, e considera mais equitativa e conforme a dignidade humana que cada qual assuma os riscos de sua atividade voluntária e livre. 18 Nessa mesma ordem de raciocínio, José de Aguiar Dias, com base nas lições de Giovanni Salemi, reconhece o elemento vontade tanto no dolo quanto na culpa, caracterizado desta maneira: A vontade de realizar um ato existe no dolo e na culpa; enquanto no dolo, porém, a vontade se prolonga à realização do efeito nocivo, emergente do ato, na culpa, a vontade se limita ao exercício do ato querido e apreciado como legítimo, sem estender às suas consequências... Ou seja, na culpa, pretende-se a causa da lesão, isto é, o fato; não, porém, o efeito deste, isto é, a lesão. 19 Nesse sentido pondera Caio Mario da Silva Pereira: Não se procura determinar se o efeito do ato, ou se o resultado danoso foi deliberado ou consciente. O que se requer é que a conduta do agente seja voluntária, tal como se lê em o art. 159 do Código Civil, realizada por ação ou omissão voluntária, o que levou De Cupis à afirmativa de que a culpa, em si mesma, é uma noção objetiva. Por isso, é necessário traçar a linha de separação entre dolo e culpa. Dolo, ou culpa consciente, é a consciência de causar um mal ou cometer um delito. Há, além da contraveniência a uma norma jurídica, a consciência de promover o resultado maléfico. Modernamente, a caracterização do dolo prescinde do propósito de causar o mal. Basta a consciência de que seu comportamento poderia ser lesivo, averiguada na determinação de elementos externos que envolvem a conduta do agente. Assim, na culpa, a imputação decorre da vontade do agente em razão da escolha do ato (voluntariedade quanto à ação em si mesma); já no dolo, a imputação decorre da vontade do agente em razão da consciência do resultado maléfico. Tais idéias são assimiladas em seus efeitos, mas a sua diversidade assume importância sob o aspecto jurídico, especialmente no caso de seguros de responsabilidade civil médico, em que a culpa intencional não é objeto de seguro.

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Pereira (1997), citando as Institutas de Gaio, conclui que na lex Aquilia estava

presente o elemento anímico da culpa20.

O autor supracitado afirma ainda que, no direito moderno, especialmente dois

filósofos do direito do século XVII, o holandês Hugo Grotius e o francês Jean Domat,

merecem destaque. A culpa é, para eles, um fato real, elemento de constituição do

processo de identificação da causalidade, ainda que não seja, por si só, motivo

suficiente para a imputabilidade, pois somente quando a culpa produz dano é que

essa circunstância pode exigir alguma reparação. O que exige reparação é a causa

da injúria (ofensa ao direito).

Para Jean Domat, citado por Hironaka (2005), a culpa não é somente um

critério ou uma causa, analisada juntamente com outros critérios da

responsabilidade civil, mas é uma verdadeira condição de sua existência. Daí o

princípio por meio do qual não há responsabilidade sem culpa. Nesse contexto e sob

influência desse filósofo, foi editado o Código Civil Francês: todo ato do homem que

causa um dano a terceiro, obriga o responsável que agiu com culpa a repará-lo21. A

reparação22 só era devida em função do dano, e não propriamente da culpa.

No direito contemporâneo, que trata propriamente o direito civil pátrio, o

instituto da responsabilidade civil aparece definitivamente no Código Civil de 1916,

seguindo a concepção firmada pela legislação francesa de um século antes, ou seja,

aproximável por analogia, à inspiração aquiliana de obrigação determinada

fundamentalmente pela culpa do agente, sem desprezar totalmente a teoria do

risco23. No Código Civil de 2002, a culpa é entendida como a reprovabilidade ou

censurabilidade da conduta do agente (DINIZ, 2008).

20 De acordo com o Autor, para que se configure o damnum iniuria datum, de acordo com a Lei Aquilia, era necessário três elementos: a) damnum, ou lesão na coisa; b) iniuria, ou ato contrário a direito; c) culpa, quando o dano resultava de ato positivo do agente, praticado com dolo ou culpa. 21 Somente aí a reparação se desvencilhou da exigência de casos especiais, sendo enunciado um princípio geral, obrigando a reparar todos os danos que uma pessoa causar a outra por culpa sua. 22 Ensina Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: O termo responsabilidade ainda não existia no latim, responsabilitas. A primeira menção contemporânea desse termo, reconhecida pela Acedémie Française, em 1798, dá-se em 1788, e consequentemente só a partir daí poderá ser aplicado de forma procedente. Em todo o vocabulário em torna da responsabilidade e da responsabilidade civil, o último termo a aparecer é justamente o termo responsabilidade. Nesse momento, porém, ele já inicia por se concretizar num ambiente que aponta claramente para a idéia de responsabilidade civil. Três anos antes, o direito revolucionário francês estabelecia, pela primeira vez, uma distinção entre uma ação específica para casos de dano criminal e outra específica para casos de dano civil; todavia, o termo ‘responsabilité’, também ali, ainda não havia aparecido. 23 Além dos dispositivos do Código Civil, numerosas disposições contidas em leis especiais consagram a responsabilidade objetiva. No Código Civil destaca-se: art.927, parágrafo único (responsabilidade por dano causado por qualquer tipo de atividade que, normalmente desenvolvida por outrem, possa, por sua natureza, implicar risco); artigos 932 e 933 (responsabilidade dos pais em

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Assim, a história interna da responsabilidade civil aponta que a idéia de culpa

ainda hoje está ligada a uma noção de normalidade civil que, quando não é

respeitada, resulta na necessidade de uma punição criminal ou numa compensação

civil, patrimonial.

2.2 Os direitos da personalidade e a importância da bioética

e do biodireito

A utilização de aparelhagem especial e o impacto dos progressos técnicos

sobre a atividade médica exigem novos conhecimentos e novos limites. Se, por um

lado, habilita o profissional para desenvolver a sua arte, e melhor aplicá-la, impõe-

lhe também deveres inexistentes na medicina tradicional. Vale a pena mencionar

que legislação especial estabelece requisitos para o exercício da profissão, desde a

diplomação em curso universitário até a inscrição em órgãos especializados

(Conselho Regional de Medicina). A inobservância de regras pertinentes sujeita o

infrator a penalidades administrativas e à punição criminal, sem prejuízo do dever de

ressarcir o lesado pelos danos sofridos. Permeando essas frentes de evolução

científica, está a responsabilidade civil24, norteada pela bioética e pelo biodireito

(DINIZ, 2008).

relação aos filhos; tutor e curador em relação aos pupilos e curatelados; do empregador ou comitente quanto aos empregados e prepostos; dos donos de hotéis pelos hóspedes; dos que gratuitamente houverem participado nos produtos de crime); art.938 (responsabilidade daquele que habita prédio por dano proveniente das coisas que dele caírem ou forme lançadas em lugar indevido); art.43 (responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público interno); art. 441 a 446 (responsabilidade por vício redibitório); art. 447 a 457 (responsabilidade por evicção); art.734 e 735 (responsabilidade do transportador de pessoas); arts. 884 a 886 (responsabilidade por enriquecimento sem causa); arts. 939 e 940 (responsabilidade por demandar dívida vencida) e art.1.530 e 1.531 (responsabilidade por demandar por dívida já paga). Diante de todos estes dispositivos, a despeito de não erigir a responsabilidade objetiva à categoria de princípio de indenização, tal como o fez o Código de Defesa do Consumidor, podemos dizer que o Código Civil coloca esse tipo de responsabilidade em pé de igualdade com a responsabilidade subjetiva, tornando possível ao intérprete utilizar a cláusula geral do art.927, parágrafo único para alcançar um número infindável de casos. O Código Civil, na verdade, representou um avanço em relação ao Código de Defesa do Consumidor, porque reforça a todos, consumidores ou não, a garantia da responsabilidade objetiva. 24 Elaborado à luz de uma realidade dos anos 60, o Código Civil de 2002 não abriga (e nem poderia abrigar) questões surgidas em decorrência do desenvolvimento científico e das relações humanas das últimas décadas. Em razão disso, mantém marcas do passado, o que não significa reconhecer sua velhice precoce, como observa Maria Helena Diniz. Segundo a autora, é verdade que nele não estão contidas questões sobre contratos eletrônicos, parceria entre homossexuais, experiência científica em seres humanos, direitos difusos, pesquisa com genoma humano, clonagem humana, efeitos jurídicos decorrentes da reprodução humana assistida, medidas socioeducativas aplicadas à criança e ao adolescente, relações de consumo, entre outras. E assim, enfatiza a autora que tais matérias, em razão de suas peculiaridades, não são objeto do Direito Civil, devendo ser regidos por

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A falta de regramento específico sobre os problemas gerados pelo avanço

científico ocorre em razão do fato social sempre preceder à lei, ser dinâmico e

prejudicar o acompanhamento pari passu da legislação. Assim, a lei não abrange

nem poderia abranger todas as peculiaridades da vida cotidiana. A lei é apenas uma

amostra de comportamentos que devem traduzir a consciência social de uma era,

devendo-se ajustar aos fatos, e não o inverso. Como bem observa Rui Stoco, o

direito serve aos fatos e não a si mesmo (STOCO, 2004).

Por outro lado, nos casos em que há regulamentação de um comportamento

humano, o avanço científico tem gerado descompasso temporal com a norma e com

a tipificação dessas condutas como ilícitas ou não permitidas, tornando a resposta

do Direito também insatisfatória, já que tardia, nascendo daí o enfraquecimento do

sistema jurídico em geral e a necessidade de suprir esse desequilíbrio com o

processo de interpretação, interação e harmonização, de modo a tornar a regra atual

adequada e justa.

O enfraquecimento do sistema jurídico no âmbito da responsabilidade civil

médica, portanto, pode ocorrer em razão da lacuna no direito, especificamente, da

lacuna normativa e da lacuna ontológica (nos casos falta de resposta satisfatória do

direito). (DINIZ, 2008)25

normas especiais. (In STOSO, Rui. Tratado de Responsabilidade – 6. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 106). 25 O enfraquecimento do sistema jurídico pode se dar também em razão do conflito de normas, disciplinado nos arts. 2 e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Trata-se de a uma situação regida simultaneamente por duas disposições legais que se contrapõem. Segundo Maria Helena Diniz, com base nas lições de Tércio Sampaio Ferraz Jr., a antinomia real é aquela em que há oposição total ou parcial entre duas ou mais normas contraditórias, emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, sem que exista um critério apto nos quadros de um dado ordenamento para solucionar a questão. Em resumo, significa dizer que a antinomia real é aquela em que há incompatibilidade, indecidibilidade e necessidade de decisão. Tal antinomia pode ser solucionada: pela edição de nova norma que escolha uma das normas conflitantes ou pelo emprego dos mecanismos de preenchimento de lacunas pelo órgão judiciante, isto é, com base no critério do justum, da interpretação equitativa ou corretiva (LICC, arts. 4º e 5º). A antinomia aparente, por sua vez, é aquela em que os critérios para solucioná-la são normas integrantes do ordenamento jurídico. Vale dizer, para solucionar essas hipóteses de conflito de leis, o ordenamento jurídico serve-se de três critérios tradicionais: o da hierarquia, pelo qual a lei superior prevalece sobre a inferior; o cronológico, no qual a lei posterior prevalece sobre a anterior; e o da especialidade, em que a lei específica prevalece sobre a lei geral. Há ainda antinomia entre os próprios critérios supracitados, ou melhor, casos em que o conflito de normas poderia ser solucionado por mais de um critério ao mesmo tempo, sendo que cada um deles leva à preferência de uma das normas. É o que se denomina antinomia das antinomias, ou seja, antinomia de segundo grau, nos casos de conflito entre os critérios: hierárquico e cronológico, solucionado através da meta-regra hierárquica; de especialidade e cronológico, sem regra específica de meta-critério, devendo ser solucionado ora por um critério, ora por outro; hierárquico e de especialidade, solucionado por meta-critério da especialidade, sob o fundamento do princípio da justiça, baseado na interpretação do princípio da igualdade. Para solução desses conflitos normativos, portanto, a doutrina apresenta meta-critérios. E ainda, ensina Maria Helena Diniz que,

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A lacuna do direito26 é um defeito do sistema (DINIZ, 2002). De acordo com a

Lei de Introdução ao Código Civil, arts. 4º e 5º, compete aos aplicadores integrar o

ordenamento jurídico, criando uma norma individual, em consonância com o valor, o

fato e a norma27 (DINIZ, 2002).

No âmbito da responsabilidade civil, há diversas situações ainda não

regulamentadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, como é o caso do

consentimento informado, instituto tratado no direito estrangeiro. Tal hipótese retrata

o enfraquecimento do ordenamento jurídico em razão do problema da existência das

lacunas.

num caso extremo de falta de critério para solução de antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para solucionar o conflito normativo seria o princípio da justiça. Trata-se, vale a pena destacar, de uma situação excepcional, em que o valor justum soluciona o conflito entre duas normas incompatíveis. 26 Lacuna é o estado incompleto no sistema, um fenômeno correlacionado com o modo de concepção do sistema. Lacuna não se confunde com antinomia real, que é o estado incorreto do sistema em razão da lacuna de conflito entre duas ou mais normas, dois ou mais princípios, entre uma norma e um princípio emanados de autoridade competente no mesmo âmbito normativo que coloca o sujeito numa posição insustentável pela ausência de critérios normativos ou pela inconsistência de critérios normativos, ficando sem saída no ordenamento jurídico. Vale frisar que esses conceitos são admitidos apenas por aqueles que admitem o problema jurídico da lacuna. Mas há aqueles, dentre eles Hans Kelsen e Carl von Savigny, que não admitem lacuna no direito, adotando o sistema jurídico como um todo orgânico, fechado e completo, sempre bastante para disciplinar todos os comportamentos humanos. Seguindo o fundamento de Hans Kelsen, o dogma da plenitude hermética do ordenamento jurídico possui aspecto negativo, isto é, tudo o que não está juridicamente proibido, está permitido”. Portanto, para o filósofo, há lacuna na jurisdição, mas não no sistema, pois tudo é permitido se não é obrigatório nem proibido. No entanto, como observa Maria Helena Diniz, admitir esse entendimento significa, em um dado momento, retirar a função do Poder Legislativo, pois todas as condutas já estariam prescritas em virtude do princípio: tudo o que não está proibido, está permitido. O sistema jurídico é aberto e incompleto, sendo o direito uma realidade complexa, composta por várias dimensões, quais sejam: normativa, fática e axiológica. Como observado pela autora, o dogma da plenitude hermética não constitui uma norma jurídico-positiva, não conferindo, portanto, direitos e obrigações a ninguém, sendo um mero enunciado lógico do sistema jurídico. As normas são apenas uma parte do direito, não se confundindo com ele. Assim, o sistema normativo é aberto, em constante importação e exportação de informações com os subsistemas. Em suma, coadunamos com o entendimento da autoria de que a lacuna é um problema inerente ao sistema jurídico, sob os mesmos argumentos apresentados pela autora: primeiro, porque o legislador não pode conhecer e prever todos os fatos, conflitos e comportamentos que podem acontecer nas relações sociais; segundo porque é possível a inadequação entre os subconjuntos componentes do sistema jurídico; terceiro porque a decisão judicial que colmata a lacuna não instaura a completude. 27 Não obstante as correntes antitéticas sobre a existência da lacuna no ordenamento jurídico, todas admitem a teoria das lacunas como um limite ao poder normativo do magistrado. Maria Helena Diniz reconhece ainda outra função à teoria das lacunas: justificar a atividade do Poder Legislativo. Isto porque a decisão judicial que resolve o caso não elimina a lacuna, pois não se situa no plano legislativo, e, portanto, não cria normas jurídicas gerais, mas sim, norma jurídica individual que só vale para cada caso concreto. A integração apenas colmata as lacunas, mas não instaura uma completude. Assim, há uma falsa realidade na afirmação de que não há lacuna no direito porque há juízes, que com base no art.4º da Lei de Introdução ao Código Civil, as vão eliminando. Em razão disso, Maria Helena Diniz afirma que “o direito é sempre lacunoso, mas é também, ao mesmo tempo, sem lacunas”. É lacunoso o direito porque em razão da impossibilidade de previsão e regulamentação de todas as condutas humanas; mas é concomitantemente sem lacunas porque o próprio dinamismo do direito apresenta soluções através do órgão jurisdicional ou Poder Legislativo. Melhor seria dizer, portanto, que o direito não é completo, mas completável.

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De acordo com o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Dec. Lei

n.4.657, de 4-9-1942), “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com

a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. São, portanto, meios

supletivos das lacunas a analogia, o costume e os princípios gerais do direito28.

É através da atividade interpretativa29 que o problema da lacuna jurídica é

identificado e solucionado por instrumentos integradores, que levam uma decisão

possível, viável, argumentada e autorizada pelo art. 5º da Lei de Introdução30 (DINIZ,

2002).

Portanto, toda norma depende de interpretação, por mais clara que seja. E

no âmbito da responsabilidade civil médica, a interpretação assume relevância ao

estender o sentido da norma a relações novas, inéditas ao tempo de sua criação. O

advento de novos fenômenos e novas descobertas científicas leva o intérprete a

apreciá-los, juridicamente, à luz das normas existentes, adaptando o sentido

incorporado (nas normas) dentro da realidade atual31. Assim, cada interpretação

judiciária só terá efeito para o caso concreto, não obrigando sua adoção por outro

28 Podemos observar na doutrina brasileira certa divergência quanto ao caráter exemplificativo ou taxativo do rol do art.4º referido. Maria Helena Diniz defende o rol exemplificativo, enquanto Orlando Gomes, taxativo, reconhecendo a doutrina e a jurisprudência como formas de costume, e os brocardos jurídicos, como princípios gerais do direito. Será abordado o tema em consonância com a posição de Maria Helena Diniz. 29 Interpretar é descobrir o sentido e alcance da norma, procurando significação dos conceitos jurídicos. Dentre as diversas técnicas interpretativas, destacamos a técnica gramatical, sistemática, teleológica, histórica (sob a óptica subjetiva ou objetiva). Cumpre frisar que não há hierarquia segura entre as técnicas interpretativas, de maneira que cada filósofo dá preferência para cada uma delas, mas toda interpretação deve ser conforme à Constituição. 30 As possibilidades de variação na aplicação do direito e de controlar a consistência das decisões são determinadas pela função social da dogmática jurídica. Ou seja, só a partir de um estudo científico-jurídico é que se pode dizer o que é juridicamente possível. 31 Com base na teoria objetiva, a interpretação jurídica deve-se ater à vontade da lei, à mens legis, que independe do querer jurídico do legislador, pois após a sua criação, desliga-se do seu elaborador, adquirindo existência subjetiva. Vale dizer, uma vez promulgada, a lei evolui, transfunde-se em elemento da vida social a fim de melhor servir às exigências sociais dentro da realidade atual. Trata-se de uma solução que tem por fundamento o mínimo de perturbação social, já que em consonância com as pautas valorativas vigentes na sociedade, em certo momento. Dentre os processos que podem ser utilizados para desvendar as várias possibilidades de aplicação da norma, destacamos: a) técnica gramatical, literal ou semântica: busca o sentido dos vocábulos do texto através das regras da gramática e da linguística; b) técnica de interpretação lógica: busca desvendar o sentido e o alcance da norma por meio de raciocínios lógicos; c) técnica de interpretação sistemática: relaciona o sistema em que se insere a norma com outras normas concernentes ao mesmo objeto; d) técnica de interpretação histórica: busca os antecedentes da norma, desde o projeto de lei, sua exposição de motivos, emendas, aprovação e promulgação, antecedentes fáticos, condições culturais ou psicológicas sob as quais surgiu; e) técnica de interpretação sociológica ou teleológica: busca adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais (LICC, art.5º). Vale ressaltar que todas essas técnicas interpretativas se completam e devem atuar, sempre que possível, conjuntamente, sem que exista qualquer hierarquização entre elas. Cabe ao intérprete-aplicador escolher o sentido legal prevalente, mais razoável ao caso e à época, de acordo com o art.5º da Lei de Introdução.

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juiz, não obstante a grande influência que possa gerar. Os fatos e as circunstâncias

da causa mudam de um caso para outro, razão pela qual cada sentença é única. Daí

porque interpretar é estabelecer uma norma individual; interpretação é um ato

normativo (DINIZ, 2002).

Cabe ressaltar que o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil indica ao juiz

como critério idôneo à adaptação da lei às novas exigências o fim social e o bem

comum tanto na interpretação como na integração da lacuna ontológica ou

axiológica.

Nesse contexto da lacuna jurídica (no caso, normativa), e da incessante

busca de uma solução justa e em consonância com o direito positivo e com o meio

social, surge a importância dos princípios gerais da bioética e do biodireito nas

questões atuais envolvendo a responsabilidade civil.

É evidente que o primeiro contorno à liberdade de ação de um profissional

médico e da atividade científica em si decorre de lei, ou melhor, está inserido na

Constituição Federal, art. 5º, caput, que proclama a vida, a integridade física e

psíquica, a privacidade como alguns dos direitos fundamentais.

Com o objetivo primordial de preservar o respeito à pessoa e aos direitos

protegidos constitucionalmente, o Código Civil de 2002 dedicou um capítulo aos

direitos da personalidade que, segundo Maria Helena Diniz (2002),

São direitos comuns da existência, porque são simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta. (...) A vida humana não é uma concessão jurídico-estatal, nem tampouco um direito a uma pessoa sobre si mesma. Na verdade, o direito à vida é o direito ao respeito à vida do próprio titular e de todos. Logo, os direitos da personalidade são direitos subjetivos excludendi alios, ou seja, direitos de exigir um comportamento negativo dos outros, protegendo um bem inato(...)

A doutrina brasileira afirma que os direitos da personalidade são direitos

absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis,

impenhoráveis e inexpropriáveis. Assim, tais características auxiliam a disciplina de

questões surgidas com as novas técnicas ligadas à medicina.

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Os princípios gerais da bioética32 e do biodireito33, na realidade, também

delimitam o contorno à liberdade da atividade médica e científica, exercendo um

papel de “biologização” ou “medicalização“ das leis (DINIZ, 2008), vinculando as

ciências da vida ao direito (MELLO, 2003)34. Assim, guiado por esses instrumentos,

o médico pode saber o que deve fazer, o que pode fazer e quais os limites éticos35

para a sua ação, sempre considerando que a pessoa é sempre um fim, nunca uma

meio para a obtenção de outras finalidades (HIRONAKA, 2005).

A bioética é baseada em quatro princípios básicos enaltecedores da pessoa

humana, quais sejam, o princípio da autonomia, da beneficência, da não-

maleficência e da justiça. Tais princípios são racionalizações abstratas de valores

que decorrem da interpretação da natureza do homem e das necessidades

individuais. Todos levam o intérprete a apreciá-los, juridicamente, à luz das normas

existentes, adaptando o sentido incorporado (nas normas) dentro da realidade atual,

estabelecendo norma individual para o caso concreto segundo os subsistemas

normativos, valorativos e fáticos.

Simplificadamente, o princípio da autonomia impõe o respeito à vontade do

paciente, ou de seu representante, e um dos meios de manifestação de vontade é

através da exigência do consentimento livre e testamento vital, esta última

32 A bioética é o estudo de todas as implicações relevantes da ética aos problemas gerados pelo progresso da ciência, considerando a dignidade humana como um valor ético. É uma ética biomédica32, um conjunto de reflexões filosóficas e morais sobre a vida em geral e sobre as práticas médicas em particular, baseada em quatro princípios básicos enaltecedores da pessoa humana, quais sejam, o princípio da autonomia, da beneficência, da não-maleficência e da justiça. 33 O biodireito é o estudo jurídico que, baseado na bioética e na biogenética, tem a vida como principal objeto, impondo limites à verdade científica através da ética e do direito. 34 Cabe relembrar o ensinamento de Celso Antonio Bandeira de Mello, ao frisar a necessidade de respeito aos princípios, uma vez que são base de sustentação de todo o ordenamento jurídico. Sua violação propiciaria o comprometimento de toda a estrutura que sustenta. Em suas palavras: (...) Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que os sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada (...). 35 Giselda M. F. Novaes Hironaka cita ensinamentos de Romualdo Baptista dos Santos. Segundo o autor, Ética é o estudo dos comportamentos possíveis entre os sujeitos, e se biparte em Direito e Moral. Na moral, a obrigatoriedade da conduta humana é determinada pelo próprio sujeito, ao passo que no plano jurídico o dever decorre da lei, que é imposta pela coletividade. Por isso, o que diferencia o Direito da Moral é a coercibilidade existente nas regras jurídicas. O dever de que cuida a responsabilidade civil é dever jurídico, pois a conduta não fica a critério do agente, mas é imposta pela lei. A violação de um dever moral produz consequências internas para o agente, o qual pode se sentir culpado e até reparar o dano por vontade própria, ao passo que a violação de um dever jurídico tem suas consequências previstas no ordenamento jurídico, dentre as quais se destaca a obrigação de reparar o dano. Por isso, há deveres (de conduta) tanto no Direito como na Moral, porém somente a violação do dever jurídico, dado o seu caráter de coercibilidade, gera obrigação de indenizar.

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concepção ainda não adotada no Brasil. O princípio da beneficência, por sua vez,

requer o atendimento médico como promoção do bem, dos mais importantes

interesses da pessoa, o seu bem-estar, evitando, na medida do possível, quaisquer

danos. No contexto médico, significa agir no interesse do paciente, prevenir danos e

retirar os danos eventualmente causados. O princípio da não-maleficência exige

uma conduta de não acarretar dano intencional ao paciente. Por fim, o princípio da

justiça, expressão da justiça distributiva, requer a imparcialidade na prática médica,

através de uma relação equânime nos benefícios, riscos e encargos dos serviços de

saúde oferecidos ao pacientes.

Enfim, a realidade demonstra que os avanços científicos do mundo

contemporâneo têm enorme repercussão social, dificultando a solução dos

problemas através da regra geral de responsabilidade civil, por envolverem muita

polêmica. Como o direito não pode furtar-se aos desafios lançados pela medicina, a

bioética e o biodireito, especialmente através dos princípios gerais, caminham pari

passu na difícil tarefa de delimitar a licença legal e o ato ilícito, a liberdade e a

responsabilidade civil. A atividade interpretativa através dos princípios bioéticos

básicos leva uma decisão possível, viável, argumentada e autorizada pelo art. 5º da

Lei de Introdução.

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3. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA POR ERRO DE

DIAGNÓSTICO

3.1 Possibilidade de Aplicação de Regime Misto

Um dos principais objetivos do ordenamento jurídico é proteger o lícito e

reprimir o ilícito e, para tanto, são estabelecidos deveres jurídicos. A violação de um

dever jurídico configura ato ilícito36, que quase sempre gera dano a outrem e

consequentemente o dever de reparar. Daí decorre a noção de responsabilidade

civil, que consiste na reparação de um prejuízo em razão da violação da norma ou

obrigação diante da qual se encontrava o agente. A responsabilidade é, por isso, a

substituição do dever de obrigação prévia (DINIZ, 2009), a fim propiciar a adequada

reparação aos que sofreram dano, conforme os ditames constitucionais (art. 5º,

inciso V) 37.

Dias (2006), de forma similar, define responsabilidade como o resultado da

ação pela qual o homem expressa o seu comportamento, em face desse dever ou

obrigação. Segundo o autor, o que interessa quando se fala em responsabilidade é

verificar a violação da norma ou obrigação diante da qual se encontrava o agente.

Ou seja, a verdadeira fonte da responsabilidade civil é a obrigação preexistente

derivada de qualquer fator social capaz de criar normas de conduta. Segundo o

autor, diferentemente do estado de simples obrigação, o estado de responsabilidade

não é senão o estado sobrevindo em consequência da inexecução da obrigação,

dando lugar à aplicação de sanções. Assim, é a violação do dever preexistente que

reside a diferença entre a simples obrigação e a responsabilidade civil. Explica o

autor, ainda, que a responsabilidade por fato de outrem não contradiz esse

entendimento, pois é responsabilidade derivada da obrigação do próprio

responsável, pela concepção de que existe, a cargo dele, o dever de suportar, uma

36 O ato ilícito pode ser civil, penal ou administrativo. O presente trabalho analisa a responsabilidade civil decorrente do ato ilícito civil. 37 Hoje há um consenso em se considerar a responsabilidade civil a obrigação de reparar um prejuízo causado a outrem. Com base nas lições de Serpa Lopes, Maria Helena Diniz define responsabilidade civil como a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar o dano moral ou material causado a terceiros em razão do ato próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal.

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vez concretizada a hipótese. Assim, é o ato de menor inimputável que cria a

obrigação e a responsabilidade. Por fim, adverte o autor para não confundir

responsabilidade civil e enriquecimento ilícito. A função de indenizar baseada na

responsabilidade civil é a de suprimir a diferença entre a situação do credor antes e

após o dano, ou seja, importa observar o dano e a situação do patrimônio do lesado,

nunca o enriquecimento ou o patrimônio do autor do dano. Assim, o montante da

obrigação de indenizar pode ultrapassar a medida do seu enriquecimento. Na

doutrina estrangeira seguindo as lições Savatier, responsabilidade civil é a obrigação

que pode incumbir a uma pessoa de reparar o dano causado a outrem por um fato

seu, ou pelo fato das pessoas ou das coisas dependentes dela.

O dano pode surgir tanto em atividade disciplinada por um contrato, daí

chamada responsabilidade contratual, como em atividade independente de qualquer

ajuste com o prejudicado, sendo esta a responsabilidade extracontratual. A

caracterização jurídica da responsabilidade médica é posta em termos

controvertidos, sendo inserida por alguns no campo da responsabilidade contratual,

e por outros, no extracontratual ou aquiliana.

O Código de Defesa do Consumidor minimizou a importância dada a essa

dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual, porém não retirou a

sua relevância, como é possível observar na divisão entre práticas abusivas (art. 39)

e cláusulas abusivas (art. 51). Na realidade, pouco importa qual é o tipo contratual

ou o nomen iuris do contrato adotado pelas partes. De fato, conforme observa Odete

Queiroz (1998), não se faz necessária uma efetiva relação contratual, podendo a

vítima reclamar em face de quem com ela certamente não contratou, mesmo porque

existe uma responsabilidade solidária entre certos fornecedores. Há apenas duas

exceções a essa regra em toda a lei de defesa do consumidor. A primeira delas está

prevista no art. 53, caput, e seu §2º, que preceitua as regras alusivas à cláusula

penal para os seguintes contratos: compra e venda à prazo, alienação fiduciária em

garantia e consórcio. Na hipótese de compra e venda à prazo e alienação fiduciária

em garantia considera-se nula de pleno direito a cláusula que possibilita a perda

total das importâncias pagas pelo consumidor inadimplente. No caso de consórcio,

fixa-se a regra segundo a qual o consorciado inadimplente ou desistente tem o

direito de ser restituído das parcelas pagas, descontadas as vantagens econômicas

que ele auferiu e os prejuízos que a sua retirada causou ao grupo. A segunda

exceção é a relativa aos contratos de financiamento, em que se estabelece as

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informações necessárias ao consumidor. O pressuposto para a aplicação do Código

de Defesa do Consumidor é a segurança das vítimas consumidoras que deve ser

assegurada por toda a cadeia de fornecedores, sejam eles contratantes diretos

(responsabilidade contratual) ou não38. A responsabilidade civil do profissional liberal

está expressamente prevista no art. 14, §4º como responsabilidade subjetiva.

O Código Civil atual, por sua vez, inseriu a responsabilidade médica no

campo da responsabilidade extracontratual (art. 951), mas tem prevalecido na

doutrina e jurisprudência que se trata de responsabilidade contratual39, podendo,

excepcionalmente, ser de fundo extracontratual, quando, por exemplo, o médico

pratica ilícito penal ou viola disposições regulamentares da profissão (DIAZ, 1983)40.

Nesse sentido, Pereira (1997) e Castro (2005) afirmam que o fato de se considerar

como contratual a responsabilidade civil médica não tem, ao contrário do que pode

aparecer, o resultado de presumir a culpa. A razão por que assim acontece decorre

do fato de que a prova, na responsabilidade contratual, recai sobre o devedor ou o

credor, conforme se trate de obrigação de meio ou de resultado. Ou seja, a

responsabilidade contratual pode ou não ser presumida, conforme se tenha o

devedor comprometido a um resultado determinado ou simplesmente conduzir-se de

certa forma. Simplificadamente, o dispositivo civil também estabelece o regime de

responsabilidade subjetiva.

Diante disso, o grande desafio do intérprete e aplicador da lei é saber qual o

campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do Código Civil

(CC). E, no âmbito da responsabilidade civil médica, significa saber se sempre deve

38 A completude do sistema do Código de Defesa do Consumidor (CDC) é notadamente diferente em comparação com o Código do Consumo francês e italiano. O CDC é voltado para a proteção do consumidor, enquanto os outros dois sistemas regulam mais o consumo e a posição jurídica do consumidor. O CDC é um sistema todo organizado de normas, exastivo em relação ao Código Civil (CC), enquanto o Código Francês parece uma consolidação de vários temas; já a Itália reuniu alguns textos de proteção ao consumidor em um Codice Del Consumo, de forma a assegurar de forma um elevado nível de proteção dos consumidores e usuários. 39 Nesse sentido: Caio Mario da Silva Pereira e João Monteiro Castro afirmam que o fato de se considerar como contratual a responsabilidade civil médica não tem, ao contrário do que pode aparecer, o resultado de presumir a culpa. A razão por que assim acontece decorre do fato de que a prova, na responsabilidade contratual, recai sobre o devedor ou o credor, conforme se trate de obrigação de meio ou de resultado. Ou seja, a responsabilidade contratual pode ou não ser presumida, conforme se tenha o devedor comprometido a um resultado determinado ou simplesmente conduzir-se de certa forma. 40 A responsabilidade contratual só tem sentido e justificação relativamente àqueles fatos ligados aos cuidados profissionais, que envolvem o direito a uma prestação específica. Assim, a queda de um paciente, provocada pelo deslizamento de um tapete colocado em piso encerado, não constitui responsabilidade contratual. Por outro lado, vislumbrada também a culpa por ato específico do profissional médico, José de Aguiar Dias é da opinião que o caráter delitual da responsabilidade, no caso, não impede a invocação das regras contratuais, salvo quanto à prescrição e decadência.

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ser aplicado o CDC, se todo paciente é consumidor, se todo médico é fornecedor ou,

ainda, se deve ou quando é possível ser aplicado o CC.

Não obstante o tratamento jurídico conferido por ambos os sistemas às

relações firmadas entre médico e paciente ser, em regra, responsabilidade subjetiva,

a diferença de paradigma ainda existe: privilégio do foro processual concedido ao

consumidor; possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor

hipossuficiente, prazo prescricional de 5 anos concedido pelo CDC.

De imediato, se nota que sendo de consumo a relação firmada entre médico e

paciente, isso não afasta a possibilidade de aplicação de disposições do Código Civil

em caso de vícios do serviço, que, apesar de sua objetivação, possui forte matriz

contratual41, ensejando a aplicação de prazos específicos e mais amplos do Código

Civil (GOMES, 2001)42, sob o fundamento da teoria do diálogo das fontes (BENJAMIN

et al, 2009)43. Mas daí surge a questão se seria possível haver aplicação de regime

41 O Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, ao contrário do Código Civil atual, não prevê, com riqueza de detalhes, regras quanto à formação do contrato de consumo. Na realidade, o CDC tem tratamento mais completo quanto à fase de negociações preliminares do contrato. Entretanto, não trata das demais fases – policitação e contrato preliminar. Isso faz com que seja possível, eventualmente, buscar socorro nas regras comuns de Direito Privado quando houver dúvida sobre a constituição da obrigação de natureza consumerista. Justamente o contrário pode ocorrer com a atual codificação privada, que não apresenta previsões suficientes quanto à fase das tratativas. Necessária, portanto, a complementaridade entre os dois sistemas, conforme a teoria do diálogo das fontes. 42 Há diferenças básicas entre os vícios redibitórios e vícios do produto ou serviço. Os vícios redibitórios incidem nas relações de direito civil e comercial; os vícios de serviço, nas relações de consumo. Os vícios redibitórios são possíveis apenas em contratos comutativos; já os vícios de serviço estão previstos nas relações em consumo em geral. Os vícios redibitórios referem-se apenas aos vícios ocultos, em geral vícios de qualidade; já os vícios de serviço, aos vícios aparentes e ocultos, vícios de qualidade e quantidade. 43 Por uma questão lógica, o Código de Defesa do Consumidor estava distante do Código Civil de 1916, que era individualista e apegado a um tecnicismo exagerado. Isso não ocorre em relação ao Código Civil de 2002. Tem-se defendido atualmente um diálogo das fontes entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. A tese foi trazida para o Brasil por Cláudia Lima Marques, a partir dos ensinamentos que lhe foram transmitidos por Erik Jayme, professor da Universidade de Heidelberg, Alemanha. A autora demonstra as razões filosóficas e sociais da tese do diálogo das fontes: Segundo Erik Jayme, as características da cultura pós-moderna no direito seriam o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jayme denomina de le retour des sentiments, sendo o Leitmotiv da pós-modernidade a valorização dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. O pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos (Zersplieterung), manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente despersonalizadas. Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o double coding, e onde os valores são muitas vezes antinômicos. Pluralismo nos direitos assegurados, nos direitos à diferença e ao tratamento diferenciado aos privilégios dos espaços de excelência. E conclui a autora: Mister é preservar a ratio de ambas as leis e dar preferência ao tratamento diferenciado dos diferentes, concretizado nas leis especiais como no CDC, e assim, respeitar a hierarquia dos valores constitucionais, sobretudo coordenando e adaptando o

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misto, decorrente da aplicação simultânea de institutos do CC e do CDC. O STJ, em

mais de uma vez, aplicou a disciplina mais vantajosa do CC/16 em relação ao CDC,

notadamente em relação aos prazos decadenciais e prescricionais44. Portanto, pode-

se concluir ser possível a aplicação de um regime misto, sempre tendo em mente

que, sendo de consumo, aplica-se prioritariamente o CDC (lei especial), e só

subsidiariamente, no que couber e for complementarmente, o CC/02 (lei geral)45.

sistema para uma convivência coerente! A convergência de princípios e cláusulas gerais entre o CDC e o CC/02 e a égide da Constituição Federal de 1988 garantem que haverá diálogo e não retrocesso na proteção dos mais fracos na relação contratual.(...). De fato, quatro são os princípios básicos do CDC que afetam diretamente o novo direito obrigacional brasileiro: o da vulnerabilidade, o da confiança, o da boa-fé e o do equilíbrio contratual. À exceção do princípio especial da vulnerabilidade que dá sustento à especialidade do CDC, os outros três princípios do CDC encontram-se hoje incorporados no sistema geral de direito privado, presentes no CC.. Vale a pena citar, em resumo, os três tipos de “diálogo” possíveis entre essas duas importantes leis da vida privada: 1) diálogo sistemático de coerência, isto é, na aplicação simultânea das duas leis, um pode servir de base conceitual para a outra; 2) diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade, ou seja, na aplicação coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a outra, a depender do seu campo de aplicação no caso concreto; 3) diálogo das influências recíprocas sistemáticas, quer dizer, no caso de uma possível redefinição de consumidor stricto sensu e de consumidor equiparado tendo em vista as possíveis influências finalísticas do Código Civil, que regula justamente as relações entre iguais, dois consumidores ou dois fornecedores. 44 Responsabilidade civil. Transporte aéreo. Atraso em vôo. Ação de indenização. Contrato de transporte. Código de Defesa do Consumidor. Art. 26. Decadência de 30(Trinta) dias. Inaplicabilidade. Ação de reparação de danos por fato de serviço. Dessemelhança com a responsabilidade civil decorrente do inadimplemento contratual. Prescrição vintenária. Código Civil, art. 177. Subsistência. Lei de Introdução. Art. 2º, § 2º. Recurso desacolhido. I - À ação de indenização decorrente do inadimplemento do contrato de transporte, por atraso de vôo, não se aplica o art. 26 do Código de Defesa do Consumidor, dispondo essa norma a propósito da decadência em trinta(30) dias no caso de vício aparente, de fácil constatação. II – De qualquer forma, nos termos da jurisprudência deste Tribunal, o prazo prescricional do art. 177 do Código Civil subsiste mesmo com o advento do Código de Defesa do Consumidor, considerando que suas disposições não se confundem. (REsp 304705 / RJ. Relator(a):Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA. J. 03/05/2001. DJ 13/08/2001). CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE DE PASSAGEIRA. PRESCRIÇÃO. INCIDÊNCIA DO CDC AFASTADA. CÓDIGO CIVIL, ARTS. 177, 159 E 1.521, III (atuais arts.205, 186, 927 e 932, III, do CC/2002). CDC, ARTS. 14 E 27. Por defeito de serviço, na previsão do art. 14, parágrafo 1º, incisos I a III, do CDC, há que se entender, no caso do transporte de passageiros, aquele inerente ao curso comum da atividade comercial, em tal situação não se compreendendo acidente que vitima fatalmente passageira do coletivo, uma vez que constitui circunstância extraordinária, alheia à expectativa do contratante, inserindo-se no campo da responsabilidade civil e, assim, sujeita à prescrição vintenária do art. 177 do Código Substantivo, e não ao art. 27 da Lei n. 8.078/90. Recurso especial conhecido e provido, para afastar a prescrição quinquenal e determinar o julgamento do mérito da ação no grau monocrático. (REsp 280473 / RJ. Relator(a) Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR., j. 06/03/2001, DJ 04/02/2002) 45 Lei especial: Teoria Geral do Direito. É a que somente se ocupa de alguns institutos jurídicos, de pessoas que ocupam certa posição ou cargo, ou de determinadas matérias, dando-lhes tratamento diverso. Por exemplo, lei de locação predial urbana, lei de alimentos etc. Lei extravagante: Teoria Geral do Direito. Lei esparsa, ou seja, a editada isoladamente, como por exemplo, Lei do Inquilinato, Lei das Sociedade Anônimas. Em regra, advém após a promulgação de um código, para complementá-lo ou para revogar alguns de seus preceitos relativos à matéria que a ele diz respeito. Vide Legislação Extravagante) (...)”Lei Geral: “Teoria Geral do Direito. A) Lei promulgada para reger genericamente um ramo jurídico, como ocorre com a consolidada ou codificada; b) aquele que institui o regime-regra da relação jurídica por ela disciplinada; c) lei comum aplicável, em sua generalidade, a todas as pessoas sem qualquer distinção. É aquela que se aplica indistintamente a pessoas, bens etc., contrapondo-se à lei especial, que diz respeito a uma certa categoria de pessoas ou bens (...)”. ).

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34

Cabe, assim, definir a natureza jurídica da relação de firmada entre médico e

paciente.

3.2 O Código de Defesa do Consumidor e as Relações

Firmadas Entre Médico e Pacientes

3.2.1 Caracterização da relação de consumo

De acordo com a doutrina brasileira, o campo de aplicação do CDC é

determinado de forma subjetiva, isto é, ratione personae, uma vez que

materialmente ele se aplica em princípio a todas as relações entre consumidores e

fornecedores, sejam elas contratuais e extracontratuais (BENJAMIN et al, 2009).

Trata-se de um campo de aplicação relacional, pensado constitucionalmente para

uma relação e principalmente proteção entre diferentes.

No entanto, a complexidade do sistema do CDC inicia justamente pela

definição do consumidor, definida em quatro dispositivos diferentes, abrangendo

desde a ótica individual até a meta e transindividual. Em razão do contexto do

trabalho, será analisada apenas a ótica individual.

O art. 2º dispõe que consumidor é “toda pessoa física ou jurídica que adquire

ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Portanto, a característica

restritiva refere-se à aquisição ou utilização do bem como destinatário final.

Em apertada síntese, há duas correntes doutrinárias quanto à definição de

consumidor: os finalistas e os maximalistas. Para os primeiros, como Claudia Lima

Marques, destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou

serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. Nesta interpretação se presume que a

pessoa física seja sempre consumidora frente a um fornecedor e se permite que a

pessoa jurídica vulnerável prove sua vulnerabilidade (BENJAMIN et al, 2009)46. Para

os maximalistas, por sua vez, destinatário final seria o destinatário fático do produto,

aquele que o retira do mercado e o utiliza, consume47.

46 Segundo Cláudia Lima Marques, tendo em vista que a vulnerabilidade pode ser fática, econômica, jurídica e informacional, é possível admitir, de forma excepcional, uma empresa ser considerada consumidora. Tal situação deve ser estudada pelo Poder Judiciário. 47 O Supremo Tribunal Federal já proferiu decisão apoiando a visão finalista do campo de aplicação do CDC. Nesta decisão, deixou claro que os bens e serviços usados diretamente na produção de outros bens e serviços, estes sim destinados ao consumidor final, assim como comércio internacional de produção, não estão abrangidos pelo CDC. Veja a ementa: “(...) 4. Não é contrato de adesão aquele em que as cláusulas são modificáveis por acordo das partes. 5. O Código de Proteção e

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Além do uso como destinatário final, a definição de consumidor exige a

característica de vulnerabilidade (GOMES, 2001)48 in abstracto e in concreto49: um

Defesa do Consumidor, conforme dispõe seu artigo 2º, aplica-se somente a "pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". O Supremo Tribunal Federal já proferiu decisão apoiando a visão finalista do campo de aplicação do CDC. Nesta decisão, deixou claro que os bens e serviços usados diretamente na produção de outros bens e serviços, estes sim destinados ao consumidor final, assim como comércio internacional de produção, não estão abrangidos pelo CDC. 5. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, conforme dispõe seu artigo 2º, aplica-se somente a "pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". Pedido de homologação deferido. (SEC 5847 / IN - Gra Bretanha (Inglaterra) Sentença estrangeira contestada. Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA Julgamento: 01/12/1999 Órgão Julgador). O Superior Tribunal de Justiça manifestou-se pelo finalismo aprofundado, baseado na utilização da noção maior de vulnerabilidade, exame in concreto e uso das equiparações a consumidor conhecidas pelo CDC. Veja a ementa: Direito do Consumidor. Recurso especial. Conceito de consumidor. Critério subjetivo ou finalista. Mitigação. Pessoa Jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade. Constatação na hipótese dos autos. Prática abusiva. Oferta inadequada. Característica, quantidade e composição do produto. Equiparação (art. 29). Decadência. Inexistência. Relação jurídica sob a premissa de tratos sucessivos. Renovação do compromisso. Vício oculto. - A relação jurídica qualificada por ser "de consumo" não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. - Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. - São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas. - Não se conhece de matéria levantada em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide (inovação recursal). Recurso especial não conhecido. (REsp 476428 / SC RECURSO ESPECIAL 2002/0145624-5. Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI (1118). T3 – Terceira Turma. Data do julgamento: 19/04/2005). Depois da entrada em vigor do Código Civil de 2002 e da atuação do STJ a visão maximalista diminuiu em força. 48 Destacam-se quatro tipos de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica, a fática e a informacional, intrínseca do consumidor. Na vulnerabilidade técnica, o sujeito não possui conhecimentos específicos sobre o objeto ou serviço que está contratando e, assim é mais facilmente enganado quanto às características ou utilidade do bem ou serviço. A vulnerabilidade técnica, no sistema do CDC, é presumida para o consumidor não-profissional, podendo atingir, excepcionalmente, o profissional, ainda que pessoa jurídica. A vulnerabilidade jurídica ou científica é a falta de conhecimentos jurídicos específicos, de contabilidade ou de economia. A vulnerabilidade fática ou socioeconômica é a sujeição às regras impostas pelo fornecedor com grande poder econômico ou detentor de serviços essenciais. Por fim, a vulnerabilidade informacional, intrínseca ao consumidor, refere-se ao déficit informacional, e não deixa de ser uma espécie de vulnerabilidade técnica. O conceito de vulnerabilidade não se confunde com o de hipossuficiência. Enquanto a vulnerabilidade caracteriza toda a massa de consumidores, a hipossuficiência é relativa a um indivíduo considerado em si, com dificuldade extrema de comprovação do nexo de causalidade. 49 A análise em concreto da vulnerabilidade tem sido admitida (excepcionalmente) pelos tribunais brasileiros como forma de abrandamento na interpretação finalista para admitir que sujeitos intermediários sejam considerados consumidores. Assim, em 2005 se manifestou o STJ: “A pessoa jurídica com fins lucrativos caracteriza-se como consumidora intermediária, porquanto se utiliza o serviço de fornecimento de energia elétrica prestado pela recorrente, com intuito único de viabilizar sua própria atividade produtiva. Todavia, cumpre consignar a existência de certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente, desde que demonstrada, in concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica, a aplicação das normas do CDC. Quer dizer, não se deixa de perquirir acerca do uso, profissional ou não, do bem ou serviço; apenas, como exceção e à vista da hipossuficiência concreta de determinado adquirente ou utente, não obstante

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estado do sujeito mais fraco que desequilibra a relação de consumo (QUEIROZ,

1998) e a presença de um fornecedor no outro lado da relação jurídica, pois,

conforme já exposto, a caracterização é relacional. No caso médico, vislumbra-se a

vulnerabilidade técnica, pois o paciente não possui conhecimentos específicos sobre

o serviço médico que está contratando e, assim é mais facilmente enganado quanto

às características ou utilidade do serviço.

Na doutrina estrangeira, especificamente a Ley de Relaciones de Consumo

do Uruguai, ley 17.250, que inaugura um novo marco jurídico dos entes assistenciais

e dos médicos, semelhantemente ao Código de Defesa do Consumidor, trata de um

conceito econômico-jurídico que vincula a proteção ao mais débil, excluindo desta

categoria aqueles sujeitos que são fornecedores por utilizar ou adquirir bens ou

serviços como intermediários na cadeia produtiva. Assim, de acordo com este

critério, nada impede que sejam considerados consumidores tanto as pessoas

físicas ou jurídicas. Assim:

(...) se una Instituición médica adquiere medicamentos para suministrar a sus pacientes, es consumidora de los mismos, porque no los integra a um proceso de transformación ni de comercialización. Si por el contrario, adquiere sueros o productos químicos para transformarlos antes de su utilización em los pacientes deja de ter calidad de consumidora, por la exclusión efectuada en el inc.2º del art.2º de la laey porque los integra em un proceso de transformación. El eje del concepto de consumidor gira em torno a la calidad de destinatário final.

E mais:

(...) La interpretación extensiva del concepto es la que debe postularse porque la misma debilidad y desequilíbrio se genera entre la entidad asistencial o el médico que adquire productos o servicios que consume o utiliza para lograr um cometido, sin integrar-lo a los processos de transformación, comercializacón o producción. Mencións aparte merece el caso de adquisición de maquinaria especializada o alhajamiento, como los tomógrafos computadorizados, lãs camas para los hospitalres, los televisores para lãs habitaciones alguna, para cumplir com el objeto de la obligación asumida. Como se indicó, la persona jurpidca que no integra el producto o servicio em forma real y efectiva volcándolo nuevamente al mercado o lo integra a uma prestación de servicios, puede ser consumidora50.

seja um profissional, passa-se a considerá-lo consumidor” (STJ, REsp 661145-ES, Min. Jorge Scartezzini, j. 22.05.2005). 50 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.247 e 248.

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Para a lei argentina, lei 24.240, consumidor é aquele que contrata para o

consumo final próprio ou de seu grupo familiar ou social51.

O art. 3º e seus parágrafos do CDC trazem a definição ampla de fornecedor

stricto sensu, abrangendo toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional

ou estrangeira, bem como entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de

produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação,

distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços mediante

remuneração (BENJAMIN, 2009)52. No campo médico, o profissional da saúde

desenvolve prestação de serviços mediante remuneração.

Para a lei uruguaia, a definição é semelhante, nos seguintes termos:

Proveedor toda persona física o jurídica, nacional o extranjera, privada o pública, y em este último caso estatal o no estatal, que desarrolle de manera profesional actividades de producción, creación, construcción, transformación, montaje, importación, distribución y comercialización de productos o servicios em uma relación de consumo”53.

A lei argentina, por outro lado, exige a profissionalidade, mas inclui o exercício

de atividade profissional ocasional54.

Resta ainda perquirir objeto da relação firmada entre o consumidor e

fornecedor. Segundo o art. 3º, §2º, o objeto pode ser o fornecimento de produto ou a

prestação de serviço. Considerando os fins deste estudo, interessa analisar o

conceito de prestação de serviços.

De acordo do dispositivo supracitado, serviço é aquela atividade fornecida

mediante remuneração (direta ou indireta) no mercado de consumo (KFOURI NETO,

2005). Sob este aspecto, Miguel Kfouri Neto, citando J. Miguel Lobato Gómez,

defende a inaplicabilidade do CDC às relações médicos-pacientes, sob o

fundamento de que o serviço envolve uma prestação direta do profissional, ntuitu

51 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.248. 52 De acordo com o art.3º, §2º do CDC, a remuneração do serviço, e não a profissionalidade de quem presta, é o único elemento caracterizador, a gratuidade passou a ser um tema de discussão em matéria de campo de aplicação do CDC aos serviços. A doutrina e jurisprudência ampliam o significado, incluindo os serviços de consumo remunerados indiretamente, isto é, serviços com sinalagma escondido. Assim, não exige que o consumidor o remunere diretamente, isto é, que para ele seja oneroso; também não importa que para o consumidor seja gratuito. 53 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.249. 54 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.249.

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personae, que não se compreende no “tráfico de massa”, onde as prestações são

uniformes e impessoais para todos os destinatários. Assim, sob o fundamento de

que a atividade médica não está no mercado de consumo, defende o autor a

inaplicabilidade do CDC às relações firmadas entre o médico e o paciente.

O art. 4º da lei uruguaia define a relação de consumo da seguinte maneira:

Relación de consumo es el vínculo que se establece entre el proveedor que, a título

oneroso, provee um producto o presta um servicio y quien lo adquiere o utiliza como

destinatario final. A produção ou prestação de serviços a título gratuito, quando são

realizadas em função de uma relação de consumo, se equiparam às relações de

consumo.

Já a lei argentina, diferentemente do que ocorre no Brasil e Uruguai, no lugar

de definir a relação de consumo, estabelece especificamente no art.2º que:

(...) quedan obligados al cumplimiento de esta ley todas lãs personas físicas o jurídicas de naturaleza pública o privada que, em forma profesional, aun ocasionalmente, produzcan, importen, distribuyan o comercializen cosas o presten servicios a consumidores o usuarios.

O Poder Executivo argentino, por decreto, equiparou as relações gratuitas às

onerosas qualquer que seja a sua forma, o que permite considerar relações de

consumo ainda que não seja paga. Assim, são incluídos na lei argentina os serviços

hospitalares públicos.

No Brasil, não obstante o posicionamento desse autor e do novo Código de

Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009) estabelecer

que a natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracterizar

relação de consumo55, os conceitos de consumidor e fornecedor alcançam paciente

e médico56, respectivamente, inclusive no que concerne à prestação de serviços

públicos em geral, que devem ser adequados, eficientes e seguros e, quando

essenciais, contínuos. O CDC reconhece existir uma relação de consumo tanto que 55 Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009. Capítulo I – Princípios Fundamentais: XX – “A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo”. 56 Assim decidiu o STJ: “APELAÇÃO CÍVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CIRÚRGIA PLÁSTICA. MAMOPLASTIA E ABDOMINOPLASTIA. PRELIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. MOMENTO. A relação entabulada entre o médico e paciente está albergada pela legislação consumerista. Assim, considerando que a consumidora não dispõe dos mesmos conhecimentos técnicos do profissional médico, impõe-se o reconhecimento da hipossuficiência, incidindo a espécie a inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, inciso VIII, do CDC a efeito de facilitar os meios de defesa da lesada.(...) REJEITARAM A PRELIMINAR E DERAM PARCIAL PROVIMENTO À AMBOS OS RECURSOS. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70027269083, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em 27/05/2009)

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estabelece uma disposição específica no art. 14 §4º, excluindo a responsabilidade

destes profissionais do âmbito da responsabilidade objetiva (e não do regramento

consumerista). Ademais, eventual discordância entre as normas de conduta

(conhecidos como códigos deontológicos) e as normas da legislação ordinária

(CDC) só pode ter uma solução: as normas deontológicas têm de se subordinar à

legislação ordinária. Assim sendo, as normas deontológicas não podem contrariar o

microssistema do consumidor, pois são normas que o complementam. Por isso,

conclui-se que o Código de Defesa do Consumidor deve ser aplicado às relações

firmadas entre o médico e o paciente.

Posto isto, resta analisar o regime jurídico a ser aplicado, tendo em vista a

disposição específica quanto à responsabilidade civil subjetiva para os profissionais

liberais.

3.2.2 Conceito de profissional liberal

A primeira dificuldade sobre o tema é a definição dos “profissionais liberais”.

Na conceituação formulada por De Plácido e Silva:

Profissão. Do latim professio, de profiteri (declarar) literalmente quer exprimir a declaração ou a manifestação do modo de vida ou o gênero de trabalho exercido pela pessoa. Exprime, pois, a soma de atividades exercitadas pela pessoa para prover a própria subsistência e satisfazer os encargos, que pesam sobre si. (...) Profissão. Em regra, o vocábulo traz consigo a idéia do exercício de um ofício, arte ou cargo, com habitualidade. Desse modo, a continuidade ou a repetição de atos, que constituem o gênero de trabalho, do qual a pessoa diz, ou mesmo perito, ou mestre, é que caracteriza a qualidade do profissional a respeito da atividade declarada. (...) Pela adjetivação liberal, do latim liberalis de líber (livre), literalmente, assim se deve entender toda profissão que possa ser entendida com autonomia, isto é, livre de qualquer subordinação a um patrão ou chefe. Dessa forma, é a expressão usada para designar toda profissão, em regra de natureza intelectual, que se exerce fora de todo espírito especulativo, revelada pela independência ou autonomia do trabalhador que a exerce. Entanto, dessa idéia, não se exclui a possibilidade de ser o trabalhador liberal ou profissional liberal suscetível de um contrato de trabalho, em que se determine ou se evidencie uma subordinação, regulada e protegida por leis trabalhistas. Assim sendo, o caráter distintivo da profissão liberal está principalmente em ser uma profissão, cujo exercício depende de conhecimentos acadêmicos ou universitários ou cujo êxito decorre da maior ou menor capacidade intelectual do profissional. Nesta razão é que o exercício da profissão liberal, em geral, depende da exibição de um título de habilitação, expedido em forma legal, ou seja, da apresentação de diploma, certificado, ou atestado passado pelas escolas, academias, faculdades ou universidades, que provem ou mostrem a conclusão do curso, cuja profissão se deseja ou se quer exercer. Profissional liberal, pois, ou profissão intelectual, para desempenho da qual se faz mister a aplicação de conhecimentos científicos, têm significação equivalente. E não importa para que como tal

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se considere que o profissional a exerça com dependência ou não. São considerados profissionais liberais: (...)a dos médicos”57.

Na doutrina pátria, não há unanimidade.

Rizzato Nunes, por exemplo, a fim de delimitar o conceito, explica os

possíveis fundamentos da exceção prevista no §4º do art. 14º do CDC (e art. 947 do

CC), quais sejam, o caráter intuitu personae; o tipo de obrigação assumida pelo

profissional liberal: obrigação de meio; a não exploração de atividade dentro do

padrão risco/custo/benefício; e a pessoalidade na responsabilidade do próprio

profissional liberal58. Por todos esses argumentos, conclui o autor que a

responsabilidade civil é subjetiva independentemente do caráter intuitu personae, da

atividade ser de meio ou de resultado, de ter sido constituído pessoa jurídica. Sob

esse raciocínio, médico ou até mesmo entidades hospitalares podem ser

considerados profissionais liberais.

Oscar Ivan Prux, semelhantemente ao entendimento expresso na definição de

De Plácido e Silva, destaca entre as peculiaridades do serviço prestado pelo

profissional liberal os conhecimentos técnicos reconhecido em diploma de nível

superior. Segundo o autor:

A razão está centrada no fato de que, por exercer seu mister, contanto praticamente apenas com suas forças pessoais, parece haver uma certa paridade negocial entre esse tipo de prestador de serviços e seu cliente consumidor, de modo que, talvez um e outro, afigurem-se como igualmente merecedores de proteção.

57 De Plácido e Silva. Apud PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade Civil do Profissional Liberal no Código de Defesa do Consumidor. – Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.106. 58 Quanto ao caráter intuitu personae da atividade dos profissionais, adverte o autor que tal característica não é fundamento já que nem toda atividade de profissional liberal é personalíssima. Assim, por não ser requisito para caracterização das atividades dos profissionais liberais, não é fundamento para justificar a exclusão do sistema geral.Em relação ao tipo de obrigação assumida pelo profissional liberal (obrigação de meio), afirma o autor que também não é fundamento da exceção, pois nem toda atividade do profissional liberal é de meio. É o caso da cirurgia estética. Assim, por não ser requisito para caracterização das atividades do profissional liberal, não é fundamento para justificar a exclusão do sistema geral.No que tange a não exploração de atividade dentro do padrão risco/custo/benefício, afirma o autor que também não é fundamento, pois há atividades de profissionais liberais em que há produção de massa, tanto que há casos em que é vedado tal padrão, como, por exemplo, os advogados. Daí porque se não é pressuposto para caracterizar a atividade do profissional liberal, tanto menos é para justificar a exclusão. Por fim, cita a pessoalidade na responsabilidade do próprio profissional liberal. Logo conclui o autor que não é fundamento da responsabilidade subjetiva, pois o fato de o profissional liberal constituir pessoa jurídica não transforma sua responsabilidade subjetiva em objetiva.

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E conclui:

Assiste razão, portanto, aos que, porventura, afirmem não se poder usar idênticos sistemas protetivos em prol do consumidor, ignorando-se quem esteja a compor com ele a relação de consumo (...). O tratamento diferenciado se impõe. Contudo, diferença deve significar adequação, nunca privilégio injustificado. 59

O autor aponta como particularidades do serviço prestado pelo profissional

liberal o monopólio profissional, a proximidade e a pessoalidade no trato da

contratação, a frequência das contratações de relações de consumo e a intensidade

do dano bem como as forças econômico-financeiras do profissional liberal, a

litigância habitual e o nível de esclarecimento. E daí retira a conclusão de ser

profissional liberal todo aquele que, no exercício de suas atividades laborais, é

perfeitamente diferenciado pelos conhecimentos técnicos reconhecidos em diploma

de nível superior, não se confundindo com a figura do autônomo60.

Ressalta ainda o autor que o profissional liberal pode prestar serviços

integrando pessoas jurídicas como sócio ou titular destas, ou, ainda, atuando por

elas como empregado. No entanto, somente é subjetiva a responsabilidade civil nos

casos de prestação de serviço de ordem pessoal. Assim, nos casos em que o

profissional prestar serviços integrando pessoas jurídicas como sócio ou titular

destas, ou ainda, atuando por elas como empregado vigora a responsabilidade

direta objetiva das pessoas jurídicas.

Em suma, segundo Oscar Ivan Prux a caracterização do profissional liberal

requer a prestação de serviço de ordem pessoal por profissional com conhecimentos

técnicos reconhecido em diploma de nível superior.

Benjamin et al (2009), diferentemente, afirma que profissional liberal é aquele

prestador de serviço solitário, que faz do seu conhecimento uma ferramenta de

sobrevivência.

A doutrina uruguaia, com base no art. 35 da lei 17.25061, considerada

profissional liberal universitário ou não, que realiza uma atividade de criação de um

produto ou bem incorpóreo mediante atividades materiais ou intelectuais. No

entanto, diferentemente do que ocorre no Brasil, a doutrina uruguaia reconhece que

59 Oscar Ivan Prux, cit., p. 36. 60 Oscar Ivan Prux, cit., p. 108. 61 “Ley 17.250 - Artículo 35.- La responsabilidad de los profesionales liberales será objetiva o subjetiva según la naturaleza de la prestación asumida”.

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a inclusão dos serviços profissionais é imperativa, mas não pode conferir tratamento

mais benigno. Assim expõe Dora Szafir, citando também Mosset Lorenzetti:

A nuestro criterio, la inclusión de los servicios prfesionales es imperativa ya que no pueden ser tratados em forma más benévoca que los demás. No es lógico, que quienes tienen mayores conocimientos queden relegados de ciertas obligaciones, cuando son los que mejor pueden hacerse cargo de lãs mismas, y menos aún que ante su incumplimineto no puedan ser sancionados administrativamente. El Dr. Mosset indicó que la situación privilegiada de los profesionales no es razonable. Em su opinión se trata de um tratamiento ‘considerado’ o ‘benigno’ que los coloca em situación de privilegio respecto de otros proveedores de servicios no universitários.62

No entanto, pondera a autora uruguaia sobre o reconhecimento da

responsabilidade objetiva em geral a todos os profissionais liberais, tendo em vista a

natureza jurídica da obrigação assumida (na maioria das vezes obrigação de meio).

Afirma a autora:

Sin embargo, debe tenerse cuidado al regular la responsabilidad de los profesionales liberales en calidade de deudores de una prestación, ya que muchos de ellos solo pueden asumir obligaciones de medios y por lo tanto, responder em base a um factor subjetivo de atribución, la culpa.63

Na Argentina, confere-se tratamento jurídico ao profissional liberal com título

universitário somente no que tange à publicidade.

No Brasil, é possível observar que a definição da expressão "profissional

liberal", em consonância com várias mudanças sociais, culturais, econômicas e

técnicas, tem sofrido algumas mudanças64. O avanço tecnológico e científico fez

62 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.250. 63 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.250. 64 O primeiro momento relevante quanto às várias mudanças foi a Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, durante o século XVIII: os produtos passaram a ser produzidos em série, por máquinas, e em grandes quantidades, causando uma mudança relevante no cenário econômico mundial. Via de consequência ocorreu o fenômeno da massificação, isto é, a fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, no intuito de diminuição de custo da produção e aumento da oferta. Desse modo, as relações de consumo passaram a ser impessoais e indiretas, sob o prisma de contratos "standardizados", sendo que muitas vezes o consumidor não tinha conhecimento de quem estava adquirindo o produto ou o serviço. Esses problemas se agravaram principalmente nos tempos de pós-guerra, carreando, consequentemente, um desequilíbrio em desfavor dos consumidores. Em razão dessa vulnerabilidade do consumidor, o Estado passou a intervir editando regras com o objetivo de satisfazer o interesse coletivo, evitando abusos e garantindo uma efetiva e real proteção aos seus cidadãos consumidores. O Código Civil já não mais se encontrava em sintonia com as situações tipicamente de massas, sendo imprescindível, principalmente após a promulgação da Constituição da República em 1988, em que surgiu a intenção do legislador constituinte originário de intervir nas relações de consumo em prol do consumidor, a defesa do consumidor (art.5, XXXII e 170, V, CF). Nesse contexto, surgiram as regras do Código de Defesa do Consumidor.

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surgir mais opções de trabalho, novos cursos técnicos e profissionalizantes inseridos

por instituições privadas, criando inclusive a possibilidade do profissional, tido como

liberal, ser empregado65. No âmbito da responsabilidade civil médica, anteriormente

se procurava um "clínico geral" ou um "médico da família", que detinha uma clientela

cativa, imperando, sobretudo, a confiança mútua. Essa época foi marcada por existir

um grande contato entre o cliente e o profissional (que normalmente também

mantinham laços de amizade), o que gerou os chamados contratos intuitu personae,

isto é, contratos com caráter personalíssimo66.

65 Primeiro, criou-se grande discussão em relação à possibilidade desse profissional poder ser empregado. E, de fato, parecia um contra-senso denominar-se "liberal" um profissional subordinado a um patrão ou chefe. Assim sendo, autores concluíam pela impossibilidade do profissional liberal ser empregado. Contudo, tal entendimento já foi superado. Hoje em dia, diante do estágio de desenvolvimento social e econômico, os profissionais liberais não ficam mais restritos aos seus escritórios ou consultórios, já que o mercado de trabalho não lhes garante uma renda estável, principalmente no início da carreira. Desse modo, em busca de salário estável e outras garantias, os profissionais vinculam-se a grandes empresas. Diante desse fundamento, foi aceita a possibilidade do profissional liberal ser empregado. Nesse sentido, destacamos "ipsis litteris" parte de acórdão que assevera plenamente ser possível o profissional liberal ser empregado: “Mas não é o fato de se ter na prestação de serviços de advocacia atividade historicamente exercida de forma liberal que irá impedir a existência de subordinação jurídica e consequente vínculo de emprego. Como asseverado por Délio Maranhão, os chamados profissionais liberais são, hoje, verdadeiros empregados, quando prestam serviços, subordinados, juridicamente, a outra pessoa. Como dispõe o parágrafo único do art. 3º da Consolidação, "não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição do trabalhador, nem entre trabalho intelectual, técnico e manual". Negá-lo em nome de um conceito histórico da profissão liberal, ou invocando uma confiança que não é estranha, mas, ao contrário, própria do contrato de trabalho, é viver fora da realidade, é desconhecer o fenômeno da "proletarização" do profissional liberal, de que nos fala MARIO DE LA CUEVA, e que é uma contingência dos dias que correm. Claro está que não há falar, no caso, em subordinação técnica. Mas, desde que o médico, ou o advogado, se coloque à disposição de um empregador, que se pode utilizar de seus serviços, quando queira, embora não como queira, fixando-lhe um horário, impondo-lhe obrigações determinadas, não há por quê, nem como negar a existência de um contrato de trabalho". (TRT/SC – 2ªT – RO nº 9849/98 – Rel. Des. Amarildo Carlos de Lima; maioria de votos; j. 14/04/1999). Conforme destacado, não há como falar, no caso, em subordinação técnica. E, no âmbito da responsabilidade médica, desde que o médico se coloque à disposição de um empregador, que se podem utilizar seus serviços, quando queira, embora não como queira, fixando-lhe um horário, impondo-lhe obrigações determinadas, não há por quê, nem como negar a existência de um contrato de trabalho. Vale dizer, é profissional liberal, ainda que haja um contrato de trabalho, o médico que possui independência técnica, recusando-se a cumprir ordens que não estejam em consonância com seus princípios éticos e profissionais. 66 Este é também um ponto muito discutido, inclusive na área médica. Isto porque as pessoas buscam, frequentemente, serviços oferecidos por associações, convênios, planos de saúde, cooperativas etc., cujos custos são menores. Nota-se que, nesses casos, os profissionais são impostos pelas entidades (associações, convênios, planos de saúde, cooperativas) ou indicados pelo estado para prestarem o serviço, sem que haja, muitas vezes, o elemento caracterizador dos contratos "intuitu personae". Diante dessa realidade, esse elemento foi desconsiderado na caracterização do profissional liberal. Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições, aprovou o Código de Ética Médica e dispôs, no inciso XX o seguinte “A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo”. A questão do valor jurídico dessas normas suscita ainda problema da eventual discordância entre as normas de conduta (conhecidos como códigos deontológicos) e as normas da legislação ordinária. Esse problema só pode ter uma solução: as normas deontológicas têm de se subordinar à legislação ordinária. Nas palavras de Suzana Pimenta Catta Preta Federighi, “as vantagens inerentes à auto-

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Em que pese a divergência de opinião doutrinária, todos os conceito

apresentados de profissional liberal alcançam os médicos, pois está intimamente

relacionado àquele que, no exercício de suas atividades laborais, é perfeitamente

diferenciado pelos conhecimentos técnicos reconhecidos em diploma de nível

superior, não se confundindo com a figura do autônomo. Vale dizer, médico é

profissional liberal por ser aquele cujo êxito do trabalho decorre da maior ou menor

capacidade intelectual do profissional, reconhecida em título de habilitação,

expedido em forma legal, ou seja, da apresentação de diploma, passado por

faculdades ou universidades que provem ou mostrem a conclusão do curso.

Eis então a concepção atual do profissional liberal, elemento fundamental

para a aplicação do regime jurídico excepcional da responsabilidade civil subjetiva

prevista no art. 14, §4º do CDC decorrente de acidentes de consumo ou vício de

qualidade por insegurança67.

3.2.3 O §4º do art 14 do CDC e a responsabilidade civil dos

profissionais liberais

De fato, o Código de Defesa do Consumidor adotou, para cada espécie de

vício (em sentido geral) um tratamento jurídico específico, vale dizer, para os

acidentes de consumo, vigora o regime jurídico previsto nos artigos 8 a 17, e para os

incidentes de consumo, o disposto no artigo 18 e seguintes do CDC68. A

responsabilidade civil do médico, sendo profissional liberal, está disposta no art. 14,

§4º, regendo aparentemente somente as hipóteses de acidentes de consumo (vícios

extrínsecos)69.

regulamentação são relativas à sua complementariedade ao sistema protetivo do consumidor”. (FEDERIGHI, Suzana Maria Pimenta Catta Preta. Publicidade abusiva: incitação à violência. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p.112). Assim sendo, as normas deontológicas não podem contrariar o microssistema do consumidor, pois são normas que o complementam. 67 Na relação de consumo, os vícios de quantidade e de qualidade podem geram danos intrínsecos - decorrentes de incidente de consumo ou vício de qualidade por adequação, com reflexo no resultado do serviço - ou extrínsecos - decorrentes de acidentes de consumo ou vício de qualidade por insegurança, com dano superior à perda ou depreciação do serviço - sendo que os primeiros atingem a incolumidade econômica, enquanto que os segundos a incolumidade física-psíquica do consumidor. 68 Não custa registrar sobre a diferenciação dos regimes adotados pelo CDC que é possível, segundo Oscar Ivan Prux (Responsabilidade civil, cit., p. 108), que o vício intrínseco extrapole seu conteúdo, tornando-se extrínseco (defeito), caso em que, segundo o autor, a proteção jurídica deve pautar-se no critério da preponderância, isto é, qual situação se sobrepõe a outra em nível de importância ao lesado. 69 A doutrina e jurisprudência apresentam ainda divergência quanto ao alcance do dispositivo em relação às pessoas jurídicas (instituição hospitalar, por exemplo). Em breve síntese, há entendimento no sentido de que as pessoas jurídicas respondem objetivamente pelos atos dos profissionais liberais

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Ocorre que há divergência doutrinária também quanto ao âmbito de aplicação

do art.14, §4º do CDC. Isto é, há diversos entendimentos sobre a aplicação da

responsabilidade subjetiva apenas nos casos de defeito do serviço ou em todos os

casos envolvendo profissional liberal (defeito e vício do serviço).

Zelmo Denari, por exemplo, afirma que a diversidade de tratamento explica-se

em razão da natureza intuitu personae dos serviços prestados por profissionais

liberais. Importa distinguir, segundo o autor, o tipo de contratação firmada com os

profissionais liberais: contratos de adesão ou contratos negociados. Somente aos

contratos ditos negociados, porque muito próximos dos contratos estritamente

privados, nos quais prevalece a regra pacta sunt servanda, que impõe a igualdade

de poderes contratuais entre as partes, não se deve aplicar a regra da

responsabilidade objetiva, em obséquio ao disposto no §4º do art. 14, embora

subsumido às demais normas de defesa do consumidor, inclusive a aplicação da

inversão do ônus da prova. Quanto aos demais, como um contrato de adesão,

aplicam-se, irrestritamente, as disposições do Código de Defesa do Consumidor

(GRINOVER et al, 2004).

Oscar Ivan Prux, por sua vez, apresenta um posicionamento particular sobre

o assunto: a interpretação restritiva do §4º do art. 14 deve considerar sempre a

classificação de obrigação de meio ou de resultado. Assim, em se tratando de

obrigação de meio, a exceção deve vigorar inclusive nos casos fora da

responsabilidade pelo fato do serviço; em se tratando de obrigação de resultado a

exceção não deve prevalecer, devendo ser aplicada a inversão do ônus da prova

com presunção absoluta de culpa70.

Roberto Senise Lisboa (2006) também destaca a importância da distinção

entre “obrigação de meio” e “de resultado” para a aplicação da responsabilidade civil

subjetiva. Segundo o autor, não é em toda a hipótese de acidente de consumo que o

profissional liberal responde mediante culpa (...) na obrigação de meio a

que atuam em seu estabelecimento, com base no caput do art. 14. Da mesma forma, tratando-se de profissionais liberais empregados em empresas privadas de prestação de serviços – a responsabilidade que se impõe é objetiva e não subjetiva, ainda que pelos danos responda tão-somente a pessoa jurídica. Nesse sentido, destacamos a posição de Nelson Nery, para quem a responsabilidade pelos danos causados ao consumidor é objetiva na hipótese de o consumidor procurar a instituição (hospital ou clínica) onde presta serviços o profissional liberal ou, ainda procurar os serviços de qualquer profissional liberal, não o contratando pela sua própria pessoa. No entanto, Antonio Benjamin entende que se um médico trabalhar para um hospital responderá o profissional por culpa, responsabilidade subjetiva do §4, art. 14, e o hospital, responderá, naturalmente, objetivamente. 70 Oscar Ivan Prux, Responsabilidade civil, cit., p. 265.

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responsabilidade do fornecedor é subjetiva pura, isto é, não se admite sequer a

presunção de culpa do prestador da atividade podendo ocorrer a inversão do ônus

da prova. Já na obrigação de resultado.

Importa na presunção de culpa do fornecedor, liberando-se o consumidor do ônus da prova do elemento subjetivo, devendo o profissional liberal demonstrar que, efetivamente, não agiu de forma aquém da prudência e diligência que deveria o consumidor dele esperar, em face de seu conhecimento técnico (critério da razoabilidade).

Em suma, o autor afirma que é no estudo da responsabilidade subjetiva que

se nota a razão para o estudo da obrigação de meio e de resultado, sendo que na

primeira é possível a inversão do ônus da prova, enquanto que na segunda há

presunção (relativa) de culpa. Assim, conclui o autor que, a obrigação de resultado

não importa responsabilidade objetiva, como vem sustentando alguns doutrinadores

e decidindo os Tribunais brasileiros71.

Sob outro fundamento, Rizzato Nunes defende que a existência de defeito e

vício gera responsabilidade subjetiva. Isto porque, se a previsão legal confere

tratamento mais brando nos casos mais graves (defeito), com maior razão aos casos

menos graves (vício). Daí porque a responsabilidade civil do profissional liberal ser

sempre subjetiva, seja no caso de defeito, seja no caso de vício do produto ou

serviço.

Odete Novais Carneiro Queiroz (1998), enfrentando o problema do regime

jurídico do produto ou serviço nas relações de consumo, afirma que a

responsabilidade nesses casos é subjetiva (com presunção absoluta de culpa) sob

três fundamentos: primeiro porque a matéria é de menor gravidade do que a

protegida sob a epígrafe “Da Responsabilidade pelo Fato do Produto e do Serviço”;

segundo por se tratar de vícios anteriormente tratados pela teoria dos vícios

71 Dessa forma, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Junior entendem que a obrigação de resultado assumida pelo profissional liberal configura responsabilidade objetiva pelos danos causados. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Junior , Código civil comentado – 4ª ed. rev., ampl. E atual. até 20 de maio de 2006. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 611. Na mesma linh de pensamento, há a seguinte decisão: “RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO DE DIAGNÓSTICO. EXAMES RADIOLÓGICOS. DANOS MORAIS E MATERIAIS. I - O diagnóstico inexato fornecido por laboratório radiológico levando a paciente a sofrimento que poderia ter sido evitado, dá direito à indenização. A obrigação da ré é de resultado, de natureza objetiva (art. 14 c/c o 3º do CDC). II - Danos materiais devidos, tendo em vista que as despesas efetuadas com os exames posteriores ocorreram em razão do erro cometido no primeiro exame radiológico. III - Valor dos danos morais fixados em 200 salários-mínimos, por se adequar melhor à hipótese dos autos. IV - Recurso especial conhecido e parcialmente provido”. REsp 594962 / RJ. Relator(a) Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO. T3 - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento 09/11/2004.

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redibitórios, na qual vigora a “presunção absoluta de culpa”72; terceiro porque seria

desnecessária a previsão do art. 23 de asseverar que a ignorância dos vícios seria

excludente de responsabilidade caso se tratasse de responsabilidade objetiva73.

Ocorre que, tal raciocínio, apresentado de forma simplificada, aprofundada e

fundamentada pela autora, no contexto da responsabilidade civil médica, causa

certa perplexidade, uma vez que, nos casos de responsabilidade por fato do serviço

(art. 14, §4º) a responsabilidade seria subjetiva pura, enquanto que, em caso vício

de serviço (art .20)74 a responsabilidade seria subjetiva com presunção absoluta de

culpa75. Ou seja, o tratamento jurídico seria mais rígido no âmbito da

responsabilidade por vício do serviço do que o conferido no campo da

responsabilidade por defeito do serviço, o que parece contra legem. Parece que com

a exceção do art. 14, §4º do CDC o legislador excluiu, de forma expressa, o regime

da responsabilidade civil dos profissionais liberais, aí incluído o médico. Parece que

não se pode usar idênticos sistemas protetivos em prol do consumidor, ignorando-se

quem esteja a compor com ele a relação de consumo. Tendo em vista as

particularidades do serviço prestado pelo médico (profissional liberal), isto é, o

monopólio profissional, a proximidade e a pessoalidade no trato da contratação, a

frequência das contratações de relações de consumo e a intensidade do dano bem

como as forças econômico-financeiras do profissional liberal, a litigância habitual e o

nível de esclarecimento, justifica-se um sistema protetivo (subjetivo) diferenciado.

Definido o âmbito de aplicação das regras consumeristas, oportuno, no

momento, analisar o âmbito de aplicação do Diploma Civil.

72 A autora trata dos vícios redibitórios no contexto do CC/16. Em apertada síntese, é possível afirmar que a disciplina do CDC em relação aos prazos para reclamar dos vícios dos produtos é bem mais vantajosa do que a do CC/16 e a do CC/02, especialmente por dois fatores: 1) não há limite máximo preestabelecido para surgimento do vício oculto; 2) o prazo decadencial pode ser obstado (§2º do art. 26). 73 Destaca a autora que a opção de consagrar tal responsabilidade como subjetiva, com presunção júris et de jure, é melhor do que aqueloutra defensora da responsabilidade objetiva, pois alcança o resultado pretendido pela lei sem alterá-la, respeitando as expressões inseridas, sem esquecer o ideal legal, qual seja, a proteção efetiva do pólo mais fraco da relação. 74 O art.20 vício define vício de serviços como aquele impróprio ao consumo, que lhe diminua o valor ou seja decorrente da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária. A impropriedade dos serviços vem definida no §2 e compreende sua desconformidade com a expectativa gerada, e com o não-atendimento ao padrão mínimo de qualidade, segundo as normas que regulem aquela prestação. 75 Ensina a autora que o regime da responsabilidade no que tange aos vícios dos serviços é subjetiva com presunção juris et de jure de culpa. Isto porque, aquele que executa o serviço de maneira diferente da combinada ou não executa está em mora, sendo responsável pelos prejuízos a que sua mora der causa. O legislador presume que o fornecedor conhece o serviço que presta, e não admite que seja afastada tal presunção. Trata-se de uma garantia imposta pela lei (garantia legal), expressa inclusive no art. 24 do CDC, inafastável pelo consenso entre as partes segundo o teor do art. 50.

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3.3 O Código Civil Aplicado às Relações Consumeristas

3.3.1 Atividade de risco e o parágrafo único do art. 927 do

CC/02

O Código Civil, em seu art. 951, dirigiu-se contra aquele que causa dano

injusto “no exercício da atividade profissional”, de onde se deduz que se trata da

responsabilidade médica76. Ou seja, esse artigo ressalta que os profissionais

médicos, cuja atividade está mais intimamente relacionada à vida e à saúde

humana, podem ser responsabilizados pelos erros cometidos no exercício da

profissão em caso de negligência, imprudência ou imperícia.

Mas, o CC estabelece também um regime geral de responsabilidade civil

objetiva previsto em uma cláusula geral (art. 927, parágrafo único). Poderia ser

aplicada essa regra objetiva à atividade médica? Seria a atividade médica uma

atividade com risco intrínseco? O risco seria uma condição extensível à atividade

médica como um todo ou, apenas, a alguns ramos desta ciência? Qual seria o grau

de risco exigível da atividade médica para inseri-la na disciplina deste artigo?

Não há adequada delimitação legislativa sobre o significado da expressão

utilizada pelo legislador, cabendo à doutrina e jurisprudência tal tarefa77.

No direito comparado, a Itália contém norma semelhante ao preceito em

exame, embora adote o termo “perigo” - em lugar de “risco” - e admita a presunção

de culpa – e não responsabilidade objetiva – nessas hipóteses. A doutrina italiana

adota essencialmente dois critérios para definir atividade perigosa: a quantidade de

danos habitualmente causados pela atividade em questão e a gravidade de tais

danos. Ou seja, a atividade é perigosa quando causa danos quantitativamente

numerosos e qualitativamente graves. Assim, são exemplos de atividades perigosas

à luz da jurisprudência italiana a produção e distribuição de energia elétrica de alta

tensão, produção de medicamentos, algumas atividades desportivas, corridas

automobilísticas etc (TEPEDINO et al, 2006).

76 O Código Civil de 1916 tratava expressamente da responsabilidade de “médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas”. O novo Código repetiu substancialmente a norma, mas abandonou a referência enumerativa aos profissionais de saúde, atribuindo caráter genérico. 77 Em termos gerais, segundo o Enunciado 38, proferido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (11 a 13.09.2002), “a responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art.927 do novo CC, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade”.

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Portugal também possui regra semelhante disposta no art. 493, nº 2, CC78. De

acordo com Carla Gonçalves, este dispositivo pode servir para conter os efeitos

negativos do progresso da medicina, cabendo ao julgador, face às circunstâncias do

caso concreto, avaliar se a invocação do referido regime procede ou não. Afirma a

autora que, de acordo com a realidade portuguesa, a responsabilidade médica

objetiva decorre da lei e, em geral, de circunstâncias que envolvem riscos

excepcionais79 (e não o caráter da obrigação – de resultado – como vem sendo

sustentado pela doutrina e jurisprudência brasileira). Os riscos excepcionais, sob

uma perspectiva concreta, seriam os casos legalmente consagrados; sob uma

perspectiva abstrata, outras situações que poderiam justificar a adoção de uma

responsabilidade objetiva. São casos consagrados de responsabilidade objetiva em

Portugal: ensaios clínicos, doações de órgãos e tecidos em vida80, exposição dos

pacientes a radiações, medicamentos defeituosos (responsabilidade da indústria

farmacêutica) e médico chefe de equipe (sob o fundamento de existir uma relação

de comissão entre os membros da equipe médica ou auxiliares). A autora afirma que

nem todos os riscos e nem todos os perigos inerentes à prática médica poderão

derrogar o princípio geral da responsabilidade fundamentada na culpa. Assim,

conclui que o exercício de um mero caminho futurístico somente pode ser evitado se

for de acordo com realidade tal como ela é, e não como hipoteticamente deveria ou

poderia ser, sendo que só o tempo poderá responder se o futuro da

responsabilidade médica caminha mesmo no sentido de acolher novos casos de

responsabilidade objetiva (GONÇALVES, 2008).

Na Espanha, já foi decidido que em caso de dano decorrente de manuseio de

aparelho que se considera perigoso, para as sessões de radioterapia, deve-se

aplicar a inversão do ônus da prova, até o ponto de exigir do médico a prova de

haver cumprido cabalmente seu dever de diligência (KFOURI NETO, 2005).

78 Código Civil português – “Art.493. n 2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. 79 Código Civil português – “Art. 4.8.3, nº 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”. 80 No Brasil, a responsabilidade civil é subjetiva. Na verdade, o único dispositivo que trata do tema é o §2º do art. 10 da Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, nos seguintes termos: § 2o A inscrição em lista única de espera não confere ao pretenso receptor ou à sua família direito subjetivo a indenização, se o transplante não se realizar em decorrência de alteração do estado de órgãos, tecidos e partes, que lhe seriam destinados, provocado por acidente ou incidente em seu transporte. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

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Na doutrina pátria, esse assunto ainda não está pacificado. Miguel Kfouri Neto

(2005) inclina-se favoravelmente a considerar como atividades de risco todas

aquelas que colocam em risco a vida e saúde humana, em especial nos casos de

utilização de aparelhos que podem escapar ao controle profissional e ocasionar

danos, deixando com isso uma porta aberta para a caracterização do próprio ato

médico como sendo uma atividade de risco. Maria Helena Diniz (2008), por sua vez,

defende que não há obrigação por risco profissional, pois os serviços médicos são,

em regra, de meio e não de resultado. Nos casos de responsabilidade objetiva por

obrigação de resultado, a autora reconhece a aplicação do art. 927, parágrafo único

do CC.

Com o devido respeito, parece que não é possível considerar o dispositivo do

Código Civil como comando para tornar objetiva a responsabilidade do médico, haja

vista o risco não ser criado pela sua atividade. A atividade médica não é geradora do

risco a que é exposto o paciente. O responsável pelo risco é a entidade nosológica –

a doença – apresentada pelo paciente. Trata-se de um risco inerente, intrínseco,

atado à própria natureza do ser humano, que deve ser equiparado a caso fortuito.

De fato, o parágrafo único do art. 927 refere-se a uma cláusula geral de

responsabilidade civil objetiva, cuja aplicabilidade depende da configuração de uma

atividade de risco. No entanto, a discussão quanto ao caráter da obrigação (de

resultado) somente assume importância no contexto da responsabilidade subjetiva

(art. 951), daí porque não dever existir relevância para a aplicação desse dispositivo

legal que estabelece regime de responsabilidade objetiva. Vale dizer, atividade de

risco não se confunde com atividade que impõe obrigação de resultado. Enquanto

aquela possui regime de responsabilidade objetiva (art. 927, parágrafo único), esta

possui regime de responsabilidade subjetiva (art. 951).

Na realidade, para aqueles que entendem ser a prática médica uma atividade

de risco, vislumbrar-se-ia aparente conflito das normas do art. 951 (responsabilidade

subjetiva para a atividade médica) - correspondente a do art. 1.545 do CC/1916 - e

do parágrafo único do art. 927 (responsabilidade objetiva para a atividade com

risco), tendo em vista que seria possível a atividade médica ser de risco e de

resultado ou de risco e subjetiva. Esse aparente conflito poderia ser solucionado, em

nível técnico, alterando-se os dispositivos, e no que é pertinente à aplicação das

normas jurídicas, utilizando-se das lições de hermenêutica, interpretação sistemática

e teleológica e das regras solucionadoras de conflito de normas, neste caso, a

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prevalência da norma especial (art. 951, CC) em relação à geral, preconizada no art.

927º, parágrafo único do Diploma Civil 81. Ou seja, o art. 951 evidenciaria a exclusão

da responsabilidade objetiva dos profissionais da medicina da cláusula geral prevista

no art. 927º, parágrafo único, a exemplo do que já ocorre com os profissionais

liberais em geral, cuja responsabilidade, a teor do que estabelece o art. 14, § 4º, do

Código do Consumidor, é apurada mediante a verificação da culpa. Portanto, ainda

que fosse considerada uma atividade de risco, a responsabilidade civil seria

subjetiva, não se aplicando o art. 927, parágrafo único do CC – responsabilidade

objetiva por risco da atividade.

Outrossim, devendo ser aplicado o regime da responsabilidade civil subjetiva

do médico previsto no Código Civil, torna-se possível a redução equitativa da

indenização, nos termos do parágrafo único do art. 944 (TEPEDINO et al, 2006)82.

Por isso, conclui-se que a responsabilidade civil do médico por erro de

diagnóstico, ainda que constantemente envolva o manejo de equipamento de

sofisticada tecnologia nos métodos de diagnósticos complementares, como no caso

de laser, videolaparoscópio, tomografia computadorizada etc., é sempre subjetiva,

sob os fundamentos do art. 14, §4º do CDC e do art. 951 CC. Em se tratando de

obrigação de meio a responsabilidade é subjetiva pura; se de resultado, importa na

presunção (relativa) de culpa do fornecedor, liberando-se o consumidor do ônus da

prova do elemento subjetivo, cabendo ao profissional liberal demonstrar que,

efetivamente, não agiu de forma aquém da prudência e diligência que deveria o

consumidor dele esperar83.

81 Maria Helena Diniz, notas de aula ministrada no curso de pós-graduação stricto sensu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em agosto de 2008. 82 Ensinam que a concepção que inspirou o preceito é a de que a convivência social traz consigo determinados riscos de dano, para os quais a situação da vítima muitas vezes contribui, de modo que não é absurdo admitir que, excepcionalmente, o ônus de prejuízos causados por culpa leve do ofensor, seja, em parte, suportado pela própria vítima. Entendida esta razão, é de se verificar que a aplicação da redução equitativa da indenização se restringe ao âmbito da responsabilidade subjetiva, pois seria contraditório permitir que, nas hipóteses de responsabilidade objetiva, em que o legislador dispensou a prova da culpa do agente, o juiz levasse em conta a baixa intensidade da culpa para reduzir a indenização, relançando parte do risco sobre a vítima. Ademais, tal discussão no âmbito da responsabilidade civil objetiva prejudicaria a efetividade que a caracteriza em razão do debate acerca da culpa na liquidação do dano. Não obstante, devemos ponderar apenas que a simples instituição da responsabilidade objetiva não afasta, pura e simplesmente, a análise da culpa. Pode haver interesse não só nos casos de culpa exclusiva da vítima ou culpa de terceiro (CDC, art.12, §3º, III) como também quando houver fundamento para o exercício do direito de regresso. 83 Não se pode confundir responsabilidade objetiva com a inversão do ônus da prova. Na responsabilidade objetiva, a culpa fica descartada, não interessando em nada sua existência. A inversão do ônus da prova da culpa somente tem lugar na responsabilidade subjetiva, sendo a distribuição da carga probatória uma questão processual. Não há qualquer incompatibilidade que, em sendo a responsabilidade subjetiva, seja determinada a inversão do ônus da prova. A consequência

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3.4 Particularidades dos Pressupostos da Responsabilidade

Civil Médica no Erro de Diagnóstico

Primeiramente, cabe ressaltar que a doutrina diverge quanto aos

pressupostos da responsabilidade civil. Silvio Rodrigues84 e Carlos Roberto

Gonçalves85 apontam quatro elementos, a saber: a ação ou omissão do agente, a

culpa do agente, a relação de causalidade e o dano experimentado pela vítima.

Sérgio Cavalieri Filho86, Maria Helena Diniz87 e Odete Novais Carneiro Queiroz88

apontam somente três, a saber: a ação, o dano e o nexo de causalidade.

Com o advento da teoria do risco e o (re)surgimento da responsabilidade civil

objetiva (QUEIROZ, 1998)89, para a qual não se cogita da culpa do agente, logo se

poderia concluir que verdadeiramente culpa não seria pressuposto da

responsabilidade, mas apenas a conduta.

Parece, no entanto, que a responsabilidade civil tem por fundamento a

conduta que causa dano, a qual se liga ao agente pela culpa ou pelo risco. Vale

dizer, a conduta que gera danos e responsabilidade pode ter por fundamento tanto a

culpa quanto o risco, de maneira que a inexistência da conduta, do dano, do nexo de

causalidade e da culpa ou risco retira do evento danoso sua aptidão para gerar

disso será que, ao invés do consumidor provar a culpa pela ocorrência do evento que lhe causou dano foi do prestador de serviços (profissional liberal), tal ônus passa a ser deste, que deverá demonstrar que agiu com prudência, perícia ou zelo. A questão referente à responsabilidade civil subjetiva ou objetiva está inserida no plano de direito material, enquanto que a inversão do ônus da prova, no direito processual. 84 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, p.13/14.

85 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade, p.32.

86 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. – 5. ed. rev., aumentada e atual., de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 41. 87 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 7: responsabilidade civil – 23. ed. reformulada. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 42. 88 A autora adverte que os três pressupostos que devem estar presentes para servirem de fundamento ao dever de indenizar nem sempre estarão presentes. Segundo a autora, “ o dano poderá faltar, em casos de responsabilidade civil contratual; por exemplo, em contrato, no qual a resolução dá à parte, que sofreu o inadimplemento, o direito à cláusula penal (que é a pré-fixação de danos), tenha ou não havido prejuízo. A culpa também pode faltar, quando se tratar de responsabilidade objetiva. Entretanto, o nexo causal não pode faltar jamais – este é o verdadeiro elemento da responsabilidade civil e do qual não se prescinde em hipótese alguma. (QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Da responsabilidade por vício do produto e do serviço: Código de Defesa do Consumidor Lei 8.078, de 11.09.1990. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 41). 89 Citando as lições de Josserand, há um movimento de vaivém da responsabilidade civil objetiva na evolução da história. Como vimos, no antigo direito romano, a responsabilidade era objetiva (sem se falar na teoria do risco). Contemporaneamente, volta o objetivismo, sendo admitida inclusive a responsabilidade advinda de atos lícitos.

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responsabilidade civil, de forma que, é possível concluir que, efetivamente, a culpa

ou o risco é pressuposto da responsabilidade civil.

Tendo em vista a conclusão de que a responsabilidade civil do médico por

erro de diagnóstico, seja atividade de meio ou de resultado, em caso de defeito ou

vício de serviço, é sempre subjetiva, sob o fundamento do art. 14, §4º do CDC e art.

951 do CC, será analisado agora cada um desses pressupostos: ação ou omissão,

culpa, dano e relação de causalidade.

3.4.1 A conduta: o diagnóstico médico

A conduta é o comportamento humano voluntário que se manifesta através de

uma ação, produzindo efeitos jurídicos.

Em geral, a ação pode se referir tanto à prática comissiva, um comportamento

positivo, como omissiva, um comportamento negativo. Em ambos os casos trata-se

de ação: ação comissiva e ação omissiva. Tanto uma como a outra são formas

comuns de exteriorização do diagnóstico médico90, sendo a forma mais comum a

ação comissiva (REZENDE, s.d).

Em razão da proliferação das profissões na área médica, foram incitadas

calorosas discussões na sociedade brasileira a respeito da delimitação do ato

médico, de modo a determinar aquilo que se pode esperar dessa classe e aquilo que

foge à responsabilidade destes sujeitos. Os projetos de Lei nº 25/2002 e 7703/2006

identificam como ato privativo dos médicos a formulação do diagnóstico médico e a

prescrição terapêutica das doenças, ressalvados os diagnósticos psicólogo,

nutricional, sócio-ambiental e as avaliações comportamentais e das capacidades

mental, sensorial, perceptocognitiva e psicomotora. Em que pese a tentativa dos

projetos, a conceituação do ato médico ainda não tem definição legal.

De acordo com o Dicionário Médico Ilustrado Blakiston, diagnose é a “arte ou

o ato de determinar a natureza de uma doença (HOERR et al, 1972). A formulação

do diagnóstico é, portanto, um ato médico complexo, fundamentada na história

clínica passada e presente do paciente (anamnese), nos sintomas e sinais

apresentados, na evolução do quadro clínico e na interpretação crítica dos exames

complementares porventura necessários, sejam estes exames de laboratório,

90 Hipócrates foi o primeiro a usar a palavra diagnóstico, que significa discernimento, formada do prefixo dia, “através de”, “em meio de” e gnosis, “conhecimento”. Diagnóstico, portanto, é discernir pelo conhecimento.

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registros gráficos ou métodos de imagem. Classicamente, a base do diagnóstico

médico é a consulta médica, mas as técnicas complementares também são atos de

diagnóstico.

O diagnóstico médico pode ser caracterizado pela culpa, indispensável para a

determinação da responsabilidade civil, inclusive por erro de diagnóstico. Daí porque

ser imprescindível o estudo do elemento culpa, nexo de imputação que liga o evento

danoso ao agente, conforme a análise a seguir. Antes, no entanto, analisa-se o caso

de resultado falso-positivo.

3.4.1.1 O resultado falso-positivo: defeito do serviço médico?

A interpretação de exames complementares é uma atividade de grande

importância no exercício clínico, uma vez que é comum a conclusão diagnóstica

após a leitura e correta interpretação dessas técnicas complementares.

O exercício clínico de décadas atrás era baseado na anamnese do paciente,

envolvendo todo um histórico da situação do paciente naquele momento. Caso o

médico não fechasse seu diagnóstico no momento, formulava uma ou mais

hipóteses de diagnóstico e solicitava exames para confirmar uma dessas hipóteses.

Assim, a correta interpretação desses exames complementares já ocupava uma

posição de destaque no diagnóstico correto.

Hoje, contudo, a prática da anamnese está um pouco esquecida entre uma

boa parte dos profissionais médicos. O exame complementar, que até então servia

somente para confirmar um diagnóstico, tornou-se o meio principal para encontrar

hipóteses de diagnóstico.

Desta forma, na maneira que está disposta atualmente a prática médica, a

correta interpretação de exames complementares elevou-se a um patamar de

importância a ser dividido com a própria anamnese.

Ocorre que não existe um exame absolutamente preciso. Algumas vezes, o

resultado de um exame é incorretamente anormal numa pessoa que não apresenta

a doença (resultado falso-positivo). Outras vezes, o resultado do exame é

incorretamente normal numa pessoa que apresenta a doença (resultado falso-

negativo). Os exames são avaliados em termos de sua sensibilidade (a

probabilidade de seus resultados serem positivos quando existe uma doença) e de

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sua especificidade (a probabilidade de seus resultados serem negativos quando não

existe uma doença) 91.

Um exame muito sensível dificilmente deixa de detectar uma doença em

pessoas que a apresentam. Contudo, ele pode indicar erroneamente a presença da

doença em pessoas saudáveis. Um exame muito específico apresenta uma chance

mínima de indicar a presença da doença em pessoas saudáveis. Entretanto, ele

pode não detectar a doença em algumas pessoas que a apresentam. Os problemas

de sensibilidade e de especificidade podem ser em grande parte superados pelo uso

de vários exames complementares diferentes. É o que ocorre, por exemplo, em uma

pessoa com um resultado positivo de AIDS por meio de um exame muito sensível

que é re-testada com um exame mais específico. A jurisprudência nacional já se

manifestou sobre o assunto sob diversas formas, ora reconhecendo ora afastando a

responsabilidade civil de laboratório de análises clínicas em caso de resultado falso-

negativo.

O Min. Francisco Loureiro, ao decidir Ação de responsabilização civil,

reconheceu a responsabilidade da ré decorrente de erro laboratorial com

apresentação de resultado falso-positivo de HIV em exame de sangue, nos

seguintes termos:

Não versa o caso propriamente sobre erro médico, mas sim sobre a responsabilidade civil do laboratório de análises clínicas, de natureza objetiva, nos termos dos arts. 12 a 14 do CDC. Irrelevante a discussão de culpa dos prepostos da ré que colheram o material, ou que procederam a análise das amostras. O que se discute é a existência de fato do serviço, vale dizer, se tinha a segurança que dele esperava legitimamente o consumidor. A ocorrência de falsos-positivos não revela necessariamente ato culposo de prepostos do laboratório. Discute-se, ao contrário, se insere no risco da própria atividade, ou se há violação a deveres de esclarecimento e de informação. Não se vê em que a realização de prova pericial-médica em exame já ultimado poderia elucidar a questão. A ocorrência de falsos-positivos é sobejamente conhecida e quantificada tanto pela literatura médica como pela jurisprudência dos tribunais.”Agravo de Instrumento 994092817237 (6952124700)”. Relator (a): Francisco Loureiro. Comarca: Santo André. Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 13/01/2010. Data de registro: 28/01/2010. (Grifo nosso).

Em outro julgado, o mesmo ministro discorreu sobre a questão:

Ainda que o réu alegue a possibilidade de ocorrência de resultados falso-positivos em razão de reação cruzada ou em decorrência do stress imunológico, emerge do erro em obrigação de resultado o dever de indenizar.

91 Medicina Preventina – Volume II: Epidemiologia Analítica e Aplicada à Clínica. MedCurso 2005, p. 36.

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Não se cogita de culpa do réu, mas sim de vício do serviço, que não reúne a segurança que dele espera o consumidor. A responsabilidade dos bancos de sangue, hospitais e dos laboratórios é objetiva tornando impertinente, assim, a discussão sobre a culpa.

Citando ainda Hamid Charaf Bdine Júnior, o ministro ratificou seu

posicionamento:

Nas hipóteses, porém, que o erro de diagnóstico não decorre da culpa do médico, mas de erro do laboratório que realiza os exames, estar-se-á diante de responsabilidade objetiva regida pelo art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, pois paciente e laboratório são, respectivamente, consumidor e fornecedor, nos termos dos arts. 2a e 3r do Código de Defesa do Consumidor (Responsabilidade pelo Diagnóstico, in Responsabilidade Civil na Área da Saúde; diversos autores coordenados por Regina Beatriz Tavares da Silva, coleção Direito GV, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 100-01; no mesmo sentido, Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade Civil, p. 371). (...) Não se esqueça, ademais, ser a obrigação dos laboratórios de resultado, por se tratar de atividade altamente especializada e desenvolvida. O que promete é, mediante exame de material tirado do corpo do paciente, atestar a presença de certas substâncias.

Em São Paulo, não parece ser esse o entendimento predominante no

Tribunal de Justiça de São Paulo, que já opinou em diversas oportunidades no

sentido de que não há mesmo dever de indenizar nesses casos. A ampla maioria

das decisões reconhece que o resultado falso positivo num primeiro exame não é

hipótese rara no campo das ciências biológicas e pode mesmo ocorrer com certa

frequência:

INDENIZAÇÃO. Danos morais e materiais. Exame para pesquisa de anticorpos HIV que apresentou resultado diverso do correto. Procedência da ação. Inocorrência. Hipótese em que o "falso positivo" no exame ELISA não representou um serviço defeituoso, "in casu". Necessidade de dois exames complementares para o diagnóstico correto. Laboratório que não se vê obrigado à realização desses exames, que devem ser requisitados por médicos. Inteligência do artigo 14 da Lei n.8.078/90 - Recurso provido. (Apelação Cível n. 103.006-4 – São Paulo - Ia Câmara de Direito Privado - Relator: Guimarães e Souza-19.09.00-V.U.). INDENIZAÇÃO. Responsabilidade civil. Paciente que se submeteu ao exame de HIV, acusando falso positivo. Orientação para feitura de outros, com resultados negativos. Procedimento regular da Administração e seus prepostos. Culpa não comprovada, nem a responsabilidade objetiva da Municipalidade. Sentença de improcedência confirmada. Recurso não provido. Age com culpa quem, em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter atuado de outro modo. (Apelação Cível n. 42.705-5 - São Paulo - 4ª Câmara de Direito Público. Relator: Soares Lima - 16.12.99 - M.V.).

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também afastou a obrigação de

compensar os danos morais, na hipótese de equivocada detecção do vírus HIV, por

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ter o laboratório advertido a paciente quanto à necessidade de repetir o exame.

Invocou o relator dois fundamentos para concluir não ter havido falha no serviço,

bem como não ser legítima a expectativa do consumidor quanto à corresponder, o

resultado do exame, obrigatoriamente, à realidade: 1) o laboratório, antes de concluir

o resultado da primeira análise (na qual se constatou HIV reagente), repetiu o teste

sobre a amostra de sangue fornecida, revelando “toda a cautela possível no

exercício do seu mister”; 2) “a técnica utilizada no exame – enzimoimunoensaio – é

sensível, e não 100% específica”. Fatores externos como a gravidez ou alguma

infecção que cause baixa imunidade no paciente, podem torná-lo positivo. Daí

porque reconheceu a excludente de responsabilidade do art. 14, §4º do CDC: “o

grau de segurança passível de ser esperado, no caso em tela, é o correspondente

às possibilidade da ciência e da técnica que, por hora, não oferecem certeza no

tocante à existência de vírus HIV no paciente em uma primeira pesquisa, mas

somente ao final de uma série delas.”92

Em casos análogos ao presente, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu

a responsabilidade do laboratório que fornece laudo positivo de HIV, repetido e

confirmado, ainda com a ressalva de que poderia ser necessário exame

complementar, por se tratar de defeito no fornecimento do serviço93.

92 Responsabilidade do Fornecedor pelo Fato do Serviço. AIDS. Exame Laboratorial que Apontou Falso Positivo. A responsabilidade civil dos laboratórios por suposto defeito na prestação de serviços se sujeita à norma disposta no art. 14 do CDC, que oferece disciplina específica para o assunto. A noção de defeito na Lei 8.078/90 está diretamente relacionada à legítima expectativa de segurança do consumidor e, consequentemente, aos riscos que razoavelmente se esperam de um serviço. Nessa medida, não há como se considerar defeituoso um exame laboratorial que, embora equivocado, adverte em seu resultado a respeito da necessidade de repeti-lo. Informação que se justifica em razão de ser a técnica utilizada no teste sensível e não totalmente específica, podendo ser influenciada por fatores externos, inclusive, pela própria gravidez da apelante. Caracterizada a excludente de responsabilidade prevista no § 3º, do art. 14, do CDC, não há que se cogitar de indenização por danos morais. Apelo improvido. (Apelação Cível Nº 70002399590, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ary Vessini de Lima, Julgado em 06/12/2001) 93 (REsp 401592/DF, Rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j . 16.05.02; e REsp 258011/SP, Rei. Min.Carlos Alberto Menezes Direito, j . 09.11.04). Por outro lado, reconhecendo a responsabilidade dos prestadores de serviços médico-hospitalares, sob o fundamento de falta de dever de informação quando à possibilidade de resultado falso-positivo, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “CONSUMIDOR. EXAME LABORATORIAL. RESULTADO FALSO POSITIVO PARA SÍFILIS. AUSÊNCIA DE INFORMAÇÃO QUANTO Á (Sic) POSSIBILIDADE DE ERRO NO RESULTADO E DA NECESSIDADE DE CONFIRMAÇÃO COM A REPETIÇÃO DO EXAME. DANO MORAL CONFIGURADO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA DOS REQUERIDOS. PACIENTE GESTANTE. DEVER DE INFORMAÇÃO AO PACIENTE, INERENTE AOS PRESTADORES DE SERVIÇOS MÉDICO-HOSPITALARES, NÃO CUMPRIDO. PARTE AUTORA QUE NÃO RESTOU INFORMADA QUANTO À POSSIBILIDADE DO RESULTADO SER FALSO-POSITIVO. AUSENTE INFORMAÇÃO QUANTO À CARACTERÍSTICA DE MERA PRECAUÇÃO DO TRATAMENTO PRECONIZADO, NA EVENTUAL HIPÓTESE DO EXAME CONFIRMATIVO ACUSAR A DOENÇA. NEXO CAUSAL DEMONSTRADO. DANO MORAL CONFIGURADO. CONHECIMENTO ACERCA DA CONTAMINAÇÃO POR SÍFILIS QUE JÁ ENSEJA A DOR MORAL. REPERCUSSÕES

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Essa discussão também ocorre em exames de mamografia. O Tribunal de

Justiça de São Paulo reconhece a importância de melhor examinar a questão,

refutando a idéia de risco de atividade e admitindo a da excludente de

responsabilidade nos seguintes termos:

(...) Cabe ressaltar algumas limitações deste exame, tais como: alta densidade mamaria, localização do tumor e idade do paciente. Assim sendo, a mamografia apresenta taxa de falso negativo que normalmente são descritas no próprio laudo do exame. No caso específico da Sra. Ana Nadir, a mesma apresenta mamas altamente densas e um nódulo de localização difícil, tanto para diagnóstico clínico quanto radiológico. Remanesceram em aberto as questões sobre se a densidade da mama e a profundidade do tumor eventualmente complicariam o resultado do laudo e se o fato seria admissível pelos técnicos da área, inclusive acerca da incidência estatística do falso negativo, bem como se os dados de fl. 21 (últimas fotografias) foram adequadamente interpretados. Examinar melhor a hipótese do tal falso-negativo importa dever, pena de cerceamento de defesa, o que, no entanto, não conduzirá ao prejulgamento da demanda. Encerrada a instrução, no convencimento do subscritor ficou dúvida intransponível acerca da eventual circunstância liberatória, motivo pelo qual se anula a r. sentença94.

A literatura médica afirma que a presença de anticorpos dirigidos a outros

agentes infecciosos que podem ser antigenicamente similares ao HIV pode produzir

resultado falso positivo95. O teor da Portaria n° 488, de 17 de junho de 1998,

emanada do Ministério da Saúde, expressamente dispõe que o exame para

detecção do vírus HIV é falível, podendo apresentar os resultados de: reagente

DECORRENTES DOS FATOS NARRADOS QUE SE MOSTRAM SUFICIENTES A CARACTERIZAR E POTENCIALIZAR O ABALO MORAL EXPERIMENTADO PELA AUTORA, ULTRAPASSANDO A BARREIRA DO SIMPLES DISSABOR. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO SOPESADAS NO ARBITRAMENTO DO QUANTUM DA COMPENSAÇÃO. APELO PROVIDO”. (Apelação Cível Nº 70027104660, Décima Câmara Cível, Tribunal De Justiça Do RS, Relator: Paulo Antônio Kretzmann, Julgado Em 19/03/2009) 94 MAMOGRAFIA. Dano moral. Ação julgada procedente. Falso negativo. Cerceamento de defesa configurado. Utilidade das provas pericial e oral que não se pode rechaçar desde logo. Alegação da autora da ação de existência de falha no resultado de exame pré- operatório. Recurso provido na parte que reclamava anulação da r. sentença. (TJSP, Apelação Com Revisão 6839104000. Relator(a): Roberto Solimene. Comarca: Santos. Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 12/11/2009 Data de registro: 23/11/2009). 95 Doenças auto-imunes, como o lúpus eritematoso sistêmico, também podem causar resultados falso-positivos. A literatura científica documentou mais de 60-70 fatores diferentes que podem causar uma reação positiva nos testes de HIV, além da infecção por HIV passada ou presente — incluindo gripe, vacina contra gripe, herpes, artrite reumatóide, malária, tuberculose, anticorpos para hanseníase — e até mesmo gravidez. No caso do exame Elisa, cerca de 80% dos resultados positivos são seguidos por um exames Western Blot negativo e, consequentemente, considerados como falso positivo. O exame ELISA (do acrónimo inglês de Enzyme-Linked Immuno Sorbent Assay) foi o primeiro exame amplamente empregado. Ele tem uma alta sensibilidade. A baixa especificidade deste teste ocorre porque os anticorpos se ligam aos antígenos nos kits de exame "por acaso", mesmo que a pessoa nunca tenha sido exposta ao HIV.(Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Exame_de_HIV. Acesso em 03/03/2010).

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(positivo); não-reagente (negativo); ou fracamente reagente que são os chamados

falso-positivos ou falso-negativos96. Mas seriam, de fato, os resultados falso-

negativos ou falso-positivos um defeito do serviço médico? Estariam esses

resultados inseridos no risco da própria atividade?

Trata-se de uma questão delicada, cuja solução não é fácil.

As legislações de diversos países não adotam uma posição uníssona. Antonio

Herman de Vasconcelos e Benjamin diz que à exceção do direito francês, os demais

países reconhecem os riscos como excludente de responsabilidade (MUKAI et al

Apud PRUX, 2007).

O Código de Defesa do Consumidor optou por uma fórmula que não se refere

expressamente a serem os riscos excludentes de responsabilização para o

prestador. No artigo 10 dispõe que o fornecedor não poderá colocar no mercado

serviço (ou produto) que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade

ou periculosidade. No art. 14, §1º, incisos I e II, manda apurar a época do

fornecimento do serviço para se aferir se ele é um serviço defeituoso ou não, bem

como, para apurar quais os riscos que razoavelmente dele se possam esperar. E,

ainda, no §2º do mesmo artigo, dispõe que um serviço não é considerado defeituoso

pela adoção de novas técnicas97.

Em que pese eminentes doutrinadores98 e a parte da jurisprudência nacional

inferir que o Código de Defesa do Consumidor não inclui, entre as causas

exoneratórias, os riscos de desenvolvimento, por adotar um sistema de 96 Trata-se de um ato normativo editado com o objetivo de padronizar, nos serviços de saúde, o conjunto de procedimentos sequenciados, com vistas a maximizar o grau de confiabilidade dos resultados dos testes utilizados para a detecção de anticorpos anti-HIV, tendo em vista a possibilidade da ocorrência de resultados falso-positivos ou falso-negativos, em indivíduos com idade acima de 2 anos. Assim, padronizou os procedimentos sequenciados determinando numa primeira fase sejam realizados dois testes em paralelo, com antígenos e/ou metodologias distintas. Os que resultarem positivos ou discordantes são obrigatoriamente repetidos em uma nova amostra de sangue. Os que permanecerem positivos ou discordantes são analisados pelo Western blot, e os que neste último teste resultem negativo ou indeterminado são ulteriormente investigados para o HIV-2. .(Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Exame_de_HIV. Acesso em 03/03/2010) 97Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. 98 Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamin defendem que a lei brasileira, por ter adotado o sistema de responsabilidade civil objetiva por risco da atividade, não poderia exonerar o prestador quando na presença do risco de desenvolvimento.

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responsabilidade civil objetiva alicerçado no risco da atividade, parece que razão

não existiria para considerar-se à época em que um serviço foi colocado no mercado

caso não fosse para possibilitar a descaracterização do serviço como defeituoso

(MUKAI et al Apud PRUX, 2007).

O elemento central para a construção do conceito de defeito é a carência de

segurança. Porém, não é qualquer insegurança que transforma o serviço em

defeituoso. Conforme adverte Antonio Herman V. Benjamin, o Código não

estabelece um sistema de segurança absoluta para os serviços. O que se requer é

uma segurança dentro dos padrões da expectativa legítima dos consumidores. E

esta não é aquela do consumidor-vítima, mas, muito ao contrário, é a concepção

coletiva da sociedade de consumo do resultado e dos riscos que razoavelmente do

serviço se espera. Ou seja, se sabidamente tem-se que o resultado falso-positivo ou

falso-negativo de HIV num primeiro exame não é hipótese rara no campo das

ciências biológicas e pode mesmo ocorrer com certa frequência, trata-se de um

resultado e risco que razoavelmente dele se espera neste momento, que não tem o

poder de impor qualquer diligência que vá além do que é tecnicamente possível

neste momento99, não sendo possível considerar o serviço defeituoso. Ainda que se

trate de responsabilidade objetiva, constata-se que a inexistência de defeito no

serviço, além da culpa exclusiva da vítima ou ato ativo de terceiro, são causas que

excluem essa responsabilidade. Aqui tem perfeita aplicação a lição do insigne

Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin sobre o risco inerente e risco

adquirido. Risco inerente é o risco intrínseco, atado à sua própria natureza ou modo

de funcionamento, como por exemplo uma arma, uma faca afiada de cozinha etc.

Embora capaz de causar acidentes, se causarem não haverá defeito do produto ou

do serviço, pois a sua periculosidade era normal e conhecida. Assim, não responde

o fornecedor por não ser defeituoso o produto ou serviço nestas hipóteses, cabe-lhe,

no entanto, informar tais riscos ao consumidor, esclarecendo-lhe quaisquer dúvidas.

Neste sentido, a incerteza da ciência médica e as características particulares

inerentes ao paciente são consideradas riscos intrínsecos, não havendo que se falar

em defeito e, portanto, em responsabilidade civil, quando existentes complicações

(intercorrências) médicas.

99 Não é possível a aplicação do artigo 10 ao caso, pois a expressão “deveria saber” aí incluída não atinge os riscos de desenvolvimento, no caso, os resultados falso-positivos ou falso-negativos, visto que não tem o poder de impor qualquer diligência que vá além do que é tecnicamente possível no momento atual da ciência médica.

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Em suma, não há fundamento legal para se admitir responsabilidade civil por

defeito de serviço nos resultados falso-positivos ou falso-negativos, pois no caso, há

excludente de responsabilidade civil, qual seja a inexistência do defeito do serviço

tendo em vista a segurança que legitimamente dele se esperava.

3.4.2 Culpa no diagnóstico médico

O nexo que liga o agente à conduta pode ser o risco, nos casos de

responsabilidade objetiva, ou a culpa em sentido amplo, nos casos de

responsabilidade civil em sua modalidade subjetiva.

O dever de indenizar independente da culpa do agente nos casos em que a

conduta ou atividade represente risco para as demais pessoais passou a ser

admitido pela doutrina e jurisprudência de forma paulatina100 e, atualmente, está

prevista no art. 927, parágrafo único e no art. 932 do Código Civil de 2002101. O

Código de Defesa do Consumidor, art. 12, admite a responsabilidade objetiva pelo

fato do produto nas relações de consumo.

A culpa em sentido amplo se subdivide em dolo ou culpa em sentido estrito.

Nos casos em que a conduta é qualificada pela intenção de causar dano, há dolo;

nos casos em que a conduta é destituída desta qualidade, sendo decorrente da

violação do dever de cuidado, há culpa em sentido estrito. Portanto, o dolo

diferencia-se da culpa, pois o agente quer a ação e o resultado, ao passo que na

100 A doutrina passou a admitir a responsabilidade objetiva apoiada no art. 1.384, §1º, do Código Civil francês, que trata da responsabilidade por fato de terceiro e por fato da coisa. No Brasil, tal regulamentação estava disposta no art.1.521 do Código Civil de 1916. A tese de Alvino Lima, denominada Da culpa ao risco, constitui marco histórico na evolução da doutrina nacional sobre a matéria. Segundo o autor (Da culpa ao risco, São Paulo: Revista dos tribunais, 1960, p. 2), a crença antiga e tradicional sobre a teoria das obrigações e do contrato sofreu verdadeira revolução em razão dos perigos advindos dos novos inventos, fontes de inúmeros acidentes no sentido de materializar a responsabilidade, numa demonstração de que o Direito é, antes de tudo, uma ciência nascida da vida e feita para disciplinar a própria vida. 101 De acordo com a doutrina brasileira, o risco pode ser classificado em risco proveito, risco profissional, risco excepcional, risco criado e risco integral. O risco proveito refere-se ao ônus decorrente da atividade perigosa. No entanto, cabe à vitima a prova de que o causador do dano tira proveito (bônus) da atividade desenvolvida para que suporte o ônus, encargo este que remete ao problema da prova contido na responsabilidade civil subjetiva. O risco profissional refere-se às relações de trabalho, em que o empregador responde pelos danos causados ao empregado, em decorrência da atividade por este desenvolvida. O risco excepcional se refere às atividades com elevado grau de perigo para as pessoas que a desempenham diretamente e para os membros da coletividade. É o caso da energia elétrica. Por fim, o risco integral é o mais elevado grau de responsabilidade objetiva, não admitindo qualquer causa excludente, mesmo nas situações de caso fortuito ou força maior. É o caso dos danos decorrentes da atividade nuclear. (SANTOS, Romualdo Baptista dos. Teoria Geral da Responsabilidade Civil. In Responsabilidade civil. Coordenação Vaneska Donato de Araújo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. – Direito civil; 5/ orientação Giselda M. F. Novaes Hironaka, p.43).

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culpa em sentido estrito ele quer apenas a ação, mas não quer o resultado,

conquanto seja possível prever a sua ocorrência102.

Maria Helena Diniz (2008), com base na definição de René Savatier,

conceitua a culpa com a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e

observar, pressupondo um dever violado (elemento objetivo) e a imputabilidade do

agente (elemento subjetivo) 103.

A conduta culposa104 pode ser exteriorizada sob as formas de negligência,

imprudência ou imperícia.

Segundo José de Aguiar Dias, negligência é a inobservância das normas que

nos ordenam operar com atenção, capacidade, solicitude e discernimento.

Imprudência, por sua vez, é a precipitação, no procedimento inconsiderado, sem

cautela, em contradição com as normas do procedimento sensato. E imperícia, a

102 Trata-se de uma classificação relevante no âmbito do Direito Penal, que tipifica diversas condutas

conforme a modalidade da culpa, havendo ainda distinção entre dolo eventual e culpa consciente: em ambos, o resultado é previsto, mas na culpa consciente (ou falha grosseira) o agente crê sinceramente ser capaz de evitá-lo, ao passo que no dolo eventual, ele assume o risco de produzi-lo. No âmbito do Direito Civil, a distinção é relevante, pois em caso de culpa o juiz pode reduzir equitativamente o valor da indenização (art.944, parágrafo único). Aliás, vale ressaltar que, porquanto o resultado alcançado não seja querido pelo agente, tem-se que era possível prever a sua ocorrência. Na conduta culposa o resultado é previsto ou pelo menos previsível, mas o agente não o evita. A essência da culpa em sentido estrito é, portanto, a violação do dever de cuidado. 103 A autora reconhece como fonte das relações obrigacionais o fato jurídico devidamente qualificado, isto é, a lei e a vontade humana, na qual se encontra o contrato, a declaração unilateral de vontade e o ato ilícito. 104 Na vigência do Código Civil de 1916, assumia importância a classificação da culpa em culpa in

eligendo, in vigiando e in custodiando. A primeira se caracterizava pela má escolha dos empregados ou propostos, por parte do patrão ou comitente; a culpa in vigiando se referia à falta de atenção e cuidado para com o comportamento das pessoas que estavam sob a guarda ou responsabilidade do agente; a culpa in custodiando se referia ao descumprimento do dever de guarda de animais ou coisa. Reflexo da evolução da responsabilidade subjetiva para objetiva, tais hipóteses (denominadas responsabilidade por fato de terceiros e de responsabilidade por fato das coisas e animais) eram admitidas pela doutrina e jurisprudência como casos de culpa presumida, criando uma presunção relativa de culpa e invertendo o ônus da prova. Atualmente, de acordo com o Código Civil de 2002, art.933, tais hipóteses são consideradas casos de responsabilidade objetiva. Em razão disso, a distinção perdeu a razão de ser. Há também no direito brasileiro a culpa concorrente, que é a participação culposa da vítima na produção do resultado. Nesses casos, a doutrina recomenda que a indenização seja repartida proporcionalmente aos graus de culpa do agente e da vítima, nos termos do art. 945, do Código Civil.

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falta de habilidade105. Em qualquer dos casos, a conduta é voluntária com resultado

involuntário106.

Não é fácil a apreciação da culpa por erro de diagnóstico. Isto porque, em

face de um doente em estado grave, o médico é por vezes obrigado a tomar

decisões num espaço de instantes, fazer um diagnóstico e escolher a terapia. A

ilicitude e licitude podem não apresentar contornos definidos, sujeitando a sorte do

médico à sorte do paciente. A fim de afastar esses contornos indefinidos, passa-se a

apontar alguns critérios identificadores do erro de diagnóstico.

A definição da culpa médica por erro de diagnóstico deve ser contextualizada

tendo em vista os seguintes elementos: a) a insistência em manter-se dentro de uma

conduta não-satisfatória ou inadequada; b) a falha na correlação dos elementos

colhidos dos diversos métodos de diagnóstico; c) o custo-benefício em relação

àquele paciente; d) o tempo indispensável para o diagnóstico; e) as especiais

qualificações do profissional.

Pela ordem, passa-se a analisar a insistência numa conduta insatisfatória ou

inadequada.

Hildegard Taggesell Giostri afirma que a culpa por erro de diagnóstico

consiste na insistência em manter-se dentro de uma conduta não satisfatória e não

possibilita a melhora ou a cura da patologia. Para a autora, a resposta insatisfatória

ao tratamento previsto para um primeiro diagnóstico exige que o médico trace outra

linha de conduta, pedindo novos exames, partindo para outra abordagem clínica a

fim de obter uma conclusão diagnóstica mais precisa, vez que um mesmo sintoma

pode ser característico de inúmeras doenças. Em suma, segundo a autora, a culpa

na responsabilidade civil médica em diagnóstico é a insistência em uma conduta

sem resultado positivo para a melhora ou a culpa do paciente (GIOSTRI, 2005).

Oportuno trazer à colocação o escólio de Miguel Kfouri Neto:

105 (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade, cit., p. 149). Somente para esclarecer: A causa de aumento prevista no §4º do art.121 do Código Penal não se confunde com o conceito de imperícia, já que nesta pressupõe-se que a vítima tenha morrido pela falta de habilidade do agente na execução de alguma conduta. Por outro lado, na causa de aumento, existe habilidade para a execução do ato, mas o agente, por descaso, desleixo, deixa de tomar alguma cautela que era obrigatória no desempenho da arte, profissão ou ofício e esta falta de cautela é que acaba gerando a morte da vítima. 106 Conforme já apontado, não se procura determinar se o efeito do ato, ou se o resultado danoso foi deliberado ou consciente. O que se exige é que a conduta do agente seja voluntária, realizada por ação ou omissão. Daí alguns autores afirmarem que a culpa é uma noção objetiva.

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A determinação da responsabilidade civil médica, decorrente de erro de diagnóstico, revela-se muito difícil, porque se adentra a um campo estritamente técnico, o que dificulta enormemente a apreciação judicial, principalmente porque não se pode admitir em termos absolutos a infalibilidade médica. Por outro lado, como veremos, condições pessoais do próprio paciente também podem determinar tais erros. Caracteriza-se pela eleição do tratamento inadequado à patologia instalada no paciente, com resultado danoso. O erro de diagnóstico é, em princípio escusável, a menos que seja por completo, grosseiro. Assim, qualquer erro de avaliação diagnóstica induzirá responsabilidade se um médico prudente não o cometesse, atuando nas mesmas condições externas que o demandado.

O autor ensina ainda que o diagnóstico "não é uma operação matemática".

A responsabilidade civil médica quanto ao diagnóstico, importa em

reconhecimento quando há erro grosseiro107.

Em caso a doença comporte características ou sintomas ambíguos, o médico,

se necessário, através do estudo de literatura mais credenciada ou de outros

métodos de diagnóstico, deverá procurar obter uma explicação para as suas

possíveis origens e para a conduta a ser aplicada. Assim, tradicionalmente, tem-se

entendido que o erro de diagnóstico e a escolha de uma terapia que não funcionou

no paciente não implicam, necessariamente e, por si só, em responsabilidade do

médico108. Nesse diapasão, já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:

O paciente Michel, segundo a inicial, recebeu tratamento por uma suposta Neurocisticercose, quando, na verdade, padecia de câncer na cabeça, enfermidade diagnosticada combate ao resultado do primeiro diagnóstico, ora rotulado de errôneo. Entretanto, não se entrevê na hipótese dos autos a prática de erro grosseiro no diagnóstico de neurocisticercose. Ainda que posteriormente afastada a referida enfermidade, não se pode olvidar que o diagnóstico foi extraído a partir de exames solicitados pelo réu. Assim é. Os exames de fls. 156 e 157, Ressonância Magnética do Encéfalo, contemporâneos à intervenção do réu no tratamento do autor MICHEL, indicavam a possibilidade de neurocisticercose "de forma racemosa e difusa" (exame de novembro de 2002) e "em sua forma racemosa" (exame de agosto de 2 002). Ora, se os exames de fls. 156 e 157 indicavam a possibilidade da neurocisticercose, não se pode falar em erro de diagnóstico grosseiro, capaz de gerar o reconhecimento da culpa do médico. Nas circunstâncias, o requerido não elaborou o diagnóstico de neurocisticercose a esmo, de forma Aleatória; estava calcado nos exames mencionados, dispensando ao paciente o tratamento correspondente. Se, posteriormente, houve a descoberta da real enfermidade do autor Michel, esse fato, per si, não implica na responsabilidade do médico, vez que o diagnóstico não é uma operação matemática (...)109 (Apelação 994080452164 (6129084600). Relator(a): Donegá Morandini. Comarca: Poá. Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 15/12/2009. Data de registro: 07/01/2010).

107 (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 5a Edição, Editora Revista dos Tribunais, página 89). 108 CASTRO, João Monteiro de. Responsabilidade civil do médico. São Paulo: Método, 2005, p. 103. 109 (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil médica. 5ª Edição revista e atualizada. Editora Revista dos Tribunais, página 90).

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Nesse sentido, verifica-se que não ocorreu erro de diagnóstico como também a falha de serviço dos requeridos porque foi observado o mínimo exigível e ao alcance dos médicos para se chegar ao diagnóstico do paciente e ainda no modo de conduzir a um tratamento adequado, levando à convicção que o atendimento recebido bem como a atuação profissional dos requeridos não se configurou feita com negligência, imprudência, imperícia ou erro grosseiro. (...) A culpa do médico, pela natureza do contrato que firma com o cliente, somente será configurada quando os seus serviços tiverem sido prestados fora dos padrões técnicos. Por isso, o fato constitutivo do direito de quem pede indenização por erro médico se assenta no desvio de conduta técnica cometido pelo prestador de serviços. E esse desvio de conduta, no caso não ficou evidenciado, pois os apelados utilizaram todos os recursos necessários para o melhor diagnóstico da apelante110.

A reiteração da conduta torna mais fácil a identificação do erro e de eventual

dano sofrido pelo paciente, principalmente o dano decorrente da perda de uma

chance de cura, que será estudo em breve. Nada impede, todavia, que em razão de

um erro de diagnóstico (isolado, sem reiteração) - anatomopatológico, por exemplo -

o paciente seja submetido a uma cirurgia desnecessária em que seja retirado um

órgão. É possível vislumbrar o dano (especialmente moral), mesmo não havendo

reiteração de conduta. Nestes casos, devem-se apenas ponderar os critérios de

sensibilidade e especificidade do método de diagnóstico complementar.

A doutrina aceita como erro escusável o denominado “erro profissional” (erro

de técnica), isto é, o erro decorrente de técnica inadequada para o caso, desde que

se cuide de técnica conhecida, usual e aceita, levando em consideração os riscos e

benefícios, de forma escalonada111. Não se confunde com o “erro médico”, ou seja,

o erro decorrente de técnica correta, mas atuação do médico incorreta ou

desastrosa. Segundo Rui Stoco (2001), o erro profissional não pode ser objeto de

valoração pelo juiz, nem pode ser considerado imperícia, imprudência ou

negligência.

Outro elemento de identificação refere-se ao tempo que o médico pode

dispender a fim de remover dúvidas que certo diagnóstico lhe suscita, até concluir o

110 TJSP, Apelação Com Revisão 5661114000. Relator(a): Beretta da Silveira. Comarca: Santo André. Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 27/05/2008. Data de registro: 04/06/2008 111 A Organização Mundial de Saúde editou, em 1990, um manual intitulado “Escolha apropriada de técnicas de diagnóstico por imagem na prática médica”, em que reprova a conduta passiva do médico que submete o paciente a toda uma série de exames, aguardando que ao menos um deles permita fazer o diagnóstico. Segundo o artigo: “Submeter o paciente a toda uma série de exames e esperar que pelo menos um deles permita o diagnóstico é uma forma inaceitável de exercer a medicina por causa do custo e do risco de exposição a radiações que acarretam exames necessários”. (REZENDE, Joffre M. De, O uso da tecnologia no diagnóstico médico e suas consequências. Disponível em: http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/tecnologia.htm. Acesso em: 25 de julho de 2009).

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diagnóstico, e definitivamente afastar qualquer desídia (negligência) na sua atuação.

O problema terá que ser encarado caso a caso, não sendo possível formular uma

resposta aplicável a todos. A jurisprudência pátria já se manifestou sobre a demora

na identificação da enfermidade nos seguintes termos:

Apelação Cível. Responsabilidade civil. Óbito de paciente em hospital decorrente de peritonite, pancreatite necro-hemorrágica - Paciente que comparece ao nosocômio no dia anterior a sua internação e é dispensado sem correta avaliação de seu quadro - Responsabilidade civil do hospital caracterizada - Caracterização de defeito do serviço - Inteligência da norma do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, que deve ainda ser interpretada segundo o "state of the art” (sic), ou seja, o nível do conhecimento técnico e científico existente à época dos fatos - Pensão devida desde a data do óbito, fixada em quantia equivalente a um salário mínimo - Indenização por danos morais também devida, arbitrada em R$ 46.500,00. Dá-se provimento ao recurso. (...) Ora, no estágio atual do conhecimento médico, dores abdominais agudas na forma apresentada pelo paciente e não negada, indica a imediata realização de ultrassonografia, exame hoje considerado bastante simples, o qual teria permitido o rápido diagnóstico da doença que acometia o paciente, para que fosse iniciado de pronto seu tratamento de forma correta. Por outro lado, também sabido é que os exames de diagnóstico são meramente complementares, não podendo o médico ignorar o exame clínico, que tem início com a anamnese, prossegue com o exame físico do paciente e termina com o estudo dos exames complementares. Isso obviamente não ocorreu pelo incorreto atendimento do paciente na sua primeira visita ao hospital, quando foi o mesmo liberado com prescrição de simples remédios para o estômago, e tampouco na sua segunda internação, já que desde sua entrada no nosocômio por volta das 5:30 horas da manhã até o início do tratamento às 16:50 horas houve o transcurso de tempo excessivo, que levou à piora de seu estado clínico, observando-se que, quando do início do tratamento correto, sua situação já era grave a ponto de determinar sua internação na UTI às 17 horas, onde apresentou hipotensão, má perfusão periférica e sinais de choque (fls. 182). O próprio perito informa que a pancreatite é "doença de evolução rápida e grave" (fls. 184), o que permite concluir que a demora em seu correto diagnóstico e início de tratamento levou ao agravamento do estado do paciente, que foi a óbito112. A presente indenizatória está calcada na alegação de tardio diagnóstico de apendicite na autora, causando-lhe, em decorrência, os danos reclamados na inicial, notadamente a implantação de bolsa de colostomia por três meses. Informa-se que a autora passou por diversas vezes pelo atendimento das rés, notadamente aquele sob a responsabilidade da recorrida MEDIAL SAÚDE, e que, por defeito dos serviços por elas prestados (artigo 14, parágrafo 1º, CDC), houve falha quanto ao pronto diagnóstico da enfermidade. (...) O diagnóstico de apendicite aguda é extremamente difícil. Consta, a respeito, no laudo pericial às fls. 689: Indiscutivelmente o diagnóstico de certeza de apendicite aguda pode ser, por vezes, extremamente difícil, mesmo para cirurgiões experientes e aparentemente, este caso sob exame foi um desses (...) Inexigível das rés, em decorrência, o pronto diagnóstico da apendicite, inexistindo o defeito do serviço alardeado na inicial.

112 TJSP. Apelação 994050430570 (3899594900). Relator(a): Christine Santini. Comarca: Osasco.

Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 27/01/2010. Data de registro: 09/02/2010.

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(...) Não há que se falar, por fim, na responsabilidade fundada no risco da atividade desenvolvida pelas rés (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil). A medicina não é ciência exata; a demora na identificação da enfermidade, desde que observados os protocolos estabelecidos, não gera o dever de indenizar. A obrigação aqui é de dispensar o tratamento adequado ao paciente, inexistindo garantia de cura. Se aplicada a responsabilidade fundada no risco à atividade médica, o insucesso do tratamento (sem culpa do profissional), fato absolutamente normal nessa atividade, redundaria no dever de indenizar, transformando a arte médica em ciência exata, o que, evidentemente, não pode ser admitido.113.

O último elemento de identificação do erro do diagnóstico refere-se às

especiais qualificações do profissional. Assim, é pouco razoável esperar a mesma

competência e experiência profissional de médicos estagiários ou em princípio de

carreira que só muitos anos de treino profissional são suscetíveis de propiciar. Por

outro lado, é razoável exigir do profissional experiente, que se arroga a qualidade de

especialista, maior grau de perícia e competência que dele se espera e se exige.

Mas se porventura o médico se arroga ter conhecimentos superiores ao que

efetivamente detém, exercendo a atividade sem especialidade para tanto, poderá

ser exigido maior grau de perícia e competência, como se especialista fosse. O

critério que permitirá avaliar a conduta efetivamente observada é do bom profissional

da categoria ou especialidade.

A observância de todos esses elementos, no entanto, não significa dizer que

seja inadmissível o diagnóstico inexato. Trata-se apenas de parâmetros a fim de

auxiliar a identificação da falha de diagnóstico, pois se deve sempre lembrar os

limites do diagnóstico e da própria medicina. Em razão dessa complexidade, parte

da jurisprudência brasileira admite a impossibilidade de diagnóstico exato, que pode

levar o profissional à escolha de uma conduta errônea. Assim, é razoável admitir

erro intrínseco às limitações da profissão e da natureza humana como um erro

escusável.

Enfim, a literatura voltada para o estudo dos erros na área de saúde tem

crescido nos últimos anos, porém ainda há uma grande diversidade nos conceitos, o

que, muitas vezes, impossibilita uma homogeneização das informações coletadas e,

consequentemente, suas comparações. Ademais, o erro de diagnóstico revela-se

muito difícil porque se adentra a um campo estritamente técnico. Não obstante,

tendo em vista o objetivo do trabalho de fornecer medidas capazes de prevenir os

113 TJSP. Apelação 994080424203 (6151574000). Relator(a): Donegá Morandini. Comarca: São

Paulo. Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 15/12/2009. Data de registro: 07/01/2010.

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questionamentos do paciente-consumidor relativos aos serviços de saúde utilizados

por ele, foi constatado que critérios como tempo, sensibilidade e especificidade do

método de diagnóstico são fatores imprescindíveis para a identificação do erro

médico.

3.4.3 Dano médico, perda de uma chance e erro de

diagnóstico

Logo de início é preciso assentar que o dano é elemento ou requisito

essencial na etiologia da responsabilidade civil114.

Dano, segundo Maria Helena Diniz (2009), pode ser definido como a lesão

(diminuição ou destruição) que, devido a certo evento, sofre uma pessoa, contra a

sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral (Grifo

nosso). Dano, em síntese, é um prejuízo causado a outrem.

Para que o dano seja reparável, ensina a autora que será imprescindível a

ocorrência dos seguintes requisitos: diminuição ou destruição de um bem jurídico,

patrimonial ou moral, pertencente a uma pessoa; efetividade ou certeza do dano;

causalidade; subsistência do dano; legitimidade e ausência de causas excludentes

de responsabilidade115.

A diminuição ou destruição de um bem jurídico, patrimonial ou moral, refere-

se não só ao dano emergente, mas também ao lucro cessante. Constitui lucro

cessante a perda de uma chance, estudada no próximo capitulo.

114 Nesse particular, a responsabilidade civil se diferencia nitidamente da responsabilidade penal, posto que esta pode ser relacionada à simples conduta do agente, nos crimes denominados de mera conduta, sendo inadmissível a responsabilidade civil por mera conduta. 115 Segundo a autora (Curso de direito civil, cit., p. 67.), todo prejuízo é o dano a alguém. Assim, não há dano sem lesado. A efetividade do dano significa que a lesão não pode ser hipotética ou conjectural, mas sim real e efetivo, ainda que futuro. Diz-se atual o dano que já existe ou já existiu no momento da ação da responsabilidade, fundado num fato preciso e não sobre uma hipótese. Excepcionalmente, sem aprovação unânime na doutrina, admite-se indenização por prejuízo futuro, quando este prejuízo é a consequência de um dano presente com elementos de apreciação do prejuízo futuro, isto é, potencial. A certeza do dano, portanto, constitui sempre uma constatação de fato atual que poderá produzir, no futuro, uma consequência necessária. Caio Mario da Silva Pereira (Responsabilidade civil, cit., p. 42).também destaca que se a ação se fundar em mero dano hipotético, não cabe reparação. Esta somente será devida se se considerar, dentro da idéia de perda de uma oportunidade e puder situar-se a certeza do dano A causalidade, por sua vez, significa que deverá haver uma relação entre a falta e o prejuízo causado, direta (imediata) ou indiretamente (mediatamente, dano por mero reflexo, ou como preferem os franceses,dano por ricochete). A subsistência do dano consiste na ausência de reparação do dano pelo lesante até o momento da reclamação. A legitimidade exige que a vítima seja titular do direito atingido. Por fim, a ausência de causas excludentes de responsabilidade significa que deve persistir a relação de causalidade entre a conduta do lesante e o prejuízo sofrido pelo lesado.

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O dano, no âmbito da responsabilidade civil médico, consiste principalmente

na lesão ao direito da personalidade, dano ao corpo, dano estético e dano moral.

Os direitos da personalidade destinam-se a resguardar a dignidade, mediante

sanções, que devem ser suscitadas pelo ofendido, conforme prescreve o art. 12 do

Código Civil.

O dano ao corpo constitui ilícito previsto no Código Civil, art. 949, bem como

no Código Penal, art. 129, e, em regra, repara-se pela cura, ou indiretamente,

através de indenização da vítima das despesas com o tratamento e de

recomposição do patrimônio do lesado pelo pagamento dos lucros cessantes até o

final da convalescença, além de algum prejuízo que o ofendido prove haver

sofrido116.

O dano estético é também uma lesão a direito da personalidade. Trata-se de

um dano moral decorrente do enfeamento da vítima117.

Wilson Melo da Silva, precursor do dano moral no Brasil, ensina que:

Danos morais são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoal natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico118.

Maria Helena Diniz, por sua vez, subdivide o dano moral em duas espécies:

dano moral direto e dano moral indireto. Direto é a lesão a um interesse que visa à

satisfação ou gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da

personalidade; indireto é a lesão a um interesse patrimonial, que produz efeitos a um

bem extrapatrimonial. No caso de dano decorrente de erro médico culposo, o dano

classifica-se como direto119.

116 Em apertada síntese, em caso de homicídio, segundo o Código Civil, art.948, dever-se-á indenizar, sem excluir outras reparações, as despesas de tratamento médico-hospitalar, funeral da vítima, aquisição de jazido perpétuo e o luto da família, bem como a prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida do mesmo. 117 Segundo Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, cit., p.82), “é toda alteração morfológica do indivíduo que, além do aleijão, abrange as deformidades ou deformações, marcas e defeitos, ainda que mínimos,e que impliquem, sob qualquer aspecto, um afeamento da vítima consistindo numa simples lesão desgostante ou num permanente motivo de exposição ao ridículo ou de complexo de inferioridade, exercendo ou não influência sobre sua capacidade laborativa”. 118 CASTRO, João Monteiro de. Da responsabilidade civil médica. - São Paulo: Método, 2005, p.33. 119 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, cit. p. 64.

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Vale lembrar que a reparação120 do dano moral foi introduzida no direito

positivo brasileiro pelo art. 5º, inciso X, da Constituição Federal.

A quantificação do dano patrimonial não enseja dificuldades, por tratar de

parâmetros objetivos, diferentemente do que ocorre com a valoração tipicamente

subjetiva do dano extrapatrimonial. Na área médica, tem-se observado que os mais

triviais aborrecimentos do dia-a-dia hoje estão sendo equiparados a um sofrimento

qualificado como insuportável; resultado de forte dor moral. Cabe ao juiz não

permitir a banalização do instituto tão importante e a duras penas conquistado,

conforme ponderado no voto vencido do Des. Cristiano Ferreira Leite:

Da leitura de tal declaração extrai-se que, ainda que a responsabilidade da ré seja objetiva, tal circunstância, por si só, não autoriza a condenação imposta à demandada, já que, embora admitida a troca de exames, tal equívoco foi logo solucionado, o que não poderia causar a repercussão alegada pela autora. O fato é que a dinâmica dos fatos não chega a alcançar a pretensão de indenização a título de danos morais reclamada. Explico: A autora não se viu diante da possibilidade de ser portadora do vírus HIV, por exemplo, ou de qualquer outra doença grave. A notícia de que se encontrava com cisto ovariano não chegou a interferir intensamente na sensibilidade moral da demandante. Tanto que nem chegou a realizar os exames pré-operatórios solicitados por sua médica. E a ré percebeu o erro poucos dias depois do fato, solicitando que a autora realizasse novo exame. Para que surja o dever de indenizar é necessário que se torne absolutamente certo, induvidoso, que entre a conduta da ré e o prejuízo alegado pela autora, exista nexo de causalidade, o que não se vislumbra no caso "sub judice". Ressalte-se que são corriqueiros os pedidos de indenização sob esse fundamento, e os mais triviais aborrecimentos do dia-a-dia hoje estão sendo equiparados a um sofrimento qualificado como insuportável; resultado de forte dor moral. No entanto, a doutrina recomenda que na apreciação de fatos desta natureza o magistrado deve analisar a matéria com cautela, a evitar o incentivo da indústria do dano moral, posto que inadmissível se banalizar instituto tão importante e a duras penas conquistado. Não se pode olvidar, também, que indenizar significa reparar, restabelecer, nunca enriquecer o indenizado

121.

120 Por não ter conteúdo econômico, os ditos danos morais não comportam indenização (não podem

ser convertidos em pecúnia), mas apenas reparação. 121 TJ/SP. Apelação Com Revisão 1038369009. Relator(a): Sá Duarte. Comarca: São Paulo. Órgão

julgador: 33ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 01/12/2008. Data de registro: 12/01/2009.

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A esse respeito, vale transcrever o julgado:

A matéria de mérito cinge-se em saber o que configura e o que não configura o dano moral. Na falta de critérios objetivos, essa questão vem se tornando tormentosa na doutrina e na jurisprudência, levando o julgador a situação de perplexidade. Ultrapassadas as fases da irreparabilidade do dano moral e da sua inacumulabilidade com o dano material, corremos agora o risco de ingressarmos na fase da sua industrialização, onde o aborrecimento banal ou mera sensibilidade são apresentados como dano moral, em busca de indenizações milionários. Nessa linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-se aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras a ponto de romper o equilíbrio psicológico, do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar os danos morais, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos.122

De acordo com o Código Civil, art. 402 e 403, o dano patrimonial abrange o

dano emergente (ou dano positivo) e o lucro cessante (dano negativo ou frustrado).

Dano positivo ou emergente é a diminuição real e efetiva no patrimônio do

lesado, seja em razão da depreciação do ativo, seja porque aumentou o passivo.

Dano negativo ou lucro cessante ou frustrado, por sua vez, é a privação de ganho

pelo lesado tendo em vista o desenvolvimento normal dos acontecimentos

(previsibilidade objetiva). Trata-se não só de uma eventual perda de beneficio, como

também da perda da chance.

A chance frustrada caracteriza-se, em termos gerais, pela perda de obtenção

de um benefício na esfera jurídica do lesado em razão de um ato comissivo ou

omissivo do lesante (DINIZ, 2009).

Diferentemente do que ocorre com o dano patrimonial positivo, a

responsabilidade civil pela perda da chance mede-se pelo maior ou menor grau de

probabilidade de sua obtenção ou cessação do prejuízo, ou melhor, mede-se pelo

equivalente daquela oportunidade. Não obstante o critério, a avaliação da perda é

difícil, por não ser mais possível a condução da vítima ao statu quo ante.

No campo da responsabilidade civil médica em erro de diagnóstico, tem sido

aplicada a teoria “perte d´une chance”, dentre outros, nos casos de diagnóstico

122 (Apelação Cível n. 8218/95 - TJ/RJ - Des. SÉRGIO CAVALLIERI FILHO).

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incorreto, gerando tratamento equivocado; bem como diagnóstico correto, mas

terapia incorreta123.

Na doutrina brasileira, tanto os autores clássicos124 quanto os

contemporâneos125 acabam por aceitar a teoria da responsabilidade civil por perda

de uma chance. Em alguns julgados dos tribunais brasileiros, a perda da chance é

tratada como uma modalidade de dano moral; em outras, é inserida no conceito de

lucro cessante e poucas vezes é tratada como modalidade de dano emergente.

Outra teoria que vem em socorro do paciente, facilitando a responsabilização

é a da “res ipsa loquitur”, isto é, a de que a coisa fala por si mesma126. Trata-se de

uma presunção de culpa do médico, conforme se verá em capítulo próprio.

O que é possível observar é que nem todo dano é ressarcível127, em especial

no âmbito da responsabilidade civil médica.

123 GONZÁLEZ, José Maria Miquel; MORILLO, Andrea Márcia et all. OLIVEIRA, Guilherme (coord.). Responsabilidade civil dos médicos. Centro de Biomédico Biomédico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.91. 124 Dentre os autores clássicos destacamos: Agostinho Alvim, Aguiar Dias, Caio Maio da Silva Pereira;

dentre os contemporâneos, apontamos: Silvio Venosa, Sergio Savi e Rafael Pettefi da Silva. Agostinho Alvim afirma, ao tratar da perda de prazo por parte do advogado para interposição de recurso, que seria possível um dano diverso da perda da causa, consistente na perda da chance de ver a matéria reexaminada pelo Tribunal, dano este passível de certeza e de quantificação. Assim, o autor reconhece expressamente, o valor patrimonial da chance perdida e admite a aplicação da responsabilidade civil por perda de uma chance em nosso ordenamento jurídico. (ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências.3.ed. atualizada, Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1965, p.190-91). José de Aguiar Dias admite a perda de uma chance, encontrando dificuldades apenas na forma de quantificar o dano decorrente da perda da chance por tratar a hipótese como espécie de lucros cessantes. (DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil, 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, v.2, p.721, nota 33). Dentre os autores contemporâneos, há também Sérgio Cavalieri Filho, que adota a mesma posição de José de Aguiar Dias, admitindo a indenização por perda de uma chance como sendo lucro cessante. (CARVALHO SANTOS, J.M. Código Civil Brasileiro Interpretado, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, v.XXI, p.321-322). Caio Maria da Silva Pereira também se mostra favorável à teoria desde que, mais do que uma possibilidade, haja uma probabilidade suficiente, real e séria. (PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil, 9.ed. ampliada, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.42). 125 Silvio de Salvo Venosa afirma ser a perda de uma chance um terceiro gênero de indenização,

posicionado entre o dano emergente e o lucro cessante. (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil, 3.ed., São Paulo: Atlas, 2003, p.198 e 200). Rafael Pettefi da Silva afirma que a responsabilidade civil por perda de uma chance encontra-se atualmente dividida: ora é utilizada como categoria de dano específico, independente do dano final; ora é utilizada como recurso à causalidade parcial. Segundo o autor, ambos os casos de utilização da noção de perda de uma chance podem ser utilizados na responsabilidade civil médica, dependendo sempre do caso concreto. (PETTEFI DA SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance no Direito Francês, dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, 2001, sob a orientação da Profa. Dra. Judith Martins Costa, no prelo, p.124-125). 126 GONZÁLEZ, José Maria Miquel; op.cit., p.91. 127 José de Aguiar Dias ensina que o direito não se insurge contra toda e qualquer lesão de interesse, mas somente contra a que, de acordo com a ordem jurídico, deva ser evitada ou reparada, isto é, contra o dano antijurídico. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. – 7.ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 795)

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De acordo com Rui Stocco, a expressão “iatrogenia (iatro + geno + ia) é

definida como a alteração patológica provocada no paciente por tratamento de

qualquer tipo” (STOCO, 2001, p. 105). Assim, a expressão traduz um acontecimento

ou resultado danoso decorrente da atuação médica

Segundo o autor, há três tipos de iatrogenia: a) lesões previsíveis, como as

decorrentes de cirurgias mutiladoras (amputação de membros, reações alérgicas a

medicamentos, contraste); b) lesões inesperadas e imprevisíveis; c) lesões

decorrentes de falha no comportamento humano (confusão do membro sujeito à

cirurgia para amputação).

No primeiro caso, em regra, não há responsabilidade civil médica, salvo na

hipótese de descumprimento do dever de informação quanto aos riscos graves

(ainda que ocorram em baixa frequência) e obtenção do consentimento informado.

No segundo caso, não é possível vislumbrar responsabilidade civil médica, pois não

sendo previsível o risco, a complicação qualifica-se como improvável (atípica) e deve

ser equiparada ao caso fortuito. No terceiro caso, sem dúvida, é possível

responsabilização do médico.

Na segunda hipótese, vale a pena ressaltar que alguns comportamentos dos

pacientes contribuem decisivamente para a eclosão iatrogênica, como adverte Rui

Stoco (2001 p. 109). Isto porque, quando o paciente, portador de qualquer doença

como diabetes, insuficiência renal, cardiopatia grave, alérgico ou sensível a algum

medicamento, esconde ou omite do médico estas informações e essas

predisposições, eventual intercorrência ou incidente durante a intervenção médica

com resultado danoso, deve ser imputada à omissão do paciente, não se podendo

carrear a culpa pelo resultado ao profissional da saúde.

Em suma, nesse diapasão, é possível dizer que há responsabilidade civil em

caso de iatrogênica: nos casos de lesões decorrentes de falha no comportamento

humano ou lesões previsíveis não devidas e previamente informadas; em caso de

lesões imprevisíveis, a iatrogenia não gera responsabilidade civil.

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3.4.4 Relação de causalidade

O vínculo causal que liga o dano ao seu fato gerador128 nem sempre é uma

tarefa fácil, especialmente nos domínios da responsabilidade médica, em razão da

possibilidade de causalidade múltipla.

Como visto, na responsabilidade civil, é imprescindível o nexo de causalidade

entre a ofensa da norma preexistente (no caso, o contrato) e o dano. Não basta que

um dano tenha coincidido com a existência de uma culpa ou de um risco para

estabelecer uma responsabilidade. Coincidência não implica causalidade (PEREIRA,

1997, p. 75).

Em geral, a dificuldade probatória nas chamadas hipóteses de “causalidade

múltipla” decorre da existência de encadeamento de circunstâncias que atrapalham

a indicação precisa de qual dentre elas, é a causa eficiente da lesão. E no caso do

ato do diagnóstico, há complexidade, pois a conduta de um dos médicos pode

dificultar a comprovação do nexo causal, pois nem sempre se tem condições de

apontar qual a causa direta do fato gerador (erro de diagnóstico) do dever de

ressarcimento.

A fim de estabelecer o nexo de causalidade várias teorias foram criadas,

dentre as quais a teoria da equivalência dos antecedentes, a teoria da causalidade

adequada e a teoria do dano direto e imediato.

De acordo com a teoria da equivalência dos antecedentes (conditio sine qua

non), causa e condição são equivalentes. Se várias condições concorrem para o

mesmo resultado, considera-se que todas possuem o mesmo valor, isto é, se

equivalem para a produção do dano. A crítica que se faz a essa teoria é que ela

conduz a uma exasperação da causalidade, numa regressão infinita do nexo causal

até as condições mais remotas, imputando responsabilidade a inúmeras pessoas.

Por sua vez, a teoria da causalidade adequada estabelece que causa é tão

somente aquele antecedente mais adequada à produção do resultado. Causa,

portanto, não equivale à condição: dentre todas as condições concorrentes, causa é

aquela mais idônea (adequada) a produzir o evento. É preciso que exista causa

128 Vale a pena ressaltar que, de acordo com o entendimento adotado por Fernando Noronha, o nexo de imputação se refere ao vínculo existente entre o dano e o agente, enquanto que o nexo de causalidade refere-se ao vínculo entre o dano e o seu fato gerador. Maria Helena Diniz anota que a imputabilidade diz respeito aos aspectos subjetivos, enquanto o nexo causal se refere aos aspectos objetivos da conduta. Com cabe nos ensinamentos de Serpa Lopes, a autora afirma que pode ocorrer imputação (vínculo entre o dano e o agente) sem que aconteça a causalidade (vínculo entre o dano e o fato gerador).

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adequada em abstrato, isto é, que seja considerada adequada a produzir o resultado

segundo o curso normal e a experiência comum da vida (CAVALIERI FILHO, 2005.

p. 73).

Por fim, a terceira teoria tem a ver com a imediatidade do prejuízo causado

por aquele determinado fato, não se admitindo concausas.

O Direito Civil brasileiro, apesar de não conter regra expressa a respeito do

nexo de causalidade, adotou a teoria da imediatidade à luz do art. 1.060 do Código

Civil de 1916, reproduzido no art. 403 do Código atual: Ainda que a inexecução

resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e

lucros cessantes por efeito dela direto e imediato (...). (Grifo nosso). De acordo com

essa disposição, denota-se que importante não é a causa cronologicamente mais

próxima, mas aquela que for mais direta e determinante do evento danoso.

No entanto, no caso de responsabilidade complexa, isto é, no caso de

responsabilidade por fato de outrem ou pelo fato das coisas, além de presunção de

culpa, há na realidade presunção do próprio nexo de causalidade.

Aspectos relevantes referem-se à questão de solidariedade dos co-agentes e

concorrência da culpa entre a vítima e o autor do dano.

De acordo com o Código Civil, havendo ofensa por mais de um autor, todos

responderão solidariamente. Com tal disposição, o direito brasileiro afasta a idéia de

“causalidade parcial” e institui um “nexo causal plúrimo”, isto é, havendo mais de um

agente, não se perquire qual deles deve ser chamado como responsável direto ou

principal. Consequentemente, a vítima pode reclamar de qualquer um a reparação

integral do dano, ressalvado a ação regressiva (actio de in rem verso) em face dos

demais co-obrigados para cada um haver pro rata a quota proporcional no volume

da indenização.

No caso de concorrência de culpa, que será tratada em capítulo próprio, em

que o fato da vítima pode não rompe o nexo de causalidade, mas agrava o dano,

cabe ao juiz avaliar quantitativamente o grau de redução da indenização.

Conforme observa João Monteiro de Castro, a particularidade em relação à

responsabilidade médica é que a vítima já apresentava um curso normal da

configuração do dano, eis que doente. A causa do dano, portanto, não poderia ser

atribuída ao médico, a quem cabe interromper esse curso normal através de atos e

cuidados. Não obstante, de acordo com o senso jurídico do termo, conclui o autor

que o nexo de causalidade é estabelecido a partir do momento em que o médico

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podendo interromper o curso normal da configuração do dano, não o faz, porque

cometeu um erro culposo de diagnóstico ou tratamento129.

Nesse sentido, não obstante a dificuldade, é possível a identificação da

relação de causalidade entre o dano e a conduta do médico que, podendo

interromper o curso normal da configuração do dano, não o faz, por ter praticado um

erro culposo de diagnóstico ou tratamento.

3.5 Excludentes de Responsabilidade Civil no Diagnóstico

Em termos gerais, nos cânones da medicina, especificamente quando se trata

de responsabilidade subjetiva, o médico pode eximir-se de indenizar desde que

demonstre ausência de culpa ou ruptura do nexo de causalidade; em se tratando de

responsabilidade objetiva, afasta-se a obrigação indenizatória quando comprovada a

interrupção do nexo causal.

No âmbito do Código de Defesa do Consumidor, são causas excludentes de

responsabilidade civil do fornecedor de serviços: a comprovação da inexistência de

defeito e a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. A doutrina não é unânime

sobre a taxatividade da previsão legal das referidas causas excludentes de

responsabilidade no âmbito consumerista.

Antonio Herman V. Benjamin, por exemplo, entende que as hipóteses de

exclusão da responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços são

determinadas de forma taxativa130.

No mesmo sentido afirma Marcelo Kokke Gomes que as causas gerais de

exclusão de responsabilidade prevista pelo Direito Civil sofrem alterações em

relação ao Direito do Consumidor, já que este possui sistemática própria, derivada

da própria autonomia do ramo131.

Zelmo Denari também admite outras excludentes, pronunciando que quando

o caso fortuito ou força maior se manifesta após a introdução do produto no mercado

de consumo, ocorre uma ruptura do nexo de causalidade que liga o defeito ao

evento danos132.

129 CASTRO, João Monteiro. Responsabilidade civil do médico, cit., p. 50.

130 BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual,

cit., p.129. 131 GOMES, Marcelo Kokke. Responsabilidade civil, cit., p. 85.

132 Zelmo Denari, op. cit., p. 195.

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Parece mais acertado admitir que a falta de previsão legal quanto às

excludentes previstas no direito comum não é por si só suficiente para afastar a sua

aplicação no âmbito do CDC. Isto porque tais fatos causam o rompimento do nexo

de causalidade entre a conduta do agente e o dano, de maneira a prejudicar

configuração de qualquer responsabilidade quanto ao ato.

Posto não tenha ligações diretas umas com as outras, aproximam-se,

contudo, em função da sua finalidade ou dos seus efeitos finais, que são a isenção

da obrigação de ressarcimento. Ligam-se, contudo, em razão de que desfazem a

causalidade (ou ao menos o alteram). São as hipóteses de culpa exclusiva da

vítima, caso fortuito e fato de terceiro. Assim, não obstante a falta de previsão legal

no Código de Defesa do Consumidor, tais hipóteses de excludentes de

responsabilidade civil serão estudadas a seguir:

3.5.1 Inexistência de defeito

Pela ordem, a comprovação da inexistência de defeito comprova a distinção

adotada pelo Código Consumerista entre dano e defeito. Ou seja, simplificadamente,

pode o fornecedor ser comprovadamente causador do dano (daí a expressão “tendo

prestado serviço” no inciso I), sem que exista defeito do serviço.

De acordo com o Código, é defeito aquele que não fornecer a segurança que

dele pode se esperar, não se exigindo, portanto, a perfeição do serviço. Assim, é

possível concluir que para que exista responsabilidade civil do fornecedor,

especificamente do profissional liberal, devem estar presentes a culpa, o nexo de

causalidade, o dano e o defeito no que se refere à segurança do serviço.

Portanto, o Código de Defesa do Consumidor, exigiu, além do dano (e da

ação e nexo de causalidade, por óbvio), a existência de um defeito. Assim, ainda

que o consumidor sofra um dano em decorrência de uma prestação de serviço, não

haverá responsabilidade do fornecedor, caso haja comprovação133 de que o serviço

prestado não é considerado defeituoso. A ação ou omissão nesses casos não é

fornecer serviço que cause dano, mas fornecer serviço defeituoso que cause

133 É ônus integral e exclusivo do profissional liberal a prova quanto à existência de qualquer das circunstâncias excludentes de responsabilidade prevista no dispositivo em análise, bastando apenas uma delas para que haja isenção.

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dano.134 É o que foi observado no capítulo referente ao resultado falso-positivo e

falso-negativo.

3.5.2 Culpa exclusiva do paciente ou de terceiro

Segundo adverte José de Aguiar Dias, a culpa exclusiva da vítima, desfaz, em

relação ao suposto responsável, a causalidade e, sem causalidade, seja objetivo,

seja subjetivo o critério a adotar, não se pode reconhecer a obrigação de indenizar.

Assim, o reconhecimento dos efeitos da culpa da vítima é uma expressão relevante

que não pode ser desprezada na verificação da responsabilidade civil, mesmo diante

do sistema objetivo135.

A culpa exclusiva do consumidor (paciente) ou de terceiro (não preposto do

fornecedor) é excludente de responsabilidade civil do fornecedor (médico) quando o

serviço prestado de forma segura e bem informada se torna defeituoso em razão da

conduta incorreta do paciente ou de terceiro, sem qualquer colaboração do médico.

Isso na verdade significa ausência de nexo de causalidade entre a ação ou omissão

do médico136.

No âmbito da responsabilidade civil médica em erro de diagnóstico,

importante notar que além do dever de informar o paciente, o médico tem o dever de

se informar sobre ele, obter do paciente o máximo de informações sobre seu estado

físico e psíquico, especialmente aquelas relativas a situações ou ações que possam

interferir negativamente no procedimento, como alergias, medicação em uso,

intolerâncias alimentares ou mesmo hábitos do paciente. Faz parte da diligência do

médico verificar eventuais fatores de interferência, em especial os não ordinários, a

fim de definir a conduta a ser tomada, considerando os consequências e benefícios

de cada intervenção ou prescrição médica137.

134 Oscar Ivan Prux, Responsabilidade civil, cit., p. 259. 135 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, cit., p.76. 136 Em razão da falta de nexo de causalidade, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem orientando-se no sentido de afastar a responsabilidade civil objetiva do fornecedor nos casos de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (art. 14, §3º, II do CDC). É o que pode acontecer na responsabilidade atribuída a uma instituição, pública ou privada, em que não é preciso prova da culpa, visto que nesse caso a responsabilidade é objetiva, por força do CDC. Observe-se que a pessoa jurídica (inclusive operadoras de planos de saúde) responde objetivamente pelos atos de seus prepostos, ainda que não se aplique o CDC, por força do Código Civil (art.933) ou da Constituição Federal (art.37, §6). 137 No direito comparado, destaca-se a seguinte decisão: “Existe negligência do médico que não toma uma mínima precaução para comprovar a verdadeira identidade do paciente, já que é de exigir proceder a uma verificação sobre as condições clínicas do paciente antes de efectuar uma intervenção cirúrgica.

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A diligência médica está intimamente relacionada à conduta (dever)138 do

paciente ou responsável quanto à veracidade das informações sobre o seu estado

de saúde ou vida. As informações dadas pelo paciente vão determinar não apenas a

medicação a ser prescrita, como os exames complementares a serem solicitados,

bem como todo o procedimento do profissional a partir de então.

Vale dizer, é possível que o médico, pautando-se nas informações oferecidas

pelo paciente, inicie um procedimento por acreditar que se trate de um risco baixo,

quando, na realidade, é alto139. Dessa forma, o risco previsto e informado pelo

médico ao paciente não corresponde ao que deveria ser objeto de análise (do risco-

benefício) pelo médico e consentimento pelo paciente. É a hipótese tratada por Rui

Stoco no capítulo “Iatrogenias decorrentes da omissão do paciente quanto à

existência de condições orgânicas desfavoráveis”. Discorre o autor:

Não é escusado advertir sobre alguns comportamentos que contribuem decisivamente para a eclosão iatrogênica, como quando o paciente, portador de qualquer doença como diabetes, insuficiência renal, cardiopatia grave, propenso a vômitos constantes, alérgico ou sensível a algum medicamento, esconde ou omite do médico essas informações e essas predisposições, em virtude das quais exsurge então intercorrência ou incidente durante a intervenção médica com resultado danoso. Ressuma evidente que em tais casos o fator de agravamento ou de insucesso decorre tão-só da omissão do paciente, não se podendo carrear ao profissional a culpa pelo resultado140.

Daí a declaração e o ato da vítima poder excluir ou atenuar a

responsabilidade civil do médico141. Ou seja, o fato da vítima pode não romper o

É razoável presumir que o paciente não sofria de doença a que foi operado sempre que o médico assistente não havia diagnosticado essa doença nem havia solicitado o correspondente consentimento para a realização dessa operação. (GONZÁLEZ, José Maria Miquel; MORILLO, Andrea Márcia et all. OLIVEIRA, Guilherme (coord.). Responsabilidade civil dos médicos. Centro de Biomédico Biomédico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.284). 138 Nesse sentido, Luciana Mendes Pereira Roberto (Responsabilidade Civil do Profissional de Saúde e Consentimento informado e esclarecido. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2008, p.125) cita os ensinamentos de João Vaz Rodrigues: “E este (dever de informar do paciente) traduz-se no interesse do paciente em avançar, voluntária e espontaneamente, as informações que acredita prenderem-se com o diagnóstico ou com a terapia em causa, as que rodeiam seu estado de saúde ou a sua vida, e que possam revelar-se necessárias ou úteis aos procedimentos pretendidos, e, ainda, em responder integral e verdadeiramente às questões que lhe forem colocadas. (...) Dai insistirmos no clássico dever geral do agente médico de inspirar e cativar a confiança do seu paciente, não apenas para facilitar a sua tarefa, mas, acima de tudo, por uma questão de eficácia”. 139 De fato, as características físicas do paciente podem influenciar a incidência de um determinado risco, como os problemas cardíacos, os antecedentes familiares, tabagismo. Enfim, a sua conduta pode fazer variar a noção dos riscos que o médico tenha em relação ao seu caso. 140 STOCO, Rui. Iatrogenia e Responsabilidade civil do médico. Revista de Direito do Consumidor.

São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 90, volume 784, fevereiro de 2001, p.109. 141 Ainda que não exista previsão legal no Código de Defesa do Consumidor, é razoável admitir que se a vítima concorre por fato seu para o evento danoso, terá também de suportar os efeitos, sem

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nexo de causalidade, mas agravar o dano, que poderia ser gerado de forma menos

intensa. A maior dificuldade está em determinar a proporcionalidade ou grau de

redutibilidade da indenização de acordo com cada conduta. Cabe ao juiz avaliar

quantitativamente o grau de redução da indenização.

No plano do fato da vítima, importante destacar-se o consentimento da vítima,

que tem sido criado com o fim de repelir eventual demanda de reparação do dano. O

problema pode residir em razão de a vítima consentir efetivamente o dano, ou

aceitar correr certos riscos como no caso de diagnósticos mais invasivos.

Como será estudado mais adiante, o consentimento não é uma série

atomística de assunções de risco, mas sim um balanço global, uma ponderação

global de riscos-benefícios. Trata-se de um importante instrumento, vez que oferece

ao paciente os elementos suficientes para distinguir os riscos e as consequências do

ato médico falho, ou melhor, oferece elementos para identificar o erro ou o que é

fruto do risco.

Vale dizer, o cumprimento do dever de informação, principalmente

documentado através de consentimento informado e esclarecido, põe fim ao nexo de

causalidade entre o ato médico e o dano, em razão da liberdade e da consciência

decidida sobre a autorização da intervenção do paciente.

Por fim, destaca-se que no caso de exercício ilegal da medicina, além de

dever ser presumida a culpa de quem o pratica, a consciência da vítima quanto a

essa circunstância pode ser considerada para fins de composição do dano. Ainda

que considerada a perturbação de raciocínio mais apurado em razão da

circunstância de estar o paciente sofrendo e, portanto, predisposto a seduções do

tratamento que lhe prometa cura ou alívio, a condenação deve ser repartida entre as qualquer indenização141. Se não elidir totalmente a responsabilidade, a indenização deve ser fixada em partes iguais, tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano, no caso, o erro médico. Isto porque, atualmente, é de todo importante aferir o grau da culpa, tendo em vista que poderá influir no estabelecimento da indenização (CC, art.944, parágrafo único). Há entendimento no sentido de que a participação do fornecedor para a existência do dano, ainda que ínfima, induz a responsabilização (reduzido o valor pela metade), pois neste caso não desaparece a relação de causalidade entre o defeito do serviço e o evento danoso. Nesse sentido é o entendimento de Zelmo Denari (Código brasileiro de defesa do consumidor, cit., p. 189): “ A culpa exclusiva é inconfundível com a culpa concorrente: no primeiro caso, desaparece a relação de causalidade entre o defeito do produto e o evento danoso, dissolvendo-se a própria relação de responsabilidade; no segundo, a responsabilidade se atenua em razão da concorrência da culpa, e os aplicadores da norma costumam condenar o agente causador do dano a reparar pela metade o prejuízo, cabendo à vítima arcar com a outra metade.” Por outro lado, há entendimento doutrinário no sentido de que a única excludente de responsabilidade civil do fornecedor é a culpa exclusiva da vítima, de maneira que havendo culpa concorrente a responsabilidade permanece integral do fornecedor pela reparação do dano.

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partes, se comprovada a imprudência do paciente em razão do conhecimento

quanto ao exercício ilegal da medicina pelo curandeiro.

Em suma, a solução ideal no caso de fato da vítima é especificar a

contribuição do fato da vítima para o efeito danoso, cabendo ao juiz reconhecer a

exclusão da responsabilidade civil ou estabelecer a proporcionalidade na reparação.

Não sendo possível determinar o grau de participação da vítima no resultado

danoso, como na maioria dos casos não o é, resta a partilha por igual, reduzindo-se

a indenização à metade. É o que se denomina Teoria da equivalência das

condições, segundo o qual os antecedentes do dano constituíram o encadeamento

indispensável das causas142.

3.5.3 Caso fortuito e iatrogenias decorrentes de fatores

individuais e próprios do paciente

O direito brasileiro consagra, em termos gerais, a escusativa de

responsabilidade nas hipóteses em que o dano resulta de caso fortuito ou força

maior.

Parte da doutrina costuma distinguir estes eventos, a dizer que o caso fortuito

é o acontecimento natural, derivado da força da natureza, como o raio, terremoto,

temporal etc., enquanto que a força maior é uma ato humano, como a ação de

autoridades (factum principis), como o furto ou roubo143.

Desses conceitos resulta a noção de dois requisitos: necessariedade e

inevitabilidade. O primeiro requisito refere-se à qualquer acontecimento, ainda que

grave e ponderável, que libera o devedor , porém aquele que leva obrigatoriamente

142 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil, cit., p. 299. 143 Agostinho Alvim (Da inexecução das obrigações e suas consequências. 4.ed., São Paulo: Saraiva, 1972, p.85) vê no caso fortuito um impedimento relacionado com a pessoa do devedor enquanto que a força maior é um acontecimento externo. Em razão disso, na ordem prática, conclui que na teoria da culpa o caso fortuito exonera o agente, e com maioria de razão a força maior o absolverá. Para os adeptos da teoria do risco, o simples caso fortuito não exime o agente. Somente será liberado no caso de acontecimento de força maior, ou seja, o “caso fortuito externo”. Caio Mario da Silva Pereira (Responsabilidade Civil, cit., p. 303), por sua vez, prefere admitir que na prática os dois termos correspondem a um só efeito, qual seja, a negação de imputatividade. Nesse sentido, aliás, marchou o Código Civil de 1916 e 2002, reunindo os dois conceitos em função da exoneração de responsabilidade, declarando que o caso fortuito e a força maior verificam-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível prever ou impedir.

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ao ato danoso. Já o segundo refere-se ao evento que não pode ser impedido nos

seus efeitos. Alguns autores acrescentam ainda a imprevisibilidade144.

No âmbito da responsabilidade médica, Rui Stoco trata de algumas

iatrogenias ou lesões sofridas previsíveis, decorrentes de fatores individuais e

próprios dos pacientes: da sua maior sensibilidade e reação a determinados

procedimentos ou medicamentos, dentre outras causas, que, embora previsíveis,

não têm qualquer relação de causa e efeito com a atuação do médico, da técnica

empregada ou do estado da ciência. Ensina o autor que, também nessas hipóteses,

não há ato ilícito e punível, caso o paciente tenha sido prévia e adequadamente

alertado de possíveis consequências ou iatrogenias, considerando que, in caso, o

profissional não contribui para o resultado danoso, sendo certo que tais

manifestações eram previstas e foram devidamente esclarecidas antes do

procedimento e aceitas pelo paciente.

3.5.4 Fato de terceiro

O fato de terceiro pode importar em responsabilidade145 ou implicar

excludente desta. Neste capítulo, será tratado apenas a hipótese de excludente de

responsabilidade.

O pressuposto do presente estudo é saber quem deve ser considerado

terceiro e qual a natureza e extensão do comportamento do terceiro.

Pela ordem, considera-se terceiro qualquer outra pessoa que não faz parte da

relação (contratual) firmada entre o médico e o paciente. Exemplifica-se, em termos

gerais, como não sendo terceiros, o assistente do médico, os empregados da clínica

etc. Assim, para que seja terceiro mister, que por sua conduta atraia os efeitos do

fato prejudicial e, em consequência, não responda o agente; direta ou indiretamente;

pelos efeitos do dano.

No que se refere à natureza e extensão do comportamento do terceiro, a

participação do terceiro deve alterar a relação causal. Vale dizer, ocorrendo o dano,

identifica-se o responsável aparente, mas não incorre este em responsabilidade,

tendo em vista a conduta do terceiro que interveio para negar a relação agente-

144 Esse requisito não é aceito por Caio Mario da Silva Pereira (Responsabilidade Civil, cit., p. 303). Justifica o autor que por muitas vezes o evento, ainda que previsível, dispara como força indomável e irresistível. A imprevisibilidade é de se considerar quando determina a inevitabilidade. 145 É o que ocorre no caso de responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos, do tutor pelos do pupilo, do patrão pelos empregados etc.

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vítima. A responsabilidade do terceiro somente ocorre no caso em que sua

participação for total, ou seja, quando o dano for devido exclusivamente em razão da

sua conduta, pois sendo a participação parcial, isto é, quando o terceiro for co-

participe ou elemento concorrente no desfecho final, o vínculo de causalidade entre

o dano e a conduta do indigitado autor do dano persiste.

O fato de terceiro não se confunde com o motivo de força maior, apesar de

num e noutro, ocorrer a exoneração. Um critério distintivo pode ser apontado. No

fato de terceiro, a exoneração tem lugar caso seja identificada a pessoa de cuja

participação proveio dano. No caso fortuito ou força maior, o dano provém de um

fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (PEREIRA, 1997, p.

302).

3.5.5 Risco do desenvolvimento

De acordo com tal dispositivo, não é defeituoso o serviço pela adoção de

novas técnicas, ou seja, para aferir se o serviço é ou não defeituoso, deve-se

considerar a época em que ele foi fornecido. Vale dizer, se à época da colocação do

serviço no mercado de consumo o defeito era desconhecido, o fato de o

desenvolvimento técnico e científico identificar o defeito somente depois, com

razoável tempo de utilização, isenta o fornecedor de responsabilidade pela

colocação desse serviço defeituoso no mercado de consumo. É o que a doutrina

denomina “estado/estágio da técnica”, ou “estado da ciência e da técnica” ou “estado

da arte”.

Tal situação não se confunde com a expressão “deveria saber” incluída no art.

10, caput do Código de Defesa do Consumidor, e a ignorância do fornecedor quanto

ao vício do serviço, prevista no art. 23 do CDC, que sugere conduta negligente do

fornecedor.

Sobre o assunto, Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin146 entende

que os defeitos decorrentes dos riscos de desenvolvimento representam uma

espécie do gênero defeito de concepção decorrentes da carência de informações

científicas. Com o devido respeito, parece que o defeito decorrente do

desenvolvimento não se confunde com o defeito de concepção, já que neste o

defeito é cognoscível e previsível, enquanto naquele o defeito não é conhecido ou

146 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e, Código brasileiro, cit.,p.67).

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melhor, conhecível147. Daí porque não se pode confundir risco de desenvolvimento

com a noção do dever imposta no art. 10º do Código de Defesa do Consumidor, que

contém a expressão “deveria saber” dentre as casas de responsabilidade civil

objetiva.

Maria Clara Osuna Diaz Falavigna e Rita Kelch (2004. p. 534) observam

ainda que, no campo da responsabilidade civil médica a novidade da técnica deve

ser aferida de acordo com o conhecimento e aceitação pela comunidade médica

mundial, caso contrário o serviço deve ser obrigatoriamente aprovado pelo paciente.

O Código de Defesa do Consumidor não apontou expressamente os riscos de

desenvolvimento como causa excludente de responsabilidade do fornecedor. Daí

surge a divergência doutrinária, inclusive no direito comparado, com sensível

consequências no âmbito da responsabilidade civil.

Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin entende que o Código não

incluiu, entre as causas exoneratórias, os riscos de desenvolvimento e que, por

adotar um sistema de responsabilidade civil objetiva com base no risco da empresa,

a lei não podia exonerar o fabricante, o produtor, o construtor, o importador, quando

na presença de um risco de desenvolvimento148.

No mesmo sentido opinando sobre a responsabilidade sobre defeito do

produto, é o pensamento de Sílvio Luís da Rocha, citado por Oscar Ivan Prux, nos

seguintes termos:

O Direito português, o italiano e o alemão optaram por imputar o ônus dos riscos do desenvolvimento aos consumidores, admitindo-se como causa de exclusão da responsabilidade do fornecedor (...) O direito brasileiro não. Com efeito, citada causa de exclusão, por ser controvertida, para ser aceita, deveria ter sido expressamente elencada no art. 12, §3º, do Código de Defesa do Consumidor149.

147 Oscar Ivan Prux (Responsabilidade civil do profissional liberal, cit., p. 252) questiona o tem nos seguintes termos: “(...)se em decorrência do estado da técnica, o fornecedor não tinha condições de saber a periculosidade, quando do fornecimento do serviço?É de se imputar a alguém essa responsabilidade por algo que o conhecimento científico disponível o cerceava nesse sentido? Qual a segurança que tem o fornecedor, no nosso caso o profissional liberal, de aventurar-se em fornecer serviços que no futuro, de inopinado, poderão vir a lhe trazer uma responsabilização que ele não tinha condições de saber se ele iria surgir ou não?É justo impor ao fornecedor que antes de colocar o serviço no mercado, obrigue-se a fazer todos os testes com ele (serviço) relacionados, comportando-se, então, como um fornecedor ideal (e não como fornecedor ‘homem médio’)? Dele ele ser obrigado a fazer todos os testes possíveis e imagináveis (quiçá incontáveis), mesmo que os custos possam inviabilizar o fornecimento?” 148 BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual cit., p. 131. 149 Oscar Ivan Prux, Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 254.

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Não coaduna com o mesmo entendimento Oscar Ivan Prux. Segundo

mencionado autor, outra razão não existiria para o Código de Defesa do Consumidor

destacar a relevância da época em que o serviço foi colocado no mercado de

consumo (art. 14, §1º, III, CDC) senão para justamente isentar a responsabilidade

civil em caso de risco de desenvolvimento. São suas as palavras:

Não importando que estejamos a tratar da responsabilidade pessoal do profissional liberal – que o Código de Defesa do Consumidor previu ser subjetiva – entendemos que tanto nessa, como nas situações de responsabilidade objetiva (que são a maioria dentro do Código), quer tratemos de produto ou serviço, existe para o fornecedor a excludente de poder eximir-se da responsabilização caso esteja configurado o risco de desenvolvimento. Razão não existiria para considerar-se a época em que o serviço (ou produto) foi colocado no mercado, caso não fosse para possibilitar descaracterizar-se o serviço como defeituoso, e assim isentar o fornecedor de uma responsabilização150.

E ainda, reforça o autor com dois argumentos:

O primeiro é a previsão de que um serviço mantido dentro dos riscos que razoavelmente dele se esperam, não será por esse motivo considerado defeituoso. Só quando ele ultrapassar esse limite é que isso acontecerá, o que é típico de ocorrer nos riscos de desenvolvimento, visto que os citados riscos soem surgir sempre de inopinado. O segundo, que nitidamente liga-se ao primeiro, é que a introdução de novas técnicas não leva um serviço a vir a ser considerado defeituoso151.

Com o devido respeito, de fato, admitir o risco de desenvolvimento como

causa excludente de responsabilidade mais se coaduna com os dispositivos do

Código. Isto porque há previsão, ainda que de forma implícita, que a razoabilidade

dos riscos do serviço, a época de fornecimento do serviço e a inexistência de

defeitos em razão da adoção de novas técnicas (o art. 14, §1º, II e III e §2º), fatores

que estão presentes no risco de desenvolvimento, exoneram o fornecedor da

responsabilidade. Daí porque sustentar ser o risco de desenvolvimento uma causa

excludente de responsabilidade, não obstante isso significar que o consumidor

suportará o dano e contrariar entendimentos (majoritários) sobre o tema, expostos

inclusive em Enunciado de direito civil152.

150 Oscar Ivan Prux, Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 254. 151 Oscar Ivan Prux, Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 255. 152 Jornada I STJ En. 43: “A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no CC 931, também inclui os riscos do desenvolvimento.”

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4. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA POR ERRO DE

DIAGNÓSTICO EM INSTITUIÇÕES PÚBLICAS E PRIVADAS DE

SAÚDE

4.1 Responsabilidade Civil Médica-Hospitalar em

Instituições Privadas e Operadoras de Plano de Saúde: A

Questão do Defeito na Prestação de Serviços

O estudo da responsabilidade civil médica abrange tanto a responsabilidade

dos profissionais médicos como das instituições hospitalares, clínicas e demais

estabelecimentos destinados à prestação de serviços médicos. Verifica-se,

frequentemente, que, mesmo diante de fatos nos quais não se evidencia a

responsabilidade pessoal do médico, as vítimas e seus familiares tendem a incluir no

pólo passivo das ações de indenização também as instituições privadas de saúde,

isto é, o hospital ou a clínica médica. Tal conduta, é claro, tem por fim,

precipuamente, alcançar o patrimônio muito mais expressivo da entidade privada.

No entanto, a questão transcende um obstáculo prático na ação que, inclusive, vem

sendo atualmente reconhecida pelos tribunais nacionais: a transcendência da mera

delimitação do âmbito das responsabilidades de cada agente. Ao contrário, avança

mesmo para o exame do nexo de causalidade e a identificação da conduta decisiva

para a realização do dano, assim como, o exame das excludentes de

responsabilidade, que em geral levam à quebra do nexo de causalidade entre um

dano comportamento e a responsabilidade.

As instituições privadas de saúde, cuja liberdade de fornecimento de serviços

é assegurada pelo artigo 199 da Constituição Federal, caracterizam-se como

fornecedoras de serviços, e neste sentido, encontram-se sob a égide do Código de

Defesa do Consumidor (artigo 3º). Daí porque respondem por danos causados aos

pacientes e consumidores, com fundamento no artigo 14, caput, que estabelece a

responsabilidade objetiva pelo fato do serviço.

O conceito de defeito é o conceito-chave para o conceito de responsabilidade

pelo fato do serviço no regime do Código de Defesa do Consumidor. Exige-se neste

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sistema, por expressa influência do direito europeu sobre o tema, a existência de

defeito para que se possa indicar a imputação de responsabilidade civil ao

fornecedor pelos danos causados em razão de acidente de consumo. Vale dizer, em

matéria de responsabilidade por fato do serviço, não há se falar em imputação do

dever de indenizar sem a demonstração do defeito, que aparece como pressuposto

específico do regime da responsabilidade civil estabelecida neste ordenamento

jurídico.

A questão que apresenta diz respeito à correta conceituação jurídica de

defeito e sua extensão. O defeito do serviço, que por evidência a prestação de

serviços médicos, está previsto no art. 14º, §1º do Código consumerista, nos

seguintes termos: O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o

consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias

relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os

riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido.

Portanto, considera-se defeito a falha do dever de segurança legitimamente

esperada do serviço oferecido no mercado de consumo. Não se confunde com o

vício, que representa a falha a um dever de adequação que ocorre quando o serviço

não serve à finalidade que dele legitimamente se espera em relação à qualidade e

quantidade.

Nesse sentido, o serviço prestado pela instituição hospitalar privada ou clínica

média deve ser considerado como um todo, frente ao atendimento ou não às

expectativas do consumidor e aos riscos que razoavelmente da atividade se espera.

A questão, nos tribunais brasileiros, do defeito na prestação de serviços médicos,

especificamente quanto ao ato de diagnóstico, tem sido vinculada à atuação do

profissional médico, em especial quanto ao momento tardio ou pronto diagnóstico.

Nesse sentido, destacam-se duas decisões sobre o tema, a primeira reconhecendo

a falta do médico em razão das evidências clínicas do paciente, e a segunda

afastando a responsabilidade do profissional bem como da instituição hospitalar,

tendo em vista que a demora na identificação da enfermidade, observou os

protocolos estabelecidos pela ciência médica:

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Apelação Cível. Responsabilidade civil. r Óbito de paciente em hospital decorrente de peritonite, pancreatite necro-hemorrágica - Paciente que comparece ao nosocômio no dia anterior a sua internação e é dispensado sem correta avaliação de seu quadro - Responsabilidade civil do hospital caracterizada - Caracterização de defeito do serviço - Inteligência da norma do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, que deve ainda ser interpretada segundo o "state of the art" (sic), ou seja, o nível do conhecimento técnico e científico existente à época dos fatos - Pensão devida desde a data do óbito, fixada em quantia equivalente a um salário mínimo – Indenização por danos morais também devida arbitrada em R$ 46.500,00. Dá-se provimento ao recurso. (...) Ora, no estágio atual do conhecimento médico, dores abdominais agudas na forma apresentada pelo paciente e não negada, indica a imediata realização de ultrassonografia, exame hoje considerado bastante simples, o qual teria permitido o rápido diagnóstico da doença que acometia o paciente, para que fosse iniciado de pronto seu tratamento de forma correta. Por outro lado, também sabido é que os exames de diagnóstico são meramente complementares, não podendo o médico ignorar o exame clínico que tem início com a anamnese, prossegue com o exame físico do paciente e termina com o estudo dos exames complementares. Isso obviamente não ocorreu pelo incorreto atendimento do paciente na sua primeira visita ao hospital, quando foi o mesmo liberado com prescrição de simples remédios para o estômago, e tampouco na sua segunda internação, já que desde sua entrada no nosocômio por volta das 5:30 horas da manhã até o início do tratamento às 16:50 horas houve o transcurso de tempo excessivo, que levou à piora de seu estado clínico, observando-se que, quando do início do tratamento correto, sua situação já era grave a ponto de determinar sua internação na UTI às 17 horas, onde apresentou hipotensão, má perfusão periférica e sinais de choque (fls. 182). O próprio perito informa que a pancreatite é doença de evolução rápida e grave (fls. 184), o que permite concluir que a demora em seu correto diagnóstico e início de tratamento levou ao agravamento do estado do paciente, que foi a óbito153. A presente indenizatória está calcada na alegação de tardio diagnóstico de apendicite na autora, causando-lhe, em decorrência, os danos reclamados na inicial, notadamente a implantação de bolsa de colostomia por três meses. Informa-se que a autora passou por diversas vezes pelo atendimento das rés, notadamente aquele sob a responsabilidade da recorrida, MEDIAL SAÚDE, e que, por defeito dos serviços por elas prestados (artigo 14, parágrafo 1º, CDC), houve falha quanto ao pronto diagnóstico da enfermidade. (...) O diagnóstico de apendicite aguda é extremamente difícil. Consta, a respeito, no laudo pericial às fls. 689: Indiscutivelmente o diagnóstico de certeza de apendicite aguda pode ser, por vezes, extremamente difícil, mesmo para cirurgiões experientes e aparentemente, este caso sob exame foi um desses. (...) Inexigível das rés, em decorrência, o pronto diagnóstico da apendicite, inexistindo o defeito do serviço alardeado na inicial. (...) Não há que se falar, por fim, na responsabilidade fundada no risco da atividade desenvolvida pelas rés (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil). A medicina não é ciência exata; a demora na identificação da enfermidade, desde que observados os protocolos estabelecidos, não gera o dever de indenizar. A obrigação aqui é de dispensar o tratamento adequado ao paciente, inexistindo garantia de cura. Se aplicada a responsabilidade fundada no risco à atividade médica, o insucesso do tratamento (sem culpa do profissional), fato absolutamente normal nessa

153 TJSP. Apelação 994050430570 (3899594900). Relator(a): Christine Santini. Comarca: Osasco.

Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 27/01/2010. Data de registro: 09/02/2010.

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atividade, redundaria no dever de indenizar, transformando a arte médica em ciência exata, o que, evidentemente, não pode ser admitido154.

Há juízes, por outro lado, que procuram identificar a causa petendi para

configurar a responsabilidade da instituição privada: se pertinente aos serviços

hospitalares prestados defeituosamente, aplicar-se-á o sistema de responsabilidade

objetiva; caso se refira apenas à atividade do médico, muito embora o hospital

também figure no pólo passivo, terá lugar a responsabilidade subjetiva; caso não

possa determinar, com exatidão, a ocorrência de falha do serviço ou de culpa

médica, aplicar-se-ão as regras da responsabilidade subjetiva.

Outras questões nascem dessa relação médico-hospital como a que se refere

à existência ou não de uma relação de preposição. Há entendimento atual no

Tribunal de Justiça de São Paulo afastando a idéia adotada anteriormente pela

doutrina brasileira de que a ausência de preposição excluiria a responsabilidade do

hospital quando o médico não integra os seus quadros ou com ele não estabelece

essa relação de preposição, apenas se valendo das instalações do hospital para

execução de sua atividade155.

Há entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o âmbito de aplicação da

responsabilidade civil objetiva que deve se circunscrever apenas aos serviços única

e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente

dito, não abrangendo a atuação técnico-profissional dos médicos que neles atuam.

Neste caso, a responsabilidade civil das instituições públicas ou privadas é subjetiva.

154 TJSP. Apelação 994080424203 (6151574000). Relator(a): Donegá Morandini. Comarca: São

Paulo. Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 15/12/2009. Data de registro: 07/01/2010. 155 Responsabilidade civil hospitalar. Obrigação de meio. Para que o nosocômio seja responsabilizado

por danos causados ao consumidor, necessária a comprovação da culpa dos médicos no exercício de sua atividade típica. Incidência dos artigos 14, §4° do CDC e 932, III, 933 e 951 do Código Civil. Irrelevância da existência de vínculo empregatício, bem como do fato de ser o preposto remunerado ou não pelo hospital. Inobservância dos procedimentos adequados para diagnóstico e tratamento de vítima de acidente de trânsito. Redimensionamento do quantum indenizatório. Recurso parcialmente provido.(TJSP. Apelação Com Revisão 3539924000. Relator(a): Piva Rodrigues. Comarca: Rio Claro. Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 23/06/2009. Data de registro: 27/07/2009).

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É o que se pode observar na seguinte decisão:

CIVIL. INDENIZAÇÃO. MORTE. CULPA. MÉDICOS. AFASTAMENTO. CONDENAÇÃO. HOSPITAL. RESPONSABILIDADE. OBJETIVA. IMPOSSIBILIDADE. 1 - A responsabilidade dos hospitais, no que tange à atuação técnico-profissional dos médicos que neles atuam ou a eles sejam ligados por convênio, é subjetiva, ou seja, dependente da comprovação de culpa dos prepostos, presumindo-se a dos preponentes. Nesse sentido são as normas dos arts. 159, 1521, III, e 1545 do Código Civil de 1916 e, atualmente, as dos arts. 186 e 951 do novo Código Civil, bem com a súmula 341 - STF (É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.). 2 - Em razão disso, não se pode dar guarida à tese do acórdão de, arrimado nas provas colhidas, excluir, de modo expresso, a culpa dos médicos e, ao mesmo tempo, admitir a responsabilidade objetiva do hospital, para condená-lo a pagar indenização por morte de paciente. 3 - O art. 14 do CDC, conforme melhor doutrina, não conflita com essa conclusão, dado que a responsabilidade objetiva, nele prevista para o prestador de serviços, no presente caso, o hospital, circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia), etc e não aos serviços técnico-profissionais dos médicos que ali atuam, permanecendo estes na relação subjetiva de preposição (culpa). 4 - Recurso especial conhecido e provido para julgar improcedente o pedido. (REsp 258389 / SP. RECURSO ESPECIAL: 2000/0044523-1. Rel.(a) Ministro FERNANDO GONÇALVES (1107). T4 - QUARTA TURMA. 16/06/2005. DJ 22/08/2005).

Semelhantemente aos julgados supracitados, que relaciona o defeito do

serviço com a culpa profissional, a jurisprudência argentina posiciona-se no sentido

de que a responsabilidade do hospital ou clínica se origina da culpa obrigacional e

se estende ao comportamento do pessoal auxiliar que colabora, por inadimplemento

da obrigação, também de fonte contratual, de prover serviços seguros para o

paciente.

De fato, há quem estenda a responsabilidade subjetiva a outras pessoas em

razão da relação com a atividade do profissional liberal. Sustentar o contrário seria

estabelecer uma antinomia insolúvel, pois se o médico, na condição de preposto,

não é responsável, a responsabilidade do hospital, que seria decorrente da

responsabilidade do médico, também não pode existir.

Na prática, a responsabilidade civil das entidades em que atuam os

profissionais liberais fica sujeita à verificação da culpa do profissional liberal. Isto

porque, de acordo com o §3º do artigo 14, ao dizer que o fornecedor prestador de

serviço será exonerado de responsabilidade caso consiga demonstrar a inexistência

de defeito no mesmo, deixou bem clara a distinção entre defeito e dano. A simples

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presença de dano, mesmo que apurada a sua origem no serviço fornecido, não é

garantia automática de obrigação de indenizar o fornecedor.

Entende-se que o §3º do art. 14 aponta um “quarto” elemento da

responsabilidade civil, qual seja, o defeito. Assim, ainda que o consumidor sofra um

dano em decorrência de uma prestação de serviço, não haverá responsabilidade do

fornecedor, caso haja comprovação156 de que o serviço prestado não é considerado

defeituoso. A ação ou omissão nesses casos não é fornecer serviço que cause

dano, mas fornecer serviço defeituoso que cause dano157. Portanto, diante da

necessidade de prova de defeito, põe-se em discussão a conduta do profissional

liberal na responsabilidade civil da entidade em que esse atua, tornando a

responsabilidade civil subjetiva também das entidades, pessoas jurídicas. Trata-se

de uma solução que visa afastar uma antinomia insolúvel, pois se o médico, na

condição de preposto, não é responsável, a responsabilidade do hospital, que seria

decorrente da responsabilidade do médico, também não pode existir.

No que respeita às operadoras de assistência à saúde, cabe lembrar que sua

atuação pode se dar mediante: a) planos privados que mantêm serviços próprios,

contratam ou credenciam profissionais de saúde, ou reembolsam o beneficiário das

despesas decorrentes de eventos cobertos pelo plano; b) seguros privados de

reembolso ao segurado ou de pagamento, por ordem e conta deste, diretamente aos

prestadores livremente escolhidos pelo segurado.

Parte da doutrina reconhece a responsabilidade solidária da entidade privada

que, através de planos de saúde, mantém hospitais ou credencia outros para

prestação de serviços a que está obrigada158. Diferentemente, não respondem os

planos de saúde e os seguros-saúde que dão liberdade para a escolha de médicos e

hospitais, apenas reembolsando os gastos efetuados pelo paciente159. Não se

156 É ônus integral e exclusivo do profissional liberal a prova quanto à existência de qualquer das circunstâncias excludentes de responsabilidade prevista no dispositivo em análise, bastando apenas uma delas para que haja isenção. 157 Oscar Ivan Prux, op.cit., p. 259. 158 “DANO MORAL - Erro de diagnóstico laboratorial - Responsabilidade solidária do laboratório que realizou a análise clínica, do hospital que o sedia e do plano de saúde - Código de Defesa do Consumidor – Contratos coligados - Diagnóstico equivocado comprovado por perito judicial - Dano indenizável - Autor que já estava na posse de quatro exames favoráveis contra um desfavorável ao seu estado de saúde - Fato que impede a condenação no patamar pleiteado na petição inicial - Minoração - Inversão da sucumbência - Recurso provido”(Apelação Cível n- 568.839.4/6-00, da Comarca de SÃO PAULO. Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo 159 CAHALI, Yussef Said. Dano moral – 3. ed. ver., ampl. atual. conforme a Código Civil de 2002. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 582.

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compreende na “livre escolha” a opção concedida ao paciente por um dos médicos

ou entidade própria ou credenciada, pois a indicação gera assunção do risco.

A jurisprudência entende decisivo o fato do paciente indicar livremente o

médico. A 4ª Turma do STJ tem entendido que as operadoras de planos de saúde,

como fornecedores de serviços, respondem objetivamente pelo risco de eleição,

escolha ou mero credenciamento de profissionais. Assim, qualquer dano gerado

pelo serviço médico, impõe responsabilidade objetiva para a operadora,

independentemente de culpa do terceiro contratado ou credenciado.

De fato, no campo consumerista, a Lei nº 8.078/90 estabelece a

responsabilidade, perante o consumidor, de qualquer dos integrantes da cadeia de

fornecimento do produto ou do serviço, portanto independentemente da existência

de contrato do consumidor com aquele diante de quem venha a reclamar. Trata-se

de um nexo funcional dos ajustes que a todos interessa, mas justamente pelo que a

ninguém será dado furtar-se à responsabilidade respectiva ao argumento de que

não subscreveu contrato específico com a vítima do evento danoso.

E assim é porque todos os contratos envolvidos estão coligados, porque

reciprocamente relacionados, os quais, mesmo acaso vinculando, individualmente,

partes diversas, integram uma operação econômica única, voltam-se à persecução

de um objetivo comum. Há, na coligação ou rede contratual, uma finalidade

econômica comum das partes, o que torna os ajustes, mesmo não subscritos, todos,

pelas mesmas pessoas, subordinados entre si. E isso, em certa medida, como se

disse, impõe uma releitura do princípio clássico da relatividade dos efeitos dos

contratos, exatamente porque, na coligação, contratos podem ser opostos a quem

não os tenha assinado160.

Tem-se entendido que a obrigação complexa gerada pelos contratos de

planos de saúde envolve múltiplas prestações de fazer e de dar, de proporcionar

segurança e tratamento adequado quando e se ocorrer a doença coberta e já paga

antecipadamente pelo consumidor. Há um dever legal de eficiência e de boa

qualidade dos serviços e produtos postos à disposição do consumidor, mesmo se

tratando da rede credenciada da operadora do plano de saúde, em quem o

consumidor deposita confiança na boa escolha do credenciamento.

160 Apelação Cível 5688394600. Relator(a): Francisco Loureiro. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 16/07/2009. Data de registro: 28/07/2009).

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Como diz Cláudia Lima Marques:

A organização sistemática e em cadeia da medicina pré-paga, não mais como seguro de risco, mas como serviço garantido de prestação em caso de evento à saúde, deixa clara a responsabilidade solidária entre o organizador da cadeia (fornecedor indireto, mas contratante) e o prestador dos serviços médicos (fornecedor direto, médico, hospital, clínica, contratante interno da cadeia de fornecimento de serviços de saúde)161.

Cumpre observar que, na lição de Hamid Charaf Bdine Júnior:

Nas hipóteses, porém, que o erro de diagnóstico não decorre da culpa do médico, mas de erro do laboratório que realiza os exames, estar-se-á diante de responsabilidade objetiva regida pelo art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, pois, paciente e laboratório são, respectivamente, consumidor e fornecedor, nos termos dos arts. 2o e 3o do Código de Defesa do Consumidor162.

Em suma, tem-se entendido que, constatado o erro de resultado de exame

laboratorial, não se cogita de culpa do fornecedor, mas apenas se constata a

existência de defeito do serviço, que violou as expectativas de segurança que dele

esperava o consumidor. Para tanto, deve-se ponderar a sensibilidade e

especificidade do método de diagnóstico complementar, como já afirmado

anteriormente.

Seguindo o mesmo entendimento, já se entendeu que o hospital ou clínica

médica pode ser solidariamente responsável pela prática, se o profissional integra o

seu corpo médico, como prestador ou funcionário do serviço. No entanto, na prática,

por ter-se imprescindível a prova do serviço defeituoso (segundo técnicas atuais e

instrumental adequado), o hospital ou clínica médica não responde objetivamente,

mesmo depois da vigência do CDC163.

Em suma, parece surgir um novo entendimento sobre o assunto: a

responsabilidade médica-hospitalar das instituições privadas, hospitais, clínicas

médicas e planos de saúde, ainda que seja aceita como de natureza objetiva, não

161 (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4a. Edição Revista dos Tribunais, São Paulo, 2.002, p. 405). 162 Apelação Cível 5688394600. Relator(a): Francisco Loureiro. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 16/07/2009. Data de registro: 28/07/2009. 163 Nesse sentido, já foi decidido: “Se o médico integra o quadro pessoal permanente do hospital ou da clínica, há responsabilidade desta última, nos casos de culpa do médico, nos termos do art. 932, III, Código Civil. Entretanto, se a culpa do médico não está caracterizada, nem mesmo pela sua omissão em socorrer o paciente, não se pode aplicar a regra que estende a responsabilidade”. (Relator: Des. José Luiz Germano. Apelação n° 529.050-5/3-00. Comarca: São Caetano do Sul. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2a Câmara de Direito Público).

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dispensa a análise do defeito. Esta prova é indispensável para exigir a

responsabilidade civil solidária.

4.1.1 Da inaplicabilidade do artigo 22 do Código de Defesa do

Consumidor aos serviços médicos às instituições públicas de

saúde

Nenhuma dúvida mais subsiste no tocante à rejeição da irresponsabilidade

absoluta do Estado164. Há, atualmente, vasta literatura sobre o tema da

164 Na metade do século XIX, a idéia que prevaleceu no mundo ocidental era a de que irresponsabilidade do Estado. Essa teoria não prevaleceu por muito tempo em vários países. Modernamente, o direito positivo das nações civilizadas admite a responsabilização civil do Estado pelos danos que seus agentes causem a terceiros, podendo variar aspectos específicos e de menor importância no que toca à responsabilidade do agente, ao montante da reparação, à forma processual de proteção do direito etc. Os Estados Unidos, somente recentemente abandonaram a doutrina da irresponsabilidade. Vigorava anteriormente o sistema da responsabilidade do funcionário e da irresponsabilidade do poder público, legado pelo direito inglês, até o advento do Federal Tort Claims Act (FTCA – de 1946), que estabeleceu diversas hipóteses em que o governo abdica de sua imunidade. Diferentemente do sistema brasileiro, o Federal Tort Claims Act não se aplica relativamente às condutas exclusivamente governamentais, isto é, incapazes de serem conduzidas por uma pessoa privada. Esse religioso respeito pelas instituições e pelos seus semelhantes também esteve presente no sistema inglês, em que havia ainda algumas imunidades e várias dificuldades procedimentais às ações contra os funcionários. A Inglaterra abandonou o sistema da irresponsabilidade através do Crown Proceeding Act (de 1947). No Brasil, em apertada síntese, o abandono da teoria da irresponsabilidade do Estado foi marcado uma constante modificação do direito positivo. O Código Civil de 1916 adotou a responsabilidade civil subjetiva do Estado em seu artigo 15: “ As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo direito regressivo contra os causadores do dano.” Com o advento da Constituição de 1946 ocorreu a revogação parcial daquele dispositivo legal, vez que em seu artigo 194 dispôs que “as pessoa jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.” A segunda parte do artigo 15 do Código Civil de 1916 foi a responsável pela permanência da responsabilidade do Estado por atos omissivos, não obstante a inquietude divergência sobre o tema Consolidou-se na legislação, de forma abrangente, a responsabilidade civil do Estado lastreada pela teoria do risco administrativo. Esta tendência manteve-se nas Constituições de 1967, de 1969 e na de 1988, sendo que nesta além das pessoas jurídicas de direito público, as pessoas jurídicas de direito privado prestadores de serviços públicos também assumem responsabilidade objetiva. O atual Código Civil, em seu artigo 43, dispõe que o Estado responde objetivamente por atos de seus agentes, independentemente de culpa. Enfim, o Brasil, carente de disciplina geral e educação nova e deficiente, necessitou de normas mais severas, não podendo considerar o Estado dispensado da norma jurídica, da regra de conduta e proceder. Discorrendo sobre a evolução da teoria da responsabilidade civil da Administração Pública, o Min. Joaquim Babosa, em caso posto a julgamento no Supremo Tribunal Federal no RE 262.651/SP, julgado em 16.11.2005, destacou, de forma veemente, que a responsabilidade da Administração Pública repousa em dois fundamentos jurídicos irretocáveis. Primeiro, ao atuar e intervir nos mais diversos setores da vida social, a Administração submete os seus agentes e também o particular a inúmeros riscos, que fazem parte da essência da atividade administrativa e são indispensáveis ao atendimento das diversas necessidades da coletividade. Segundo: o fundamento jurídico da responsabilidade objetiva repousa na igualdade de todos os cidadãos perante os encargos públicos. A partir das observações do julgado, de se concluir que pouco importa se o serviço público será prestado pelo próprio Estado ou por particular concessionário ou permissionário, eis que por tal razão não perde sua natureza e relevância. Se o particular age em nome do Estado por meio de um

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responsabilidade civil do Estado tendo em vista as incertezas e variações no fato de

se contemplar a responsabilidade do Estado como instituto de direito civil ou

administrativo165. Por isso, o presente estudo busca analisar o regime de

responsabilização da Administração Pública por danos decorrentes de serviço

contrato de concessão ou permissão a característica precípua na prestação do serviço não se perde, tampouco se altera. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil – 11ª ed. revista, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 775) e (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. – 17ª ed. rev., ampl. e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.474). 165 Celso Antônio Bandeira de Mello advoga posição no sentido de que a responsabilidade civil das pessoas de direito público é assunto de direito administrativo. Justifica o autor a originalidade da responsabilidade estatal: “Um dos pilares do moderno Direito Constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, ao quadro da ordem jurídica, de tal sorte que a lesão aos bens jurídicos de terceiros engendra para o autor do dano a obrigação de repará-lo. Sem embargo, a responsabilidade civil do Estado governa-se por princípios próprios compatíveis com a peculiaridade de sua posição jurídica e, por isso, é mais extensa que a responsabilidade que pode calhar às pessoas provadas. As funções estatais rendem ensejo à produção de danos mais intensos que os suscetíveis de serem gerados pelos particulares. As condições em que podem ocasioná-los também são distintas. Com efeito: seja porque os deveres públicos do Estado o colocam permanentemente na posição de obrigado a prestações multifacetárias das quais não se pode furtar, pena de ofender o Direito ou omitir-se em sua missão própria, seja porque dispõe do uso normal de força, seja porque seu contato unímodo e constante com os administrados lhe propicia acarretar prejuízos em escala macroscópica, o certo é que a responsabilidade estatal por danos há de possuir fisionomia própria, que reflita a singularidade de sua posição jurídica. Sem isto, o acobertamento dos particulares contra os riscos da ação pública seria irrisório e por inteiro insuficiente para resguardo de seus interesses e bens jurídicos. Ademais, impende observar que os administrados não têm como se evadir ou sequer minimizar os perigos de dano provenientes da ação do Estado, ao contrário do que sucede nas relações provadas (sic). Deveras: é o próprio Poder Público quem dita os termos de sua presença no seio da coletividade e é ele quem estabelece o teor e a intensidade do seu relacionamento com os membros do corpo social. (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. – 15ª ed. refundida, ampliada e atualizada até a Emenda Constitucional 39, de 19.12.2002, p.855). Em face do Código Civil de 1916, sustentava-se que era na culpa que se baseava a responsabilidade civil do Estado, em todas as suas hipóteses. Já na vigência do Código Civil de 2002, vem a doutrina admitindo, não sem críticas, uma divisão na regência da responsabilidade: para os atos comissivos, aplicar-se-ia apenas o art.37, §6º da Constituição Federal, para os atos omissivos, teria aplicação o art.43 do Código Civil. Com essa dicotomia de regência, não concorda diversos autores, dentre eles Gustavo Tepedino. Observa o autor: “Argumenta-se (...) que a omissão pode ser uma condição para que outro evento cause o dano, mas ela mesma (omissão) não pode produzir o efeito danoso. A omissão poderá ter condicionado sua ocorrência, mas não a causou. Daí decorreria que, ‘no caso de comportamento omissivo, a responsabilidade do Estado é subjetiva, atraindo a teoria da culpa anônima ou falta de serviço’. O argumento impressiona por sua argúcia, mas não colhe. Não é dado ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando do legislador constituinte (...). A Constituição federal, ao introduzir a responsabilidade objetiva para os atos da administração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base em outros princípios axiológicos e normativos (dentre os quais se destacam o da isonomia e o da justiça distributiva), perdendo imediatamente base de validade o art.15 do Código Civil de 1916 (atual art.43 do Código Civil de 2002), que se torna, assim, revogado, ou, mais tecnicamente, não recepcionado pelo sistema constitucional”.(TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Apud DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil – 11ª ed. revista, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 778).

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médico-hospitalar, especialmente no tocante ao artigo 37, §6º da Constituição

Federal e o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor.

O artigo 37, §6º da Constituição Federal estabelece que as pessoas jurídicas

de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviços públicos

responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,

assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Ademais, as ações serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente

por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado encontram-se

reguladas em lei especial, qual seja Lei 8.080/1990. O conjunto de ações e serviços

prestados por órgãos públicos federais, estaduais e municipais, da administração

direta ou indireta, integram a rede regionalizada e hierarquizada que constitui o

Sistema Único de Saúde (SUS). Quando insuficientes suas disponibilidades, o SUS

pode recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada mediante contratos de

direito público ou convênios, preferindo as entidades filantrópicas e as sem fins

lucrativos, sendo vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou

subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

O CDC, por sua vez, faz inúmeras referências à prestação de serviços

públicos, notadamente no seu art. 4.º, inc. VIII, que estabelece como princípio da

Política Nacional de Relações de Consumo a racionalização e melhoria dos serviços

públicos. Vale lembrar que o art. 6.º, inc. X alinha como direito básico do consumidor

a eficaz prestação dos serviços públicos em geral. O art. 3.º, caput, também faz

referência expressa à prestação de serviços públicos por pessoas jurídicas de direito

público. Mais adiante o artigo 22 estabelece que os órgãos públicos, por si ou suas

empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de

empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,

seguros166 e, quanto aos essenciais, contínuos167. Para o Código, pouco interessa

166 Mais recente, a Lei 8.987, de 13.02.1995, Estatuto da Concessão e Permissão de Serviços e Obras Públicas, reiterou a observância da boa doutrina e do art.22 do Código de Defesa do Consumidor, dispondo sobre “Serviço Adequado”, no seu Capítulo II, artigo 6º, com o seu caput e §§1º a 3º. Segundo este regramento legal, toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço público adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme as normas pertinentes que da lei ou do respectivo contrato . Em conceitua, depois, que “Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas” (artigo 6º, §1º), para, em seguida, estabelecer que “a atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria de sua expansão do serviço (artigo 6º, §2º). 167 O artigo 22 exige o cumprimento do princípio da continuidade só quando os serviços fornecidos

sejam essenciais. Segundo José Cretella Júnior, “serviços ou atividades essenciais são aqueles que a regra jurídica ordinária define como tal. E a lei tem de ser federal.” De acordo com o artigo 6º do

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se houve ação ou omissão por parte do Estado ou prestador de serviços públicos: a

responsabilidade é objetiva.

A interpretação é pertinente, pois parte do conteúdo do Código de Defesa do

Consumidor, que é lei especial e, portanto, justifica o detalhamento do art. 22, sem

ferir ou mitigar o conteúdo constitucional (art. 5º, XXXII). Pelo contrário, o artigo 22

reforça a incidência do seu conteúdo às atividades desenvolvidas pela

Administração Pública, seus concessionários ou permissionários.

O que se pode notar, portanto, é que, seja em razão do tratamento legal, seja

em razão do enquadramento na definição de serviço de consumo, é possível a

aplicação do Código de Defesa do Consumidor em relação aos serviços públicos em

geral. Porém, cabe identificar em que medida ocorre a incidência das normas do

Código de Defesa do Consumidor, vale dizer, se é possível a aplicação

especificamente no âmbito das relações firmadas no âmbito dos serviços públicos

de saúde.

De fato, o CDC não discrimina quais são os serviços públicos tutelados para

fins de determinar a aplicação ou não das normas consumeristas (se é que se

pretendia afastar da aplicação deste a alguma espécie de serviço público). As

correntes doutrinárias trilham inúmeros entendimentos sobre o tema.

Antônio Herman advoga posicionamento de que todos serviços públicos são

relações de consumo, inclusive os custeados pelos tributos gerais, pois são

atividades fornecidas através de remuneração, ainda que indireta.

Em contrapartida alguns autores advertem que imposto não é remuneração, é

prestação pecuniária imposta aos contribuintes, decorrente da relação de poder

existente entre o Estado e seus administrados, o que descaracterizaria a relação de

consumo. Nesse sentido defende Celso Antonio Bandeira de Melo, para quem a

responsabilidade civil do Estado governa-se por princípios próprios, compatíveis

com a peculiaridade de sua posição jurídica e, por isso, é mais extensa que a

responsabilidade que pode calhar às pessoas privadas.

Há, ainda, autores que não fazem qualquer descriminação a serviços

públicos, admitindo-se, com tal postura, a aplicação do Código de Defesa do

Consumidor a todas espécies de serviços públicos, indistintamente.

Estatuto da Concessão e Permissão, a concessionária ou permissionária somente pode interromper o serviço em situação de emergência ou após prévio aviso, quando motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações e inadimplemento do consumidor, como usuário, considerado sempre o interessa da coletividade (artigo 2º, §3º, incisos I e II).

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Por fim, Ada Pelegrini Grinover entende que, em se tratando de serviços

públicos gratuitos, como ocorre com os hospitais públicos, em que inexiste uma

contraprestação por parte do consumidor na utilização do serviço, não se poderia

aplicar a sistemática prevista no Código de Defesa do Consumidor, nos seguintes

termos:

O dispositivo enfocado pretende assegurar a oferta constante e de boa qualidade dos serviços públicos prestados aos consumidores “uti singuli”, individualizando o consumidor utilitário do serviço, não se confundindo com os serviços públicos “uti universi”, ou seja, difusos, decorrentes da atividade precípuo do Estado, visando ao bem comum, tal como ocorre com a educação pública, saúde (...)168.

Nesse sentido foi aprovada a Súmula de Estudos n.6 do Centro de Apoio às

Promotorias do Consumidor – Cenacon, do Ministério Público do Estado de São

Paulo, que tem a seguinte redação:

São objeto de proteção pelo Código de Defesa do Consumidor e de atribuição das Promotorias de Justiça do Consumidor, os serviços públicos prestados “uti singuli’“ e mediante retribuição por tarifa ou preço público, quer pelo Poder Público diretamente, quer por empresas concessionárias ou permissionárias, sobretudo para os efeitos do seu art. 22. Não o são, porém os serviços públicos prestados “uti universi” como decorrência da atividade precípua do Poder Público.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo sufraga justamente este

entendimento no âmbito da responsabilidade civil médica. A propósito, seguem

diversos trechos de acórdãos:

Em se cuidando de serviço prestado gratuitamente por hospital público, não há que falar em relação de consumo. Os artigos 3 e 14 da Lei n° 8.078/90 não se aplicam ao caso dos autos e por isso não amparam o pedido inicial. (...) Por outro lado, como se trata de dano decorrente de operação cirúrgica, a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público só se caracteriza se demonstrado que houve dolo ou culpa de seus agentes. (...) Em suma, como o caso não é de responsabilidade objetiva, mas de responsabilidade subjetiva do Estado, e como, por outro lado, não foi produzida prova da culpa alegada na inicial, o art. 37, § 6°, da Constituição não ampara a pretensão da apelante169.

168 GRINOVER, Ada Pellegrini ... [et al.]. – Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. – 8.ed. – Rio de Janeiro: Dorense Universitária, 2004, p.89. 169 RESPONSABILIDADE CIVIL. Hospital da Universidade Estadual de Campinas -UNICAMP. Autora

submetida a cirurgia para extração de dois nódulos no pescoço. Lesão de nervo acessório. Conduta culposa dos agentes da autarquia alegada na inicial, mas não demonstrada nos autos. Duas perícias realizadas, que concluíram se cuidar de ocorrência possível em tal tipo de cirurgia, mas não constataram a existência de elementos indicadores de culpa. Demanda que, ao contrário do alegado pela autora, não versa sobre relação de consumo nem sobre responsabilidade objetiva do Estado. Indenização que, em se tratando de erro médico, só pode fundar-se na responsabilidade subjetiva. Improcedência do pedido, dada a inexistência de prova da culpa. Recurso de apelação improvido, não conhecido o agravo retido (Apelação 994092338650 (9929735800). Relator(a): Antonio Carlos

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(...) O fundamento da responsabilidade civil aqui imputada à Autarquia é a norma do artigo 37, § 6º, da CF., in verbis: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa170. INDENIZAÇÃO - SERVIÇO MÉDICO - A PRESTAÇÃO DE SERVIÇO MÉDICO NÃO É UMA OBRIGAÇÃO DE RESULTADO, MAS UMA OBRIGAÇÃO DE MEIO, UMA VEZ QUE NEM SEMPRE UMA BRILHANTE ATUAÇÃO SE REFLETE EM UMA RESPOSTA POSITIVA POR PARTE DO PACIENTE. ASSIM, DE FORMA ALGUMA O ESTADO PODERÁ EVITAR O DANO EM TODAS ESTAS SITUAÇÕES E SER POR ELAS RESPONSABILIZADO - NEXO CAUSAL ENTRE O TRATAMENTO MINISTRADO E A LESÃO CEREBRAL NÃO CONFIGURADO - NÃO SE DEMONSTROU A CONDUTA CULPOSA DA EQUIPE MÉDICA - RECURSO IMPROVIDO171. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE RECÉM NASCIDO. ATESTADO QUE APONTA BRONCOPNEUMONIA COMO CAUSA MORTIS. Não se pode impor à Administração um dever positivo plenário de impedir o curso ordinário da natureza, incluso as leis de sua defectividade, como se admissível responsabilizar o Estado por não importa qual falta de saúde de seus súditos. Entre as excludentes de responsabilidade civil do Estado, estão exatamente o caso fortuito e a força maior, em que a natura rerum se impõe aos idealismos. Não provimento da apelação172.

Decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça, em precedente

amoldável à espécie:

(...) O conceito de ”serviço“ previsto na legislação consumerista exige para a sua configuração, necessariamente, que a atividade seja prestada mediante remuneração (art. 39, § 2º, do CDC). 3. Portanto, no caso* dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF)173.

Villen. Comarca: Campinas. Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Público. Data do julgamento: 26/01/2010. Data de registro: 05/02/2010) 170 Apelação 994020864807 (3015375300). Relator(a): Aroldo Viotti. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 11ª Câmara de Direito Público. Data do julgamento: 18/01/2010. Data de registro: 29/01/2010 171 (APELAÇÃO CÍVEL NQ 730.334-5/0- 00, j . 26.05.2008, rel.Des. PIRES DE ARAÚJO).

172 (APELAÇÃO CÍVEL Ns 224.169-5/2-00, j . 10.02.2006, rel. Des. RICARDO DIP). 173 (STJ, 1§ Turma, R.Esp. 493.181-SP, j . 15.12.2005, DJU 01.02.2006, pág. 431, Rei. a Min. DENISE ARRUDA).

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100

Bastante esclarecedora é a manifestação da Relatora Ministra Eliana Calmon,

proferida nos seguintes termos:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 131, 165 e 458, II, DO CPC CONFIGURADA. APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. PLEITO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. MORTE DE FUNCIONÁRIO EM HOSPITAL PÚBLICO. FATO PRESUMÍVEL. ONUS PROBANDI. 1. É cediço no Tribunal que: ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – ATO OMISSIVO – MORTE DE PORTADOR DE DEFICIÊNCIA MENTAL INTERNADO EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO DO ESTADO. 1. A responsabilidade civil que se imputa ao Estado por ato danoso de seus prepostos é objetiva (art. 37, § 6º, CF), impondo-lhe o dever de indenizar se verificar dano ao patrimônio de outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do preposto. 2. Somente se afasta a responsabilidade se o evento danoso resultar de caso fortuito ou força maior ou decorrer de culpa da vítima. 3. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes dos adeptos da responsabilidade objetiva e aqueles que adotam a responsabilidade subjetiva, prevalece na jurisprudência a teoria subjetiva do ato omissivo, de modo a só ser possível indenização quando houver culpa do preposto. 4. Falta no dever de vigilância em hospital psiquiátrico, com fuga e suicídio posterior do paciente. 5. Incidência de indenização por danos morais. 6. Recurso especial provido174.

Sabe-se que serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou

por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades

essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado175. O

serviço pode ser uti universi, isto é, prestado diretamente pelo Estado, em razão de

seu poder de império e que são fruíveis por toda a coletividade, sem que se possa

individualizar a sua utilização, sendo mantidos por impostos. É o caso da saúde

gratuita. Por outro lado, o serviço pode ser uti singuli, isto é, prestado pelo Estado,

diretamente ou por intermédio de concessionárias, sendo passíveis de

individualização em seu uso, sendo remunerados por tarifa ou preço público.

Neste contexto, a ausência de remuneração específica para os serviços

públicos gerais ou uti universi impede que eles sejam submetidos às disposições do

Código de Defesa do Consumidor, já que o Estado não se enquadra no conceito de

fornecedor adotado pela Lei 8.078/90.

174 .(REsp 602102/RS; Relatora Ministra ELIANA CALMON DJ 21.02.2005 ) 175 Conforme adverte Hely Lopes Meirelles, o conceito de serviço público não é uniforme na doutrina, que ora oferece uma noção orgânica, só considerando como tal o que é prestado por órgãos públicos; ora apresenta uma conceituação formal, tendente a identificá-lo por características extrínsecas; ora expõe um conceito material, visando a defini-lo por seu objeto. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. – 30ª ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 323).

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101

Na realidade, nestes casos não há como se reconhecer uma remuneração

indireta. A uma porque o pagamento do imposto é absolutamente desvinculado da

prestação de serviço, tanto que a verba arrecadada não pode ser vinculada à

prestação de serviço. A duas porque o pagamento do imposto é feito de forma

independente da utilização do serviço. Na realidade, a relação firmada com o Estado

é a de natureza tributária, sendo compulsório o pagamento e não gerando ao

contribuinte qualquer contraprestação específica do Estado. Assim, não há que se

falar em remuneração, ainda que indireta, nos serviços públicos uti universi.

Disso conclui-se, com o devido respeito às divergências neste ponto, que o

fato da Constituição Federal utilizar-se do termo terceiros176 garante a

responsabilização estatal de uma forma geral. No âmbito dos serviços hospitalares

prestados por instituições públicas, a gratuidade não há causa relevante para

desconfigurar a responsabilidade estatal definida na Constituição Federal, mas é

causa suficiente para afastar a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor,

tendo em vista a falta de configuração de uma relação de consumo entre o particular

e o Estado, por ser tratar de um serviço ‘uti universi’ ou serviço não remunerado. O

regime jurídico aplicável é o previsto na Constituição Federal, qual seja o do art. 37,

§6º.

4.1.2 A duplicidade de relações jurídicas e dos sistemas de

responsabilidade: a responsabilidade objetiva e subjetiva

Conforme adverte José dos Santos Carvalho Filho, o texto constitucional, no

que tange à responsabilidade civil, exibe, nitidamente, duas relações jurídicas com

pessoas diversas e diversos fundamentos.

Há uma relação jurídica, disposta na primeira parte do dispositivo, firmada

entre o Estado e o lesado, sendo aquele considerado civilmente responsável por

176 De fato, o artigo 37, §6º da Constituição Federal assegura a terceiros a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos. O conceito de terceiros manejado pelo legislador constituinte, dado o seu alcance, desborda, e muito, do conceito usualmente utilizado. Em conceito jurídico, terceiro designa pessoa que é estranha a uma relação jurídica, isto é, não é parte nem intervêm originariamente na feitura de um ato jurídico. Relativamente aos contratos, terceiro é aquele que não participou do contrato, ou não teve nele qualquer intervenção, pelo que, não sendo parte, não se liga nem é responsável por quaisquer das obrigações derivadas do contrato. É um completo estranho.

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danos causados a este. O fundamento jurídico dessa relação reside no art. 37, §6º

da Constituição Federal.

A outra relação jurídica firmada entre o Estado e o agente está disposta na

segunda parte do dispositivo, pertinente ao direito de regresso. Nesta relação, a

Constituição vinculou as partes à teoria da responsabilidade subjetiva, conferindo ao

Estado o direito de ressarcir-se do montante que indenizou somente se comprovar a

atuação culposa de seu agente. No âmbito da responsabilidade civil médica, esta

relação refere-se àquela firmada entre o Estado e o médico com o intuito de

prestação de serviços médicos.

No âmbito da responsabilidade médica, a relação firmada entre o paciente e o

Estado compreende, além da prestação médica, as atividades complementares ao

atendimento do paciente, entre elas enfermagem, serviço de controle de infecção

hospitalar, limpeza, recepção, transporte e serviços complementares de diagnóstico

e tratamento (laboratório, radiologia, hemoterapia, fisioterapia, nutrição). Trata-se de

uma relação contratual, com implícita cláusula de incolumidade, por ocasião do

atendimento hospitalar. Ou seja, além de agir com prudência, diligência e perícia

através dos seus recursos humanos, no atendimento ao paciente, tem também o

hospital a obrigação de manter incólume o paciente durante sua estadia em suas

dependências.

Assim, o Estado é responsável pela manutenção e fornecimentos de

aparelhos, instalações, fiscalização dos serviços fornecidos, bem como pelo ato do

médico que agir nessa qualidade. Caso ocorra um dano material, estético ou moral

em um hospital público, o Estado deve fazer reparação à vítima177 e depois acionar

o médico responsável, caso ele tenha agido com dolo (intenção) ou culpa

(imprudência, negligência ou imperícia) - a chamada ação regressiva.

Ainda grassa controvérsia sobre o tema da responsabilidade civil subjetiva no

ordenamento jurídico brasileiro, mesmo com a consagração da responsabilidade

objetiva, quando se fala de Estado como causador de dano.

177 Cabe ressaltar que a responsabilidade do Estado pode ser primária ou subsidiária. A responsabilidade primária é aquela atribuída diretamente à pessoa física ou jurídica a que pertence o agente causador do dano. Será subsidiária a responsabilidade quando sua configuração depender da circunstância de o responsável primário não ter condições de reparar o dano por ele causado. Assim, o simples fato de haver delegação do serviço não induz a responsabilidade solidária, salvo na hipótese da Administração concorrer com a pessoa responsável para o resultado danoso. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. – 17ª ed. rev., ampl. e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.492).

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Na defesa da vertente subjetiva da responsabilidade por omissão estatal, tem-

se por maior defensor Celso Antônio Bandeira de Mello, no que é seguido de perto

José dos Santos Carvalho Filho178. Sustenta sua posição na diferenciação preliminar

que faz entre causa e condição e na preexistência de um dever legal de atuação que

foi omitido pelo agente estatal, à similitude da omissão qualificada ou imprópria do

art. 13, §2º do Código Penal Brasileiro. Assim:

Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo. Deveras, caso o Poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as consequências da lesão. Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre subjetiva por comportamento ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa), ou, então, deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo). Culpa e dolo são justamente as modalidades de responsabilidade subjetiva.

Nas instituições públicas, isto é relevante, pois além dos médicos trabalharem

em regime intenso contra uma demanda brutal e sufocante, estafando recursos

humanos e equipamentos e criando focos de resistência à atenção médica, há

demora no agendamento de consultas com especialistas, na realização de exames e

no fornecimento de medicamentos. Há falha no serviço?

Celso Antonio Bandeira de Mello auxilia a elucidação da questão:

Não há resposta a priori quanto ao que seria o padrão de normal tipificador da obrigação a que estaria legalmente adstrito. Cabe indicar, no entanto, que a normalidade da eficiência há de ser apurada em função do meio social, do estádio de desenvolvimento tecnológico, cultural, econômico e da conjuntura da época, isto é, das possibilidades reais médias dentro do ambiente em que se produziu o fato danoso. Como indício destas possibilidades há que levar em conta o procedimento do Estado em casos e situações análogas e o nível de expectativa comum da Sociedade (não o nível de aspirações), bem como o nível de expectativa do próprio Estado em relação ao serviço increpado de omisso, insuficiente ou inadequado. Este último nível de expectativa é sugerido, entre outros fatores, pelos parâmetros da lei que o institui e regula, pelas normas internas que o disciplinam e até mesmo por outras normas das quais se

178 Afirma o autor: “Quando a conduta estatal for omissiva, será preciso distinguir se a omissão constitui, ou não, fato gerador da responsabilidade civil do Estado. Nem toda conduta omissiva retrata desleixo do Estado em cumprir um dever legal; se assim for, não se configurará a responsabilidade estatal. Somente quando o Estado se omitir diante do dever legal de impedir a ocorrência do dano é que será responsável civilmente e obrigado a reparar os prejuízos. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. – 17ª ed. rev., ampl. e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.489).

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possa deduzir que o Poder Público, por força delas, obrigou-se, indiretamente, a um padrão mínimo de aptidão.

Finaliza o autor:

Em síntese: se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. Também não o socorre eventual incúria em ajustar-se aos padrões devidos 179.

Algumas vozes, no entanto, se levantam para sustentar a responsabilidade

integral do Estado pelas omissões genéricas a ele imputadas. Tais vozes se tornam

mais usuais à medida que se revela a ineficiência do Poder Público para atender

certas demandas sociais, como na área da saúde. Não há dúvida de que o Estado é

omisso no cumprimento de vários de seus deveres genéricos: há carências no setor

da saúde, além de outros, como educação, segurança, habitação, enfim, em todos

os direitos sociais (previstos, aliás, no art. 6º, da Constituição Federal). Mas o

atendimento dessas demandas reclama a implementação de políticas públicas para

as quais o Estado nem sempre conta com recursos financeiros suficientes (ou conta

e investe mal). Ainda que compreensível a indignação da população em face das

carências a que se submete, tais omissões, por serem genéricas, não rendem

ensejo à responsabilidade civil do Estado, mas sim à eventual responsabilização

política de seus dirigentes. A responsabilização objetiva por omissões nestas

hipóteses inviabilizaria, na prática, a Administração.

Os artigos 1º, inciso II e III; 5º, caput; 196 e 198 da Constituição Federal,

integrados por vasta legislação infraconstitucional, como a Lei 8.142/90, Lei 101/100

(Lei de Responsabilidade Fiscal) e Lei 10.028/2000 (que altera o Código Penal

dispondo sobre os crimes contras as finanças públicas) evidenciam que o dever do

Estado na garantia do direito à saúde ocorre por meio da implementação de políticas

públicas nessa área, que abrangem a elaboração de leis orçamentárias e sua

respectiva observância, impondo, ainda, o dever de atuação sob os aspectos

preventivo e repressivo da doença, cabendo assistência plena, tanto médica como

179 O autor adverte ainda que a possibilidade de admitir a presunção de culpa do Poder Público não transmuda a responsabilidade subjetiva em objetiva. É razoável, segundo o autor, em razão da posição extremamente frágil ou até mesmo desprotegida ante a dificuldade ou impossibilidade de demonstrar que o serviço não desempenhou como deveria, a inversão do ônus da prova. (MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. – 15ª ed. refundida, ampliada e atualizada até a Emenda Constitucional 39, de 19.12.2002. São Paulo: Editora Malheiros, 2003, p.872 a 874).

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hospitalar, e também o fornecimento gratuito da medicação essencial ao tratamento

da pessoa vitimada.

Por todo este argumento, também se justifica o afastamento da

responsabilidade objetiva por atos omissivos, inclusive no âmbito da

responsabilidade médica-hospitalar das instituições públicas.

A questão também deve ser analisada dentro do todo unitário e harmônico em

que se assenta o sistema jurídico. Donde decorre falar-se em interpretação

sistemática e teleológica180. Nesse contexto, cabe ressaltar ainda a ponderação de

José dos Santos Carvalho Filho, nos seguintes termos:

Há mais um dado que merece realce na exigência do elemento culpa para a responsabilização do Estado por condutas omissivas. O art. 927, parágrafo único, do Cód. Civil, estabelece que ‘Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei’, o que indica que a responsabilidade objetiva, ou sem culpa, pressupõe menção expressa em norma legal. Não obstante, o art. 43 do Código Civil, que, como vimos, se dirige às pessoas jurídicas de direito público, não inclui em seu conteúdo a conduta omissiva do Estado, o mesmo, aliás, ocorrendo com o art. 37, §6º da CF. Desse modo, é de interpretar-se que citados dispositivos se aplicam apenas a comportamentos comissivos e que os omissivos só podem ser objeto de responsabilidade estatal se houver culpa181 (Grifo do autor).

A interpretação teleológica também conduz a mesma solução, pois perscruta

as necessidades práticas da vida social e a realidade sociocultural, consagrando a

equidade como elemento de adaptação e atenuação do rigor das normas, conforme

está consagrado no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

180 Ensina Maria Helena Diniz, “o processo sistemático é o que considera o sistema em que se insere

a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto”. Já o processo sociológico ou teleológico é aquele que tem por fim adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais, conforme dispõe o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Tais técnicas, assim como as outras, não se excluem reciprocamente; antes, se completam. É o que ensina a autora. (DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. – 9.ed., adaptada à Lei 10.406/2002 – São Paulo: Saraiva, 2002, p.160) 181 (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. – 17ª ed. rev., ampl. e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.489).

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É o que ensina Rubens Limongi França:

(...) a finalidade não é ser dura, mas justa; daí o dever do magistrado de aplicar a lei ao caso concreto, sem desvirtuar-lhe as feições, arredondando as suas arestas, sem, contudo, torcer-lhe a direção, adaptando a rigidez de seu mandamento às anfractuosidades naturais de cada espécie. Assim sendo, está obvio que a equidade relaciona-se, intimamente, com o fim da norma, que é o bem comum. É indubitavelmente, o art. 5º da Lei de Introdução que permite corrigir a inadequação da norma à realidade fático-social e aos valores positivados, harmonizando o abstrato e rígido da norma com a realidade concreta, mitigando seu rigor, corrigindo-lhe os desacertos, ajustando-a do melhor modo possível ao caso emergente182

Enfim, é justificável o afastamento da responsabilidade objetiva por atos

omissivos. No entanto, cabe ponderar que não é toda e qualquer abstenção estatal

na área médica que conduzirá à responsabilização estatal. Alguns fatos, como os

poucos recursos humanos e equipamentos, a demora no agendamento de consultas

com especialistas e na realização de exames, que prejudicam sensivelmente a

conduta médica, em especial o diagnóstico, devem ser analisados no caso concreto,

pois a efetividade do direito à saúde por meio de prestações materiais depende da

implementação de políticas públicas, devendo a intervenção do Judiciário observar o

princípio da separação dos poderes. Como se verá adiante, há um limite dentro do

qual a atuação do Poder Judiciário é legítima no sentido de determinar a atuação do

Estado e, por consequência, a sua responsabilidade por abstenção, todavia, esse

divisor de águas muitas vezes é tênue, devendo ser analisado no caso concreto.

De qualquer forma, pode-se concluir que há dois tipos de responsabilidade

civil: a do Estado, objetiva nos casos de atos comissivos e subjetiva nas situações

de atos omissivos; e a do agente estatal, sob o qual incide a responsabilidade com

culpa183.

182 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. – 9.ed., adaptada à

Lei 10.406/2002 – São Paulo: Saraiva, 2002, p.163. 183 Em ambos os casos, a prescrição é trienal. O vigente Código Civil introduziu várias alterações na disciplina da prescrição, algumas de inegável importância. Uma delas diz respeito ao prazo genérico da prescrição, que passou de vinte (específica para direitos pessoais) para dez anos (art.205). Outra é a que fixa prazo de três anos para a prescrição da pretensão reparatória civil. Como o texto se refere à reparação civil de forma genérica, será forçoso reconhecer que a redução do prazo beneficiará tanto as pessoas públicas como as de direito privado prestadores de serviços públicos. Desse modo, ficarão derrogados o Decreto nº20.910/32 e o art.1º -C da Lei 9.494/1997, que dispõe sobre a prescrição das ações contra o Estado e das pessoas jurídicas de direito privado prestadores de serviços públicos, respectivamente. No caso de direito de regresso, por se tratar de regra comum do Direito Civil, também se aplica art.206, §3º, inciso V, que prescreve o prazo de três anos para a pretensão de reparação civil, contados a partir do trânsito em julgado da condenação, segundo orientação do STJ – Resp nº 236.837-RS, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, julg. Em 3/2/2000. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. – 17ª ed. rev., ampl. e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.498).

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4.1.3 A reserva do possível: excludente de responsabilidade

estatal?

Conforme mencionado, a efetivação do direito à saúde, preponderantemente,

deve se dar por meio de prestações positivas, o que implica inversão de dinheiro

público para viabilizar financeiramente a implementação dessas políticas. Diante

dessa realidade, parte da doutrina invoca o princípio da “reserva do possível”184

como obstáculo capaz de limitar a eficácia do direito em exame e, em consequência,

eximir o Estado de responsabilidade quando ausentes os recursos necessários para

suportar a prestação requerida.

De fato, a reserva do possível corresponde a um dado de realidade, um

elemento do mundo dos fatos que influencia na aplicação do Direito. A prescrição do

direito, no caso, a normatividade da Constituição, ao prever determinada conduta

material por parte dos agentes públicos, depende da correspondência entre norma,

fato (realidade) e valor. Dentro desta concepção, é certo que o Direito não pode

prescrever o impossível – e é neste contexto que surge a reserva do possível. No

entanto, há que se tomar cuidado de não mitigar por completo a força prescritiva das

normas, sua função diretora da atuação dos poderes públicos e da sociedade em

geral. Afinal, a Constituição não é meramente um reflexo da realidade, mas é

também o indicativo de um caminho a ser seguido.

A discussão nos tribunais brasileiros sobre a efetividade dos direitos

fundamentais sociais e a aplicação da reserva do possível tem encontrado exemplos

mais frequentes no âmbito do direito à saúde. Alguns tribunais desprezam a questão

relativa ao custo destes direitos, determinando uma aplicação quase que absoluta

184 Andreas J. Krell (Direitos sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Apud OSEN, Ana

Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p.220) destaca que a reserva do possível (Der Vorbehalt des Möglichen) foi primeiramente aplicada pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em acórdão proferido há trinta anos. Em dois processos envolvendo o acesso de cidadãos ao curso de medicina nas Universidades de Hamburgo e Munique, as Cortes Administrativas solicitaram uma decisão da Corte Constitucional Federal a respeito da compatibilidade entre regras legais estaduais que restringiam esse acesso (numerus clausus), e a Lei Fundamental. A questão central, no entanto, não parece ter sido financeira, mas sim dizia respeito à razoabilidade com a alocação destes recursos poderia ser demandada. Ou seja, decidiu-se que, exigir mais, para o fim de satisfação individual de cada cidadão, obrigando o Estado a negligenciar outros programas sociais, ou mesmo comprometer suas políticas públicas, não se mostrava razoável. Atualmente, a reserva do possível ainda mantém seu significado quando aplicada pelas cortes alemãs: um parâmetro de razoabilidade em relação à exigência de prestações a serem cumpridas pelo Estado, tendo em vista o que ele efetivamente tem condições de realizar, e o que realmente precisa ser garantido, de acordo com as normas constitucionais. No Brasil, a reserva do possível sofreu algumas modificações, se comparado com o nascedouro alemão. A preocupação com a proporcionalidade e razoabilidade deu lugar para a questão da disponibilidade de recursos e para o custo dos direitos.

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da norma constitucional, de modo a colocar em segundo plano eventuais

consequências jurídicas de suas decisões para o orçamento público. Outros, por

outro lado, quando confrontados com a questão da alocação de recursos e a

efetividade dos direitos fundamentais sociais, eximem-se de obrigar o Estado à

adoção de políticas públicas, ou mesmo realização de prestações específicas, sob o

fundamento de que estaria havendo uma invasão da competência discricionário do

Executivo185. Além destas duas posições extremadas, há outras em que a questão

do custo é mensurada, ponderada com os bens jurídicos em conflito.

Em casos mais recentes, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do

Rio Grande do Sul e do Estado de São Paulo, adotaram diferentes posições em

relação a este dilema, a primeira impondo condenação ao Poder Público para

fornecimento de exame médico para diagnosticas problemas auditivos, e a segunda,

afastando a obrigação:

AGRAVO. ECA. EXAME MÉDICO. LEGITIMIDADE PASSIVA E SOLIDARIEDADE. INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. BLOQUEIO DE VALORES. Caso concreto. Fornecimento de exame médico para diagnosticar problemas auditivos (CID H 90). Legitimidade passiva e Solidariedade. Os entes estatais são solidariamente responsáveis pelo atendimento do direito fundamental ao direito à saúde, não havendo razão para cogitar em ilegitimidade passiva ou em obrigação exclusiva de um deles. Nem mesmo se o remédio, substância ou tratamento postulado não se encontre na respectiva lista, ou se encontra na lista do outro ente. Direito à Saúde, Separação de Poderes e Princípio da Reserva do Possível. A condenação do Poder Público para que forneça tratamento médico ou medicamento à criança e ao adolescente, encontra respaldo na Constituição da República e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Em razão da proteção integral constitucionalmente assegurada à criança e ao adolescente, a condenação dos entes estatais ao atendimento do direito fundamental à saúde não representa ofensa aos princípios da separação dos poderes, do devido processo legal, da legalidade ou da reserva do possível. Bloqueio de valores. A orientação jurisprudencial da Corte autoriza o bloqueio de valores para o fim de garantir que os entes federados cumpram o direito fundamental à saúde (TJRS. Agravo n.: 70034046201. Relator: Des. Rui Portanova. J. 25/02/2010). Apelação Cível - Informação da recorrente de que os exames a serem realizados não existem comercialmente no Brasil - a saúde é uma necessidade social da mesma forma que educação, saneamento básico, erradicação da fome, transporte, segurança etc. - Cabe ao administrador público atender a todas essas necessidades e muitas outras não visíveis

185 Como exemplo, há o julgamento – já não tão recente - proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado

de São Paulo, em julgamento de pretensão de vítima de distrofia muscular progressiva de Duchenne, que queria o custeio de tratamento médico nos Estados Unidos:

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dentro de um universo que sempre resulta em ônus para o Erário. E, como se sabe, o Tesouro não tem condições de suportar todo esse peso que lhe é imposto - É a realidade social do nosso pai (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil) - É de ser lembrado que deve haver um equilíbrio entre a obrigação constitucional de fornecimento de medicamento e a previsão orçamentária disciplinada pelo art. 167, incisos I, II e V, da CF/1988 - deve ser observado o princípio da reserva do possível que consiste na existência prévia de recursos materiais do Poder Público para atendimento das necessidades sociais - Precedente jurisprudencial - Reexame necessário parcialmente acolhido e apelo da ré provido em parte para arredar a realização, pele Poder Público, de exames que não existem comercialmente no Brasil - apelo adesivo dos autores não provido. (TJSP – Ap. Cív. 184.346-5/0. São Paulo – 9ª Câmara de Direito Privado – Rel. Geraldo Lucena – 01.06.2005).

O Ministro Celso de Mello foi o primeiro ministro do Supremo Tribunal Federal

a tratar longamente sobre o assunto. Confira a decisão por ele proferida, que a

despeito de estabelecer que o Judiciário pode efetivar o direito à saúde, não define

até onde:

Arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tem de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Suprema Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial". Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). (...) É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. (...) Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade

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econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (...) Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. (STF, Relator Ministro CELSO DE MELLO, ADPF 45 MC/DF, DJU. 4.5.2004).

De fato, a reserva do possível é um argumento que não pode ser desprezado,

devendo ser analisado e sopesado quando está em pauta a implementação de

políticas públicas. Ou seja, os direitos fundamentais implicam a realização de

despesas por parte do Estado para se tornarem efetivos, e a problemática da

despesa passa a fazer parte do próprio conceito de direito. No entanto, a reserva do

possível não deve representar a ineficácia das normas de direitos fundamentais

sociais, mas tão-somente a necessidade de sua ponderação. Cabe ao Poder

Judiciário proceder a distinção, verificando, não sem dificuldades e mediante

recursos a dados empíricos, ao postulado da proporcionalidade e ao mínimo

existencial, quais as prestações materiais, e em que grau, são de possível

atendimento.

Neste diapasão, o postulado da proporcionalidade assume relevância

especialmente quando considerado não como proibição de excesso, mas sim como

proibição de proteção insuficiente, de forma a não suprir a pretensão jurídica que o

direito fundamental gera ao seu titular. Isso não significa admitir que a omissão do

Estado possa ser considerada simplesmente proporcional ou desproporcional. A

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análise da proporcionalidade deve se dirigir à conduta que afastou os recursos

necessários à realização daquele direito sob estudo, bem como à prestação material

em concreto. Vale dizer, somente à luz do caso concreto pode ser analisada a

escassez de recursos e a proporcionalidade no sentido de proibição da insuficiência

da atuação estatal.

Além dessa proibição, a noção de mínimo existencial também fornece um

parâmetro material para aferição da possibilidade de aplicação da argumentação

relacionada à reserva do possível. Embora de conteúdo indefinido e variável, de

acordo com o valor vigente na sociedade, a noção de mínimo existencial

corresponde a imperativos da dignidade, que devem ser satisfeitos

independentemente de provisão do mercado e ampliado ao máximo o núcleo

essencial do direito, de modo a não reduzir o conceito de mínimo existencial à noção

de mínimo vital. Afinal, se o mínimo existencial fosse apenas o mínimo necessário à

sobrevivência, não seria preciso constitucionalizar os direitos sociais, bastando

reconhecer o direito à vida.

Cumpre destacar que variam na doutrina as tentativas de definição do que

seria o mínimo existencial, tendo em vista a concepção – até certo ponto subjetiva –

de cada autor daquilo que venha a ser necessidade vital de cada ser humano.

Destaca-se o entendimento de Ana Paula de Barcellos que, com base nas teorias

desenvolvidas por John Raws e Michael Walzer, afirma que o mínimo existencial

corresponderia a um elemento constitucional essencial, pelo qual se deve garantir

um conjunto de necessidades básicas do indivíduo186. Especificamente, quanto à

“saúde básica”, aponta a autora uma posição bastante restrita:

É claro que a definição de quais prestações de saúde compõem esse mínimo envolve uma escolha trágica, pois significa que, em determinadas situações, o indivíduo não poderá exigir judicialmente do Estado prestações possivelmente indispensáveis para o restabelecimento ou a manutenção de sua saúde, caso elas não estejam disponíveis na rede pública de saúde. Esta é uma decisão que, verdadeiramente, gostaríamos de evitar. É certamente penoso para um magistrado negar, e.g., o transplante ou o medicamento importado que poderá salvar a vida do autor da demanda, pelo fato de tais prestações não estarem compreendidas, no mínimo,

186 BARCELLOS, Ana Paula. O mínimo existencial e Algumas Fundamentações: John Raws, Michael

Walzer e Robert Alexy. Apud OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p.314.

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existencial que decorre da Constituição e nem constarem de qualquer outra norma jurídica como uma opção política adicional187.

Ainda que a definição de um mínimo existencial possa variar, considera-se o

que diz a autora Ana Carolina Lopes Olsen, no sentido de reconhecer que

determinadas prestações materiais incumbidas ao Estado pelo constituinte são

essenciais para a manutenção da vida. Assim, sempre que a vida humana estiver

em risco, como comumente acontece nos casos de prestação de serviços médicos

em instituições públicas de saúde, poderá o intérprete aquilatar a presença de um

mínimo existencial. Trata-se de uma incumbência constitucional atribuída ao

Judiciário com vistas à defesa e efetivação das normas constitucionais,

principalmente no que tange à plena justiciabilidade dos direitos fundamentais.

Em suma, não obstante o panorama que os direitos fundamentais sociais vêm

enfrentando para a sua realização, especialmente atrelados à escassez de recursos,

existem meios de contorná-los através da materialidade da Constituição Federal e a

realidade fática, ligando fato, norma e valor. Embora o espaço de discricionariedade

que o constituinte estabeleceu para a atuação da Administração Pública deva ser

respeitado pelo Judiciário, parece que não existe margem de escolha com relação à

satisfação ou não do direito à saúde. Se a discricionariedade administrativa for

utilizada como “válvula de escape” para o direcionamento de recursos para outros

fins que não aqueles impostos pela Constituição Federal como prioritários, ela

representará desvio de poder, e estará sujeita ao controle jurisdicional de

constitucionalidade. Neste diapasão, a reserva do possível não poderá ser alegada

como excludente de responsabilidade estatal, por se tratar de uma escassez

indevidamente produzida, em desrespeito aos princípios constitucionais.

4.1.4 A questão da solidariedade, o direito de regresso do

Estado e o quantum sobre que se exerce

De início, não há qualquer dúvida de que a pessoa jurídica de direito público

ou a de direito privado, prestadora de serviço público têm idoneidade para figurar no

pólo passivo do processo188. Havendo falta pessoal do agente, há lugar à obrigação

187 BARCELLOS, Ana Paula. O mínimo existencial e Algumas Fundamentações: John Raws, Michael

Walzer e Robert Alexy. Apud OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p.314. 188 Questiona-se, todavia, a viabilidade de ação direta contra o agente estatal causador do dano, sem

a presença da pessoa jurídica. O Supremo Tribunal Federal já decidiu não ser possível ação

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solidária de reparar e consequente direito de regresso do Estado em relação ao

agente por quem pagou.

Direito de regresso “é aquele assegurado ao Estado no sentido de dirigir sua

pretensão indenizatória contra o agente responsável pelo dano, quando tenha este

agido com culpa ou dolo”189. Trata-se de um direito exercido pelo Estado por meio

de ação de indenização, que segue o procedimento comum, ordinário ou sumário,

conforme a hipótese, cabendo ao Estado o ônus de provar a culpa do agente, como

estabelece o artigo 333, inciso I do Código de Processo Civil.

Na verdade, há forte divergência doutrinária no tocante à ação indenizatória,

especificamente quanto ao tema da denunciação à lide190.

Há entendimento no sentido de que se o réu não requerer a denunciação à

lide, o processo será válido, e o Estado poderá exercer seu direito de regresso

contra o servidor responsável em ação autônoma a posteriori. Se, por outro lado,

houver requerimento de denunciação à lide, o juiz, segundo esse entendimento,

acolhe o pedido, e o servidor responsável também passa a integrar a relação

processual na qualidade de litisconsorte, sujeito, portanto, aos efeitos da sentença,

direta e solidariamente. Há, por outro lado, quem entenda que não pode haver

denunciação à lide nessa hipótese de responsabilidade estatal, sendo, portanto,

inaplicável a regra do art. 70, inciso III do Código de Processo Civil. Primeiro porque diretamente endereçada ao agente público (RE 327.904-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Britto, em 15.08.2006). Pode o autor, no caso de culpa ou dolo, mover a ação contra ambos em litisconsórcio facultativo, já que eles são ligados por responsabilidade solidária. Não obstante a divergência doutrinária no tocante ao tema da denunciação à lide, há entendimento no sentido de que se o réu não requerer a denunciação à lide, o processo será válido, e o Estado poderá exercer seu direito de regresso contra o servidor responsável em ação autônoma a posteriori. Se, por outro lado, houver requerimento de denunciação à lide, o juiz, segundo esse entendimento, acolhe o pedido, e o servidor responsável também passa a integrar a relação processual na qualidade de litisconsorte, sujeito, portanto, aos efeitos da sentença, direta e solidariamente. No entanto, parece que não pode haver denunciação à lide nessa hipótese de responsabilidade estatal, sendo, portanto, inaplicável a regra do art.70, inciso III do Código de Processo Civil. Primeiro porque o dispositivo do estatuto processual só teria aplicação às hipóteses normas de responsabilidade civil, mas não à responsabilidade do Estado, tendo em vista ser esta regulada por dispositivo constitucional próprio (art.37, §6º). Ademais, diversos são os fundamentos do pedido. O pedido do lesado escora-se na teoria da responsabilidade objetiva do Estado, ao passo que o pedido deste contra o seu agente é calcado na responsabilidade subjetiva. Por fim, não teria cabimento desfazer diretamente o benefício que a Constituição outorgou ao lesado de não discutir a culpa do agente público. Nesse sentido entende José dos Santos Carvalho Filho. No âmbito do direito do consumidor, há vedação expressa a denunciação à lide. Deve-se registrar, porém, que a matéria é bastante controvertida, dividindo-se os Tribunais quanto á adoção de uma ou outra posição. Começa a predominar o entendimento no sentido da admissibilidade da denunciação à lide, não como chamamento obrigatório, como emana do art.70 do Código de Processo Civil, mas de cunho facultativo 189 (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. – 17ª ed. rev., ampl. e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.502). 190 Nas relações de consumo, é vedada a denunciação à lide, conforme dispõe o artigo 88 do Código

de Defesa do Consumidor.

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o dispositivo do estatuto processual só teria aplicação às hipóteses das normas de

responsabilidade civil, mas não à responsabilidade do Estado, tendo em vista ser

esta regulada por dispositivo constitucional próprio (art. 37, §6º). Ademais, diversos

são os fundamentos do pedido. O pedido do lesado escora-se na teoria da

responsabilidade objetiva do Estado, ao passo que o pedido deste contra o seu

agente é calcado na responsabilidade subjetiva. Por fim, não teria cabimento

desfazer diretamente o benefício que a Constituição outorgou ao lesado de não

discutir a culpa do agente público191. Deve-se registrar, porém, que a matéria é

bastante controvertida, dividindo-se os Tribunais quanto à adoção de uma ou outra

posição. Começa a predominar o entendimento no sentido da admissibilidade da

denunciação à lide, não como chamamento obrigatório, como emana do art. 70 do

Código de Processo Civil, mas de cunho facultativo192.

A questão do direito de regresso do Estado em relação ao agente por quem

pagou, em especial no que se refere ao quantum, também não possui solução única.

191 Nesse sentido entende José dos Santos Carvalho Filho. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. – 17ª ed. rev., ampl. e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.501). 192 Várias decisões do Superior Tribunal de Justiça confirmam essa orientação: “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADO (ART. 541 DO CPC E ART. 255 DO RISTJ) – INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO ART. 535 DO CPC – DENUNCIAÇÃO DA LIDE – DIREITO DE REGRESSO – CPC, ART. 70, III – OBRIGATORIEDADE AFASTADA – PRECEDENTES – REDUÇÃO DO QUANTUM DA INDENIZAÇÃO – SÚMULA 7/STJ. (...) A denunciação da lide só é obrigatória em relação ao denunciante que, não denunciando, perderá o direito de regresso, mas não está obrigado o julgador a processá-la, se concluir que a tramitação de duas ações em uma só onerará em demasia uma das partes, ferindo os princípios da economia e da celeridade na prestação jurisdicional, sendo desnecessária em ação fundada na responsabilidade prevista no art. 37, § 6º, da CF/88, vez que a primeira relação jurídica funda-se na culpa objetiva e a segunda na subjetiva, fundamento novo não constante da lide originária. 4. Não perde o Estado o direito de regresso se não denuncia a lide ao seu preposto”.( REsp 955352 / RN RECURSO ESPECIAL. 2007/0120643-4. Relator(a) Ministra ELIANA CALMON (1114). Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA. Data do Julgamento 18/06/2009). “ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. ART. 70, INCISO III, DO CPC.DESNECESSIDADE. AÇÃO DE REGRESSO CONTRA O AGENTE CAUSADOR DO DANO.DEMORA. AJUIZAMENTO DA AÇÃO. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. INVIABILIDADE. I - Encontra-se pacificado o entendimento desta Corte no sentido de que a denunciação da lide torna-se obrigatória na hipótese de perda do direito de regresso, o que ocorre nos incisos I e II do art. 70 do CPC, sendo desnecessária no caso do inciso III do referido dispositivo legal, podendo o Estado, em ação própria, exercer o seu direito, em face do agente causador do dano. Precedentes: REsp nº 528.551/SP, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJ de 29/03/2004; EREsp nº 313.886/RN, Rel.ª Min.ª ELIANA CALMON, DJ de 22/03/2004; REsp nº 150.310/SP, Rel. Min. CASTRO FILHO, DJ de 25/11/2002. (REsp 526299 / PR. RECURSO ESPECIAL. 2003/0047872-5. Relator(a) Ministro FRANCISCO FALCÃO. Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA. Data do Julgamento 18/11/2004).

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Há autores que defendem a solução de repartir o encargo de acordo com a

gravidade da participação culposa de cada um no evento danoso. Por outro lado,

advoga Henoch D. Aguiar, citado por Jose de Aguiar Dias:

“A conclusão parece errônea, porque, ainda quando para chegar a ela, se parta da noção de seguro pelo risco social, seus benefícios não alcançam senão as vítimas do dano e não a seus autores responsáveis; e porque se afasta, sem motivo justificado, do princípio da responsabilidade subjetiva. Com efeito: todo dano proveniente do mau funcionamento de um serviço público se origina sempre, como se disse, da culpa atual do funcionário encarregado de prestá-lo, ou da de outro que atuou no passado e que esteve encarregado de organizá-lo. Por isso, quando é possível a individualização do responsável e o Estado paga a importância do dano causado por ele, paga uma dívida a que estava obrigado, não em razão de culpa, mas em virtude da lei que a impõe, por motivos estranhos a uma figura jurídica, de que, em razão do seu próprio caráter, não pode ser sujeito.193”

Conclui o autor defendendo a solução que outorga ao Estado o direito de

repetir a totalidade da soma paga, o que, segundo Rui Belford Dias, está

consagrado implicitamente no artigo 43 do Código Civil atual.

Em suma, a questão da solidariedade, o direito de regresso do Estado e o

quantum sobre que se exerce são polêmicas, começando a predominar o

entendimento no sentido da admissibilidade da denunciação à lide de forma

facultativa e do direito de repetir a totalidade da soma paga.

193 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil – 11ª ed. revista, atualizada de acordo com o

Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 783).

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5. GERENCIAMENTO DE RISCOS LIGADOS À ATIVIDADE MÉDICA: O TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO

5.1 Aspectos Legais da Autonomia do Paciente no Direito

Brasileiro

Conforme já destacado, desde a Antiguidade, período no qual o médico era

tido como um mago ou sacerdote, dotado de poderes curativos sobrenaturais, o

consentimento exercia um papel meramente demonstrativo da cooperação do

paciente com a intervenção médica e de que nenhuma conduta estava sendo

realizada contra sua vontade194.

Posteriormente, pós-Revolução Industrial e início do séc. XIX, o homem vê-se

como sujeito de direito. No entanto, em casos de moléstia grave, era comum o

médico ocultar esta circunstância, resguardando o doente do choque psicológico195.

Mais modernamente, reverte-se a tendência, já no sentido oposto, de informar

o paciente sobre seu estado e sobre possível conduta médica, conferindo ainda o

direito de autodeterminação frente às revolucionárias tecnologias da área da saúde.

194 A primeira referência histórica do consentimento informado e esclarecido remonta ao ano de 1767, na Inglaterra, nos seguintes termos: “um paciente, Sr. Slater, procurou o Dr. Blaker, que atuava junto com o Dr. Stapleton, para dar continuidade ao tratamento de uma fratura óssea em sua perna. Os dois médicos, sem consultar o paciente, ao retirarem a bandagem, desuniram o calo ósseo, propositadamente, com o objetivo de utilizar um aparelho, de uso não-convencional, para provocar tração durante o processo de consolidação. O paciente foi à Justiça acusando os médicos de terem provocado ‘por ignorância e imperícia’ nova fratura, causando danos desnecessários, além de não terem informado ao consultado sobre o procedimento que seria realizado. Com o objetivo de esclarecer detalhes do caso, foram utilizadas testemunhas peritas, ou seja, outros médicos reconhecidamente competentes nesta área para darem sua opinião sobre o ocorrido. Os dois médicos que testemunharam como peritos foram unânimes em afirmar que o equipamento utilizado não era de uso corrente, que somente seria necessário refraturar uma lesão óssea no caso de estar sendo muito mal consolidada e, finalmente, que eles somente realizariam uma nova fratura em um paciente que estivesse em tratamento com o seu consentimento. O paciente alegou, inclusive, que teria protestado quando o procedimento foi realizado, solicitando que o mesmo não fosse levado adiante. A Corte condenou os médicos por quebra do contrato na relação assistencial com o paciente. (...) Na sentença ficou claro que o juiz estava preocupado tanto com a falta de consentimento quanto com a falta de informação. Vale lembrar que, naquela época, era prática dos cirurgiões informarem o paciente sobre os procedimentos que seriam realizados devido à necessidade de sua colaboração durante as cirurgias, pois ainda não havia anestesia. (KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da Prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.37-38). 195 Conforme já destacado, desde a Antiguidade, período no qual o médico era tido como um mago ou sacerdote, dotado de poderes curativos sobrenaturais, o consentimento exercia um papel meramente demonstrativo da cooperação do paciente com a intervenção médica e de que nenhuma conduta estava sendo realizada contra sua vontade.

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O paciente não mais se conforma com as determinações do profissional da

saúde196.

Acompanhando esse contexto, a Constituição Federal de 1988, consagrou a

vida, a dignidade, a liberdade (autodeterminação) e a saúde. O art. 5º, caput,

assegura a todos aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil o direito à

vida197, e os incisos VI 198 e VIII199, o direito à recusa em respeito às convicções

morais filosóficas ou religiosas; o art. 196200, ao tratar da Ordem Social, dispõe que a

saúde é direito de todos e dever do Estado; o art. 197201 destaca como de relevância

pública as ações e serviços de saúde, incumbindo ao Poder Público dispor, nos

termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua

execução ser feita diretamente ou por meio de terceiros e, também, por pessoa

física ou jurídica de direito privado. O dever de informar possui, portanto, base

constitucional e se assenta no respeito à liberdade, pois não é possível comprometer

a autodeterminação da pessoa, sem seu expresso consentimento202.

196 O marco histórico dessa transição é a Segunda Guerra Mundial, as atrocidades feitas pelo homem, em especial no que se refere às pesquisas com os seres humanos. Desses fatos surgiram importantes documentos, dentre os quais o Código de Nuremberg, a Declaração de Helsinque, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, do qual o Brasil tornou-se signatário no ano de 1948, em razão da aprovação do Decreto Legislativo 226, de 12.12.1991, e promulgação do Decreto 592, de 06.07.1992. Na mesma linha da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e seguindo a tendência mundial, surgiu a Convenção Americana sobre Direitos humanos – Pacto de São José da Costa Rica - aprovada pelo Brasil pelo Decreto-lei 7.935, de 04.09.1992, e promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992, ressaltando a importância de respeito à liberdade pessoal e à justiça social, ao direito à vida, à integridade e à liberdade pessoal. 197 Vivemos num Estado Democrático de Direito. Isto significa dizer que, a lei, além de ser aplicável a todos, deve ter conteúdo e adequação social como princípio básico da dignidade da pessoa humana. Desse princípio decorrem outros, dentre os quais o direito à vida, à saúde, à liberdade, à autodeterminação, à igualdade e à integridade física e moral. Sendo o direito à vida o mais fundamental de todos os direitos, pois se constitui um pré-requisito para a existência e exercício dos demais, a dignidade é uma consequência, ou seja, fala-se em vida digna, não apenas como um valor, mas como um fundamento. A vida constitucionalmente protegida não é uma vida qualquer, mas uma vida digna. 198 “Art.5º, VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 199 “Art.5º, VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. 200 “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. 201 “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”. 202 Como os demais direitos fundamentais, a autonomia não pode ser vista como um direito absoluto, especialmente em caso de doença contagiosa que requeira tratamento, vacinação ou transfusão de sangue para evitar disseminação em massa. A prevalecer o vontade do paciente de forma absoluta,

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Há também legislações infraconstitucionais que refletem essa mudança de

postura quanto às informações sobre a saúde, tais como o Estatuto da Criança e do

Adolescente (Lei 8.069 de 13.07.1990); Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003)203; a Lei

dos Transplantes (Lei 9.434, de 04.02.1997)204 e o Código Penal, especialmente os

dispositivos que tratam sobre os crimes contra a vida, periclitação da vida e da

saúde, honra, lesões corporais, constrangimento ilegal. Há ainda o Código de Ética

Médica, que ressalta a importância da autonomia do paciente e do consentimento

informado e esclarecido em todos os seus termos no tratamento de saúde205.

A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, ao dispor sobre as condições de

promoção, proteção e recuperação da saúde, assegura em seu 7º, V, o “direito à

informação, às pessoas assistidas, sobre a sua saúde”. O parágrafo 3º desse artigo

define ainda como diretriz do Sistema Único de Saúde a preservação das pessoas

na defesa de sua integridade física e moral.

restará ameaçado o interesse público, a saúde pública, que não pode ficar submetida à vontade egoística de uma só pessoa. 203 Seguindo este espírito, o Estatuto do Idoso, em seu artigo 17, garante a pessoas com mais de 65 anos que estejam no domínio pleno de suas faculdades mentais, o direito de escolher o tratamento de saúde que considere mais favorável, mais apropriado. Dispõe expressamente o dispositivo: “Art.17 – Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável”. 204 O art.10 favorece a escolha do paciente em qualquer situação, prevalecendo inclusive sobre a opinião médica, após o aconselhamento sobre os riscos do procedimento de transplante. Assim, mesmo sob risco iminente, ainda assim cabe ao paciente decidir sobre submeter-se ou não aos riscos inerentes ao procedimento. Dispõe o dispositivo: “Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. Parágrafo único. Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida de sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais”. 205 Conselho Federal de Medicina – Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009. “XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”. Exemplificadamente: “Art.46: É vedado ao médico: Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida”; “Art. 56: É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”; “Art.59: Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável.” No entanto, cabe ressaltar que o art.59 confere ao médico a opção de não informar o paciente nos casos em que a informação puder provocar-lhe dano, hipótese em que a comunicação sobre o diagnóstico e o prognóstico deve ser feita a alguém da família. Trata-se de uma exceção que se justifica em razão da angústia, perturbação e incerteza quanto ao prognóstico, que causa desgaste emocional e agravamento do estado de saúde do paciente. A beneficência e o princípio de não prejudicar justificam também a sonegação de informação nesses casos. É o que se denomina privilégio terapêutico.

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Cabe ainda mencionar que a Lei Estadual nº 10.241/1999 de São Paulo206

reconhece como um direito aos usuários do sistema de saúde, o direito a receber

informação clara e adequada sobre terapias e procedimentos terapêuticos,

respeitando valores éticos e culturais.

O Código de Defesa do Consumidor trás ainda como um dos direitos básicos

do consumidor o dever de informação, em seu art. 6º, III, estabelecendo o direito à

“informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com

especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço,

bem como sobre os riscos que apresentem”, noção esta complementada pelos arts.

8º e 9º. E, simetricamente, atribui ao fornecedor o dever de informar o consumidor

em seu artigo 31207. A informação correta está diretamente ligada à lealdade, ao

respeito no tratamento entre as partes.

O Código na realidade reconhece a importância do contrato como forma de

informação do consumidor, protegendo o seu direito de escolha e sua autonomia

racional, através do reconhecimento de um direito mais forte de informação e um

direito de reflexão (art. 49). E ainda dispõe, como linha teleológica (art. 4º, III) e

como cláusula geral (art. 51, IV), o princípio da boa-fé objetiva208.

206 Artigo 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: VI - receber informações claras, objetivas e compreensíveis sobre: a) hipóteses diagnósticas; b) diagnósticos realizados; c) exames solicitados; d) ações terapêuticas; e) riscos, benefícios e inconvenientes das medidas diagnósticas e terapêuticas propostas; f) duração prevista do tratamento proposto; g) no caso de procedimentos de diagnósticos e terapêuticos invasivos, a necessidade ou não de anestesia, o tipo de anestesia a ser aplicada, o instrumental a ser utilizado, as partes do corpo afetadas, os efeitos colaterais, os riscos e consequências indesejáveis e a duração esperada do procedimento; h) exames e condutas a que será submetido; i) a finalidade dos materiais coletados para exame; j) alternativas de diagnósticos e terapêuticas existentes, no serviço de atendimento ou em outros serviços; e l) o que julgar necessário; VII - consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados; VIII - acessar, a qualquer momento, o seu prontuário médico, nos termos do artigo 3º da Lei Complementar n. 791, de 9 de março de 1995; 207 “Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas,

claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”. 208 Seguindo as lições de Cláudia Lima Marques, a boa-fé objetiva consiste numa “atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento

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Também nesse sentido o Código Civil vigente consagra o princípio da boa-fé

objetiva, positiva no art. 422209, além dos direitos da personalidade210 nos arts. 11 ao

21, conferindo ampla e absoluta tutela à pessoa humana211. Os direitos à vida e à

do objetivo contratual e realização dos interesses das partes.” (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª ed. ver. E atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.216). Nesse sentido foi aprovada por unanimidade a Conclusão n.3 no V Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, Belo Horizonte, 02.05.2000: “Os deveres de informação nos contratos de prestação de serviços aplicam-se na fase pré-contratual, contratual e pós-contratual.” E também: Conclusão 2. “ Os deveres de informação expressam o princípio da boa-fé contratual, a exigir transparência nas relações de consumo, nos termos do art.4º do CDC. Visam a à tutela da dignidade de pessoa humana, princípio constitucional diretivo do ordenamento jurídico.” Seguindo o mesmo entendimento, destacam-se as seguintes conclusões do Congresso: “7. O princípio da informação adequada nos contratos relacionais de consumo envolve o dever de informar não apenas no momento da celebração contratual,mas durante todo o período da performance ou execução contratual (aprovada por unanimidade)’. ‘8. O CDC (arts. 6º., incisos III e V; 20, §2º; 31; 36;37;46 e 66) constitui fundamento legal claro e suficiente para obrigar a informação adequada ao consumidor nos contratos relacionais de consumo (aprovada por unanimidade)”. “9. É dever do fornecedor nos contratos relacionais de consumo manter o consumidor adequada e permanentemente informado sobre todos os aspectos da relação contratual, especialmente aqueles relacionados ao risco, qualidade do produto ou serviço ou qualquer outra circunstância relevante para a sua decisão de consumo , durante todo o período em que perdurar a relação contratual (aprovada por unanimidade).” 209 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 210 Os direitos da personalidade são aqueles cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem como da sua projeção essencial no modo exterior. São direitos absolutos, extrapatrimoniais e perpétuos. De seu caráter absoluto decorre a oponibilidade erga omnes, gerando um dever de abstenção quanto à violação. Sua extrapatrimonialidade afasta a possibilidade de transmissão e, em consequência, são direitos impenhoráveis. Sendo perpétuos, não comportam renúncia, nascendo e extinguindo-se com a pessoa, salvo exceções em que há proteção para depois da morte - o cônjuge supérstite ou qualquer parente na linha reta ou colateral até o quarto grau do falecido têm legitimidade para reclamar sanções contra a violação dos direitos da personalidade deste, pois sobrevive-lhe em algumas espécies a proteção legal. 211 A autonomia pode ser manifestar através da recusa ou do consentimento. Quanto à recusa, o art.15 do novo Código Civil a seguir mencionado afasta parcialmente o art.56 do Código de Ética Médica (supracitado), pois com a nova lei, o paciente tem direito de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas e terapêuticas que tragam risco de vida para ele. Pelo novo Código Civil, mesmo ocorrendo iminente perigo de vida, permanece o direito de o paciente não consentir e ser respeitado na decisão, no caso de também haver risco de vida na cirurgia ou tratamento. Não mais se admite a imposição de tratamento ou cirurgia, pelo médico ou qualquer outra pessoa. O Código Civil prevê ainda a não-compulsoriedade em relação a exame médico necessário (art.231), ou seja, o Código resguarda o direito de não ser examinado contra sua vontade, no entanto lacra a possibilidade de aproveitar-se da recusa. Maria Helena Diniz explica o efeito jurídico da recusa: “Quem vier a negar-se a efetuar exame médico, p.ex., DNA, que seja necessário para a comprovação de um fato, não poderá aproveitar-se de sua recusa. Assim, se alegar violação à sua privacidade e não se submeter àquele exame, ter-se-á presunção ficta da paternidade, por ser imprescindível para a descoberta da verdadeira filiação, tendo em vista o superior interesse do menor e seu direito à identidade genética”.( Maria Helena Diniz, Código Civil anotado, 8.ed. atual. de acordo com o novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p.207). Por outro lado, quanto ao consentimento, a vontade do paciente não pode ser considerada, por si só, inteiramente soberana, porque o dever que o médico assume perante o paciente o obriga a nada fazer contra a saúde e integridade física do corpo do doente. Assim, fora dos casos previstos em lei, o aborto praticado com consentimento da gestante é crime. A eutanásia ativa, mesmo consentida ou até solicitada, é crime.

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integridade física estão dispostos nos arts 13 e 15212, além da protetividade

conferida no art. 186213.

Observe-se que, de certa maneira, essas novas leis intervencionistas de

função social vão ocasionar um renascimento da defesa da liberdade de contratar,

da liberdade de escolha do parceiro contratual, através do novo dever de informação

imposto ao fornecedor, para que o consumidor possa escolher o parceiro que melhor

lhe convier. É o nascimento de um forte direito à informação.

No Uruguai, semelhantemente à lei brasileira, a Ley de Relaciones de

Consumo também enuncia o direito de informação no art. 6º, disposto no Capítulo II

denominado Direitos Básicos do Consumidor. Na doutrina, Dora Szafir ensina que a

informação deve ser: “a) veraz, en aras del principio de buena fe objetiva que inspira

a la norma; b) clara: a fin de que el consumidor comprenda cabalmente su

contenido, en um lenguage que debe adaptarse al destinatário del mensaje; y c)

suficiente: en tanto deberá ilustrar adecuadamente acerca de los riesgos y befecicios

Del servicio que se ofrece”.

Bastante esclarecedora é a lição dessa uruguaia sobre o dever de informação

relacionado à intervenção de vários profissionais de uma equipe médica:

Es así, que el médico debe informar los riesgos previsibles según el caso concreto y de acuerdo al estado actual de la técnica y de los conocimientos de la ciência. Si intervienen vários profesionales em um equipo horizontal, la información poderá dividirse entre ellos, asumiendo cada uno lo específico de su especialidad y lo general, respecto de las prestaciones hacia lãs que deriva al paciente. Esto significa que el médico tratante deberá informar al paciente acerca de los riesgos genéricos y el especialista, los específicos. Em ambos casos, cada uno de ellos ejercita los conocimientos de su técnica profesional y nivelará la información que se brinda, em función directa del riesgo214.

212 “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. 213 “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. 214 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor.

São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.254.

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Não obstante, questões relativas à autonomia não são discutidas com

relevância nos tribunais brasileiros. Talvez, a razão para tanto seja o fato de que o

consentimento informado e esclarecido e o direito de recusa de procedimento

diagnóstico ou terapêutico sejam encarados mais como uma questão ética que uma

possibilidade juridicamente tutelada.

5.2 Do Dever de Aconselhar, Informar e Documentar das

Entidades Prestadores de Cuidados de Saúde

O princípio da boa-fé objetiva e o princípio básico da transparência impõem

deveres (e respectivos direitos) especiais de conduta, dentre os quais se destaca,

especialmente no âmbito das atividades do profissional liberal, o dever de

informação. Este, segunda a doutrina estrangeira, subdivide-se em dever de

conselho ou de aconselhamento e o dever de esclarecimento simples. Vale dizer, o

dever de aconselhar e informar são inerentes ao dever de informar.

No serviço de assistência médica, o dever de esclarecimento obriga o médico

a informar através de redação e linguagem clara e acessível ao consumidor

interessado sobre os riscos do serviço de atendimento, as exclusões da

responsabilidade contratual, modificações contratuais possíveis215 etc., sob pena de

inadimplemento parcial ou vício do serviço. Vale dizer, o paciente tem o direito de

ser informado de seu estado, perspectivas e possibilidades, tratamentos existentes e

riscos advindos de cada um, salvo quando a comunicação direta puder provocar-lhe

um dano, devendo, em nome da sua proteção, a comunicação ser feita ao

responsável familiar (art. 59, Código de ética Médica).

Já o dever de aconselhamento é um dever que existe entre um profissional

especialista e outro não especialista, leigo, no caso das relações de consumo, o

consumidor. Tal dever oriundo da exigência de agir com boa-fé alcança tanto o

fornecedor como o consumidor. Em relação ao primeiro, impõe o dever de oferta de

informações claras e suficientemente adequadas sobre os aspectos principais do

serviço (principalmente sobre os riscos) a fim de possibilitar a escolha consciente do

consumidor dentre os possíveis serviços existentes no mercado de consumo. É o

caso, por exemplo, do consentimento informado, válido e eficaz do paciente, que

será estudado em capítulo especial.

215 Cláudia Lima Marques, op.cit., p.228.

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De uma maneira geral, os médicos e as entidades prestadoras de serviços

médicos têm o dever de criar, manter, atualizar e conservar arquivos adequados

relativos ao processo clínico e aos diagnósticos do paciente. No entanto, resta saber

qual o conteúdo desses arquivos; qual é a finalidade desse dever de conservação;

quem deve ou pode ter acesso a esses dados; quais as consequências jurídicas da

inexistência ou insuficiência desses arquivos; que deveres tem o prestador de

cuidados de saúde após a execução dos cuidados médico. É que o será analisado a

seguir.

Quanto ao conteúdo, um arquivo clínico deve incluir detalhadamente a

identificação das pessoas envolvidas no respectivo procedimento (paciente,

médicos, enfermeiros, farmacêuticos etc.), bem como o diagnóstico (incluindo

resultados de análises, exames, imagens etc.). Deve ainda conter a memória da

anamnese, o estado de saúde do paciente no momento da admissão, a evolução do

seu estado de saúde, a informação prestada ao paciente (bem como a forma da

divulgação dessa informação), o registro do consentimento informado por parte do

paciente, os métodos terapêuticos utilizados, a monitorização do paciente, os

fármacos, produtos e materiais utilizados (com a dosagem, lote, marca e outros

elementos relevantes). Deve conter, por fim, o prognóstico216.

Quanto à finalidade, de acordo com a doutrina alemã (Dokumentations-

pflicht), o dever de documentação possui várias funções, quais sejam: instrumento

indispensável para a garantia de qualidade dos cuidados de saúde; instrumento do

dever de prestação de contas por parte do prestador de serviços médicos;

instrumento para memória futura e investigação científica, bem como instrumento

probatório em caso de litígio.

De fato, a qualidade dos cuidados de saúde, o registro preciso e adequado

das condutas assumidas é essencial para a segurança das partes (médicos e

pacientes), já que permite evitar os desvios no padrão de funcionamento da mente

humana e afastar os erros decorrentes do excesso de confiança na memória

imediata217.

216 PATRÍCIO CASCÃO, Rui Miguel Prista. O Dever de documentação do prestador de cuidados de saúde e a responsabilidade civil. Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde. Ano 4 – nº8 – Julho/Dezembro 2007, p. 28. 217 Sobre o tema, Rui Miguel Prista Patrício Cascão cita uma decisão do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra, de 06-10-2005, em que um erro de comunicação inquinou decisivamente o procedimento médico, em razão de uma transcrição para o papel da gravação da análise da momografia da paciente em que a lesão cancerosa se situava nos quadrantes externos da mama

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Ademais, o dever de conservação refere-se, sob o aspecto pessoal, ao dever

de informar o paciente o tratamento médico efetuado (profundamente relacionado

com o direito do paciente de ser informado) e sob o aspecto patrimonial, ao dever de

conservar arquivos. Assim, o dever de conservação realmente configura-se

instrumento do dever de prestação de contas por parte do prestador de serviços

médicos.

O arquivo médico pode ainda ser de extrema importância para gerações

futuras, especialmente nos casos em que é relevante a investigação dos caracteres

genéticos. Pode constituir também fonte importante em sede de investigação

científica e estatística, ressalvado o direito de confidencialidade e da proteção de

dados dos pacientes.

A função talvez que mais interesse ao jurista consiste na função de

instrumento probatório em caso de litígio.

No direito comparado, não resta dúvida quanto à existência do dever de

documentação do prestador de cuidados de saúde.

No direito alemão, o dever de documentação (Dokumentations-pflicht) inclui a

função de conservação da prova em caso de litígio. A consequência da insuficiência

do dossiê clínico (Dokumentationsmängel) é a mitigação do ônus da prova

(Beweiserleichterung). Isto implica o surgimento de uma presunção judicial, a favor

do paciente, que existem indícios circunstanciais de que um ato médico não

documentado não foi efetuado, ou que tendo sido feito, o foi em desconformidade

com a lei.

Na Inglaterra, a questão relativa à responsabilidade civil em caso de um

dossiê clínico incompleto é praticamente ignorada em razão da relutância da

doutrina e da jurisprudência quanto à facilitação do ônus da prova em favor do autor.

Na França, o dever de documentação encontra-se expressamente

regulamentado no Code de La Santé Publique, arts. L 1111-7 e R1111-2218.

esquerda, quando na realidade a análise indicava que a referida lesão se localizava junto aos quadrantes internos. (PATRÍCIO CASCÃO, Rui Miguel Prista. O Dever de documentação do prestador de cuidados de saúde e a responsabilidade civil. Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde. Ano 4 – nº8 – Julho/Dezembro 2007, p. 29). 218 Article L1111-7 -Toute personne a accès à l' ensemble des informations concernant sa santé détenues, à quelque titre que ce soit, par des professionnels et établissements de santé, qui sont formalisées ou ont fait l' objet d' échanges écrits entre professionnels de santé, notamment des résultats d' examen, comptes rendus de consultation, d' intervention, d' exploration ou d' hospitalisation, des protocoles et prescriptions thérapeutiques mis en oeuvre, feuilles de surveillance, correspondances entre professionnels de santé, à l' exception des informations mentionnant qu' elles

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ont été recueillies auprès de tiers n' intervenant pas dans la prise en charge thérapeutique ou concernant un tel tiers. Elle peut accéder à ces informations directement ou par l' intermédiaire d' un médecin qu' elle désigne et en obtenir communication, dans des conditions définies par voie réglementaire au plus tard dans les huit jours suivant sa demande et au plus tôt après qu' un délai de réflexion de quarante- huit heures aura été observé. Ce délai est porté à deux mois lorsque les informations médicales datent de plus de cinq ans ou lorsque la commission départementale des hospitalisations psychiatriques est saisie en application du quatrième alinéa. La présence d' une tierce personne lors de la consultation de certaines informations peut être recommandée par le médecin les ayant établies ou en étant dépositaire, pour des motifs tenant aux risques que leur connaissance sans accompagnement ferait courir à la personne concernée. Le refus de cette dernière ne fait pas obstacle à la communication de ces informations. A titre exceptionnel, la consultation des informations recueillies, dans le cadre d' une hospitalisation sur demande d' un tiers ou d' une hospitalisation d' office, peut être subordonnée à la présence d' un médecin désigné par le demandeur en cas de risques d' une gravité particulière. En cas de refus du demandeur, la commission départementale des hospitalisations psychiatriques est saisie. Son avis s' impose au détenteur des informations comme au demandeur. Sous réserve de l' opposition prévue à l' article L. 1111-5, dans le cas d' une personne mineure, le droit d' accès est exercé par le ou les titulaires de l' autorité parentale. A la demande du mineur, cet accès a lieu par l' intermédiaire d' un médecin. En cas de décès du malade, l' accès des ayants droit à son dossier médical s' effectue dans les conditions prévues par le dernier alinéa de l' article L. 1110-4. La consultation sur place des informations est gratuite. Lorsque le demandeur souhaite la délivrance de copies, quel qu' en soit le support, les frais laissés à sa charge ne peuvent excéder le coût de la reproduction et, le cas échéant, de l' envoi des documents. Article R1112-2 - Un dossier médical est constitué pour chaque patient hospitalisé dans un établissement de santé public ou privé. Ce dossier contient au moins les éléments suivants, ainsi classés : 1° Les informations formalisées recueillies lors des consultations externes dispensées dans l'établissement, lors de l'accueil au service des urgences ou au moment de l'admission et au cours du séjour hospitalier, et notamment : a) La lettre du médecin qui est à l'origine de la consultation ou de l'admission ; b) Les motifs d'hospitalisation ; c) La recherche d'antécédents et de facteurs de risques ; d) Les conclusions de l'évaluation clinique initiale ; e) Le type de prise en charge prévu et les prescriptions effectuées à l'entrée ; f) La nature des soins dispensés et les prescriptions établies lors de la consultation externe ou du passage aux urgences ; g) Les informations relatives à la prise en charge en cours d'hospitalisation : état clinique, soins reçus, examens para-cliniques, notamment d'imagerie ; h) Les informations sur la démarche médicale, adoptée dans les conditions prévues à l'article L.1111-4; i) Le dossier d'anesthésie ; j) Le compte rendu opératoire ou d'accouchement ; k) Le consentement écrit du patient pour les situations où ce consentement est requis sous cette forme par voie légale ou réglementaire ; l) La mention des actes transfusionnels pratiqués sur le patient et, le cas échéant, copie de la fiche d'incident transfusionnel mentionnée au deuxième alinéa de l'article R. 1221-40 ; m) Les éléments relatifs à la prescription médicale, à son exécution et aux examens complémentaires; n) Le dossier de soins infirmiers ou, à défaut, les informations relatives aux soins infirmiers ; o) Les informations relatives aux soins dispensés par les autres professionnels de santé ; p) Les correspondances échangées entre professionnels de santé ; q) Les directives anticipées mentionnées à l'article L. 1111-11 ou, le cas échéant, la mention de leur existence ainsi que les coordonnées de la personne qui en est détentrice. 2° Les informations formalisées établies à la fin du séjour. Elles comportent notamment : a) Le compte rendu d'hospitalisation et la lettre rédigée à l'occasion de la sortie ; b) La prescription de sortie et les doubles d'ordonnance de sortie ; c) Les modalités de sortie (domicile, autres structures) ; d) La fiche de liaison infirmière ;

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3° Les informations mentionnant qu'elles ont été recueillies auprès de tiers n'intervenant pas dans la prise en charge thérapeutique ou concernant de tels tiers. Sont seules communicables les informations énumérées aux 1° et 2°. Tradução livre: Artigo L1111-7 - Toda a pessoa tem acesso a todas as informações relativas à sua saúde realizadas em qualquer título que seja, por profissionais e serviços de saúde, que são formalizadas ou foram objeto de correspondência entre os profissionais de saúde, incluindo resultados dos exames, relatórios de consulta, a intervenção, de exploração ou de hospitalização, tratamento e protocolos requisitos implementados, fichas de acompanhamento, a correspondência entre os profissionais da saúde, com exceção das informações que indiquem que eles foram coletados a partir de terceiros 'não envolvidos no tratamento ou tratamento para um terceiro. Pode aceder a esta informação diretamente ou por intermédio de um médico que isso significa e obter, nas condições definidas pelo regulamento, o mais tardar, dentro de oito dias do seu pedido e, o mais rapidamente que um período de reflexão de quarenta e oito horas, foi observada. Este período é alargado para dois meses, quando a informação médica mais de cinco anos ou quando a comissão departamental sobre psiquiátrica é apreendida nos termos do quarto parágrafo. A presença de uma terceira pessoa durante a consulta de certas informações podem ser recomendadas pelo médico que fixar ou como depositário, por razões relacionadas com os riscos que acompanham os seus conhecimentos seria executado sem a pessoa em causa. A recusa deste último não se opõe à divulgação de tais informações. Em casos excepcionais, a consulta das informações recolhidas no âmbito de um hospital a pedido de um terceiro ou um hospital por iniciativa própria, pode estar sujeito à presença de um médico designado pelo requerente, em caso de risco de particular gravidade. Em caso de recusa, por parte do requerente, a comissão departamental sobre psiquiátricos delitos. Sua opinião é inevitável titular como informações sobre o requerente. Assunto para a oposição a que se refere o artigo L. 1111-5, no caso de um menor, o direito de acesso é exercido pelos detentores do poder paternal. A pedido do menor, tal acesso ocorre por intermédio de um médico. Em caso de morte do paciente, o acesso das pessoas com direito a seu prontuário médico é realizado nas condições estabelecidas pelo último parágrafo do artigo L. 1110-4. On-site consulta é livre informação. Se o requerente pretender de cópias, todo o apoio, o custo para a esquerda para o seu mandato não pode exceder o custo da cópia e, se for caso disso, o envio de documentos. 218 Tradução livre: Artigo R1112-2 - O prontuário é estabelecido para cada paciente em um estabelecimento de saúde público ou privado. Esta pasta contém o seguinte, e ordenou: 1 ° As informações recolhidas durante o procedimento formal de consultas previstas na instituição, em casa, no departamento de emergência ou na admissão e durante a internação hospitalar, incluindo: a) A carta do médico que é responsável pela consulta ou admissão; b) As razões da internação; c) Investigação história e fatores de risco; d) Os resultados da avaliação clínica inicial; e) O tipo de cuidados prestados e as exigências feitas na entrada; f) A natureza dos cuidados e requisitos estabelecidos no ambulatório e emergência mudar; g) As informações relativas aos cuidados de saúde durante a internação: estado clínico, o tratamento recebido, para-exames clínicos, incluindo imagens; h) A informação sobre a abordagem médica, aprovada em conformidade com o artigo L. 1111-4; i) O registro de anestesia; j) O processo sumário ou parto; k) O consentimento escrito do paciente a situações em que tal consentimento é exigido nesta forma da lei ou regulamento; l) A referência para os atos praticados transfusão sobre o paciente e, se for o caso, cópia da transfusão incidente mencionado no segundo parágrafo do artigo R. 1221-40; m) Elementos relacionados com a prescrição médica, o seu desempenho e exames; n) O registro de enfermagem ou, na falta desta, as informações relativas à enfermagem; o) Informações sobre os cuidados prestados por outros profissionais da saúde; p) A correspondência trocada entre os profissionais de saúde; q) As diretivas antecipadas mencionadas no artigo L. 1111/11 ou, quando aplicável, a menção da sua existência e os detalhes da pessoa que possui. 2 ° As informações formalizada no final da estadia. Elas incluem:

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Não obstante a doutrina limitar as sanções no âmbito da responsabilidade

disciplinar, o direito francês traz consequências jurídicas, especialmente quanto ao

ônus da prova. De acordo com a legislação francesa, o ônus da prova recai

normalmente sobre o autor (art. 1382 do Código Civil)219, considerando o prestador

a) O resumo de internação e a letra na saída; b) A limitação da produção e da dupla ordem de saída; c) As condições de saída (casa, outras estruturas); d) A forma de ligação enfermeiro; 3 ° A informação indicando que eles foram recolhidos a terceiros não envolvidos no tratamento ou relativas a tais terceiros. Só são liberadas as informações indicadas nos itens 1 e 2. Article 1382 - Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer. Tradução livre: Artigo 1382 - Qualquer ato do homem que causa dano a outro obriga-o por cuja culpa foi o que aconteceu para repará-la. 218 Tradução livre: Artigo R1112-2 - O prontuário é estabelecido para cada paciente em um estabelecimento de saúde público ou privado. Esta pasta contém o seguinte, e ordenou: 1 ° As informações recolhidas durante o procedimento formal de consultas previstas na instituição, em casa, no departamento de emergência ou na admissão e durante a internação hospitalar, incluindo: a) A carta do médico que é responsável pela consulta ou admissão; b) As razões da internação; c) Investigação história e fatores de risco; d) Os resultados da avaliação clínica inicial; e) O tipo de cuidados prestados e as exigências feitas na entrada; f) A natureza dos cuidados e requisitos estabelecidos no ambulatório e emergência mudar; g) As informações relativas aos cuidados de saúde durante a internação: estado clínico, o tratamento recebido, para-exames clínicos, incluindo imagens; h) A informação sobre a abordagem médica, aprovada em conformidade com o artigo L. 1111-4; i) O registro de anestesia; j) O processo sumário ou parto; k) O consentimento escrito do paciente a situações em que tal consentimento é exigido nesta forma da lei ou regulamento; l) A referência para os atos praticados transfusão sobre o paciente e, se for o caso, cópia da transfusão incidente mencionado no segundo parágrafo do artigo R. 1221-40; m) Elementos relacionados com a prescrição médica, o seu desempenho e exames; n) O registro de enfermagem ou, na falta desta, as informações relativas à enfermagem; o) Informações sobre os cuidados prestados por outros profissionais da saúde; p) A correspondência trocada entre os profissionais de saúde; q) As diretivas antecipadas mencionadas no artigo L. 1111/11 ou, quando aplicável, a menção da sua existência e os detalhes da pessoa que possui. 2 ° As informações formalizada no final da estadia. Elas incluem: a) O resumo de internação e a letra na saída; b) A limitação da produção e da dupla ordem de saída; c) As condições de saída (casa, outras estruturas); d) A forma de ligação enfermeiro; 3 ° A informação indicando que eles foram recolhidos a terceiros não envolvidos no tratamento ou relativas a tais terceiros. Só são liberadas as informações indicadas nos itens 1 e 2. 218 Article 1382 - Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer. Tradução livre: Artigo 1382 - Qualquer ato do homem que causa dano a outro obriga-o por cuja culpa foi o que aconteceu para repará-la. 219 Article 1382 - Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer.

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de cuidados de saúde sujeito meramente de a uma obrigação de meios. No entanto,

há diversas possibilidades de flexibilização do ônus da prova.

No direito português, é pacífico o entendimento quanto ao dever de

documentação do prestador de cuidados de saúde220, disposto expressamente no

art. 77 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos. No âmbito da

responsabilidade civil, em caso de inexistência ou insuficiência do dossiê clínico,

parte da doutrina admite a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do

paciente, considerando provada a falta de consentimento por parte do paciente. Por

outro lado, a falta ou insuficiência do dossiê clínico pode assumir relevantíssimo

acervo probatório, especialmente nos casos em que os dados essenciais e

infungíveis para que o paciente possa provar a culpa do prestador de cuidados de

saúde. Nessas situações, a inversão do ônus da prova decorre do art. 344, da

presunção judicial simples prevista no art. 349, ambos do Código Civil, bem como

dos arts. 519 e 528 a 530 do Código de Processo Civil.

5.3 Pressupostos de Admissibilidade do Consentimento

Informado e Esclarecido

Conforme já exposto, a vida é direito da personalidade e, portanto,

indisponível, de modo que o médico está autorizado, em princípio, a realizar todos

os procedimentos para a recuperação do paciente, após o consentimento informado

e esclarecido do paciente221.

Não obstante o entendimento de alguns autores de que a ausência de

informação não significa necessariamente uma atitude negligente, mas uma

Tradução livre: Artigo 1382 - Qualquer ato do homem que causa dano a outro obriga-o por cuja culpa foi o que aconteceu para repará-la. 220 PATRÍCIO CASCÃO, Rui Miguel Prista. O Dever de documentação do prestador de cuidados de saúde e a responsabilidade civil. Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde. Ano 4 – nº8 – Julho/Dezembro 2007, p. 33. 221 O Código Pena brasileiro trata do constrangimento ilegal – crime contra a liberdade pessoa – no art.146, caput. No entanto, esse artigo não se aplica ao médico na eventualidade de haver iminente risco de vida, nos termos do §3º, inciso I: “Não se compreendem nas disposições deste artigo: I – intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante, se justificada por iminente perigo de vida”. Segundo Damásio de Jesus, a intervenção médica justificada por iminente perigo de vida, ainda que praticada sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal não é fato típico, diante da inadequação entre o fato e a norma de incriminação. Trata-se de hipótese de estado de necessidade de terceiro, capitulado pelo CP como excludente da tipicidade. (JESUS, Damásio. Direito penal, volume 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. – 27. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2005, p. 250). Nesse mesmo sentido, estabelece o Código de Ética Médica, “ Art.56: É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.

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convicção do médico baseado em sua própria experiência ou na literatura

especializada, de que o tratamento proposto, em razão do diagnóstico, era o mais

adequado ao caso concreto, indiscutivelmente essa conduta contraria os princípios

éticos e jurídicos. Ademais, a falta de consentimento para a intervenção pode ser

considerada uma suspeita de manipulação arbitrária ou até mesmo um

constrangimento por parte do médico222.

Assim, regra geral, o consentimento do prejudicado não altera a ilicitude do

ato lesivo. Excepcionalmente, não podem entrar na categoria dos danos irrogados a

si mesmos os que sejam infligidos a uma pessoa com o seu consentimento. É o que

ocorre no caso do consentimento informado e esclarecido do paciente.

O consentimento informado e esclarecido223 é essencial para o respeito à

integridade física e moral do paciente, que deve manifestar sua vontade para a

intervenção médica de forma consciente e livre, mesmo que sujeito a algum risco,

desde que proporcional ao benefício esperado224. O consentimento torna lícita e

justificada a intervenção do médico. Nesse sentido, defende Maria Helena Diniz:

(...) O objetivo do princípio do consentimento informado e esclarecido é aumentar, como diz Mark Hall, a autonomia pessoal das decisões que afetam o bem-estar físico e psíquico. (...) Esse direito de autodeterminação dá origem ao dever erga omnes de respeitá-lo, fundamentando no princípio da dignidade da pessoa humana. (...) Esse consentimento dado pelo paciente, após receber a informação médica feita em termos compreensíveis, ou seja, de maneira adequada e

222 Salvo quando não houver condições de o profissional de saúde obter o consentimento do responsável legal do paciente, a falta de consentimento pode ser considerada constrangimento, de acordo com o Código Penal, art.146, §3º, I: “Art.146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe ter reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: (...) §3º. Não se compreendem na disposição deste artigo: I- a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”. O Código Penal português é mais claro, tratando especificamente sobre as intervenções médicas, nos seguintes termos: “Art. 157. Para efeito do disposto no artigo anterior, o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam suscetíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica”. 223 A doutrina do consentimento esclarecido foi desenvolvida nos Estados Unidos, como forma de proteção à autonomia individual, ao direito de ser livre de interferências não consensuais com sua própria pessoa, e ao princípio moral básico de que não é correto forçar alguém a agir contra sua própria vontade. Essa doutrina orientou a tomada de decisões dos médicos, sendo atribuída as seguintes funções: 1) proteger a autonomia individual; 2) proteger o status do ser humano do paciente; 3) evitar fraude ou compulsão; 4) encorajar os médicos a considerar cuidadosamente suas decisões; 5) impor o compartilhamento racional da tomada de decisão do paciente; 6) envolver o público, de maneira geral, com a medicina. (CASTRO, Op.cit., p. 98). 224 Conforme ressalta João Monteiro de Castro, o princípio é que, para o médico, a integridade física e mental de seu paciente é regra de ordem pública, não cedendo senão em benefício da saúde dele. (CASTRO, Op.cit., p. 122).

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suficiente, é uma condição indispensável da relação médico-paciente e por ele tomada depois da avaliação dos riscos e benefícios225.

O consentimento, na verdade, representa a vontade e concordância do

paciente em relação à intervenção médica226; é um ato pessoal, um ato jurídico

voluntário227, que não se confunde com o contrato sui generis de serviços de saúde,

pois é livremente revogável a qualquer tempo e não constitutivo de direitos para o

médico228. E isto não fere a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, pois a

impossibilidade de renúncia não significa que a pessoa não possa em algumas

225 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p.534-535-536. 226 Dentre os vários entendimentos sobre a teoria do consentimento, ressalta-se a teoria do negócio jurídico, que proporciona uma natureza negocial ao consentimento. Se a paciente consente que lhe seja feito um corte na mama, com o objetivo de fazer um diagnóstico de câncer, essa conduta não será considerada uma lesão corporal. Tal teoria sofre diversas críticas, principalmente em razão da indisponibilidade e disponibilidade do bem jurídico. No entanto, Autoun Fahmy Abdou explica que o bem individual de natureza privada protegido tanto pelo direito privado como pelo direito público pode ser considerado disponível quando o bem é protegido em razão da vontade do seu titular e indisponível quando protegido mesmo contra a vontade do titular. Contra a integridade física, pode-se entender que há uma conduta típica, mas, em razão do consentimento, a conduta é considerada jurídica. (In ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade Civil do Profissional de Saúde e Consentimento informado e esclarecido. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2008, p.76). 227 Cumpre apontar a diferenciação jurídica de fato, ato e negócio jurídico. Pela ordem, fato jurídico é o acontecimento, previsto em norma de direito, em razão do qual nasce, modifica, subsiste e se extinguem as relações jurídicas. O fato jurídico pode ser natural (quando advém de um fenômeno natural, sem intervenção da vontade humana, que produz efeito jurídico) ou humano (quando o acontecimento decorre da vontade humana, abrangendo tanto os atos voluntários (quando os efeitos jurídicos são queridos pelo agente. São eles: ato jurídico em sentido amplo: ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico) como os involuntários (quando os efeitos jurídicos não são queridos pelo agente. É o que se denomina ato ilícito). Ou seja, o fato jurídico é gênero e ato e negócio jurídico são espécies do fato jurídico. O ato jurídico em sentido estrito e o negócio jurídico são manifestações de vontade que diferem na estrutura, função e efeitos. Quanto à estrutura, o ato jurídico é formado por uma ação e vontade simples, cujos efeitos jurídicos dependem de lei; já no negócio jurídico, a vontade é qualificada, com finalidade específica de criação, modificação ou extinção de direitos. Quanto à função, nos atos jurídicos a lei estabelece os efeitos (efeitos ex lege); os negócios jurídicos são instrumentos do interesse privado (efeitos ex voluntate). 228 De acordo com o Código Civil, art.185, ao ato jurídico lícito que não seja negócio jurídico, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título Do Negócio Jurídico. A manifestação de vontade do paciente não gera direitos por parte do médico, em especial no caso de revogação. Além disso, os efeitos produzidos são independentes da vontade, mas decorrem da lei, das disposições referentes à justificação da intervenção do médico. Assim, o ato jurídico deve observar os requisitos formadores do negócio jurídico, previstos no art.104 do Código Civil, quais sejam, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita e não defesa em lei. Em face do consentimento do paciente, é de ver se este era pessoa consciente e responsável e foi devidamente esclarecido sobre os efeitos do exame e dos riscos, agravando-se a deliberação do médico se obteve a anuência sem os interessados estarem devidamente esclarecidos. Deve-se observar também o art.166, VI, do Código Civil, pois o negócio jurídico é nulo quando tiver por objetivo fraudar lei imperativa. Assim, o consentimento informado e esclarecido não deve servir como papel de burocrata, apenas como um meio de desresponsabilização do médico. Deve representar, isto sim, um “processo dialógico e de recíprocas informações entre o paciente e o médico”.(KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.37).

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circunstâncias deixar de exercê-los, mas sim, que pode a qualquer tempo recuperar-

lhes o pleno exercício229.

André Gonçalves Dias Pereira esclarece a questão:

No sentido do entendimento do consentimento como ato jurídico em sentido estrito, muito contribui a distinção, efectuada pela jurisprudência francesa, desde a decisão da Cour de Cassacion de 29 de maio de 1951, entre o consentimento inicial, concomitante com o contrato de prestação de serviços médicos, e a necessidade de antes de cada intervenção ou tratamento o médico obter o consentimento informado e esclarecido do paciente. (...) Efetivamente, o consentimento prestado pelo paciente no domínio médico é duplo. Num primeiro momento, há o consentimento – ‘aceitação’ que permite a conclusão de um contrato médico, pois todo contrato supõe um consentimento válido das partes. Em segundo lugar, há o ‘consentimento’ para o tratamento praticado que representa o corolário do direito do paciente a fazer respeitar a sua integridade física e a dispor do seu corpo230.

Isso significa dizer que, se o paciente revogar o consentimento, nenhum

direito terá o profissional de saúde quanto ao ato jurídico, mas apenas em relação

ao contrato de prestação de serviços, que, mesmo rescindido unilateralmente pelo

paciente, gera o direito do fornecedor cobrar os honorários devidos.

Não obstante o reconhecimento do direito de autodeterminação, questão que

surge desta situação é com relação ao alcance da autonomia, da capacidade para

decidir sobre seu próprio tratamento. Até que ponto é razoável, legal, ético o seu

exercício? Pode o médico adotar um posicionamento paternalista que dispensa a

participação do paciente na tomada de decisão sobre a prática médica tendo em

vista o risco de vida ou saúde?

Para estabelecer esse limite da ação médica frente ao princípio do

consentimento informado, serão utilizadas as lições de Carlos Alberto Silva.

Segundo o autor, a intervenção médica deve pautar-se no Princípio da

Autonomia, e, excepcionalmente, no Princípio da Beneficência, ainda que a decisão

compartilhada venha a ser pior do que a decisão puramente técnica, que, aliás,

também não está isenta de erros. Vale a pena transcrever as palavras do autor, que

aborda com propriedade a questão da autonomia do paciente:

229 Aqui, é importante frisar que o bem ou interesse jurídico envolvido há de ser, se não totalmente, ao menos parcialmente disponível, pois, se for absolutamente indisponível, não há como admitir consentimento válido quanto a ele. 230 In ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade Civil do Profissional de Saúde e Consentimento informado e esclarecido. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2008, p.88.

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Respeitar a autonomia é a expressão do reconhecimento de que cabe ao paciente decidir sobre o próprio corpo, segundo sua visão de vida, fundada em crenças, aspirações e valores próprios, mesmo quando divergentes dos dominantes na sociedade ou dos defendidos pelos médicos. O respeito à autonomia requer tolerância com diferentes visões de mundo. O risco do desacerto sempre acompanhará a autonomia do paciente, é verdade, mas isso não retira sua validade, pois se trata (sic) de conferir tratamento digno ao paciente, valorizando sua participação, o que poderá até facilitar o processo de recuperação231.

Ressalta o autor que o princípio da vontade definido como respeito à

liberdade dos condicionamentos externos, aparentemente confronta-se com o

tradicional princípio da beneficência, que consiste na busca implacável do melhor

resultado de saúde do paciente, independentemente da sua concordância. No

entanto, é possível a compatibilização dos aludidos princípios, uma vez que o

paciente deve ser guiado pela autonomia, e o médico subsidiariamente,

especialmente nas situações de grau de risco extremamente agravado, denominado

pela doutrina de privilégio terapêutico, pela beneficência. Em outras palavras, na

relação médico-paciente, há supremacia do princípio da autonomia em relação ao

princípio da beneficência232.

De fato, como decorrência lógica da proteção à pessoa, do reconhecimento

dos direitos da personalidade, o paciente deve ter autonomia quanto às questões

que envolvam a sua integridade física, moral e intelectual. No entanto, isso não

significa aceitar o suicídio ou concordar com a morte, mas, sim, reconhecer o direito

de opção de tratamento. Frise-se, não se trata de conceder direito de escolha de

morrer233, mas, sim, direito de escolha de tratamento.

Assim, não pode o médico adotar um posicionamento paternalista que

dispense a participação do paciente, na tomada de decisão, sobre a prática médica

tendo em vista o risco de vida ou saúde. A decisão puramente técnica reitera-se não

está isenta de erros. O médico somente pode adotar práticas médicas para salvar a

231 SILVA, Carlos Alberto. O consentimento informado e a responsabilidade civil do médico. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n.63, mar.2003. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3809. Acesso em: 12 julh. 2009. 232 Vale lembrar que o Código Penal, art.146, §3º, dispõe que não se compreende como constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. Trata-se, segundo a doutrina, de uma hipótese de exclusão de tipicidade (DELMANTO, Celso ... (et al). Código penal comentado. – 6.ed. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.315). 233 O suicídio é a supressão voluntária e consciente da própria vida, ou seja, só existe suicídio quando a pessoa quer se matar e sabe que vai morrer como consequência da sua conduta. Não é o que acontece com a situação de opção de tratamento, em que o paciente apenas aceita ou não determinada conduta médica, sem saber qual será o resultado.

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vida do paciente, sacrificando o direito de consentimento, se presente iminente

perigo à vida234.

A doutrina trata o assunto especialmente no âmbito das intervenções

cirúrgicas com uso de anestesia, mas na prática, e corretamente, o consentimento

informado e esclarecido tem sido utilizado nos procedimentos invasivos ou situações

especiais, que, de modo geral, oferecem perigo real mais ou menos certo (diferente

da consequência desagradável ou funesta). De acordo com pressupostos de

admissibilidade de consentimento, de fato, é imprescindível a anuência prévia do

paciente para essas situações.

5.3.1 Capacidade

O ato de consentir é uma manifestação de vontade do paciente aceitando a

intervenção médica, da qual pode resultar lesão ou perigo a um bem ou direito de

quem o concede. Assim, para que a manifestação seja válida, deve ser prestada por

agente capaz, livre de vícios de consentimento.

Segundo a visão tradicional da doutrina, de acordo com os art. 3º, 4º e 5º do

Código Civil brasileiro235 regra geral é válido o consentimento do maior de 18

(dezoito) anos e do emancipado, desde que mentalmente com capacidade plena. 234 Do ponto de vista penal, o médico encontra amparo na excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, estado de necessidade ou mesmo por exercício regular de um direito. Assim, não constitui ilícito penal nem civil a intervenção médica sem o consentimento do paciente se justificada por iminente perigo à vida. 235 Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial. Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade: I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos; II - pelo casamento; III - pelo exercício de emprego público efetivo; IV - pela colação de grau em curso de ensino superior; V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.

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Assim, à pessoa capaz cabe, em princípio, consentir. Circunstâncias especiais,

contudo, podem exigir o consentimento da família (cônjuge, companheiro,

descendentes, ascendentes ou parentes próximos) ou do representante legal do

incapaz (tutor ou curador)236.

Em caso de discordância entre os pais do menor sobre consentir ou não com

a intervenção médica devem ser aplicados os arts. 1.567 e 1.631, parágrafo único

do Código Civil brasileiro, isto é, os pais devem exercer o poder familiar em comum

acordo, mas, se houver discordância, qualquer deles poderá requerer a solução

perante o Poder Judiciário. Com relação ao idoso, deve ser analisada sua condição

física e psíquica para emitir consentimento. Se o idoso não estiver em condições de

consentir, será emitido por seu curador ou familiar ou médico, sucessivamente237.

Nos casos em que o paciente esteja inconsciente e não tenha responsável

legal para autorizar a prática médica, entende-se, de acordo com a posição

tradicional que basta a existência de risco (significativo)238 à saúde ou à vida do

paciente para justificar o afastamento do consentimento informado, vez que

impossível de ser obtido239.

André Gonçalo Dias Pereira, por outro lado, diferencia a capacidade negocial

da capacidade para consentir a respeito de uma intervenção médica. Isto porque o

consentimento para intervenções médicas reveste-se de fortes peculiaridades face

ao tráfico jurídico patrimonial, isto é, ele afeta bens jurídicos pessoalíssimos, coma a

integridade física e a autodeterminação pessoal.

236 Vale ressaltar a observação de Paulo Antonio de Carvalho Fortes sobre o tema: “A avaliação da competência de uma pessoa para tomar decisões é uma das mais complexas questões éticas impostas aos profissionais de saúde, pois desordens emocionais ou mentais, e mesmo alterações físicas, podem comprometer a apreciação e a racionalidade das decisões reduzindo a autonomia do paciente, dificultando sobremaneira o estabelecimento dos limites preciso de capacidade individual de compreensão, de deliberação, de escolha racional. (In CASTRO, João Monteiro de. Responsabilidade civil médica. São Paulo: Método, 2005, p. 111). 237 É o que dispõe a Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso): “Art. 17. Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável. Parágrafo único. Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita: I – pelo curador, quando o idoso for interditado; II – pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contactado em tempo hábil; III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador ou familiar; IV – pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público”. 238 O conceito de risco significativo será abordado no tópico seguinte. 239 Do ponto de vista criminal, a atuação do médico nessa hipótese deve ser tratada como excludente de culpabilidade, por diversos fundamentos: inexigibilidade de conduta diversa, estado de necessidade ou mesmo exercício regular de um direito.

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Segundo o autor, o que configura a capacidade de consentir é a possibilidade

de o paciente racionalmente decidir sobre os valores (custo-benefício do

tratamento)240, os fatos, as alternativas (consequências e riscos), a

autodeterminação em relação à informação recebida e a possibilidade de consentir

perante determinado resultado.

Nesse mesmo sentido advoga Paulo Antonio de Carvalho Fortes, nos

seguintes termos:

(...) qualquer pessoa, independentemente de idade, com condições intelectuais e psicológicas para apreciar a natureza e as consequências de um ato ou proposta de assistência à sua saúde possa tomar suas próprias decisões. Para os adolescentes, defende-se a noção da ‘maioridade sanitária’ que se diferenciaria da ‘maioridade legal’ pela análise da competência decisional do adolescente241.

Diante da falta de regulamentação normativa do assunto, parece mais

aconselhável analisar a capacidade para consentir de acordo com os parâmetros

legais a respeito da capacidade negocial, cabendo ao médico, em razão das

peculiaridades da sua atividade profissional, também analisar a inconsciência

(traumática ou medicamentosa), doença mental, dor, coma, abalo psicológico,

alterações hormonais, a idade do paciente (que também deve ser respeitada nos

casos de paciente menor de idade) 242 e outros.

No fundo, há no sistema jurídico uma lacuna que necessita de ser preenchida

através dos princípios gerais do direito civil que indiquem que a capacidade de

entendimento e de juízo de cada um é um pressuposto dos comportamentos

jurídicos. No domínio da capacidade para consentir a idéia de que a opinião do

incapaz deve sempre, pelo menos, ser tomada em consideração243. O ponto de

partida deverá ser o da capacidade, devendo o médico, no caso em concreto, avaliar

e fundamentar essa capacidade, com base em conhecimentos relacionados com os

parâmetros éticos, legais e clínicos da capacidade de decisão. 240 O custo-benefício do tratamento é uma análise subjetiva, ou melhor, é uma expressão altamente subjetivo-individual. Exemplificadamente é o valor pessoal que têm os dedos de um pianista ou da voz para uma cantora. Portanto, o sistema de valores não é objetivo (do médico ou do legislador), mas sim, subjetivo. 241 (In CASTRO, João Monteiro de. Responsabilidade civil médica. São Paulo: Método, 2005, p. 112). 242 Vale destacar que em Portugal, há uma maioridade especial para o tratamento de saúde, desde que exista o discernimento necessário para o tratamento de saúde. Presume-se que o maior de 14 anos possui idade para consentir. 243 Em termos práticos, mesmo em casos de incompetências transitórias, como a demência senil ou doença de Alzheimer, alcoólicos ou toxicodependentes, em algumas circunstâncias, e na medida do possível, o paciente deve se considerado como parceiro na tomada da decisão.

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Verificada a incapacidade do paciente adulto de consentir, impõe-se que o

representante legal ou assistente seja informado e que seu consentimento seja

obtido. Mas e no caso de incapacidade de fato, isto é, quando não há capacidade

para consentir nem representante legal atribuído: deverá decidir o próprio médico, a

família, ou representante voluntário ou aplica-se a teoria do consentimento

presumido?

No direito comparado, alguns modelos têm sido usados para orientar o

médico e juristas nesta questão do direito médico.

A Declaração dos Direitos dos Pacientes utiliza a solução da vontade

hipotética do paciente. Afirma que devem tomar-se medidas apropriadas para a

aplicação de um procedimento que permita que se alcance uma decisão de

substituição de base do que se conhece e, na medida do possível, do que poderia

presumir-se dos desejos do paciente.

Na Espanha, a doutrina e os instrumentos normativos apontam claramente

para o apelo à família. O consentimento deve ser prestado pelos parentes ou

pessoas próximas, ou em último termo pelo hospital.

Na França, o profissional de saúde deve acorrer ao representante nomeado

pelo paciente ou, subsidiariamente, aos familiares ou próximos. Em caso de

urgência, o médico deve realizar os tratamentos necessários244.

Na Alemanha o consentimento próprio do paciente, mesmo que antecipado, é

sempre preferível ao que é prestado por um representante ou por um juízo de

consentimento presumido (PEREIRA, 2004, p. 231).

Segundo o autor, na Inglaterra o médico atua sem pedir o consentimento a

qualquer pessoa ou entidade, atuando de acordo com os melhores interesses do

paciente. No entanto, entende-se que não pode o médico atuar se houver provas

convincentes (como por exemplo, através de uma diretiva antecipada) de que o

paciente rejeitaria o tratamento. Os familiares devem ser envolvidos nas decisões

relativas ao paciente sempre que possível.

Nos Estados Unidos, dá-se primazia às diretivas antecipadas e, na sua

ausência, à família, substituindo o paciente (PEREIRA, 2004, p. 232).

244 Tradução livre da lei de 4 de Março: “Quando a pessoa é incapaz de expressar seus desejos, sem intervenção ou de investigação podem ser realizadas a menos de emergência ou impossível sem a pessoa de apoio referidos no artigo L.111-6, ou a família, ou alternativamente, um parente, foi consultado”. No mesmo sentido, o art.36, 3 do Código Deontológico: “Se o paciente é incapaz de expressar seus desejos, o médico não pode intervir a menos que os familiares tenham sido notificados e informados, salvo em caso de urgência ou impossibilidade”.

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Verificada a questão da capacidade, passe-se a questão dos vícios do

consentimento.

Não se pode falar em consentimento quando a vontade está eivada de vícios.

Vale dizer, o consentimento pode ser considerado inválido pela existência de

ignorância, o erro245 e a coação246.

A ignorância é a ausência de conhecimento sobre o objeto da decisão. Já o

erro, a falsa noção sobre determinado fato.

O erro ou ignorância assume relevância nesse contexto, haja vista a

dificuldade em atribuir ao paciente, que, em regra, não possui conhecimentos

técnicos para identificar e avaliar o mal de que padece, poder de decisão

semelhante ao médico. Sob esse raciocínio, poder-se-ia pensar que sempre haveria

vício de consentimento, mas não é o que deve ocorrer.

Isto porque o consentimento esclarecido e informado, que tem por finalidade

munir o paciente de informações esclarecedoras sobre os fatores mais relevantes da

situação da sua saúde, afasta a ignorância ou erro sobre o ato médico. Ou seja, a

declaração de vontade emitida após receber informação de forma clara e suficiente

para real compreensão da situação da sua saúde não emana de qualquer erro ou

ignorância.

Assim, provado que não houve informação ou que ela foi insuficiente para

sustentar um consentimento informado e esclarecido, o consentimento obtido é

inválido e o ato médico passa a ser tratado como um ato não autorizado, ou melhor,

houve indução do paciente ao erro, que gera, entre outras consequências, a

anulabilidade do contrato.

O nexo causal, nesses casos, é deduzido segundo critérios hipotéticos ou de

probabilidade objetiva próprios das condutas omissivas. Isto é, parte-se do

245 Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio. Art. 139. O erro é substancial quando: I - interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais; II - concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante; III - sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico. Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante. 246 Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa. Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.

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pressuposto de que o paciente, se devidamente informado, não teria se submetido

ao tratamento, ou teria tomado as precauções devidas, e o dano não teria se

produzido247.

Isso não significa que o médico deverá ser responsabilizado civilmente

automaticamente, em caso de falta ou precariedade de informação. Para que haja

responsabilidade, deve existir, além da negligência, imprudência ou imperícia, um

dano material e/ou moral para o paciente relacionado com a conduta culposa.

5.3.2 Informação

Como manifestação de vontade, o consentimento deve estar baseado na

informação acessível ao nível intelectual e cultural do paciente, na competência, no

entendimento e na voluntariedade248. O importante é fornecer as informações

relevantes e compreensíveis para prevenir ou eliminar quaisquer entendimentos

equivocados, bem como conferir ao paciente a opção entre consentir ou não em

face dos seus princípios religiosos, situação profissional (afastamento no trabalho,

por exemplo), efeitos colaterais (cicatrizes, medicamentos, infecção local etc.). São

informações relevantes aquelas atinentes aos riscos249 que envolvem o exame, tais

como: risco de vida, invalidez, dor e desconfortos.

Na doutrina, há diversas classificações quanto aos riscos médicos. De acordo

com Hermes Rodrigues Alcântara, os riscos podem ser classificados quanto à sua

essência, aos fatores contribuintes, ao grau e à frequência250. Já para André

247 ANGEL JUANES PECES, citado por SOTTO, Débora. O dever de informar do médico e o consentimento informado do paciente. Medidas preventivas à responsabilização pela falta ou deficiência de informação. O dever de informar do médico e o consentimento informado do paciente. Medidas preventivas à responsabilização pela falta ou deficiência de informação. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 178, 31 dez. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4635>. Acesso em: 19 jul. 2009. 248 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2008, p.638. 249 Risco é a probabilidade de perigo, com ameaça física para o homem e/ou para o meio ambiente (risco de vida, risco de infecção, risco de contaminação). (...) responsabilidade ou encargo acerca da perda ou do dano por situação de risco. (...) risco da empresa: possibilidade de prejuízos no exercício da atividade empresarial (...) risco profissional: possibilidade de prejuízos a que se sujeita aquele que exerce uma atividade profissional por sua própria conta (...) (HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.2.462). 250 Pela ordem, em relação à sua essência, o risco pode ser evitável, quando pode ser suprimido ou substituído, ou inevitável, quando, apesar de consideravelmente elevado, não pode ser suprimido ou substituído, pois dele depende o bem-estar do paciente ou mesmo o diagnóstico, como é o caso da aplicação de anestesia nos procedimentos de Endoscopia Digestiva ou Biópsia de Próstata Transretal, em que o uso de anestesia é um procedimento de risco, porém causaria maior sofrimento a falta do seu uso. Os fatores contributivos à essência do risco referem-se às condições pessoais do paciente (baixa resistência física, gravidade da doença, obesidade, problemas cardíacos, carga genética, tabagismo,

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Gonçalo Dias Pereira, o risco pode ser significativo em razão dos seguintes critérios:

(1) necessidade terapêutica da intervenção; (2) em razão da frequência (estatística);

(3) em razão da sua gravidade e (4) em razão do comportamento do paciente251.

Destaca-se a classificação de Hildegard Taggesell Giostri, que define o risco

quanto à sua tipicidade, isto é, o risco pode ser típico ou atípico. O risco típico é

aquele cuja delimitação está em função de uma porcentagem de frequência – fixado

por casos concretos – dando margem a que tal porcentagem possa ser analisada

dentro de critérios flexíveis e adaptáveis, por já serem conhecidos. O risco atípico é

aquele cuja complicação é imprevisível, o que implica não exigir a adoção de

medidas preventivas para evitar sua produção (GIOSTRI, 2005, p.122)

De modo geral, a doutrina tradicional defende que existe apenas a obrigação

de informar o paciente os riscos “normais e previsíveis” (“riscos significativos”), isto

é, aqueles que o médico sabe ou deveria saber que são importantes e pertinentes

para uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias São excluídos, desse

modo, a informação quanto aos riscos graves, particulares, hipotéticos ou anormais.

hábitos pessoas etc.), ao médico (por exemplo, experiência profissional) e às ciências da saúde (falibilidade e recursos). No que tange ao grau, os riscos podem ser leves, graves, gravíssimos e letais, graduados de acordo com a doença, as condições do doente e a possibilidade de dano pelo profissional médico. Quanto à frequência, o risco pode ser baixo, médio, alto ou altíssimo, conforme a possibilidade estatística de aparecimento de determinadas complicações ou danos em atos semelhantes, em determinado tempo e lugar e de acordo com os recursos disponíveis. Assim, risco baixo é aquele em que o dano se manifesta muito raramente; risco médio é aquele em que o dano se manifesta numa proporção que não motive consternação; risco alto é o que se manifesta em elevado número de casos e risco altíssimo, o que se manifesta em proporção relevante. (in ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade Civil do Profissional de Saúde e Consentimento informado e esclarecido. 2.ed.Curitiba: Juruá, 2008, p.118) 251 De acordo com o critério da necessidade terapêutica, o autor defende que quanto mais necessária a intervenção, mais flexível pode ser a informação a propósito dos riscos. Ao contrário, o dever de esclarecer é mais intenso e mais rigoroso no caso das chamadas intervenções menos necessárias, como a cirurgia estética. Nessa avaliação devem-se tomar em consideração a urgência, a necessidade, a perigosidade e a novidade do tratamento e gravidade da doença. Destaca ainda o autor a distinção seguida por alguns doutrinadores entre as intervenções terapêuticas e as intervenções diagnósticas. Assim, quando a intervenção tenha finalidade meramente diagnóstica, entende-se que o dever de informação deva ser mais amplo, tendo em vista a exposição de riscos sem benefícios imediatos. Quanto ao critério do risco significativo em razão da sua frequência, a doutrina é unânime em reconhecer que os riscos frequentes, mesmo que de pouco gravidade, devem ser informados. Por outro lado, há uma forte discussão quanto aos riscos raros e excepcionais, mas de grande gravidade. Ou seja, a doutrina defende que uma forte probabilidade de risco de dano de mínima gravidade para o paciente (por exemplo, 95% de chance de perder um dedo de uma das mãos) deve exigir revelação, enquanto que uma pequena probabilidade de grave dano (por exemplo, 1% de chance de morte) não exige revelação. Por fim, em relação ao critério do risco significativo em razão da gravidade, entende-se que os riscos menos graves podem, em certas circunstâncias, não ser informados. (DIAS PEREIRA, André Gonçalves. O dever de esclarecimento e a responsabilidade médico. Responsabilidade civil dos médicos. Coimbra: Editora Coimbra, 2005, p.452).

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Parece acertado o entendimento quanto ao dever de informar sobre os riscos,

desde que previsíveis, significativos e colocados num contexto apropriado, de

acordo com o risco-benefício, sem uso de expressões técnicas, a fim de capacitar os

pacientes a fazerem escolhas informadas252. Deve-se respeitar o padrão subjetivo

do doente, informando-o inclusive dos riscos que o interessem pessoal e

especificamente.

Certos acontecimentos de utilidade marginal, não devem ser objeto do

consentimento, sob pena de criar uma situação de angústia a todos os pacientes

perante riscos que quase nunca se verificam, além de possibilitar um crescimento da

litigiosidade médica por violação do consentimento, criando o fenômeno da medicina

defensiva253.

A significância do risco deve ser caracterizada conforme a gravidade, a

previsibilidade e possibilidade de ocorrência. Isto é, há dever de informação quanto

aos riscos graves, ainda que ocorram em baixa frequência, conforme a possibilidade

estatística de aparecimento de determinadas complicações ou danos em atos

semelhantes, em determinado tempo e lugar e de acordo com os recursos

disponíveis. Não sendo previsível o risco, a complicação qualifica-se como

improvável (atípica) e deve ser equiparada ao caso fortuito.

Deve-se ponderar, ainda, que a defesa do dever de informação quanto aos

riscos imprevisíveis poderia gerar até mesmo uma forma camuflada de

responsabilidade civil objetiva por todas as consequências negativas da intervenção

médica. Portanto, dessa constatação, na tarefa de imputação dos danos, mister

exigir que somente os riscos significativos, previsíveis e possíveis devem ser

adotados pela ordem jurídica como conteúdo do dever de informação. 252 Miguel Kfouri Neto defende que a dever de informar restringe-se aos riscos mais comuns, pena de se transformar a consulta médica em verdadeiro curso de medicina. Assim, não haveria necessidade de relatar riscos excepcionais, anormais e estranhos, ainda que graves. (KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado e esclarecido: responsabilidade civil em pediatria, responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 301). João Monteiro de Castro, por sua vez, entende que deve ser conteúdo do consentimento informado e esclarecido os riscos e incidentes previsíveis, bem como o seguimento da intervenção e do tratamento projetado. (CASTRO, Op.cit., p.98) 253 No plano do direito comparado, o direito espanhol defende um razoável equilíbrio entre as diferentes perspectivas em sede do dever de esclarecimento sobre os riscos. O art.10 da lei espanhola de Novembro de 2002 estabelece a obrigação de revelar os riscos relacionados com as circunstâncias pessoais ou profissionais do paciente e os riscos prováveis em condições normais. A jurisprudência tem considerado que o médico não tem o dever de prestar uma informação exaustiva, sem que deva estender-se aos riscos imprevisíveis ou infrequentes. Por outro lado, na Alemanha, tem-se considerado que o paciente tem o direito de ser informado do risco mais grave relativo à intervenção a que se vai se submeter. O direito francês também tem adotado essa visão mais ampla.

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5.3.3 A forma do consentimento livre e esclarecido

A forma é o último requisito do consentimento. No ordenamento jurídico

brasileiro, como já foi exposto, vigora a liberdade de forma (CC, art. 107) 254. Mas é

aconselhável, especialmente para os procedimentos mais complexos, o

consentimento informado e esclarecido por escrito255, anterior ao procedimento

médico. Quando verbal, recomenda-se que seja testemunhada. Havendo novas

254 Código Civil, “Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. 255 Somente para fins de exposição, vale a pena a registrar uma exceção à liberdade de forma: o consentimento para doação de órgãos, na qual o consentimento do receptor deve ser expresso e efetivado após o aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. O doador também deve manifestar o seu consentimento, preferencialmente por escrito e diante de 2 (duas) testemunhas. Nesse caso, o consentimento expresso é essencial à sua validade. É o que dispõe a Lei 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, nos seguintes termos: “Art. 4o A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)”. “ Art. 5º A remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa juridicamente incapaz poderá ser feita desde que permitida expressamente por ambos os pais, ou por seus responsáveis legais. “Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. § 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. § 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada. § 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização. § 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde. (...)§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais.” Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) § 1o Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida da sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) § 2o A inscrição em lista única de espera não confere ao pretenso receptor ou à sua família direito subjetivo a indenização, se o transplante não se realizar em decorrência de alteração do estado de órgãos, tecidos e partes, que lhe seriam destinados, provocado por acidente ou incidente em seu transporte. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) Parágrafo único. Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida de sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais.”

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circunstâncias no curso da intervenção, a urgência pode obrigar o médico a agir

imediatamente; caso contrário, deve interromper o ato e obrigatoriamente informar o

paciente para obter o consentimento256.

O consentimento informado e esclarecido do paciente além de ser um

instrumento de respeito aos direitos do paciente, assume também relevância quanto

ao valor probatório enquanto dever de documentação por parte do profissional de

saúde. Isto porque a forma documental do consentimento auxilia a instrução

probatória.

Deve-se lembrar que como a prova do descumprimento do dever de informar

é especialmente difícil para o paciente e considerando-se que, no que tange ao

conhecimento das enfermidades e ao domínio das técnicas de tratamento, este é

hipossuficiente perante o médico, a inversão do ônus da prova é não apenas

possível, como extremamente provável, sendo de prudência que os profissionais

médicos estejam preparados para essa eventualidade.

Ademais, a informação dada por escrito oferece também melhor

entendimento do paciente em razão da possibilidade de releitura ou

questionamentos e reflexão.

Por óbvio, o consentimento deve ser dado antes do início do procedimento

médico. Havendo novas circunstâncias no curso da intervenção, a urgência pode

obrigar o médico a agir imediatamente; caso contrário, deve interromper o ato e

obrigatoriamente informar o paciente para obter o consentimento257.

256 Paulo Antonio de Carvalho Fortes pondera que a prática comum adotada, principalmente em ambientes hospitalares, do ‘termo de responsabilidade’, como instrumento permanente e imutável, pode estar violando a vontade autônoma da pessoa frente às modificações importantes no estado de saúde. (CASTRO, João Monteiro de. Responsabilidade civil médica. São Paulo: Método, 2005, p.117). No entanto, cumpre ressalvar que o princípio do consentimento informado não é tão absoluto de modo a rejeitar temperanças, e exigir do médico reiteradamente autorização para agir, sob pena de colocar em risco a própria vida do paciente. Nesse sentido, já foi decidido: “Cirurgia não prevista detectada no curso da operação combinada – Ausência de consentimento do paciente para o segundo ato – Circunstâncias que impunham ao cirurgião o dever de realizá-lo. O princípio do consentimento não é absoluto a modo de rejeitar temperanças – pode o médico atuar, sem prévia consulta ao enfermo, se as circunstâncias assim impuserem, isto é, se o mal não previsto colocar em risco a vida do paciente e se diagnosticado à vista de diligências compatíveis. O diagnóstico é o resultado de um julgamento e pode ser errôneo se o julgamento é falho, apesar de todos os cuidados e competência profissional. Inexistência, in casu, de culpa contra a ilegalidade.” (APCiv 5.373/89 – EI 208/90 – RJ – j.20.12.1990 – Rel. Des. José Domingues Modedo Santoni). 257 Paulo Antonio de Carvalho Fortes pondera que a prática comum adotada, principalmente em ambientes hospitalares, do ‘termo de responsabilidade’, como instrumento permanente e imutável, pode estar violando a vontade autônoma da pessoa frente às modificações importantes no estado de saúde. (CASTRO, João Monteiro de. Responsabilidade civil médica. São Paulo: Método, 2005, p.117). No entanto, cumpre ressalvar que o princípio do consentimento informado não é tão absoluto de modo a rejeitar temperanças, e exigir do médico reiteradamente autorização para agir, sob pena de colocar em risco a própria vida do paciente. Nesse sentido, já foi decidido: “Cirurgia não prevista

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No entanto, deve-se atentar para não transformar o consentimento informado

e esclarecido em burocracia ou em simples formulários padronizados em que o

paciente apõe sua assinatura. O termo de consentimento pode auxiliar o diálogo

entre o médico e o paciente, mas nunca o substitui.

Assim, a simples assinatura sem a informação torna o consentimento inválido.

É o caso de minutas pré-elaboradas, de redação deficiente, vagas e imprecisas, que

permitem, por exemplo, uma intervenção médica a qualquer médico do serviço, não

apenas àquele envolvido na obtenção do consentimento e na documentação do

respectivo esclarecimento. Da mesma forma não tem validade o documento

extremamente rígido, com permissões ou recusas, informações deficientes,

unilaterais258.

No entanto, é razoável considerar uma assinatura de um termo de

consentimento no momento de uma internação ao menos uma tentativa de

esclarecimento naquele instante específico, sendo o aconselhamento adaptado às

circunstâncias especiais daquele momento. Nessa situação, a exibição de

documentos assinados pelo paciente ou por seu responsável legal não pode ser

interpretada judicialmente como uma conduta abusiva ou até mesmo de má-fé, mas

sim, como uma tentativa de esclarecimento considerando a situação especialíssima

daquele paciente259.

Não havendo forma prescrita em lei, também é admissível como meio de

prova relativamente confiável e consistente o testemunho de colegas, colaboradores

e até de outros pacientes de que o médico cumpre habitual e diligentemente o dever

de informar e de obter um consentimento esclarecido.

detectada no curso da operação combinada – Ausência de consentimento do paciente para o segundo ato – Circunstâncias que impunham ao cirurgião o dever de realizá-lo. O princípio do consentimento não é absoluto a modo de rejeitar temperanças – pode o médico atuar, sem prévia consulta ao enfermo, se as circunstâncias assim impuserem, isto é, se o mal não previsto colocar em risco a vida do paciente e se diagnosticado à vista de diligências compatíveis. O diagnóstico é o resultado de um julgamento e pode ser errôneo se o julgamento é falho, apesar de todos os cuidados e competência profissional. Inexistência, in casu, de culpa contra a ilegalidade.” (APCiv 5.373/89 – EI 208/90 – RJ – j.20.12.1990 – Rel. Des. José Domingues Modedo Santoni). 258 KOURI NETO, Miguel. Op. cit., p. 315. 259 Conforme adverte André Gonçalo Pereira “os prestadores de cuidados de saúde podem ser acusados de usarem estes documentos como forma de se libertarem do fardo da prova da obtenção de um consentimento informado”. (SOTTO, Debora. O dever de informar do médico e o consentimento informado do paciente. Medidas preventivas à responsabilização pela falta ou deficiência de informação. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 178, 31 dez. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4635>. Acesso em: 19 jul. 2009). Não parece ser o entendimento mais acertado, pois os termos de consentimento devem ser considerados instrumentos auxiliares do cumprimento do dever de informar, e não o contrário.

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Aconselha Débora Sotto, para a necessária documentação do cumprimento

do dever de informar, que os formulários padronizados sejam utilizados apenas em

procedimentos e situações especiais. Segundo a autora, os médicos devem utilizar

outros meios de prova, dentre os quais destaca o prontuário ou processo clínico do

paciente. Destaca a autora:

A anotação diligente no prontuário de todas as providências tomadas em relação ao paciente, inclusive com a indicação dos nomes das pessoas que tenham assistido ao concreto diálogo de esclarecimento, é providência relativamente, mas já suficiente para provar em juízo o cumprimento do dever de informar, seja pela exibição do prontuário médico, seja pela oitiva das pessoas ali indicadas260.

De fato, esses documentos são de extrema relevância no que tange à

instrução probatória quanto ao cumprimento dos deveres dos médicos261. No

entanto, não se pode olvidar que há diversas especialidades que não utilizam esses

documentos, haja vista a sua área de atuação. É o que ocorre nos diagnósticos por

imagem em clínicas médicas particulares, por exemplo, em que a única

documentação referente a cada paciente é o próprio exame médico (ex. tomografia

computadorizada de tórax). Nesses casos, o formulário padronizado pode ser

utilizado como instrumento auxiliar do cumprimento do dever de informar,

especialmente quanto à possibilidade de reação alérgica (adversa) decorrente do

uso de contraste262.

260 SOTTO, Debora. O dever de informar do médico e o consentimento informado do paciente. Medidas preventivas à responsabilização pela falta ou deficiência de informação. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 178, 31 dez. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4635>. Acesso em: 19 jul. 2009. 261 No direito comparado, vale a pena destacar uma decisão sobre o tema: “Para determinar a existência de responsabilidade médica por danos causados a um doente não basta fundamentar-se esta apenas na história clínica, pois pelo facto de certos factos dela constarem não significa ineludivelmente que se actuou com negligência. Se a história clínica elaborada pelo médico accionada é sumariamente deficiente, ao não reproduzir na totalidade as cirscunstâncias que teriam permitido reconstruir com exactidão o quadro clínico do paciente, essa insuficiência, ainda que possa constituir uma presunção contra o médico que, conjugada com outros elementos, possa levar à convicção de negligência profissional, não basta, por si só, concluir que se não praticaram os actos médicos que a (arte) exigia. (GONZÁLEZ, José Maria Miquel; MORILLO, Andrea Márcia et all. OLIVEIRA, Guilherme (coord.). Responsabilidade civil dos médicos. Centro de Biomédico Biomédico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.285). 262 O contraste é uma substância utilizada para aumentar a definição de órgãos em exames como raios-X, tomografia computadorizada e ressonância magnética. Geralmente, essa substância é tolerada pelo organismo e podem ter três matérias-primas principais: sais de bário, gadolínio e iodo. O contraste à base de bário é ingerido e auxiliam a visualização de órgãos do aparelho digestivo durante a realização de radiografias ou tomografias. O contraste à base de gadolínio é um íon metálico paramagnético com baixa frequência de reações adversas. O contraste à base de iodo é uma substância radiopaca que tem por fim melhorar a visualização das estruturas anatômicas, porém pode causar reações adversas indesejáveis que se devem, principalmente, à alta osmolalidade do

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De qualquer sorte, independentemente da forma (termo de consentimento,

prontuário médico ou processo clínico do paciente), o consentimento pode ser

revogado a qualquer tempo pelo paciente, devendo o médico abster-se da

intervenção. O consentimento do paciente é sempre temporário, ou seja, válido

enquanto mantidas as condições em que foi colhido, devendo ser renovado sempre

que o estado ou a situação do doente sofrerem qualquer alteração significativa.

Trata-se de um direito que deve ser esclarecido e assegurado ao paciente.

Questão que incita dúvida refere-se à possibilidade de se admitir o

consentimento presumido ou hipotético em razão de não existir a vontade real do

paciente.

João Monteiro de Castro, por exemplo, advoga que o consentimento pode ser

tácito ou expresso, desde que envolva uma demonstração perceptível por parte de

quem os concede263. Tem-se entendido, no entanto, que o consentimento presumido

somente deve ser admitido se a conduta tiver por escopo interesse direto do

paciente264, nos casos de urgência e inadiável procedimento265.

contraste em relação ao sangue. O contraste iodado pode ser do tipo iônico ou não iônico. Este, mesmo sendo mais seguro e com maior tolerabilidade, possui um alto custo que impede a sua utilização indiscriminada. Assim, o contraste iodado não iônico é amplamente mais utilizado. As reações alérgicas graves a esse meio de contraste, apesar de pouco frequentes (uma em 400.000 casos) e poderem ocorrer em pacientes que já receberam contrastes previamente sem qualquer sintoma de reação adversa, são inevitáveis, podendo variar em severidade. As reações são classificadas como leves, moderadas, graves ou fatais. São consideradas reações adversas leves, que demandam apenas observação: náusea, vômito, calor, alteração do paladar, sudorese, leve palidez, dentre outras. São consideradas reações adversas moderadas, que requer uma observação cuidadosa e frequentemente tratamento medicamentos: vômitos intensos, dor torácica e abdominal, urticária intensa, hipertensão, hipotensão etc.. São consideradas reações adversas graves, que exigem atendimento imediato em razão da maior morbiletalidade e hospitalização, os sintomas associados à inconsciência, convulsão e parada cardiorrespiratória. Há ainda reações adversas fatais, como o colapso cardiorrespiratório, coma e obstrução da via aérea (edema de glote). A veracidade das informações do paciente quanto à realidade da sua saúde é essencial, pois o médico, ao avaliar o risco-benefício do procedimento, deve analisar os fatores associados à ocorrência de reações adversas ao contraste iodado. Assim, o paciente deve informar sobre eventual história prévia de reação adversa ao meio radiopaco, história de asma ou alergias, arritmias cardíacas, insuficiência renal etc. JUCHEM, Beatriz Cavalcanti e DALL´AGNOL, Clarice Maria. Reações adversas imediatas ao contraste iodado intravenoso em tomografia computadorizada. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v15n1/pt_v15n1a12.pdf. 263 O autor adverte aspectos relevantes sobre o tema, citando ponderações de José Henrique Pierangeli: “É importante fixar, contudo, que a solução não é fácil. O Juiz deverá, em cada caso, diferenciar se se trata de uma sucessão de fatos tacitamente consentidos, ou de uma reiterada violação do bem jurídico de pessoa que não queria, absolutamente, renunciar à tutela jurídica”. (CASTRO, João Monteiro de. Responsabilidade civil médica. São Paulo: Método, 2005, p. 112). 264 A jurisprudência alemã, no entanto, é muito exigente quanto à prova do consentimento hipotético. Não basta provar que um doente aceitaria uma intervenção urgente que visasse evitar consequências graves para a saúde do paciente. É necessário provar que se verificam as condições que corresponderiam à vontade daquele paciente em si. Na Suíça, a doutrina e a jurisprudência dominante admitem o consentimento hipotético. No direito francês, a Cour de Cassation admitiu que, caso se demonstre, com toda a probabilidade, que o paciente não informado teria autorizado a

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Em suma, o consentimento informado e esclarecido deve ser feito por escrito,

antes do início de procedimento médico que gere ao paciente risco significativo, isto

é, grave, previsível ou de possível ocorrência, como nos casos de procedimentos

invasivos266. Sempre com o fim de oferecer ao paciente condições para reflexão e

questionamentos.

5.4 Efeito do Consentimento Informado e Esclarecido:

Gerenciamento de Riscos de Conduta

De acordo com a doutrina brasileira, fora dos casos em que há exigência legal

de redução por escrito do consentimento, tais documentos não se destinam, em

princípio, a isentar os médicos ou hospitais da responsabilidade. Até porque admitir

disposição contratual de não-indenizar, além de ser vedado expressamente pelo

Código de Defesa do Consumidor (arts. 24 e 25), é manifestamente abusivo (art. 51,

I). Valem, sem dúvida, para registrar o cumprimento dos deveres e observância dos

direitos do paciente.

Havendo consentimento informado e esclarecido, tanto os deveres

relacionados à técnica médica como o dever de informar e obter o consentimento

devem ser analisados para fins de responsabilidade civil. A importância da

informação e do consentimento deve ser observada também para a configuração ou

agravamento da culpa médica, caso já configurada a falha da técnica médica. São

deveres autônomos, que devem ser analisados conjuntamente para fins de

responsabilidade civil.

Claro que o consentimento não é uma série atomística de assunções de risco,

mas sim um balanço global, uma ponderação global de riscos-benefícios.

intervenção, mesmo que se lhe tivesse informado previamente dos riscos existentes, não haverá lugar a qualquer responsabilidade civil do médico. (DIAS PEREIRA, André Gonçalo. Responsabilidade civil dos médicos. Coimbra: Coimbra, 2005, p. 483-487). 265 Diante de uma urgência, vale dizer, a constatação de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente à vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, intervenção médica imediata, o profissional, em decorrência dos deveres a ele impostos por lei, está legitimado a agir. 266 Procedimentos médicos invasivos são aqueles em que o corpo é "invadido" ou penetrado por uma agulha, tubo, dispositivo ou outros instrumentos para a realização de exames. Já os procedimentos não invasivos são aqueles que não envolvem instrumentos que rompem a pele ou que penetram fisicamente no corpo, tais como o exame oftalmológico padrão, tomografia computadorizada simples (sem uso do contraste iodado), ressonância magnética, monitor Holter e Eletrocardiograma de repouso.

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O consentimento informado e esclarecido produz certo efeito preventivo, vez

que oferece ao paciente, elementos suficientes para distinguir os riscos e as

consequências do ato médico falho, ou melhor, oferece elementos para identificar o

erro ou o que é fruto do risco267. Exemplificadamente, quando um paciente é

informado e esclarecido a respeito de eventual inflamação decorrente da retirada de

um fragmento por biópsia, caso essa consequência efetivamente ocorra, restará

nítido ao paciente que se trata de uma consequência do procedimento médico, e

não de uma falha médica268. Nesse diapasão, pondera Maria Helena Diniz:

A obtenção do prévio consentimento esclarecido seria a medida mais eficaz no que se refere ao gerenciamento de riscos de conduta, diminuindo, certamente, o número de processos judiciais sem fundamento técnico. Deverá o médico evitar as justificativas pós-consequências, que trazem ao paciente e aos seus familiares uma enorme desconfiança, uma vez que soam como tentativas de cobrir uma falha profissional269.

Assim, ensina a autora que a obtenção do prévio consentimento esclarecido

seria uma medida capaz de prevenir os questionamentos do paciente-consumidor,

relativos aos serviços de saúde utilizados por ele. É o que a autora denomina

gerenciamento de riscos de conduta270, nos seguintes termos:

O gerenciamento de riscos de conduta consiste no emprego de medidas amplas para eliminar ou reduzir outras causas que levam o paciente a questionar os serviços de saúde, independentemente da existência do erro, mas ligadas a conflitos de relacionamento ou de falha de comunicação, ou melhor, por desinformação, o que requer que o profissional da saúde

267 Nesse sentido Hildegard Taggesell Giostri destaca, citando Gilberto Scopel Moraes, que frequentemente o paciente confunde a não realização de suas expectativas com um erro médico, sendo que “uma grande parte dos casos tidos pelos pacientes ou familiares como erro, decorre da incompreensão sobre o que lhe foi dito, ou do que não foi adequadamente entendido”. (GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico: à luz da jurisprudência comentada. 2ª Ed. (ano 2004), 2ª tir./Curitiba: Juruá, 2005, p.125). 268 Essa não é a posição para Vaz Rodrigues, segundo o qual a redução por escrito do consentimento, em princípio, não se destina nem a isentar os médicos ou hospitais da responsabilidade, muito menos para permitir ao paciente aferir possível atuação culposa do médico. Para o autor, a finalidade da redução por escrito do consentimento é para registrar a relação médico-enfermo, de onde se poderão extrair os direitos e deveres correspondentes. (KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado: responsabilidade civil em pediatria, responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 315) 269 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito – 5. ed. ver., aum. E atual. – São Paulo: Saraiva,

2008, p. 659. 270 Segundo a autora, há também o “gerenciamento de riscos estritamente técnicos”, que se refere à

adoção de medidas tendentes a eliminar ou diminuir a falta técnica em si mesma, ou seja, o erro médico. (DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito – 5. ed. ver., aum. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 659).

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procure cumprir seu dever de esclarecer devidamente seu paciente sobre o tratamento, cirurgia, diagnóstico e prognóstico, para que ele possa decidir livremente sobre seu destino ou sobre o procedimento de saúde a que irá se submeter271.

Em suma, o termo de consentimento informado e esclarecido é importante,

pois possui efeito preventivo ao eliminar ou reduzir causas que levam o paciente a

questionar o serviço de saúde. É o que Maria Helena Diniz denomina gerenciamento

de riscos de conduta.

Em apertada síntese, a doutrina brasileira se divide em duas posições quanto

à responsabilidade por falta de informação e consentimento.

De um lado, há aqueles que defendem que o dever de informar é secundário,

de forma que o seu descumprimento somente é relevante no âmbito da

responsabilidade se houver descumprimento do dever principal, a culpa médica.

Assim, a perfeição técnica do ato médico exclui qualquer discussão quanto à

responsabilidade por falta de informação ao paciente. Miguel Kfouri Neto, por

exemplo, defende que mesmo nesses casos de falta de informação, caso se

comprove que o paciente sofreria maior prejuízo, recusando o ato médico, a questão

resulta sem importância272.

Por outro lado, há os que entendem que o dever de informar é dever do

humanismo médico não relacionado com a técnica médica, de maneira que o seu

descumprimento é relevante no campo da responsabilidade mesmo nos casos em

que há perfeição da técnica médica. Nessa linha defende João Monteiro de Castro.

Segundo o autor, em que pese a perfeição técnica, é possível vislumbrar a

responsabilidade civil médica por falha de informação nos casos em que ficar

comprovada a dispensabilidade da intervenção médica, nos seguintes termos:

A falta de informação é causa de dano, quando a intervenção não era indispensável, porque, melhor informado o paciente, poderia resolver não correr os riscos. Por outro lado, a falta de informação, se a intervenção era indispensável, não se pode considerar em relação de causalidade com o dano físico sofrido pelo paciente. Nesse último caso, o paciente pode invocar dano moral resultante da falta de incapacidade temporária, eis que, melhor informado dos riscos previsíveis, haveria podido escolher se fazer operar num período mais conveniente, em que essa incapacidade temporária causasse menos consequências profissionais ou patrimoniais negativas273.

271 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito – 5. ed. ver., aum. E atual. – São Paulo: Saraiva,

2008, p. 659. 272 KOURI NETO, Miguel. Op. cit., p. 303. 273 CASTRO, João Monteiro de. Da responsabilidade civil médica. - São Paulo: Método, 2005, p.98.

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Claudia Lima Marques parece defender nesse mesmo sentido:

O direito de informação é mais do que um elemento formal afeta a essência do negócio, pois a informação repassada ou requerida integra o conteúdo do contrato (arts. 30, 33, 35, 46 e 54), ou se falha, representa a falha (vício) na qualidade do produto ou serviço oferecido (arts. 18, 20 e 35)274.

Diante da ocorrência de qualquer evento danoso, alguns autores defendem

ser admitido ao médico numa ação de responsabilidade médica por violação do

consentimento informado objetar que: mesmo que tivessem sido transmitidas ao

paciente todas as informações juridicamente exigidas, este teria consentido na

intervenção de igual modo275. É o que a doutrina alemã denomina consentimento

hipotético276.

No Uruguai, o descumprimento do dever de informação gera

responsabilidade, de acordo com o art. 32 da “Ley de Relaciones de Consumo”. O

artigo reza:

La violación por parte del proveedor de la obrigación de actuar de buena fe o la transgresión del deber de informar em la etapa precontractual, de perfeccionamiento o de ejeción del contrato, da derecho al consumidor a optar por la reparación, la resolución o el cumplimiento del contrato, em todos los casos más los daños y perjuizios que correspondan.

A autora uruguaia Dora Szafir adverte sobre a possibilidade de existir uma

justificativa para omitir a informação, hipótese em que haveria excludente de

responsabilidade civil, nos seguintes termos:

En caso de existir uma justificación para omitir la información requerida, se configura um supuesto de privilegio terapêutico y opera como causal de exoneración, em la medida em que existe uma situación del paciente acreedor que es la causa de dicho incumplimiento277.

274 (Antônio Herman Benjamin, Cláudia Lima Marques, Leonardo Roscoe Bessa. Manual de Direito do

Consumidor. – 2.ed.rev.,atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 36). 275 Esta inversão do ônus da prova justifica-se, uma vez que para o doente esta seria uma prova de fato negativa e indefinida. 276 A jurisprudência alemã é muito exigente quanto à prova do consentimento hipotético. Não basta provar que um doente aceitaria uma intervenção urgente que visasse evitar consequências graves para a saúde do paciente. É necessário provar que se verificam as condições que corresponderiam à vontade daquele paciente em si. (DIAS PEREIRA, André Gonçalo. Responsabilidade civil dos médicos. Coimbra: Coimbra, 2005, p. 483). 277 SZAFIR, Dora. La responsabilidad en los servicios de salud. Revista de Direito do Consumidor.

São Paulo: Revista dos Tribunais, n.66, abr.-jun/2008, p.255.

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No Brasil, sob o âmbito legal e de uma forma getal, havendo descumprimento

do dever de informação, aplica-se a regra do art. 14, §3º do Código de defesa do

Consumidor. Isto porque, é considerado defeituoso o serviço quando o fornecedor

prestar informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e riscos. Assim, há

responsabilidade subjetiva do profissional médico diante da inobservância do dever

de informar adequadamente sobre os riscos. No entanto, adequada a ponderação

da autora uruguaia no que tange à possibilidade de justificativa de omissão da

informação, hipótese em que não deve haver responsabilidade civil, sob pena de

significar a condenação automática do médico.

5.5 Direito Comparado

Conforme já apontado, o consentimento informado e esclarecido foi

consagrado no Código de Nuremberg (1947) como reação aos crimes e às

experimentações em seres humanos no ápice da Alemanha Nazista. Nesse país, a

importância do consentimento informado e esclarecido reside no reconhecimento à

proteção da autodeterminação e da liberdade da pessoa humana. Na Itália, a

doutrina do consentimento informado e esclarecido, fundamentada especialmente

nos princípios do direito à vida, à saúde, à integridade pessoal e à dignidade da

pessoa humana, já foi reconhecida em julgados no sentido de exigir do médico

cirurgião, antes de proceder à operação, o consentimento válido do paciente,

sempre utilizando palavras acessíveis ao paciente278.Ementa: Vistos,

Responsabilidade Civil - Serviços módicos prestados em hospital do Estado ?

Vasectomia - Insucesso da primeira cirurgia, com nova gravidez, obrigando o

suplicante a se submeter a outra intervenção com risco e sofrimento desnecessários

- Pedido de indenização por danos materiais e morais - Ação ...

Na França, a doutrina do consentimento informado e esclarecido surgiu dos

deveres contratuais entre o médico e o paciente. Atualmente, o consentimento

informado e esclarecido, além de um dever contratual, é tido como instrumento de

278 KFOURI NETO, Miguel. Op. cit., p. 285.

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respeito aos direitos da personalidade e aos preceitos deontológicos279. Previsto

expressamente nos artigos 35 e 36 do novo Código de Deontologia, o

consentimento deve ser livre e renovado a cada ato médico ulterior, bem assim

esclarecido, de forma que o paciente seja informado previamente dos atos a que vai

se submeter, dos riscos normalmente previsíveis, de acordo com o estado atual de

evolução dos conhecimentos científicos.

Na Espanha, o consentimento informado e esclarecido decorre da

consagração constitucional do dever de respeito à dignidade da pessoa humana,

bem como à integridade física. Trata-se de um requisito para as intervenções

médicas previsto na Lei Geral de Saúde (Lei 14/1986) e no Código de Ética e

Deontologia Médica (1990)280.

279 KFOURI NETO, Miguel. Op. cit., p. 285. 280 Miguel Kfouri Neto cita a reprodução de um julgado do Tribunal Superior Espanhol, de 1953, feita pelo autor espanhol Luis Martinez Calcerrada, nos seguintes termos: “Paciente de 38 anos de idade, que nunca havia sofrido doença em seus órgãos genitores-urinários, reclamou da recidiva de uma hérnia inguinal, anteriormente operada. O médico se limitou a olhar a cicatriz, apalpar a região do abdômen e determinar que o consulente se preparasse para ser operado. Internado, não foi visitado pelo médico, que também não lhe pediu nenhum exame – de sangue ou de urina – tampouco o auscultou ou mediu a temperatura. Na sala de cirurgia, a anestesia raquidiana não privou o paciente dos sentidos da visão ou audição. Ao efetuar a intervenção cirúrgica de hérnia inguinal, o médico, assistido por seu filho, também doutor em medicina, após abrir a cavidade abdominal e sob o pretexto de haver observado suposta massa tumoral, a seu juízo reveladora de um sarcoma de pênis, amputou pela raiz o membro viril do enfermo. Não realizou prévia biópsia, para confirmar seu diagnóstico, e não obteve o consentimento ou autorização do paciente ou de seus familiares, mulher ou irmão, presentes no hospital, para a amputação de membro tão importante do corpo humano. O próprio médico admitiu que poderia limitar a cirurgia à hérnia inguinal – deixando o sarcoma de pênis para ocasião posterior, por se tratar de campos operatórios distintos, não obstante próximos. O sarcoma não representava risco de vida para o paciente – além de ser um caso clínico raríssimo, que em sua longa vida profissional o médico demandado jamais tivera ocasião de enfrentar. Justamente por isso, deveria, antes, providenciar as comprovações necessárias, conversar com outros médicos – e não confiar naquele diagnóstico precoce, em momento tão crítico. Ademais, o médico não conservou o membro amputado, para biópsia posterior, que comprovasse a existência de tumor canceroso, nem comunicou ao paciente, familiares ou aos demais médicos do hospital a drástica intervenção. Também, após a cirurgia, não aplicou ao corte radioterapia alguma. Para agravar o quadro, posteriormente, o enfermo sofreu uma retenção urinária que quase lhe custou a vida. Depois da operação, o paciente goza de boa saúde, não apresentando sintoma algum revelador de haver sofrido o sarcoma de pênis. Resultou, entretanto, irremediavelmente mutilado”. O órgão julgador, na decisão condenatória, assentou que o médico deveria agir somente com autorização expressa da pessoa interessada, titular do direito à integridade corporal, maior e em seu juízo perfeito, bem como conferenciar com outros médicos, mas nunca realizar, precipitadamente, aquela intervenção de tão profundas e graves consequências. (KFOURI NETO, Miguel. Op. cit., p. 287).

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Em Portugal, o consentimento informado e esclarecido para a prática do ato

médico tem proteção constitucional (art. 25), que assegura a integridade pessoal e o

desenvolvimento da personalidade.

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6. PROVA NA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

6.1 Compatibilidade da Inversão do Ônus da Prova com a

Responsabilidade Subjetiva do Médico

Conforme já afirmado no capítulo referente ao âmbito de aplicação do CDC e

CC, a disposição específica no art. 14 §4º exclui a responsabilidade dos médicos do

âmbito da responsabilidade objetiva (e não do regramento consumerista). Aplica-se

a inversão do ônus da prova, direito básico do consumidor281, sob os seguintes

fundamentos.

Primeiro: a exceção é uma enunciação taxativa, de maneira que ao médico

aplicam-se todas as regras do Código de Defesa do Consumidor, salvo a da

imputação objetiva, respondendo ele por culpa.

Segundo: a inversão do ônus da prova é devida porque o direito à tutela

jurisdicional somente terá sido satisfeito de modo apropriado se o Estado oferecer às

partes tutela jurisdicional adequada às situações de direito material que lhe forem

submetidas. Este é o modo de ver do direito de ação decorrente do art. 5º, XXXV da

Constituição Federal, que reconhece o direito de ação, no plano processual, não

como resultado, mas como meio de consecução adequado à prestação jurisdicional

do direito substancial. A inexistência, no plano processual, de tutela correspondente

à reclamada pelo direito material, significaria tornar inexistente o próprio direito

substantivo282.

Terceiro: conforme lições do desembargador Ênio Zuliani, a inversão do ônus

da prova, em casos de ruptura completa ou total destruição da base do negócio

(contrato de prestação de serviços), justifica-se pela influência do resultado oposto

do acordo de vontades. O fim do contrato trouxe uma desproporção que desequilibra

o sentido da relação processual e isso faz com que o médico, invulnerável até então,

281 O Código de Defesa do Consumidor prevê, ademais, no artigo 51, inciso VI, que é abusiva a cláusula contratual que estabeleça a inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor, nos seguintes termos: “Art.51. São nulas de pleno direito, entre outras cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços: VI – estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor”. 282 MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Parte geral e processo de

conhecimento. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 59.

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continue desfrutando de um poder contratual que não mais se justifica. Assim, a

inversão visa contornar as dificuldades da vítima e garantir, no plano processual, à

prestação jurisdicional do direito substancial.

Quarto: a doutrina subjetivista que por meio da exceção do art. 14, §4º do

Código de Defesa do Consumidor, agasalha o profissional liberal, exige apenas que

toda responsabilização nessa área, não possa prescindir da antecipada

demonstração de culpa do mesmo, o que não significa dizer que esse requisito

imperioso da culpa deve ser, necessariamente, produzido pela vítima do dano.

Quinto: a aplicação das normas do CC, em especial do art. 951, ressalta a

importância do estudo do ônus da prova, tendo em vista que é no âmbito da

responsabilidade subjetiva que se nota a razão para o estudo da obrigação de meio

e de resultado, sendo que na primeira é possível a inversão do ônus da prova,

enquanto que na segunda há presunção (relativa) de culpa.

E ainda, a questão referente à responsabilidade civil objetiva ou subjetiva diz

respeito a tema disciplinado em sede de direito substancial, enquanto a inversão do

ônus da prova diz com tema afeto ao direito processual. Não há, assim, qualquer

incompatibilidade, em sendo a responsabilidade subjetiva, inverter o ônus da

prova283.

283 Miguel Kfouri Neto não admite a inversão do ônus da prova tendo em vista a consequência da

inversão: transformar em objetiva a responsabilidade médica. Admitir a inversão seria encerrar verdadeira contradição: ou a responsabilidade do médico seria subjetiva e com culpa provada, e, nesse caso, o art.14, §4º deveria ter sua eficácia plena respeitada, como verdadeira exceção à garantia genérica estabelecida no CDC em benefício do consumidor, ou esse artigo não seria na verdade uma exceção, já que a solução da inversão do ônus da prova transformava aquela responsabilidade subjetiva, e com culpa provada, num caso de culpa presumida onde o legislador não a tinha expressamente previsto. (KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova, cit., p.151). Por outro lado, sustenta Sérgio Cavalieri que “não obstante subjetiva a sua responsabilidade, está sujeito à disciplina do Código de Defesa do Consumidor. Pode, consequentemente o juiz, em face da complexidade técnica da prova da culpa, inverter o ônus dessa prova em favor do consumidor. A hipossuficiente, de que ali fala o Código não é apenas econômica, mas também a técnica, de sorte que, se o consumidor não tiver condições econômicas ou técnicas para produzir a prova dos fatos constitutivos de seu direito, poderá o juiz inverter o ônus da prova a seu favor, como observa Nelson Nery Junior. (CAVARIELI, Sérgio. Princípios Gerais do Código de Defesa do Consumidor. Apud DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. – 11ª ed.revista, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.335). Este é hoje o entendimento prevalente, como se pode constatar nos estudos do desembargador Ênio Zuliani, publicada em dezembro de 2003, numa edição especial de Seleções Jurídicas, da COAD, dedicada ao erro médico: “A inversão visa contornar as dificuldades da vítima, com o dever de provar a culpa do médico, uma tarefa, na maior parte das vezes, difícil ou impossível de ser cumprida. Essa dificuldade decorre ou de fatores econômicos (falta de patrimônio para financiar a perícia médica) ou da complexidade do fato a ser investigado. Como não existem peritos especializados que se dediquem a cooperar com o Judiciário, o exame médico termina relegado a órgãos públicos que, contando em seus quadros com peritos médicos desinteressados, apresentam laudos que respondem aos quesitos de forma monossilábica. A efetividade de um processo civil, aberto para realizar a justiça, termina frustrada, por esses obstáculos, e a inversão do ônus da prova

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Na verdade, tanto na obrigação de meio como na obrigação de resultado

ocorre a inversão do ônus da prova, haja vista que, estabelecida presunção relativa,

inverte-se o ônus da prova284. A diferença reside no fato de que na obrigação de

meio, há a possibilidade de inversão, quando verossímil a alegação do consumidor,

ou for ele hipossuficiente, conforme dispõe o art. 6º, VIII da Lei 8.078/1990285,

enquanto que na obrigação de resultado, a inversão é automática, pois do simples

fato de que o resultado não se concretizou já se pode supor que as condições da

responsabilidade do devedor estão suficientemente preenchidas, salvo prova, a ser

por ele produzida, em contrário.

representa uma saída para essa crise de justiça concreta que compromete a função básica da prestação de serviços judiciários. A técnica da inversão da carga probatória transfere ao médico o ônus de confirmar que o resultado (realmente danoso, um fato que se tem como notório – artigo 334, I, do CPC, para o processo civil), ocorreu devido às circunstâncias previstas ou imprevistas do tratamento médico aplicado ao caso clínico da paciente e não por culpa verificada no desempenho do serviço. (...) A inversão do ônus da prova, em casos de ruptura completa ou total destruição da base do negócio (contrato de prestação de serviços), justifica-se pela influência do resultado oposto do acordo de vontades. No caso de uma paciente apresentar-se tetraplégica, como na hipótese examinada pela Terceiro Câmara de Direito Privado (Agin. 099.305.4/6, Desembargador Ênio Santarell Zuliani, in Boletim AASP 2106, p.980-j e RF348/317), ou em outras situações próximas da indigência completa, pelo fim do contrato de meios, passa a ser juridicamente possível esquecer-se de que existiu um contrato de meios (já destruído ou sem chances de sobrevida) e encarar a questão do proveito da ação de responsabilidade civil pelo sentido democrático da jurisdição. O fim do contrato trouxe uma desproporção que desequilibra o sentido da relação processual e isso faz com que o médico, invulnerável até então, continue desfrutando de um poder contratual que não mais se justifica”. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. – 11ª ed.revista, atualizada de acordo com o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias. – Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.336) 284 MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Parte geral e processo de

conhecimento. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 211. 285 Trata-se de um direito básico do consumidor que pode ter natureza material (discussão de mérito) ou processual. Vale dizer, conforme ensina Cláudia Lima Marques, se requerido e não concedido pelo magistrado de primeiro grau, refere-se à violação de direito material e básico do consumidor (frise-se, discussão de mérito), que retira a possibilidade de proteção efetiva e reparação de danos, podendo ser invertido a qualquer tempo pelo magistrado nas instâncias superiores. Somente no caso de inversão é que o tema se torna processual ou de prova. Vale destacar que, além dessa possibilidade de inversão de ônus da prova a critério do juiz, o CDC inverte ex vi lege a prova em vários outros artigos, como, por exemplo, no art.12, §3º, e no art. 14, §3º, do CDC. Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

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Note-se que a regra geral disposta no art. 333 do Código de Processo Civil,

denominada teoria estática do ônus da prova, não pode ser aplicada de modo

inflexível, a qualquer hipótese, como se os sujeitos da relação jurídica se

encontrassem, sempre, em condições de igualdade. Esta regra, concebida para a

realidade existente na década de 1970, dispõe que cada uma das partes tem o ônus

de demonstrar, em juízo, que os fatos que afirmam são verdadeiros. Incumbe, ao

autor, a prova do fato constitutivo de seu direito, e ao réu a prova de fatos

impeditivos, modificativos ou extintivos do direito (defesa indireta)286. Portanto, esta

é a regra sobre a atividade probatória, que deve ser excepcionada pelo juiz ao

sopesar a valia das provas, de modo a não impor à parte encargos de desempenho

impraticável.

Cabe, ainda, ponderar que os poderes instrutórios do juiz, previstos no art.

130 do CPC, permitiu, de certa forma, uma interpretação mais ampla do art. 333,

visando sempre a garantir o direito àquele que realmente o merece, nos seguintes

termos do Art. 130. “Caberá ao juiz de ofício ou a requerimento da parte, determinar

as provas necessárias à instrução do processo indeferindo as diligências inúteis ou

meramente protelatórias”. Ocorre que se indaga, diante da regra, se deve o juiz

antecipar-se às partes, determinando a realização das provas, ou se, diversamente,

deve atuar nesse sentido apenas quando as provas já produzidas pelas partes não

lhes propiciassem elementos suficientes para decidir, e, ainda, a questão não restar

resolvida pelo ônus da prova. Enfim, há decisões contraditórias: uma no sentido de

aceitar a iniciativa instrutória do juiz somente nos casos em que a medida decorrer

do interesse público de efetividade da Justiça, notadamente quando se tratar de

relação processual desproporcional, como nos casos em que uma das partes é

hipossuficiente; outra no sentido de aceitar ampla iniciativa do juiz podendo, em

qualquer hipótese, determinar a realização da prova.

Fato é que, no âmbito da responsabilidade médica, verificada a presença das

condições referidas no art. 6º, inciso VIII da Lei 8.078/1990, é devida a inversão do

ônus da prova em favor do consumidor, excepcionando-se a regra do art. 333 do DC

286 A teoria estática ainda as seguintes disposições do CPC:

Art.22. O réu que, por não arguir na sua resposta fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, dilatar julgamento da lide, será condenado nas custas a partir do saneamento do processo e perderá, ainda que vencedor na causa, o direito de haver do vencido honorários advocatícios. Art. 326. Se o réu, reconhecendo o fato em que se fundou a ação, outro lhe opuser impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, este será ouvido no prazo de 10 (dez) dias facultando-lhe o juiz a produção de prova documental.

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e ampliando os poderes instrutórios do juiz (por se tratar de relação processual

desproporcional). No entanto, trata-se de regra excepcional, cuja prodigalização (no

sentido de desrespeito às oportunidades em que se presenciar a hipossuficiência do

consumidor ou verossimilhança das alegações) poderá distorcer o seu nobre

objetivo de tutelar o consumidor e desequilibrar a equação de igualdade. Afina-se ao

exposto a lição de Humberto Theodoro Junior, que pontifica:

A norma geral do processo, que o CDC permite excepcionalmente ser afastada, é de intuitiva compreensão. Se cabe o autor direito de impor ao juiz a abertura do processo e de sujeitar o réu a seus efeitos, sem que se dê a este a liberdade de não vincular-se à relação processual, é forçoso que ao autor caiba a responsabilidade maior pelo sucesso da demanda. E, por isso, é ele, e não ao réu, quem tem de proporcionar ao juiz o conhecimento dos fatos necessários à definição e atuação do direito de que se afirma titular. Do réu, que não provocou o processo, obviamente, não se pode exigir que prove os fatos de onde nasceu o direito do adversário. Apenas quando outros fatos diversos forem invocados na resposta à demanda, para extinguir ou anular os efeitos do direito do autor, é que o demandado terá de assumir o encargo de sua comprovação. É que, em tal quadro, quem alega fato extintivo ou impeditivo necessariamente reconhece a anterior existência do direito do autor, porquanto só se extingue ou se impede o que existe ou já existiu. Como, então, interpretar a regra especial do Código de Proteção e Defesa do Consumidor autorizadora da inversão do ônus da prova, permitindo sua transferência para o fornecedor, mesmo quando este seja o réu? Primeiramente, entendendo-a extraordinária e não como norma geral automaticamente observável em todo e qualquer processo atinente a relação de consumo. Depois, compatibilizando-a com os princípios informativos do próprio Código de Defesa do Consumidor. E, finalmente, submetendo-a aos princípios maiores do devido processo legal e ampla defesa, consagrados por garantia constitucional em favor de todos os que agem em juízo. De mais a mais, ao Juiz, em sua função de intérprete e aplicador da lei, em atenção aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, como claramente adverte o art.5º da LICC, incumbe dar exegese construtiva e valorativa que se afeiçoe aos seus fins teleológicos, sabido que ela deve refletir não só os valores que a inspiram, mas, também, as transformações culturais e sócio-políticas da sociedade a que se destina. A prodigalização do uso do instrumental previsto no Estatuto Consumerista, poderá distorcer o seu nobre objetivo de tutela o consumidor, dando ensanchas a posturas às margens do texto legal, pelo que o operador do direito deve se encontrar em perene prontidão, com o fito de evitar a ocorrência de tal odiosa afronta aos fins sociais a que se destinou o CPDC287.

Estas colocações somente podem levar a uma conclusão. Via de regra, o

ônus da prova do erro médico, da negligencia, imprudência ou imperícia do

profissional, e das perdas e danos experimentados, corresponde ao ator que

287 GOUVÊA, Eduardo de Oliveira; OLIVEIRA, Renato Ayres Martins de; FUKS, Sergio Luís. Questões

controvertidas nas ações indenizatórias. Rio de Janeiro: Editora Idéia Jurídica, 2003, p.104.

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reclama o ressarcimento, ainda que às vezes os Tribunais possam se servir de

instrumentos presuntivos destinados a flexibilizar a regra geral sobre o ônus da

prova da culpa médica. As questões se voltam, agora, para os requisitos: a

verossimilhança da alegação do consumidor, ou sua hipossuficiência, segundo as

regras ordinárias de experiência.

6.2 Os Requisitos de Hipossuficiência

Antes de passar ao exame da questão referente ao momento em que se deve

operar a inversão do ônus da prova, cabe examinar os requisitos indicados no texto

da lei: a hipossuficiência do consumidor e a verossimilhança de sua alegação.

6.2.1 Conceito de hipossuficiência

Nota-se que o direito evolui de acordo com os efeitos produzidos pelos

variados acontecimentos sempre presentes no agrupamento social. Assim, se antes

o direito se preocupava apenas com três classes que formavam o tecido social

(classe alta, classe médica e classe baixa), com o estado de crescente globalização

e o consequente distanciamento da ordem econômica e financeira, o direito passou

a se preocupar também com a classe inferior subdivida entre os que sobrevivem

com o mínimo de condições financeiras e os miseráveis288. Nesse contexto, surgiu a

proteção às pessoas hipossuficientes, relativamente recente no ordenamento

jurídico brasileiro.

Na verdade, a hipossuficiência, por uma concepção muito difundida, tem-se

como conceitualmente ligada direta e estritamente à pobreza material. No âmbito

atual, em especial no campo do civilista e consumerista, o conceito não se restringe

ao aspecto econômico, sendo mais amplo e complexo, podendo advir de condições

como o analfabetismo ou nível cultura parco, idade reduzida ou muito avançada,

saúde frágil ou debilitada; condições sociais ínfimas ou mesmo doença289.

288 DELGADO, José Augusto. Hipossuficiência de uma das partes na relação de consumo com

pessoas jurídicas. (http://bdjur.stj.gov.br. Acesso em 28/02/2010). 289 (GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. – 8.ed. – Rio de Janeiro: Dorense Universitária, 2004, p.224, 225). Maior dificuldade surge para caracterizar a presença da hipossuficiência quando se trata de pessoas jurídicas. Conforme já exposto, a análise em concreto da vulnerabilidade tem sido admitida (excepcionalmente) pelos tribunais brasileiros como forma de abrandamento na interpretação finalista para admitir que sujeitos intermediários sejam considerados consumidores. A hipossuficiência, no

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O Código Civil de 1916, refletindo os sentimentos da época em que ele foi

elaborado, onde predominava o individualismo e o patrimonialismo, não foi envolvido

por uma filosofia voltada para a proteção dos hipossuficientes, não prestigiando os

aspectos sociais das relações jurídicas, nem a função social da propriedade e do

contrato. Somente em 1988 é que o hipossuficiente passou a ser considerado com

maior preocupação, com a promulgação da Constituição Federal atual.

Esta inseriu em seu texto normas que se voltam para proteger o

hipossuficiente, com as tendências de socialização do final do século XX e acatando

as linhas jurisprudenciais da época. A Constituição Federal protege o hipossuficiente

em seu preâmbulo e em diversos artigos, impondo normatividade com esse

propósito às relações jurídicas que os envolvem. Ao consagrar a obrigatoriedade do

Estado zelar pela cidadania, dignidade da pessoa humana e pelos valores sociais do

trabalho no art. 1º, incisos II, III e IV, a Constituição Federal protegeu os suficientes e

os hipossuficientes. No art. 3º, há também a determinação de que, entre os objetivos

fundamentais da República Federal do Brasil, está o de “erradicar a problema e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, o que significa dizer

proteger o hipossuficiente. Outros exemplos podem ser destacados do texto da

Constituição Federal com o objetivo voltado unicamente para proteger classe social

inferior290.

Seguindo a vontade da Constituição Federal, em especial as garantias

fundamentais do homem e os princípios gerais da atividade econômica (art. 170, V,

CF), o Código de Defesa do Consumidor refere textualmente a proteção ao

hipossuficiente através da facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive através

da inversão do ônus da prova. A doutrina passou a tender para um conceito

ampliativo de hipossuficiência, abrangente não apenas da situação de insuficiência

ou fraqueza econômica, mas de uma situação de inferioridade ou desvantagem em

geral do consumidor perante o fornecedor. A hipossuficiência refere-se àquilo que a

entanto, não tem sido Assim, em 2005 se manifestou o STJ: “A pessoa jurídica com fins lucrativos caracteriza-se como consumidora intermediária, porquanto se utiliza do serviço de fornecimento de energia elétrica prestado pela recorrente, com intuito único de viabilizar sua própria atividade produtiva. Todavia, cumpre consignar a existência de certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente, desde que demonstrada, in concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica, a aplicação das normas do CDC. Quer dizer, não se deixa de perquirir acerca do uso, profissional ou não, do bem ou serviço; apenas, como exceção e à vista da hipossuficiência concreta de determinado adquirente ou utente, não obstante seja um profissional, passa-se a considerá-lo consumidor” (STJ, REsp 661145-ES, Min. Jorge Scartezzini, j. 22.05.2005). 290 Assim, cita-se também: Art.7, inciso IV; art.203, incisos II e V, da Constituição Federal.

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doutrina costuma denominar de conceito ou termo jurídico indeterminado, que impõe

ao juiz o dever de aplicar a norma contida no art. 6º, VIII do Código de Defesa do

Consumidor segundo o fim social ao qual ela se destina, isto é, observar a sua

finalidade social (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil)291.

Vinculando-se às determinações da Constituição Federal, o Novo Código Civil

de 2002, inspirado nos valores da ética, sociabilidade, praticidade e operosidade,

protege o hipossuficiente não apenas considerado sob o aspecto econômico, mas

também em razão da idade reduzida ou muito avançada, saúde frágil ou debilitada,

condições sociais ínfimas ou mesmo doença. Dentre outros, são exemplos de

proteção ao hipossuficiente sob o aspecto econômico os artigos 156 (estado de

perigo)292 e 157 (lesão)293, 421 (liberdade de contratar)294, 424 (nulidade de cláusula

de renúncia antecipada)295, 478 a 480 (resolução do contrato por resolução

excessiva da prestação)296, 1.239 e 1.240 (função social da propriedade)297; sob o

291 Há quem entenda que não haveria nada no conteúdo Código de Defesa do Consumidor que indicasse o intuito de beneficiar o consumidor pobre, mas sim o consumidor em geral, como sujeito vulnerável na relação de consumo. A mera hipossuficiência financeira, segundo este entendimento, não seria o bastante para conduzir à inversão insculpida no CDC, devendo ser plenamente sanada pelas benesses da gratuidade de justiça, que lhe faculta a prática dos atos processuais necessários à defesa do seu direito. Com o devido respeito, tal entendimento contraria a concepção muito difundida e atualmente consagrada na Constituição Federal que liga direta e estritamente a hipossuficiência à pobreza material. Assim, havendo hipossuficiência econômica, é possível, respeitados os pressupostos legais, tanto a concessão dos benefícios da justiça gratuita quanto à inversão do ônus da prova. 292 “Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”. 293 “Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”. 294 “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 295 “Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”. 296 “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. “Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”. “Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”. 297Considera-se alcançada a função social de um instituto jurídico toda vez que os interesses das partes puderem ser legitimamente obtidos através dele, sem prejuízo dos interesses socialmente mais relevantes. No âmbito da propriedade privada, estabelece o Código Civil: “Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta

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aspecto da idade, o Código Civil protege os hipossuficientes nos art. 166, I (nulidade

do negócio jurídico praticado por absolutamente incapaz) e 167 (anulabilidade do

negócio jurídico praticado por relativamente incapaz)298.

O que se pode notar é que o tratamento legal conferido à hipossuficiência,

disposto no Código Civil em geral e o Código de Defesa do Consumidor - em

especial no que tange à inversão do ônus da prova, configura tentativa de proteger e

aproximar cada vez mais o hipossuficiente da vontade constitucional de que sejam

tratados em igualdade de condições com os hipersuficientes e valorada a sua

dignidade humana e cidadania, em respeito ao regime democrático de direito.

Sob o aspecto jurídico, a hipossuficiência refere-se a um conceito jurídico

indeterminado que, a despeito do que parece indicar, não está a conferir ao juízo um

poder discricionário, de inverter ou não o ônus da prova. Na verdade, tal conceito

impõe ao intérprete um esforço de exegese mais refinado, que muitas vezes resvala

no subjetivismo e provoca dúvida acerca do alcance do dispositivo legal e de sua

aplicação ao caso concreto. Mas tanto estes conceitos como outros do texto legal

exigem esforços interpretativos consideráveis. Todo e qualquer texto, conforme

ensina Maria Helena Diniz, exige interpretação, isto é, subsunção do fato à norma.

Assim, a hipossuficiência deve ser analisada a partir dos institutos de interpretação

da lei, observando a sua finalidade social (art. 5º da Lei de Introdução ao Código

Civil), o que significa dizer que cabe ao juiz considerar a condição peculiar da

pessoa, em especial no que tange à desigualdade quanto à detenção dos

conhecimentos técnicos inerentes à atividade deste, situação jurídica que impede o

consumidor de obter a prova indispensável para a responsabilização civil em razão

da falta de conhecimentos (hipossuficiência jurídica).

Enfim, cabe ao juiz reconhecer a posição de manifesta inferioridade perante o

fornecedor como condição de hipossuficiência aferível apenas dentro de uma

relação de consumo concreta.

hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”. “Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. 298 O art.166, inciso I, considera nulo o negócio jurídico praticado por pessoa absolutamente incapaz, amparando, portanto, aquele que, em razão da idade ou condições mentais está impossibilitado de entender, de modo completo, o contrato celebrado. No mesmo sentido, o art. 167 determina que é considerado anulável o negócio jurídico praticado por agente relativamente incapaz.

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6.2.2 Conceito de verossimilhança das alegações

O requisito da verossimilhança envolve enorme discussão, prendendo-se à

identificação com exatidão do grau de certeza exigido para sua configuração.

Haveria diferença entre probabilidade e certeza?

O termo verossímil traz a noção de algo que se assemelha à verdade, que

tem a aparência de verdadeiro. No entanto, esta aparência pode ser frágil ou tênue

(como simples plausibilidade ou possibilidade de que a alegação seja verdadeira) ou

robusta ou sólida (como a probabilidade de que o alegado seja verdade). Ou seja, a

verossimilhança possui intensidade variável.

Independentemente do grau de verossimilhança aceito, considera-se sempre

imprescindível que seja formado a partir de prova indiciária que possibilite a

associação (relação) entre dois fatos: o comprovado (o fato indiciário) e outro

apenas alegado (o fato constitutivo do direito do autor). Com efeito, não se afigura

admissível a aceitação da verossimilhança sem que se tenha pelo menos uma prova

indireta (indício) da qual se possa inferir que provavelmente é verdadeira a alegação

do consumidor. Em caso de absoluta ausência de prova, indício mínimo de prova,

não é possível vislumbrar verossimilhança nas alegações.

Ademais, conquanto não seja específico de uma determinada relação jurídica,

o regramento, do Código de Processo Civil, no que se refere à tutela antecipada,

trata do requisito da verossimilhança não apenas como mera alegação, impondo

razões, além de lógicas e concatenadas entre si, que desfrutem de um mínimo de

credibilidade, com aparência de verdade diante da hipótese fática concreta,

submetida a exame. Assim, ressalta a importância do acervo probatório que deve

ser trazido pelo consumidor aos autos, para que a crença na verdade de suas

assertivas dê azo a um juízo de verossimilhança, pois se o mesmo não se configurar

diante da res in judicio deducta, não se pode conceber a inversão do ônus da prova

tampouco o deferimento da antecipação tutelar.

Não obstante essas discussões no âmbito do Código de Defesa do

Consumidor, Kazuo Watanabe adverte que elas não assumem relevância, já que a

simples aplicação do disposto no art. 335 do CPC, que estabelece o emprego das

regras de experiência comum, subministradas pela observação do que

ordinariamente acontece, já estabelece por si só simples presunção:

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O que ocorre, como bem observa Leo Rosenberg, é que o magistrado, com a ajuda das máximas de experiência e das regras de vida considera produzida a prova que incumbe a uma das partes. Examinando as condições de fato com base em máximas de experiência, o magistrado parte do curso normal dos acontecimentos e, porque o fato é ordinariamente a consequência ou o pressuposto de outro fato, em caso de existência deste, admite também aquele como existente, a menos que a outra parte demonstre o contrário. Assim, não se trata de uma autêntica hipótese de inversão do ônus da prova.299

Assim, segundo o autor, a Lei, de acordo com o jurista, ao fazer referência à

verossimilhança buscou apenas explicitar uma regra já existente, com propósitos

didáticos.

6.2.3 Alternatividade ou cumulatividade dos requisitos

A presente questão envolve a correta interpretação da partícula “ou”, isto é,

se desfruta de caráter aditivo ou alternativo.

A alternatividade é indicada pela interpretação literal ou gramatical do

dispositivo, que utiliza a conjunção disjuntiva ou alternativa “ou” (em lugar da aditiva

“e”) a separar os dois requisitos.

No entanto, em outros enquadramentos do direito público, o legislador,

valendo-se de tal expediente, buscou trazer a adição de princípios ou requisitos. À

guisa de exemplo, o art. 286 do Código de Processo Civil lança mão da expressão

“certo ou determinado”, donde deflui que o pedido deduzido frente ao Judiciário deve

ser certo e determinado.

Diante dessas ocorrências, parte da doutrina entende que os requisitos são

cumulados sob a premissa de que uma alegação ou é verossímil ou é inverossímil.

Se uma alegação não pode ser reputada verossímil, então é porque essa alegação é

inverossímil, e, portanto, não autoriza ou justifica a inversão do ônus da prova.

Consequentemente, a hipossuficiência não seria requisito bastante, em si mesmo,

para autorizar a inversão do ônus da prova, por não ser razoável presumir

verdadeiro um fato inverossímil, ou seja, inacreditável, sem visos de verdade.

Assentada, no entanto, a premissa de que a verossimilhança é de intensidade

variável (indo da frágil possibilidade até a forte probabilidade), parece ser aceitável

interpretar como alternativos os requisitos da verossimilhança e da hipossuficiência.

299GRINOVER, Ada Pellegrini ... [et al.]. – Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. – 8.ed. – Rio de Janeiro: Dorense Universitária, 2004, p. 618.

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De outro lado, a hipossuficiência, isoladamente, pode autorizar a inversão do

ônus da prova, cabendo ao autor ao menos fundamentar sua demanda. Vale dizer, a

hipossuficiência permite a inversão do ônus, mas não autoriza a debilidade das

pretensões jurídicas sob o pretexto de ser a parte mais débil. Afina, no mesmo

diapasão, malgrado referir-se à relação securitária, Ricardo Bechara Santos:

Não se deve em suma, pressupor a culpa ou dolo do mais forte, como se esta fosse a condição ‘sine qua non’ da salvaguarda do fraco. Nada se divorcia tanto da eminente imparcialidade da Justiça, como a negação do direito que cabe ao poderoso, ao pretexto do amparo ao mais débil, não obstante a debilidade de suas pretensões jurídicas. Essas mesmas preleções auscultei-as do renomado tratadista susoreferido. Até porque, Carlos Maximiliano, papa da hermenêutica jurídica, pontifica, verbis: Quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses300.

Humberto Theodoro Junior também adverte:

Logo, se o autor invoca como causa de pedir fatos indefinidos, que, obviamente, não tem como provar, não pode se valer de mecanismo processual de inversão do ônus da prova para transferir ao réu o encargo de fazê-lo. Ao autor cabe, em princípio, fundamentar sua demanda. Se o fato invocado por ele é indefinido e não passível de prova, a consequência inevitável será a improcedência do pleito. Não há argumento algum que possa justificar a procedência da demanda sem prova de sua base fática apenas porque se refere a evento de prova impossível. Se a prova daquilo que afirma o autor é impossível, ele deve sucumbir, pois ao contrário, seria muito fácil ganhar a causa alegando fatos que não podem ser provados, além do que as prestações mais insustentáveis seriam as mais seguras de se obter. Inconcebível, por isso mesmo, que a inversão do ônus da prova, quando autorizada por lei, seja utilizada como instrumento de transferência para o réu do encargo da prova de fato arguido pelo autor que se revela, intrinsecamente, insuscetível de prova301.

300 SANTOS, Ricardo Bechara. Direito de Seguro no Cotidiano. Apud GOUVÊA, Eduardo de Oliveira;

OLIVEIRA, Renato Ayres Martins de; FUKS, Sergio Luís. Questões controvertidas nas ações indenizatórias. Rio de Janeiro: Editora Idéia Jurídica, 2003, p.110. 301 THEODORO JUNIOR, Humberto. Direitos do Consumidor. Apud GOUVÊA, Eduardo de Oliveira;

OLIVEIRA, Renato Ayres Martins de; FUKS, Sergio Luís. Questões controvertidas nas ações indenizatórias. Rio de Janeiro: Editora Idéia Jurídica, 2003, p.104.

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Arremata o autor:

A inversão do ônus da prova prevista no Código de Proteção e Defesa do Consumidor pressupõe dificuldade ou impossibilidade da prova apenas da parte do consumidor, não a impossibilidade absoluta da prova em si. A prova para ser transferida de uma parte para a outra tem de ser, objetivamente, possível. O que justifica a transferência do encargo respectivo é apenas a insuficiência pessoal do consumidor de promovê-la. Se este, portanto, aciona o fornecedor, arguindo fatos absolutamente impossíveis de prova, não ocorrerá a inversão do onus probandi, mas a sucumbência inevitável da pretensão deduzida em juízo302.

Por todo o exposto, a interpretação mais consentânea com a letra e com o

espírito do texto legal é a que enxerga os requisitos da hipossuficiência e da

verossimilhança como alternativos, cabendo ao autor ao menos fundamentar sua

demanda, no primeiro caso, ou alegar de forma lógica e concatenada entre si, no

segundo caso, para se obter a inversão do ônus da prova.

6.3 Momento da Inversão do Ônus da Prova

Conforme já exposto, no âmbito da responsabilidade médica, verificada a

presença das condições referidas no art. 6º, inciso VIII da Lei 8.078/1990, é devida a

inversão do ônus da prova em favor do consumidor. Controverte-se a doutrina e

jurisprudência, no entanto, em relação ao momento processual adequado para tanto.

Decidiu-se que a inversão do ônus da prova, prevista no inc. VIII, do art. 6º é

regra de julgamento303. Nesse sentido, é a orientação prevalecente da

302 THEODORO JUNIOR, Humberto. Op.cit., p. 114. 303 Voto n° 7.224 AGRAVO. SEGURO POR INVALIDEZ. PROVA PERICIAL. CUSTEIO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA PREVISTA NO ART. 6o, INCISO VIII, DO CDC, APLICÁVEL APENAS NA SENTENÇA. RECURSO PROVIDO. As regras referentes à distribuição do ônus da prova devem ser levadas em conta pelo JUIZ apenas e no momento de decidir. São regras de julgamento que se destinam a fornecer ao julgador meios de proferir a sentença, quando os fatos não restaram suficientemente provados Antes disso, não tem ele de se preocupar com as normas de distribuição do ônus da prova AGRAVO. SEGURO POR INVALIDEZ. AÇÃO DE COBRANÇA. PROVA PERICIAL. CUSTEIO. INTELIGÊNCIA DO ART. 33 DO CPC. RECURSO PROVIDO. Por força do que dispõe o art 33, do CPC, compete ao autor o pagamento das despesas decorrentes de perícia quando requerida por ambas as partes ou determinada pelo juiz, mas, em sendo o autor beneficiário da justiça gratuita, competirá tal ônus ao Estado, nos termos do art. 5o, inciso LXXIV, da Constituição Federal. (Agravo de Instrumento 992090874276 (1300667000). Relator(a): Adilson de Araujo. Comarca: São José do Rio Preto. Órgão julgador: 31ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 15/12/2009. Data de registro: 12/01/2010) Recurso especial. Civil e processual civil. Responsabilidade civil. Indenização por danos materiais e compensação por danos morais. Causa de pedir. Cegueira causada por tampa de refrigerante quando da abertura da garrafa. Procedente. Obrigação subjetiva de indenizar. Súmula 7/STJ. Prova de fato negativo. Superação. Possibilidade de prova de afirmativa ou fato contrário. inversão do ônus da prova em favor do consumidor. regra de julgamento. Doutrina e jurisprudência. arts. 159 do CC/1916, 333, I, do CPC e 6.°, VIII, do CDC. - Se o Tribunal a quo entende presentes os três

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jurisprudência, principalmente no juizado especial cível, que tem operado a inversão

do ônus da prova na própria sentença.

Em sentido contrário, afirmou-se, em outro julgado, que o momento

processual adequado seria o da fase instrutória, mais adequado do que na

sentença, na medida em que não impõe qualquer surpresa às partes litigantes304. O

fundamento legal desta teoria refere-se aos princípios do devido processo legal305,

em especial com o princípio do contraditório. Mesmo em se tratando de temas a

respeito dos quais deva o juiz manifestar-se ex officio, como ocorre no caso de

relações de consumo, segundo esta teoria, deve o órgão jurisdicional, atento a este

princípio, ouvir as partes interessadas, permitir a participação real e efetiva na

realização dos atos preparatórios da decisão judicial e afastar as decisões

surpresas. Esta seria a concepção moderna do princípio constitucional do

contraditório: o diálogo entre o órgão jurisdicional com as partes306, e não mais a

noção rudimentar disposta através do binômio: informação + reação307.

requisitos ensejadores da obrigação subjetiva de indenizar, quais sejam: (i) o ato ilícito, (ii) o dano experimentado pela vítima e (iii) o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a conduta ilícita; a alegação de violação ao art. 159 do CC/1916 (atual art. 186 do CC) esbarra no óbice da Súmula n.° 7 deste STJ. - Tanto a doutrina como a jurisprudência superaram a complexa construção do direito antigo acerca da prova dos fatos negativos, razão pela qual a afirmação dogmática de que o fato negativo nunca se prova é inexata, pois há hipóteses em que uma alegação negativa traz, inerente, uma afirmativa que pode ser provada. Desse modo, sempre que for possível provar uma afirmativa ou um fato contrário àquele deduzido pela outra parte, tem-se como superada a alegação de “prova negativa”, ou “impossível”. - Conforme posicionamento dominante da doutrina e da jurisprudência, a inversão do ônus da prova, prevista no inc. VIII, do art. 6.º do CDC é regra de julgamento. Vencidos os Ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros, que entenderam que a inversão do ônus da prova deve ocorrer no momento da dilação probatória. Recurso especial não conhecido. (REsp 422778 / SP RECURSO ESPECIAL 2002/0032388-0. Rel. Ministro Castro Filho. T3 – Terceira Turma, j. 19/06/2007) 304 RECURSO ESPECIAL. CDC. APLICABILIDADE ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ENUNCIADO N. 297 DA SÚMULA DO STJ. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA (ART. 6º, INCISO VIII, DO CDC). MOMENTO PROCESSUAL. FASE INSTRUTÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. Há muito se consolidou nesta Corte Superior o entendimento quanto à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras (enunciado n. 297 da Súmula do STJ) e, por conseguinte, da possibilidade de inversão do ônus da prova, nos termos do inciso VIII do artigo 6º da lei consumerista. 2. O Tribunal de origem determinou, porém, que a inversão fosse apreciada somente na sentença, porquanto consubstanciaria verdadeira "regra de julgamento". 3. Mesmo que controverso o tema, dúvida não há quanto ao cabimento da inversão do ônus da prova ainda na fase instrutória - momento, aliás, logicamente mais adequado do que na sentença, na medida em que não impõe qualquer surpresa às partes litigantes -, posicionamento que vem sendo adotado por este Superior Tribunal, conforme precedentes. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, no ponto, provido. (REsp 662608 / SP. RECURSO ESPECIAL 2004/0063464-2. Ministro Hélio Quaglia Barbosa. J. 12/12/2006). 305 Do princípio do devido processo legal decorrem as seguintes garantias mínimas (princípios): inafastabilidade da tutela jurisdicional (art.5º, XXXV), a ampla defesa e do contraditório (art.5º, LV), a duração razoável do processo (art.5º, LXXVIII), a motivação das decisões judiciais (art.93, IX). 306 No direito comparado, algumas legislaçoes prevêem isso expressamente. Em Portugal, por exemplo, o art.3º, n.3 do CPC dispõe que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o

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De fato, a concepção objetiva do ônus da prova, que o considera como regra

de julgamento, a ser aplicado em caso de dúvida invencível na formação da

convicção do juiz, indica que a inversão do ônus da prova somente poderia ocorrer

na sentença, pois só então o magistrado, valorando a prova produzida, poderia

concluir se ela foi ou não suficiente para a formação de sua convicção, carreando à

parte que tinha o ônus as consequências negativas da insuficiência de prova.

Somente depois de esgotadas as possibilidades de prova é que o juiz, verificando

que ela não foi suficiente para elucidar os fatos, julgará com base nas regras do

ônus.

Entretanto, não se pode esquecer que, embora modernamente se examine o

ônus da prova mais por essa concepção objetiva, não se afastou por completo a

concepção subjetiva, em que ele constituirá um norte para as partes. Por meio da

distribuição legal do ônus as partes poderão saber, de antemão, a quem incumbe a

produção de determinada prova. Ora, se o juiz proceder à inversão somente na

sentença, poderá haver surpresa para elas, pois poderá impor ao réu um ônus que

até então não existia e, ato contínuo, tolhe o direito dele desincumbir-se. Por isso,

apesar do ônus da prova constituir regra de julgamento, parece mais acertado o

entendimento de que, por força do princípio do contraditório e para evitar eventual

cerceamento de defesa, o julgador deva alertar antecipadamente as partes sobre a

possibilidade de inversão. E o momento oportuno para isso deverá ser a audiência

preliminar, que precede o início da chamada fase instrutória, em que será dada às

partes a possibilidade de produção de prova pericial e testemunhal. O Juiz deverá,

além de fixar os pontos controvertidos e decidir sobre as provas a serem produzidas,

alertar as partes sobre o ônus da prova e sobre a possível inversão, informando-as

acerca das consequências da omissão na produção daquelas. O ônus da prova

continua sendo regra de julgamento, mas o juiz deverá alertar as partes, antes do

julgamento, sobre as consequências do seu descumprimento.

processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Similarmente, na Alemanha, o §139 prevê que o órgão jurisdicional somente pode decidir sobre alguma questão quando as partes tenham tido oportunidade de se manifestar em relação à mesma. (MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. op.cit., p. 60). 307 MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. op.cit., p. 60.

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6.4 A Inversão do Ônus Financeiro

A inversão do ônus da prova tem suscitado outra questão de grande

relevância: a possibilidade de o juiz inverter a responsabilidade pela antecipação do

pagamento das despesas com a produção de determinada prova, em especial a

pericial, que é, em regra, custosa.

O Código de Processo Civil trata do assunto nos artigos 19 e 33,

estabelecendo que compete à parte que requereu a prova antecipar as despesas

com a sua realização. Esta é, portanto, a regra geral.

Ocorre que os consumidores, valendo-se da possibilidade de inversão do

ônus da prova, postulam ao juiz a antecipação das despesas a cargo do prestador-

réu para a realização de prova pericial. A matéria é controversa e a jurisprudência

dividi-se.

A inversão abrange não somente o ônus da prova, como alcança também o dever de adiantar as custas para a realização de prova pericial. Como frisou o Des. Maia da Cunha, "O meu entendimento pessoal é no sentido de que a hipossuficiência de que cogita o texto legal invocado tem natureza primordialmente econômica, conduzindo, por isso, quando invertido o ônus da prova, à inversão do ônus do seu pagamento. As razões de ordem política e social que originaram o CDC, cuja essência é a proteção do consumidor e a facilitação da sua defesa em juízo, ficam sensivelmente prejudicadas quando se interpreta restritivamente o art. 6-, VIII. Ao conceder-lhe natureza estritamente técnica, negando-se a inversão do pagamento da prova nos casos comprovados de hipossuficiência, percorre-se apenas metade do caminho na facilitação da defesa dos direitos do consumidor" (AC 415.142-4/3, 4a. Câmara de Direito Privado).

E arremata o citado voto:

Parece até simples o raciocínio. Ao autor, nos termos do art. 19, § 2-, do Código de Processo Civil, incumbe o ônus de adiantar as custas e despesas processuais, como consequência do encargo de comprovar suas alegações, nos termos do art. 333, I, também do Código de Processo Civil. Se, reconhecida a sua hipossuficiência, inverte-se o ônus da prova, a consequência direta é que os encargos decorrentes da inversão também são invertidos. É uma exceção à regra em benefício do consumidor hipossuficiente. Se o juiz determina de ofício a realização de prova cuja despesa incumbia ao consumidor hipossuficiente adiantar, então o encargo que lhe pertencia também se inverte e passa à parte contrária. Em poucas palavras, a inversão apenas do ônus da prova, sem a correspondente inversão de efetuar o custeio da prova seria, em última análise, esvaziar a regra que veio para beneficiar a parte fraca da relação negociai. Como frisou o Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, em caso idêntico ao ora em exame, sabe-se que não basta assegurar direitos, se não garantidos os meios de prova. Uma maneira segura de distrair o controle judicial das cláusulas e negócios abusivos será atribuir ao autor hipossuficiente o ônus de fazer prova de seu direito, o que redundará, na prática, a improcedência da ação (Resp 436.731 -RJ). (Agravo de Instrumento 994093403561 (6525024600). Relator(a): Francisco Loureiro.

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Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 26/11/2009. Data de registro: 08/01/2010). (Grifo nosso) AGRAVO DE INSTRUMENTO - Embargos à execução-Recurso interposto contra decisão que determinou que o agravante arcasse com os custos da realização de prova pericial contábil. Alegação de que a inversão do ônus da prova não obriga o agravante a custear os honorários periciais fixados pelo Douto Juízo de 1o grau. Inadmissibilidade. A inversão do ônus da prova tem caráter jurídico e econômico, afastando do hipossuficiente a obrigatoriedade do recolhimento dos honorários periciais arbitrados. RECURSO DESPROVIDO. (TJ/SP. Agravo de Instrumento 991090295693 (7388807800). Relator(a): Elmano de Oliveira. Comarca: Salto. Órgão julgador: 23ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 09/12/2009. Data de registro: 08/01/2010). (Grifo nosso)

Há, por outro lado, entendimento que não distingue o ônus da prova da

responsabilidade pela antecipação de despesas. Assim, o juiz pode apenas inverter

o ônus, não sendo razoável inverter a responsabilidade pelas despesas, obrigando a

parte que não requereu a prova custeá-la. Nesse diapasão, os acórdãos proferidos

pelo Superior Tribunal de Justiça que correspondem à corrente majoritária na

jurisprudência:

PROCESSO CIVIL, CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CUSTEIO DA PROVA DETERMINADA PELO JUÍZO. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 19 E 33 DO CPC, BEM COMO 6º, VIII, DO CDC. 1. O Tribunal a quo inverteu o ônus da prova e determinou que o recorrente arcasse com o pagamento dos honorários periciais. 2. No entanto, prevalece, no âmbito da Segunda Seção desta Corte Superior de Justiça que os efeitos da inversão do ônus da prova não possui a força de "obrigar a parte contrária a arcar com as custas da prova requerida pelo consumidor" (cf. Resp nº 816.524-MG, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ de 08/11/2006). 3. Recurso especial provido. (REsp 803565 / SP. RECURSO ESPECIAL. 2005/0206368-0. Relator(a) Ministro HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP) (8185). Órgão Julgador. T4 - QUARTA TURMA. J. 10/11/2009) (Grifo nosso)

Apenas a título de registro, destaca-se que este posicionamento adotado

acerca de não se confundir a inversão do ônus da prova com a obrigação de

adiantamento dos honorários periciais é harmônico com o entendimento já esposado

por esta Corte nos seguintes precedentes: REsp nº 661.149/SP, Rel. Min. NANCY

ANDRIGHI, DJ de 04.09.2006; AgRg no Ag nº 634.444/SP, Rel. Min. BARROS

MONTEIRO, DJ de 12.12.2005. Pacífico, portanto, o entendimento no Superior

Tribunal de Justiça de que a inversão do ônus da prova não possui a força de

obrigar a parte contrária a arcar com as custas da prova requerida pelo consumidor.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, também já foi decidido neste

sentido:

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JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - Cerceamento de defesa - Inocorrência - Pretensão de produção de prova pericial - Determinado o pagamento dos honorários periciais, a parte Interessada quedou-se inerte - Relação de consumo caracterizada entre as partes - Ausência de hipossuficiência técnica do autor - Norma protetiva que visa obter elementos de convencimento do Juízo e não apenas inverter o custo da prova - Pretensão à inversão do pagamento com as despesas referentes à realização prova, requerida somente pela autora - Impossibilidade - Incumbência processual imposta pelo art. 333 do CPC - Entendimento doutrinário - Preliminar rejeitada - Recurso desprovido - Sentença mantida. CONTRATO - Abertura de crédito em conta-corrente para pessoa jurídica - Capitalização de Juros - Ausência de provas de sua concorrência - Juros Remuneratórios - Hipótese não amparada pela lei de Usura - Incidência da taxa média de mercado, conforme cobrado pelo banco - Recurso desprovido - Sentença mantida. CONTRATO - Abertura de crédito em conta-corrente e Empréstimos bancários - Ação revisional - Tarifas - Legalidade - Cobrança decorrente do serviço prestado pelo banco pelos produtos pela correntista utilizados - Inteligência das Resoluções 2878 e 2303/96 do BACEN - Recurso desprovido - Sentença mantida. (TJ/SP. Apelação 991080902193 (7305247600). Relator(a): Ademir Benedito. Comarca: São José do Rio Preto. Órgão julgador: 21ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 25/11/2009. Data de registro: 07/01/2010) (Grifo nosso) AGRAVO REGIMENTAL - Decisão monocrática que deu provimento parcial a agravo de instrumento - Prova pericial - Determinação de ofício - Inversão do ônus da prova que não se confunde com responsabilidade pelo pagamento da sua produção - Decisão mantida - Recurso desprovido. (TJ/SP. Agravo Regimental 990092562070. Relator(a): Melo Bueno. Comarca: Limeira. Órgão julgador: 35ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 14/12/2009. Data de registro: 07/01/2010) (Grifo nosso) Ônus da prova - Ação declaratória de inexistência de débito irradiado de contrato de crédito rotativo em conta-corrente, cumulada com repetição de indébito - Recurso interposto com pedido de gratuidade processual - Gratuidade a ser decidida, em primeiro lugar, no juízo de origem, sem a supressão de um grau de jurisdição - Prova pericial contábil-financeira ordenada pelo juiz - Salários do perito a serem adiantados pelo autor - Admissibilidade - Incidência do art. 33 do CPC - Inversão preconizada no Código de Defesa do Consumidor que não se presta para a inversão do custeio da prova - Recurso conhecido em parte e desprovido. (TJ/SP. Agravo de Instrumento 991090547463 (7413984100). Relator(a): Cerqueira Leite. Comarca: Viradouro. Órgão julgador: 12ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 09/12/2009. Data de registro: 08/01/2010).

Segundo essa posição, as disposições do Código de Defesa do Consumidor,

no que compete à inversão do ônus da prova, servem como meio de possibilitar a

introdução do princípio de vulnerabilidade do consumidor em um sistema baseado

na igualdade entre as partes, constituindo verdadeira exceção à regra contida no

artigo 333 do Código de Processo Civil. Já as disposições dos artigos 19 e 33 desse

Código de Processo classificam-se como verdadeiro ônus processual, cujo

descumprimento implicará em não ser realizado o ato requerido, podendo advir daí

possíveis consequências desagradáveis para quem o requereu e não adiantou as

despesas. As normas consumeristas, pois, constituiriam exceção ao artigo 333 do

Código de Processo Civil, que trata do ônus subjetivo da prova, e não das normas

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dos artigos 19 e seguintes, que tratam do ônus financeiro da produção dos atos

processuais. Desse modo, seguindo esse entendimento, caberia ao consumidor

arcar com os ônus financeiros de atos probatórios por ele requeridos, devendo arcar,

ainda, se for o autor da demanda, com as despesas prévias de atos ordenados de

ofício pelo juiz ou pelo Ministério Público (art. 19, § 2º do CPC) ou com as despesas

de perícia requerida por si ou por ambos os litigantes (art. 33 do CPC).

Conforme já exposto, a questão financeira, no fundo, é uma das vigas

mestras do Código de Defesa do Consumidor, inclusive no que tange à

hipossuficiência e possibilidade de inversão do ônus da prova. A vontade da lei

quanto à proteção do consumidor hipossuficiente é tamanha que se manifesta na

Constituição Federal em dois capítulos, quais sejam, o das garantias fundamentais

do homem e dos princípios gerais da atividade econômica (art. 170, V, CF).

Claramente o pagamento pela produção da prova é a questão que definitivamente

interessa aos litigantes no transcurso da instrução probatória, sendo certo que

assumir o ônus financeiro revela-se um grande obstáculo ao acesso à justiça,

principalmente ao consumidor. Assim, não parece razoável reconhecer apenas o

ônus da prova, sem a correspondente inversão de efetuar o custeio da prova. Isto

representa, de fato, esvaziar a regra que veio para beneficiar a parte fraca da

relação negociai.

Ratifica este entendimento as observações de Rizzatto Nunes:

Se assim não fosse, instaurar-se-ia uma incrível contradição: o ônus da prova seria do réu, e o ônus econômico seria do autor (consumidor). Como esse não tem poder econômico, não poderia produzir a prova. Nesse caso, sobre qual parte recairia o ônus da não-produção da prova?308

Observe-se que, para a questão formulada, responde a jurisprudência que as

consequências pela não produção da prova recaem sobre a parte a quem incumbia

o ônus da prova, consagrando posição ambígua, já que, ao mesmo tempo em que

exonera a parte do pagamento da produção pericial, impõe-lhe as consequências

pela sua não produção.

Ainda que prevaleça esse entendimento restritivo de manter o ônus financeiro

da produção da prova a seu desfavor, pode o consumidor economicamente

308 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso prático de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 744.

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hipossuficiente se valer da assistência judiciária prevista no ordenamento pela Lei

1.060/50 (Lei da Assistência Judiciária).

Em suma, em razão de todo o conjunto principiológico que rege as relações

consumeristas, dentre os quais se pode destacar o acesso à justiça, a

vulnerabilidade e a facilitação de sua defesa em juízo, tem-se que, a inversão do

ônus da prova deve possibilitar a inversão do ônus financeiro.

6.5 Novas Teorias a Respeito do Ônus da Prova: Teoria da

Carga Dinâmica do Ônus da Prova e Res Ipsa Loquitur

Conforme apontado acima, a teoria tradicional da distribuição do ônus da

prova, também conhecida como estática, é aquela em que vigora o princípio de que

aquele que alega deve provar os fatos alegados, sob pena de sofrer as

consequências da sua omissão. Diante das inconveniências em conseguir a prova

imputável ao réu, inclusive no caso médico, surgiram, na doutrina, teorias tendentes

a facilitar a pesada carga probatória que deve enfrentar o autor, no caso o paciente.

Com efeito, há processos em que o fardo de provar deve ter um trato

diferente, não podendo a teoria clássica ser aplicada de forma absoluta,

principalmente sob o fundamento do princípio da efetividade do processo e da

possibilidade de não ser entregue o direito a quem realmente o tem. A utilização da

doutrina subjetiva, a falta de documentação das várias etapas da relação com o

médico, a natureza confidencial, a ausência de testemunhas e a complexidade

técnica da questão dificultam a atividade probatório do paciente lesado.

Nesse contexto, o art. 6º, inciso VIII do CDC permite ao juiz a inversão do

ônus da prova a favor do consumidor como forma de facilitar a defesa de seus

direitos em juízo, se for verossímil a alegação, ou quando for ele hipossuficiente,

segundo as regras ordinárias da experiência.

Em face deste dispositivo, há na doutrina quem reconheça a consagração da

teoria da distribuição da carga dinâmica do ônus probatório no art. 6º, inciso VIII da

Lei 8.078/1990. Terese Arruda Alvim Zambier e José Miguel Medina afirmam, por

exemplo, que esse dispositivo legal consagra textualmente o princípio309. Antonio

Jeová dos Santos, também defende ser adequada a aplicação desta teoria para

309 (MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. op.cit., p. 60).

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deslindar a matéria posta nas causas envolvendo comprovação da culpa médica310.

Na jurisprudência, há casos de flexibilizar o entendimento tradicional, em

homenagem ao princípio da efetividade da tutela jurisdicional, garantindo o direito a

quem realmente o titule311.

Segundo a tese da distribuição dinâmica da carga probatória, é inaceitável o

estabelecimento prévio e abstrato do encargo e a distinção já tradicional entre fatos

constitutivos, extintivos, etc. A posição da parte no processo é ignorável: imputa-se o

encargo àquela das partes que, pelas circunstâncias reais, se encontra em melhor

condição de fazê-lo312. Assim, operando-se a distribuição dinâmica, pode suceder

que, no curso do procedimento, o ônus se transfira de uma parte para a outra.

João Monteiro de Castro afirma que a distribuição da carga dinâmica do ônus

da prova não se confunde com a inversão do ônus da prova, pois, por aquele

princípio, à parte que detém a prova não é lícito negá-la por necessária ao processo.

Afirma que o art. 6º, inciso VIII refere-se à inversão do ônus da prova, e não à

distribuição dinâmica da prova.

Na realidade, a teoria da carga dinâmica é bem tratada na doutrina

estrangeira, em especial na Argentina, e consiste no descolamento da posição da

parte, em relação ao ônus da prova, em função da índole e características do tema

submetido ao julgamento, dando-se primazia, em detrimento da aplicação das

310 No caso da comprovação da culpa médica, assoma a necessidade de não deixar sobre os ombros da vítima toda a carga da prova. A mala práxis médica não é realizada à vista de todos. O juiz não pode analisar a prova da culpa médica da mesma forma que o faz quando da averiguação da culpa de um motorista imprudente. (...) Esta carga dinâmica das provas funciona como um ferramental adequado para retirar de sobre os ombros do ofendido o ônus de efetuar a prova diabólica, aquela que para emergir exige extrema dificuldade, senão impossibilidade. Segundo este entendimento, é bom repetir, é considerada a distribuição do ônus da prova. Coloca-se sob a responsabilidade da parte que se encontra em melhores condições de provar a carga de levar a prova para o ventre dos autos. Porque essa regra não está presa, nem cativa a preceitos de rígida divisão sobre quem incumbe o ônus de provar, mas esse ônus sempre depende das circunstâncias do caso concreto e da qualidade do demandante, é que, ditas regras, assumindo caráter dinâmico, contrastando com aquelas rígidas, surge o nome de carga dinâmica das provas. (SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. Apud CASTRO, João Monteiro. Responsabilidade civil médica. São Paulo: Editora Método, 2005, p.190) 311 Na jurisprudência, encontra-se a flexibilização do entendimento tradicional nos seguintes termos: “Responsabilidade civil. Médico. Clínica. Culpa. Prova. 1. Não viola regra sobre a prova o acórdão que, além de aceitar implicitamente o princípio da carga dinâmica da prova, examina o conjunto probatório e conclui pela comprovação da culpa dos réus. 2. Legitimidade passiva da clínica, inicialmente procurada pelo paciente. 3. Juntada de textos científicos determinada de ofício pelo Juiz. Regularidade. 4. Responsabilidade da clínica e do médico que atendeu o paciente submetido a uma operação cirúrgica da qual resultou a secção da medula. 5. Inexistência de ofensa a lei e divergência não demonstrada. Recurso especial não conhecido. (REsp 69309 / SC RECURSO ESPECIAL 1995/0033341-4. Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar. j.18/06/1996). 312 DALL`AGNOL JUNIOR, Antônio Janyr. Distribuição dinâmica do ônus probatório. MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. op.cit., p. 210.

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normas processuais, à obtenção da verdade, que não pode ser obscurecida pelo

excessivo rigor formal. Assim, assume relevo a idéia de solidariedade e colaboração

das partes na etapa probatória do processo, sem sujeição às regras rígidas. O

tribunal argentino já decidiu que, à luz de certos dados empíricos, deve o juiz deduzir

a culpa médica não provada de forma direta. Considerar-se-ia provada a culpa, por

exemplo, se o dano, segundo máximas de experiências comuns, não pudesse ser

explicado de outro modo, a não ser pelo agir culposo do réu – a menos que o

demandado fornecesse prova eficaz para exonerar-se da responsabilidade313.

Nos Estados Unidos e no Canadá, por sua vez, aplica-se de forma reiterada o

princípio res ipsa loquitur (a coisa fala por si mesma). A coisa, neste caso, é o dano.

Ou seja, não há outra explicação para o dano a não ser a atuação culposa do

agente. Trata-se também de uma regra de presunção de culpa, que se assemelha

às presunções de culpa do demandado tão frequentes no Brasil: inverte-se o ônus

da prova, firmando-se a procedência da demanda caso o réu não produza prova em

contrário.

Nos Estados Unidos, desde 1983, aplica-se essa formulação teórica nas

seguintes hipóteses: a) quando não há evidência acerca de como ou porque ocorreu

o dano; b) quando se acredita que não teria ocorrido se não tivesse culpa; c) quando

recai sobre o médico que estava atendendo pessoalmente o paciente314. Assim, a

jurisprudência norte-americana tem aplicado essa teoria nos seguintes casos: 1)

Objetos esquecidos no corpo do paciente, durante a cirurgia; 2) Danos a uma parte

saudável do corpo; 3) a remoção equivocada de uma parte do corpo, quando

deveria ter sido extirpada; 4) dentes que caem pela traquéia; 5) queimaduras de

lâmpadas, em radiografias, produtos químicos; 6) infecção resultante de

instrumentos não esterilizados; 7) omissão de radiografar, para diagnóstico de

possível fratura; 8) colocação equivocada de aparelho gessado; 9) incapacidade

resultante diretamente da má aplicação de injeção; 10) explosão de gases

anestésicos.

No Canadá, por sua vez, a jurisprudência reconhece essa formulação teórica

diante das seguintes condições: a) o dano deve ser decorrente de um fato que

313 ARAZI, Roland. La prueba em el proceso civil. Apud KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado: responsabilidade civil em pediatria, responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 314 ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabidad civil Del médico. Apud KFOURI NETO, Direitos do paciente e responsabilidade civil médico-hospitar: (re)definição conceitual. São Paulo, 2005, p.251.

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ordinariamente não ocorre se não houver culpa; b) deverá ter sido causado

diretamente pelo médico ou por alguém sob sua direção ou controle; c) deverá ter

ocorrido em circunstâncias que indiquem que o paciente não o produziu

voluntariamente ou por negligência de sua parte315.

No Brasil, a doutrina já se manifestou sobre o princípio res ipsa loquitur (a

coisa fala por si mesma). Segundo Heloisa Helena Barboza, para tanto, o dano

deve:

a) ter resultado de um fato que não ocorre ordinariamente se não houve negligência ou outra forma de culpa; b) ter sido causado diretamente pelo médico ou por alguém atuando sob sua direção e controle; c) ocorrido em circunstâncias que indiquem que o paciente não produziu voluntariamente ou por negligência de sua parte316.

No entanto, parece prevalecer a teoria da inversão do ônus da prova, que já

foi aplicada, dentre outras, nas seguintes hipóteses: 1) esquecimento, no organismo

do paciente, de compressas, gazes, pinças e outros instrumentos após intervenção

cirúrgica; 2) paralisia em consequência de anestesia peridural ou raquidiana; 3)

graves lesões provocadas em recém-nascido pelo uso do fórceps; 4)lesões

nervosas em decorrência da aplicação de aparelho gessado; 5) queimaduras pelo

emprego de aparelhos elétricos; 6) radiodermite devido à aplicação de raios-x; 7)

queimadura causada pela placa metálica do bisturi elétrico.

Conclui-se que, no Brasil, a inversão do ônus da prova é regra excepcional,

devida apenas quando preenchidos os pressupostos legais. A prodigalização da

norma consumerista poderá distorcer o seu nobre objetivo de tutelar o consumidor e

desequilibrar a equação de igualdade.

315 KING JR, Joseph H. The Law of medical malpractice. Apud KFOURI NETO, Direitos do paciente e

responsabilidade civil médico-hospitar: (re)definição conceitual.Tese de doutorado apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005, p.252. 316 GONZÁLEZ, José Maria Miquel, La responsabilidade médica, cit., p.91.

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7. Sistemas alternativos de responsabilidade civil no direito

comparado

Diante dos acidentes médicos consumados sem qualquer indício de culpa

surgiu uma necessidade de refletir sobre a questão da responsabilidade civil

subjetiva, isto é, sobre algumas limitações inerentes a este instituto, tendo em vista

que sua sistemática não foi pensada para resolver todos os casos lesivos. A solução

da responsabilidade médica objetiva, por seu turno, só parece sustentável, do ponto

de vista econômico, enquanto excepcional. Até porque não parece de todo correto

fazer recair sobre os médicos o peso de sustentar todos os riscos desta ciência que,

provavelmente, resultaria um crescimento da medicina defensiva. Diferentemente da

realidade brasileira, em que a responsabilidade objetiva está sendo reconhecida

pelos tribunais e doutrinadores de acordo com o caráter da obrigação assumida

(obrigação de resultado) ou até mesmo de um exercício futurístico quanto ao

enquadramento da atividade como de risco (disposta em cláusula geral no parágrafo

único do art. 927)317, outros países criaram novos sistemas alternativos de

responsabilidade civil em que, na maior parte dos casos, o sistema tradicional de

indenização dos sujeitos lesados convive (ainda que de forma subsidiária) com as

diferentes formas de ressarcimento. Trata-se de modelos desenvolvidos de acordo

com a realidade e necessidade concreta dos respectivos países, de forma que a sua

transposição para a realidade brasileira, se for o caso, não poderá ser feita sem as

317 Conforme já afirmado, Portugal possui regra semelhante disposta no art.493, nº2, CC. De acordo com Carla Gonçalves, este dispositivo pode servir para conter os efeitos negativos do progresso da medicina, cabendo ao julgador, face às circunstâncias do caso concreto, avaliar se a invocação do referido regime procede ou não. Afirma a autora que, de acordo com a realidade portuguesa, a responsabilidade médica objetiva decorre da lei e, em geral, de circunstâncias que envolvem riscos excepcionais (e não do caráter da obrigação – de resultado – como vem sendo sustentado pela doutrina e jurisprudência brasileira. Os riscos excepcionais, sob uma perspectiva concreta, seriam os casos legalmente consagrados; sob uma perspectiva abstrata, outras situações que poderiam justificar a adoção de uma responsabilidade objetiva. São casos consagrados de responsabilidade objetiva em Portugal: ensaios clínicos, doações de órgãos e tecidos em vida, exposição dos pacientes a radiações, medicamentos defeituosos (responsabilidade da indústria farmacêutica) e médico chefe de equipe (sob o fundamento de existir uma relação de comissão entre os membros da equipe médica ou auxiliares). Conclui a autora que o exercício de um mero caminho futurístico somente pode ser evitado se nos detivermos à realidade tal como ela é, e não como hipoteticamente deveria ou poderia ser, sendo que só o tempo poderá responder se o futuro da responsabilidade médica caminha mesmo no sentido de acolher novos casos de responsabilidade objetiva. (GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 213).

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devidas adaptações. Citam-se dois mecanismos diferenciados de indenização dos

danos médicos: sistema no fault e o misto.

7.1 Sistema no fault

A Nova Zelândia foi pioneira no sentido de desenvolver um sistema de

ressarcimento dos danos independentemente da culpa para a atividade médica em

geral. Nova Zelândia, Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca acompanharam o

sistema no fault. Mais recentemente, a França criou um sistema misto de

recomposição dos danos médicos. A Espanha também adotou um novo caminho em

setores específico da atividade da saúde, ou seja, criou um fundo de garantia com o

propósito de indenizar os sujeitos que tenham sido infectados pelo Human

immunodeficency virus (HIV), na sequência de uma transfusão sanguínea; enquanto

a Inglaterra mantém um fundo semelhante para compensar os danos resultantes de

vacinação (GONÇALVES, 2008, p. 177).

Desde 1974 a Nova Zelândia adotou o sistema no fault de compensação dos

danos pessoais resultantes de acidente médico (além de outros setores), em que a

indenização da vítima independe da apuração da culpa do lesante. Parte do

orçamento do sistema depende da participação do setor público através de uma

contribuição prestada pelos cidadãos por meio de impostos. Ou seja, parte do

orçamento do Estado foi destinada à criação de um seguro social que subsidia,

subsidiariamente, o sistema. No entanto, tendo em vista os altos custos, foram

adotadas medidas, para reavaliação dos danos compensáveis a fim de se evitar um

colapso total. Diante disso, foram promulgados o Accident Insurance and

Compensation Act , de 1992; Accidente Insurance Act, de 1998; e finalmente, o

Injury Prevention, Rehabilitation anda Compensation Act, de 2001, sempre com o

intuito de alcançar um melhor equilíbrio entre a justa e sustentável compensação

dos danos acidentais.

Os países nórdicos também adotaram este sistema, adaptando-o as suas

respectivas tradições jurídicas. Os suecos, diferentemente dos outros países,

criaram espontaneamente, independentemente da intervenção legislativa para reagir

contra a apreciação da culpa do profissional da medicina um seguro coletivo que se

tornou obrigatório alguns anos mais tarde. Em razão da participação ativa dos

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profissionais da saúde no processo de ressarcimento dos pacientes, em pouco

tempo, a experiência sueca contagiou os países nórdicos e o sistema no fault

acabou por se estender aos demais países escandinavos. Assim, em 1987, a

Finlândia elaborou a sua primeira legislação sobre a matéria; A Dinamarca, em

1992, consagrou o seguro coletivo de indenização dos pacientes.

Para efeitos compensatórios, os países nórdicos flexibilizaram a noção de

causalidade, sendo suficiente que o paciente faça prova da existência de uma

probabilidade (como é o caso da Finlândia) ou de uma elevada probabilidade (como

é o caso dos demais) de o dano ter resultado da prestação de cuidados de saúde.

Ademais, o ressarcimento do dano não patrimonial não assume grandes proporções,

servindo as compensações para cobrir tão-somente as despesas necessárias

decorrentes, em regra, de um dano evitável de acordo com os seguintes parâmetros:

a regra do especialista – the specialist rule; a regra do equipamento – the

equipament rule; a regra da alternativa – the alternative rule318. O ressarcimento do

dano inevitável baseia-se na regra da razoabilidade (the reasonableness rule)319, isto

é, o dano somente é compensado se ultrapassar um determinado limite de

suportabilidade nos casos relativamente sérios e raros320. O sistema escandinavo,

portanto, preocupa-se com a recomposição dos danos evitáveis que, de um modo

geral, são casos em que há culpa médica (embora exista dano evitável sem que

exista má atuação profissional, por exemplo, em caso de dano evitável segundo a

regra do equipamento). Ou seja, muito embora não se fale em culpa no âmbito de

um sistema no fault, há de se reconhecer que os profissionais de saúde também são

beneficiários deste sistema, pois os casos de responsabilidade civil nesse sistema

alcançam basicamente os mesmos casos em que há o elemento culpa.

318 Em apertada síntese, a regra do especialista considera que evitável o dano que pode ser evitado por um profissional experiente e especializado, e não por um médico normal; a regra do equipamento considera evitável o dano gerado por falha ou defeito de um equipamento; a regra da alternativa considera evitável o dano pelo recurso a uma técnica ou tratamento alternativo – aquele que envolve menos riscos ou for igualmente eficaz que o tratamento escolhido. Esta última regra é a menos objetiva, conferindo aplicabilidade a um número maior de casos. (GRUNFELD, ARNE. The nordic patient insurance systems: similarities and differences. Apud GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 193). 319 (GRUNFELD, ARNE. The nordic patient insurance systems: similarities and differences. Apud GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 193). 320 Segundo Carla Gonçalves, na Dinamarca e Suécia, são exemplos de dano suficientemente sério e raro as infecções contraídas em hospital. (GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 194).

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Diferentemente do seguro de responsabilidade civil, em que a

responsabilidade do segurado não vai além do pagamento do prêmio de seguro nos

casos em que o segurado atuar com culpa (salvo nos casos de responsabilidade

objetiva), nos seguros sociais a seguradora indeniza o paciente, independentemente

de o dano ter decorrido de um comportamento culposo, ou não, do profissional de

saúde, e a seguradora não tem qualquer direito de regresso.

A idéia central deste sistema era a de promover uma indenização igual para

danos iguais, sem garantir obrigatoriamente a reparação integral e automática. No

entanto, a partir de certo momento, este ideal teve de ser repensado. Efetivamente o

que se percebeu é que o ideal de justiça podia ser preservado ainda que se

imputasse à vítima o ônus de suportar os danos de menor proporção.

Diferentemente do sistema de responsabilidade objetiva (adotado em diversos casos

brasileiros de responsabilidade médica), em que culpa é irrelevante para fins de

indenização apenas na perspectiva do lesado, devendo ser analisada apenas para o

exercício do direito de regresso em caso de culpa do lesante, no sistema no fault, a

presença da culpa é indiferente sob o ponto de vista do lesado e do lesante, sem dar

ensejo ao exercício do direito de regresso. Em poucas palavras, a negligência,

imprudência ou imperícia médica e o dano passaram a ser tratados de forma

independente.

Ademais, comparativamente ao sistema de responsabilidade objetiva, tido por

alguns autores brasileiros como sistema alternativo para recomposição de danos

resultantes de acidentes médicos, o sistema no fault conta com o apoio de órgãos

não judiciais, geralmente instituídos pelo próprio hospital, para processar, na esfera

administrativa, de forma mais célere de composição, as reclamações feitas pelas

supostas vítimas. E ainda, a responsabilidade médica – seja objetiva ou subjetiva,

tende a contemplar o princípio da reparação integral dos danos. Em contrapartida, o

sistema no fault possui plataformas prefixadas de compensação.

Por fim, uma das maiores peculiaridades do sistema no fault dos países

nórdicos é a celeridade da indenização, dentro da esfera administrativa dos

estabelecimentos de saúde e sem qualquer custo para a vítima. Basta que o lesado

preencha um formulário simples de reclamação, disponível no próprio hospital, para

que seja encaminhado, juntamente com os demais relatórios clínicos do paciente, à

companhia de seguros responsável pelo ressarcimento do sujeito lesado para

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decidir se o paciente merece ou não ser indenizado. Esta decisão, em regra321, é

passível de recurso para a Comissão do Paciente, que voltará a analisar em que

medida o paciente deve ser indenizado322.

7.2 Sistema misto

No sistema misto, por sua vez, a ausência de culpa tende a ser um critério

indispensável para o lesado se valer de um mecanismo alternativo de compensação

de danos. Diferentemente da responsabilidade objetiva, em que a verificação da

culpa é dispensada (podendo ou não existir), as regras da solidariedade nacional

somente possibilitam reparação quando for caso de dano consumado sem culpa.

A França inovou em matéria de direito médico com uma nova legislação, qual

seja a Lei Kouchner (Lei nº 2002/303), consagrando um sistema misto de

responsabilidade civil, ou melhor, um duplo regime de indenização323. Em essencial,

o que há de mais original em matéria de reparação de danos oriundos da aléa

thérapeutique nessa legislação é que a responsabilidade à custa da solidariedade

social depende de determinadas condições legais: a natureza e gravidade do

prejuízo (ONIAM – Office National d´Indemnisation des Accidents Médicaux, des

affections iatrogènes et des infections nosocomiales).

Quanto à natureza do dano, os casos suscetíveis de acionar o mecanismo de

solidariedade nacional são os acidentes médicos, os danos iatrogênicos e as

infecções hospitalares. Pela ordem, os acidentes médicos são aqueles decorrentes

de um ato praticado pelo profissional da saúde, sem qualquer culpa, que produz

uma situação desfavorável para o paciente, ainda que imprevisível face ao seu

estado de saúde. Os danos iatrogênicos são aqueles que resultam de tratamento

escolhido para o paciente, sem que se possa verificar a má escolha ou má

administração do tratamento. Por fim, as infecções hospitalares são aquelas

contraídas de um internamento hospitalar, salvo no caso de atuação culposa, morte

321 Conforme aponta Carla Gonçalves, na Finlândia, na Dinamarca e na Noroega, esta decisão é vinculativa para os estabelecimentos de saúde, restando ao paciente apenas a revisão por via judicial. (GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 195). 322 (GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 195). 323 DUBOUIS, Louis. La réparation des conséquences des risques sanitaires. Apud GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 201).

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do paciente ou responsabilidade plena do hospital. Portanto, diferentemente do

sistema escandinavo, que presta grande atenção à recomposição dos danos

evitáveis, o sistema francês ocupa-se, em primeira linha, com os danos inevitáveis,

enquanto os danos evitáveis continuam sujeitos à regra geral da responsabilidade

subjetiva.

Quanto à gravidade do dano, deve-se atingir o limite estipulado por lei de 24%

para que o risco sanitário seja compensável ou não. Assim, segundo a lei francesa,

acima do limite de gravidade estipulado, há reparação integral; abaixo, nada.

Dessa maneira, preenchidas essas condições, de forma subsidiária ao

sistema tradicional de responsabilidade médica (subjetiva), o lesado pode recorrer

ao sistema de solidariedade nacional decorrente do seguro obrigatório para toda a

prática médica324, respeitadas as plataformas de garantia de cobertura de danos e o

princípio da reparação integral do dano.

De uma forma geral, a doutrina francesa critica severamente o sistema

alternativo em razão da sua pouca aplicabilidade (2% a 3% dos danos causados

pela atividade médica)325 e da arbitrariedade na rigidez imposta pela taxa de

gravidade326. De fato, como observa Carla Gonçalves, como antes da Lei Kouchner

a aléa thérapeutique acabava por ser indenizada independentemente de atingir

qualquer conjunto sistematizado de regras, inclusive no que tange à taxa de

gravidade, atualmente, a indenização (à custa da solidariedade nacional) somente é

possível se, cumulativamente, o evento lesivo reunir as condições legais exigíveis

para tanto. Assim, aparentemente a lei francesa de 2002, sob a ótica do paciente,

desprotegeu mais do que protegeu (GONÇALVES, 2008, p. 212).

Em suma, há diversas diferenças entre as regras desses sistemas

alternativos daquelas que estão sendo aplicadas em determinados casos brasileiros

de responsabilidade médica objetiva. Na realidade, o estudo dos mecanismos

alternativos de recomposição dos acidentes médicos ajuda a compreender melhor

que a simples decisão de criar novas hipóteses de responsabilidade objetiva ou 324 A obrigatoriedade dos seguros de responsabilidade médica não alcançou o Estado, pois no âmbito dos hospitais públicos o Estado atua como o seu próprio segurador. (GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 201). 325 FAURÉ, Georges (Coord.). La loi du 4 mars 2002: continuité ou nouveauté em droit médica?Apud GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 211). 326 LAMBERT-FAIVRE, Yvonne. La loi nº2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à qualité Du système de santé. Apud GONÇALVES, Carla. A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 211).

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adotar um sistema alternativo de solidariedade nacional deve levar em conta as suas

vantagens e, principalmente, a viabilidade de ser recepcionado um sistema

alternativo em termos práticos (transposição com as devidas adaptações) ou apenas

na teoria. No caso brasileiro, no mínimo, pode-se ficar com a teoria que,

indubitavelmente, é enriquecedora por servir de comparação para apreender com a

experiência dos outros e avançar, seja no sentido de construir uma realidade

semelhante, ou não.

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CONCLUSÃO

Inicialmente, baseada nas lições de Giselda Maria Fernandes Novaes

Hironaka, foi constatado que o instituto da responsabilidade civil é um instituto

contemporâneo, produzido dentro das inovações introduzidas pelo direito

revolucionário francês, no final do século XVIII327.

O estudo da responsabilidade civil médica em geral e especificamente no que

tange à responsabilidade por erro de diagnóstico apontou a importância de conhecer

profundamente o instituto e os seus pressupostos, desestimulando as aventuras

judiciais e cortando as investidas dos litigantes que se valem de uma atmosfera

conturbada para auferir vantagens.

Assim, foi estudada a história da responsabilidade, sob o âmbito externo e

interno. De acordo com a função da história externa do instituto jurídico, registrou-se

a cronologia das suas formulações normativas e a sua essência. No que tange à

função da história interna da responsabilidade civil, apontou-se que a idéia de culpa

ainda hoje está ligada a uma noção de normalidade civil que, quando não é

respeitada, resulta na necessidade de uma punição criminal ou numa compensação

civil, patrimonial.

Não obstante, observou-se que o advento de novos fenômenos e novas

descobertas científicas geraram descompasso temporal entre a norma e as

condutas atualmente praticadas, dificultando a solução dos problemas através da

regra geral de responsabilidade civil e obrigando o intérprete a apreciar o caso,

juridicamente, à luz das normas existentes, adaptando o sentido incorporado (nas

normas) dentro da realidade atual, inédita ao tempo de criação da norma. Foi

ponderado que o primeiro contorno à liberdade de ação de um profissional médico e

da atividade científica em si decorre de lei, ou melhor, está inserido na Constituição

Federal, art. 5º, caput, que proclama a vida, a integridade física e psíquica, a

privacidade como alguns dos direitos fundamentais. No entanto, constatada a

necessidade de tornar a regra atual, adequada e justa, concluiu-se que, de acordo

com a Lei de Introdução ao Código Civil, arts. 4º e 5º, compete aos aplicadores

integrar o ordenamento jurídico, criando uma norma individual, em consonância com

327 Isto porque somente a partir do século XVIII a “reparação” se desvencilhou da exigência de “casos especiais”, quando foi enunciado um princípio geral, obrigando a reparar todos os danos que uma pessoa causar a outra por sua culpa.

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o valor, o fato e a norma, utilizando-se principalmente dos princípios gerais da

bioética e do biodireito.

Constatado que os conceitos de consumidor e fornecedor alcançam,

respectivamente, paciente e médico, verificou-se que o âmbito de aplicação do CDC

não se restringe à aplicabilidade do art. 14, §4º (responsabilidade subjetiva do

profissional liberal), mas também à garantia do direito básico de facilitação do direito

básico do consumidor: a inversão do ônus da prova, presentes os requisitos para

tanto.

No que tange ao CC, constatou-se que o regime geral de responsabilidade

civil objetiva previsto em uma cláusula geral (art. 927, parágrafo único) não deve ser

aplicado, tendo em vista que a atividade médica não é geradora do risco a que é

exposto o paciente. O responsável pelo risco é a entidade nosológica – a doença –

apresentada pelo paciente. E mais, ainda que fosse admitida como uma atividade de

risco, vislumbrar-se-ia aparente conflito das normas do art. 951 (responsabilidade

subjetiva do profissional da saúde) e do parágrafo único do art. 927

(responsabilidade objetiva para a atividade com risco), tendo em vista que seria

possível a atividade médica ser de risco e de resultado ou de risco e subjetiva. Esse

aparente conflito poderia ser solucionado, em nível técnico, alterando-se os

dispositivos, e no que é pertinente à aplicação das normas jurídicas, utilizando-se

das lições de hermenêutica, interpretação sistemática e teleológica e das regras

solucionadoras de conflito de normas, neste caso, restando a prevalência da norma

especial (art. 951, CC) em relação à geral, preconizada no art. 927, parágrafo único

do Diploma Civil328. Ou seja, o art. 951 evidenciaria a exclusão da responsabilidade

objetiva dos profissionais da medicina da cláusula geral prevista no art. 927,

parágrafo único, a exemplo do que já ocorre com os profissionais liberais em geral,

cuja responsabilidade, a teor do que estabelece o art. 14, § 4º, do Código do

Consumidor, é apurada mediante a verificação da culpa. Portanto, ainda que fosse

considerada uma atividade de risco, a responsabilidade civil seria subjetiva, não se

aplicando o art. 927, parágrafo único do CC – responsabilidade objetiva por risco da

atividade.

No estudo das particularidades dos pressupostos da responsabilidade civil

médica no erro de diagnóstico tentou-se buscar principalmente elementos para a

328 Maria Helena Diniz, notas de aula ministrada no curso de pós-graduação stricto sensu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em agosto de 2008.

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caracterização do erro de diagnóstico. Para tanto, constatou-se que a análise deve

minimamente compreender o tempo estimado para a prática do ato médico e a

sensibilidade e especificidade do método de diagnóstico complementar, estes

últimos elementos com análise destacada no capítulo “O resultado falso-positivo e

falso-negativo e a caracterização do defeito”. Na verdade, constatou-se que a

questão é delicada, cuja solução não é fácil. Tanto que as legislações de diversos

países não adotam uma posição uníssona. Neste sentido, foi verificado que a

incerteza da ciência médica e as características particulares inerentes ao paciente

são consideradas riscos intrínsecos, não havendo que se falar em defeito e,

portanto, em responsabilidade civil quando existentes complicações (intercorrências)

médicas. Assim, concluiu-se que não há fundamento legal para se admitir

responsabilidade civil por defeito de serviço nos resultados falso-positivos ou falso-

negativos, pois no caso, há excludente de responsabilidade civil, tendo em vista a

segurança que legitimamente dele se esperava.

No estudo da apreciação da culpa por erro de diagnóstico, foi verificada a

dificuldade de apresentação de contornos definidos entre a ilicitude e licitude,

sujeitando a sorte do médico à sorte do paciente. Não obstante a grande diversidade

nos conceitos e o campo estritamente técnico, o objetivo do trabalho teve por fim

fornecer medidas capazes de prevenir os questionamentos do paciente-consumidor

relativos aos serviços de saúde utilizados por ele, quais sejam, o tempo,

sensibilidade e especificidade do método de diagnóstico, fatores imprescindíveis

para a identificação do erro médico.

De modo geral, é possível dizer que, sempre que estejam divididas as

opiniões científicas a respeito de um diagnóstico, deve ser afastada a

responsabilidade do profissional. Isto é, o médico nunca responde pelo fato de se

haver orientado por qualquer das opiniões idôneas em conflito. Não se exige dele

que formule o diagnóstico que permite maravilhas de acerto, mas apenas que faça o

diagnóstico de acordo com regras autorizadamente aceitas na sua profissão. Enfim,

é possível dizer que a responsabilidade civil médico por erro de diagnóstico se

define de maneira eminentemente casuística. Para melhor reconhecê-la ou afastá-la,

o mais seguro critério é investigar o caso concreto.

Ademais, no âmbito da responsabilidade civil médica, apontou-se que nem

todo dano é ressarcível. É possível dizer que há responsabilidade civil em caso de

iatrogênica: nos casos de lesões decorrentes de falha no comportamento humano

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ou lesões previsíveis não devida e previamente informadas; em caso de lesões

imprevisíveis, a iatrogenia não gera responsabilidade civil.

No que tange à responsabilidade civil das instituições privadas, destacou-se a

necessidade de comprovação do defeito, além do dano, para fins de solidariedade.

Já no âmbito das instituições públicas, o que se pôde notar, é que, seja em razão do

tratamento legal, seja em razão do enquadramento na definição de serviço de

consumo, é possível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em relação

aos serviços públicos em geral. No âmbito dos serviços hospitalares prestados por

instituições públicas, no entanto, a gratuidade foi identificada como causa suficiente

para afastar a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista a

falta de configuração de uma relação de consumo entre o particular e o Estado, por

ser tratar de um serviço uti universi ou serviço não remunerado. O regime jurídico

adequado é o previsto na Constituição Federal, qual seja o do art. 37, §6º, com as

devidas ponderações em caso de omissão estatal.

O termo de consentimento esclarecido foi também outra medida identificada

como capaz de prevenir os questionamentos, eliminando ou reduzindo algumas

causas que levam o paciente a questionar os serviços de saúde,

independentemente da existência do erro, mas ligadas a conflitos de relacionamento

ou de falha de comunicação. Não há de falar que o termo é uma série atomística de

assunções de risco, mas sim um balanço global, uma ponderação global de risco-

benefício. Trata-se de um importante instrumento, vez que oferece ao paciente os

elementos suficientes para distinguir os riscos e as consequências do ato médico

falho, ou melhor, oferece elementos para identificar o erro ou o que é fruto do risco.

Quanto aspecto processual constatou-se que, via de regra, o ônus da prova

do erro médico, negligência, imprudência ou imperícia do profissional corresponde

ao autor. A inversão do ônus da prova é regra excepcional, devida apenas quando

preenchidos os pressupostos legais. A prodigalização da norma consumerista

poderá distorcer o seu nobre objetivo de tutelar o consumidor e desequilibrar a

equação de igualdade.

Por fim, o estudo dos mecanismos alternativos de recomposição dos

acidentes médicos ajudou a compreender melhor que a simples decisão de criar

novas hipóteses de responsabilidade objetiva ou adotar um sistema alternativo de

solidariedade nacional deve levar em conta as suas vantagens e, principalmente, a

viabilidade de ser recepcionado um sistema alternativo em termos não apenas

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teóricos, mas também práticos. No caso brasileiro, a teoria, indubitavelmente, é

enriquecedora por servir de comparação para apreender com a experiência dos

outros e avançar, seja no sentido de construir uma realidade semelhante, ou não. No

entanto, a transposição deve ser feita com as devidas reservas, considerando a

realidade brasileira.

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APÊNDICE ENTREVISTA

Elvira Ferreira Marques

CRM 32.797

Médica responsável pelo Serviço de Mamografia e Residência Médica em Diagnósticos por Imagem do Hospital A. C. Camargo – São Paulo.

1) A literatura voltada para o estudo dos erros na área de saúde tem crescido nos

últimos anos, porém ainda há uma grande diversidade nos conceitos, o que, muitas

vezes, impossibilita uma homogeneização das informações coletadas e,

conseqüentemente, suas comparações. Como sugestão de conceito, o que poderia

ser considerado erro de diagnóstico?

“Simplificadamente, o erro de diagnóstico pode ser considerado de acordo com a

sensibilidade e especificidade do método complementar de diagnóstico, a falha na

correlação dos elementos colhidos dos diversos métodos de diagnóstico e o tempo

indispensável para o diagnóstico. Há também outros critérios que devem ser

analisados para a identificação do erro, como a perda do valor do exame

complementar com mais de seis meses e as restrições impostas por plano de saúde

que dificultam a rápida e eficaz solução do diagnóstico”.

2) Quais as possíveis consequências em caso de erro de diagnóstico?

“Dentre as possíveis consequências, o erro de diagnóstico pode ocasionar a

realização de tratamento errado e até mesmo a perda ou diminuição da chance de

cura ou vida”

3) Atualmente, é possível dizer que, em razão do crescente número de queixas, há

certo exagero no pedido de exames complementares?

Podemos identificar quatro justificativas para o aumento do número de pedido de

exames complementares. Além do crescente número de queixas, o avanço da

medicina que possibilita maior e melhor investigação, o menor cuidado do médico

com o paciente no ato do exame físico e anamnese e a própria solicitação do

paciente tem contribuído para o aumento do número de pedidos.

4) Destacamos em nosso estudo que a falha na determinação da doença pode

ocorrer em qualquer fase do diagnóstico, isto é, no diagnóstico clínico (inclusive em

situações de emergência), anatomopatológico, por imagem etc., podendo acarretar

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realização de tratamento errado - seja em razão da não-identificação da doença, que

se tratada na origem pode ser curada, seja em função de diagnóstico de doença

evidentemente inexistente ou distinta. Afirmamos que a identificação da falha

depende também da análise da sensibilidade e especificidade do método de

diagnóstico, características que ajudam a saber com que freqüência ocorrem os

resultados falsos. Assim, em razão da complexidade do ato de diagnóstico, é

importante a correlação dos resultados para identificar o erro de diagnóstico?

“Sim, a correlação dos resultados deve ser feita por todos os médicos bem como por

auditorias internas das instituições de saúde para identificar a compatibilidade ou

não com outro método de diagnóstico complementar”

5) O médico, diferentemente do cidadão leigo, quando comete erro, é passível de

julgamento em dois tribunais: o da classe médica (Conselho de Medicina) e o da

Justiça Comum. A pena, aliás, é mais grave para o profissional do que para o

cidadão leigo. Ademais, no âmbito da Justiça Comum, o médico está sujeito à

normatização tanto do Código Penal quanto do Código Civil. Não obstante, seria

possível ainda hoje visualizar no caso do erro médico a impressão de que os órgãos

de classe não julgam adequadamente os erros ou os escondem, em atitude

corporativista?

“Não concordo com a afirmação de que os órgãos de classe não julgam

adequadamente os erros médicos. Existe, no Conselho Regional de Medicina,

câmaras técnicas, isto é, grupos de especialidade específica para a avaliação do

caso investigado. Ademais, no Jornal do Conselho, há inúmeras notificações e

punições dos médicos. Na verdade, a população tem pouco acesso a essas

informações, mas todo o médico tem plena ciência do coercibilidade do órgão

fiscalizador”.

6) Ainda hoje, o paciente, diante do médico, o tem como uma figura onipotente, que

lhe sanará todos os males. E, infelizmente, os meios de comunicação contribuem no

sentido de induzir na população uma expectativa de cura em desacordo com o poder

resolutivo ou de acessibilidade da ciência médica. Têm o poder de fomentar a

imagem da infalibilidade, da curabilidade universal, criando frustrações e desespero

para aqueles que não podem ter acesso às técnicas da medicina. Assim,

perguntamos: qual a importância da relação médico-paciente na profilaxia de

demandas judiciais e esclarecimento das reais condições e expectativas de cura do

paciente?

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“Sem dúvida, o médico está se preocupando com o esclarecimento do paciente. O

que ocorre é que essa comunicação demanda tempo, e, dai caímos na questão da

escassez de tempo de atendimento, alta demanda etc”.

7) Podemos observar que a atividade médica seja no âmbito das instituições

públicas, quanto das privadas, sofre limitação principalmente relacionada ao custo

da investigação da hipótese diagnóstica, que retarda uma atuação rápida e eficiente

do profissional quanto à identificação da patologia.

Nas instituições públicas, por exemplo, além dos médicos trabalharem em regime

intenso contra uma demanda brutal e sufocante, estafando recursos humanos e

equipamentos e criando focos de resistência à atenção médica, há demora no

agendamento de consultas com especialistas, na realização de exames e no

fornecimento de medicamentos.

Ao lado disso, no âmbito das instituições privadas, somam-se as restrições dos

planos de saúde, que muitas vezes impedem o médico de lançar mão de todos os

recursos diagnósticos e terapêuticos em benefício do paciente, diminuindo

constantemente os honorários profissionais, com valores congelados há vários anos.

Tamanha é a restrição que convênios particulares de Saúde utilizam-se dos serviços

prestados pelo SUS no atendimento a seus segurados, o que aumenta ainda mais a

demanda no Sistema Público de Saúde.

8) Ocorre que essas dificuldades podem retardar o diagnóstico precoce e um tumor,

por exemplo, mudar de estágio, tornando-se maior e mais disseminado. Diante disso

perguntamos: essas dificuldades podem representar perda da chance de cura ou

sobrevida?

Sim, as dificuldades podem representar primeiramente um aumento do custo da

cura, além de um prejuízo e consequente risco de vida.

9) O médico tem o dever de informar ao paciente sobre os riscos do ato médico, dos

procedimentos e das conseqüências dos medicamentos que forem prescritos. Trata-

se de um dever previsto inclusive no Código de Ética Médica.

Atualmente, têm sido utilizados termos de consentimento livre e esclarecido

(verbalmente, transcrito no prontuário ou simplificado a termo em um documento)

com finalidade formalizar ou documentar esse dever do médico e direito de

informação do paciente sobre as conseqüências e os riscos do ato médico. Diante

disso, perguntamos: como esses termos têm sido vistos pelos médicos e pacientes:

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como instrumento para assegurar a boa relação entre médico e paciente ou como

uma prática de “medicina defensiva”?

“Atualmente, a utilização de termos de consentimento está sendo expandida.

Antigamente, o paciente não era informado e hoje o paciente deve saber para ser

submetido a qualquer procedimento. Assim, do ponto de vista médico, quanto maior

o esclarecimento, menor o questionamento e contestação por parte do paciente e/ou

familiares. Acontece que o paciente não consegue interpretar o que está sendo

transmitido, seja em razão do estresse gerado pela situação, seja pela linguagem

técnica”.

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ANEXO

JURISPRUDÊNCIA

Responsabilidade civil por erro médico - Cirurgia plástica estética - Obrigação de

resultado, que não torna a responsabilidade objetiva, mas apenas inverte o ônus da

prova, cabendo ao médico justificar as razões de eventual insucesso - Laudo pericial

concludente ...

Ementa: INDENIZATÓRIA - Responsabilidade civil por erro médico - Cirurgia

plástica estética - Obrigação de resultado, que não torna a responsabilidade

objetiva, mas apenas inverte o ônus da prova, cabendo ao médico justificar as

razões de eventual insucesso - Laudo pericial concludente no sentido da existência

de pequeno dano estético reparável mediante nova intervenção de retoque e, no

mais, do resultado satisfatório das cirurgias plásticas - Ação procedente em parte,

apenas para condenar o médico a custear a cirurgia de retoque - Ação improcedente

contra clinica que simplesmente locou sala de consulta ao médico, pois as cirurgias

foram realizadas em hospitais diversos - Recursos principal e adesivo não providos.

(TJSP. Apelação 994080296642 (5793644300).

Relator(a): Francisco Loureiro. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 4ª Câmara de

Direito Privado.

Data do julgamento: 10/12/2009. Data de registro: 14/01/2010).

RESPONSABILIDADE CIVIL. PESSOA IDOSA LESIONADA DURANTE A

REALIZAÇÃO DE EXAME RADIOLÓGICO. CULPA DO PREPOSTO DA EMPRESA

DE RADIOLOGIA. PROVA DA QUEDA DA AUTORA E DA FRATURA NO PÉ E

LESÃO NO BRAÇO. LEGITIMIDADE PASSIVA. VALOR DA INDENIZAÇÃO. 1.

Impossível a demandada, responsável pelo Serviço de Radiologia em que a autora

se acidentou, pretender incluir no pólo passivo da ação a empresa de Plano de

Saúde. Além de não se tratar de litisconsórcio necessário, inegável a legitimidade

passiva da empresa responsável pelos serviços que provocaram as lesões sofridas

pela autora. 2. A demandante comprovou que por ocasião da realização de Raio X

no quinto dedo do pé esquerdo, enquanto era ajudada a trocar de posição, sofreu

uma queda, vindo a bater como pé direito, fraturando-o, sofrendo ainda lesão no

antebraço esquerdo, aonde foi pega pelo funcionário que realizava o exame. 3. Não

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há como tentar equiparar o evento danoso a mero acidente, pois o profissional que

atuam na empresa ré apresentam a condição de garante, a fim de que o paciente

não venha a se lesionar em exame que ofereça algum risco, mormente tratando-se

de pessoa idosa, com 79 anos de idade. 4. Dessa forma, inegável a ocorrência de

ofensa a integridade corporal da autora, de razoável extensão, o que gera danos

morais indenizáveis, não havendo necessidade de comprovação outra que não a da

própria ofensa. 5. O valor da indenização fixado na sentença (R$ 4.000,00)

apresenta-se compatível com gravidade dos fatos, respeitando os postulados da

razoabilidade e da proporcionalidade. Sentença confirmada por seus próprios

fundamentos. Recurso improvido. (TJRS, Recurso Cível Nº 71002060531, Terceira

Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado

em 16/07/2009)

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. RESULTADO DE

RAIO X DE PULMÃO. INEXISTÊNCIA DE EQUÍVOCO NA INTERPRETAÇÃO DO

EXAME. DEMANDA IMPROCEDENTE. Demonstrado que não houve incoerência na

interpretação do exame de Raio X realizado pelo réu, antecedida de informações

acerca de ser a autora fumante e de apresentar tosse, bem como que cumpre ao

médico que encaminha o paciente para o exame radiológico, à vista do resultado e

frente ao histórico do examinando, decidir pela necessidade ou não da confirmação,

através de outras investigações, inexiste o dever de indenizar. Ausência de defeito

na prestação do serviço. Indigitada dor, angústia e sofrimento que não pode ser

imputado ao réu. Responsabilidade civil afastada. Sentença de improcedência

mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos. APELAÇÃO IMPROVIDA.

(TJRS, Apelação Cível Nº 70015855141, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça

do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em 14/12/2006)

APELAÇÃO CÍVEL. DANO MORAL. ERRO DE DIAGNÓSTICO. CÂNCER DE

MAMA. CIRURGIA. EXAME RADIOLÓGICO. NEGLIGÊNCIA OU IMPERÍCIA NÃO

COMPROVADA. MANTIDA A SENTENÇA. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO.

UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70006495873, Nona Câmara Cível, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Luís Augusto Coelho Braga, Julgado em 22/12/2004)

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RESPONSABILIDADE CIVIL – AÇÃO INDENIZATÓRIA - IMPROCEDÊNCIA –

INCONFORMISMO DESACOLHIMENTO – PRETENSÃO FUNDADA EM ERRO DE

DIAGNÓSTICO DE TIPAGEM SANGUÍNEA - Dano hipotético, em decorrência de

suposto risco de morte - Dano moral presumido não caracterizado - Particularidades

do caso que mitigam o dever de reparação moral - Sentença mantida - Recurso

desprovido. (Apelação 994051046784 (4103924700). Relator(a): Grava Brazil.

Comarca: Catanduva. Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado. Data do

julgamento: 24/11/2009. Data de registro: 06/01/2010)

RECURSO – AGRAVO RETIDO – APRECIAÇÃO NÃO REQUIRIDA E

CONTRARRAZÕES DE APELAÇÃO – RECURSO NÃO CONHECIDO.

RESPONSABILIDADE CÍVEL – ERRO MÉDICO – ALEGAÇÃO DE QUE O EXAME

ELISA REALIZADO PELO LABORATÓRIO PERTENCE À RÉ TERIA

APRESENTADO RESULTADO DIVERSO DO CORRETO – HIPÓTESE EM QUE

FOI CONSTATADO PARA UMA DAS AUTORAS SOROLOGIA PARA HIV

REAGENTE – INEXISTÊNCIA DE DIAGNÓSTICO CONCLUSIVO DE QUE SERIA

PORTADORA DE AIDS – RESULTADO POSITIVO DO EXAME EM QUESTÃO QUE

LEVOU OS MÉDICOS DA RÉ A TOMAREM AS MEDIDAS PREVENTIVAS DE

SUSPENDER O ALEITAMENTO E DE MINISTRAR A MEDICAÇÃO CONHECIDA

COM AZT - Exame ELISA que não é definitivo, devendo ser confirmado eventual

resultado positivo por outro denominado Western Blott - Hipótese em que houve

somente suspeita de que seria portadora de AIDS - Indenização indevida - Ação

improcedente - Recurso desprovido.

RESPONSABILIDADE CIVIL DE LABORATÓRIO DE ANÁLISES CLÍNICAS - ERRO

DE DIAGNÓSTICO - Indenização por danos morais – Responsabilidade objetiva do

laboratório que fornece resultado "falso positivo" de vírus HIV, independentemente

de culpa, ainda que com ressalva de que poderia ser necessário exame

complementar - Dois exames realizados por laboratório diverso, antes e depois do

exame em foco, ambos com resultado negativo - Circunstâncias do caso,

especialmente dois exames realizados em datas próximas, com resultados opostos,

que desloca para o réu o ônus de demonstrar a perfeição do serviço prestado - Réu

que não se desincumbiu de tal ônus - Evidente dano moral pela divulgação de um

grave vírus inexistente, causando à mãe parturiente séria angústia • Indenização

devida à mãe e ao filho, fixada no total de R$ 12.000,00, que no caso concreto bem

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atende as funções ressarcitória e preventiva - Recurso provido, para o fim de julgar

procedente a ação.

ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível rv2

994.09.323337-2 (671.613.4/1-00), da Comarca de SÃO PAULO, em que figuram

como apelantes JAQUELINE APARECIDA LOPES e PEDRO HENRIQUE CAMPOS

DA SILVEIRA (representado por sua genitora) e apelado LABORATÓRIO MÉDICO

DE ANALISES CLINICAS DE SÃO PAULO - LAMARC LTDA. : ACORDAM, em

Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

por votação unânime, dar provimento ao recurso, de conformidade com o relatório e

voto do Relator, que ficam fazendo parte do acórdão.

Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a r. sentença de fls. 154/156 dos

autos, que julgou improcedente o pedido da ação de indenização por danos morais

ajuizada por JAQUELINE APARECIDA LOPES e PEDRO HENRIQUE CAMPOS DA

SILVEIRA (representado por sua genitora) em face de LABORATÓRIO MÉDICO DE

ANÁLISES CLÍNICAS DE SÃO PAULO - LAMARC LTDA.

Fê-lo a r. sentença atacada, sob o fundamento de que inexiste conduta ilícita do

laboratório réu, passível de gerar responsabilidade civil. Afirma também que não

houve erro de resultado, mas sim ausência de certeza de contaminação da autora

pelo vírus HIV, o que levou a equipe médica responsável a tomar medidas cabíveis -

prescrição do medicamento zidovudina e proibição do aleitamento materno - para

preservar a saúde do recém-nascido.

Recorrem os autores, alegando, em síntese, que, em razão do falso diagnóstico de

HIV fornecido pelo réu e posteriormente desmentido por exame realizado por outro

laboratório, a apelante sofreu abalo emocional, depressão, medo, pânico,

discriminação social e angústia.

Foi contrariado o recurso (fls. 166/178).

A Douta Procuradoria Geral de Justiça se manifestou pelo improvimento do recurso

do recurso (fls. 184/186).

É o relatório.

VOTO – Francisco Loureiro (Relator): 1. O recurso comporta provimento, preservado

o entendimento do MM. Juiz de Direito.

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Os autores ajuizaram a presente ação buscando indenização por danos morais

decorrentes de falso diagnóstico de contaminação por vírus HIV.

Relatam que, em agosto de 2006, autora Jaqueline dirigiu-se ao Hospital São

Camilo para dar a luz ao autor, ocasião em que foi submetida, como determina a

praxe médica, à realização de exame de sangue para constatação da presente do

HIV, indicativo da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida).

O laboratório réu, instalado nas dependências do hospital, colheu amostras de

sangue da parturiente e realizou inicialmente os exames pelo método de teste

rápido HIV I e II (prova e contra prova), com resultado reagente.

Diante da informação de que a parturiente, em fase de exame pré-natal, se

submetera a exame similar em outro laboratório, com resultado negativo, se

procedeu a um terceiro exame, mais seguro, denominado Western Blot, que

apresentou, oito dias após, resultado indeterminado (fl. 33).

2. Em razão do resultado reagente para HIV obtido no teste rápido, a equipe médica

responsável pelo parto, com o escopo de preservar a saúde da parturiente e do

recém-nascido, proibiu o aleitamento materno e receitou a ambos o coquetel de

combate ao vírus.

Desnecessário dizer o profundo abalo de parturiente ao receber o resultado de falso-

positivo, momentos após dar à luz, seguida da notícia da impossibilidade de aleitar o

próprio filho e da necessidade de imediata ingestão de medicação pesada.

Tão logo obteve alta hospitalar, a autora Jaqueline, por orientação médica, retornou

ao laboratório onde fora feito o exame na fase pré-natal, com resultado negativo, e

repetiu o teste.

Mais uma vez, teste completo não apresentou reação para o vírus HIV (fl.34).

A peculiaridade do caso concreto é que os três exames realizados pelo laboratório

réu, com colheita de amostras de sangue em um mesmo dia, quando a autora

internou-se para o parto, deram resultados reagentes (dois) e indeterminado (o

último).

Já os dois exames realizados pelo laboratório PRESECOR, o primeiro na fase pré-

natal e o segundo dias após o parto, deram resultados negativos.

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3. As divergências entre os resultados de diversos exames realizados por dois

laboratórios em datas próximas, somadas à natureza objetiva da responsabilidade

civil por fato do serviço, deslocam para o réu o ônus de demonstrar a perfeição dos

métodos, colheita de material e análise de resultados.

Parece claro que os resultados do laboratório réu estavam errados, pois em

manifesto descompasso com os resultados de exames feitos por outro laboratório,

na mesma paciente, em datas próximas, antes e depois do parto.

Ainda que o réu alegue a possibilidade de ocorrência de resultados falso-positivos

em razão de reação cruzada ou em decorrência do stress imunologico, emerge do

erro em obrigação de resultado o dever de indenizar.

Não se cogita de culpa do réu, mas sim de vício do serviço, que não reúne a

segurança que dele espera o consumidor.A responsabilidade dos bancos de

sangue, hospitais e laboratórios é objetiva, tornando impertinente, assim, a

discussão sobre a culpa.

Na explicação de Hamid Charaf Bdine Júnior, "nas hipóteses, porém, que o erro de

diagnóstico não decorre da culpa do médico, mas de erro do laboratório que realiza

os exames, estar-se-á diante de responsabilidade objetiva regida pelo art. 14 do

Código de Defesa do Consumidor, pois paciente e laboratório são, respectivamente,

consumidor e fornecedor, nos termos dos arts. 2a e 3r do Código de Defesa do

Consumidor" (Responsabilidade pelo Diagnóstico, in Responsabilidade Civil na Área

da Saúde, diversos autores coordenados por Regina Beatriz Tavares da Silva,

coleção Direito GV, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 100-01; no mesmo sentido, Carlos

Roberto Gonçalves, Responsabilidade Civil, p. 371)

Não se esqueça, ademais, ser a obrigação dos laboratórios de resultado, por se

tratar de atividade altamente especializada e desenvolvida. O que promete é,

mediante exame de material tirado do corpo do paciente, atestar a presença de

certas substâncias.

Não bastasse, pode também se encarar a responsabilidade objetiva em razão do

risco da atividade (art. 927, par. único do CC). No dizer de Renata Mandelbaum,

correto enquadrar "a atividade desenvolvida pelo laboratório de análises como

perigosa, em razão do perigo e risco que podem trazer aos pacientes pelo resultado

emitido" (Responsabilidade Civil dos Laboratórios de Análises

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Clínicas, in Responsabilidade Civil Médica, Odontológica e Hospitalar, Saraiva, p.

213).

No caso em apreço, a responsabilidade objetiva não deriva propriamente da

atividade de risco, ou perigosa, mas sim do risco da atividade. A empresa que, no

âmbito de sua organização, ocasiona danos com uma certa regularidade, deve

assumir o consequente risco e traduzi-lo em um custo. Por conseguinte, quem deve

arcar com as consequências danosas da inexatidão dos exames de HIVAIDS não é

o paciente, mas sim os hospitais e laboratórios, por embutirem tais riscos no preço

de seus serviços.

Em casos análogos ao presente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a

responsabilidade do laboratório que fornece laudo positivo de HIV, repetido e

confirmado, ainda com a ressalva de que poderia ser necessário exame

complementar, por se tratar de defeito no fornecimento do serviço (REsp

401592/DF, Rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j . 16.05.02; e REsp 258011/SP, Rei.

Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j . 09.11.04).

Note-se que diante dos resultados diametralmente opostos apresentados por

laboratório diverso, todos não reagentes ao vírus HIV, cabia ao réu o ônus de

demonstrar a perfeição do serviço prestado.

A prova produzida em tal sentido, todavia, foi nenhuma. Não veio aos autos

demonstração segura das condições de colheita do material, dos métodos utilizados

para o exame e da análise de resultados, que revelassem a perfeição do serviço em

área tão sensível ao consumidor.

Em suma, os resultados dos exames (falsos positivos) não correspondiam à

realidade, em confronto com os resultados de outro laboratório em datas próximas, e

não conseguiu o réu justificar ou explicar de modo convincente, como era de seu

ônus, a disparidade de conclusões.

Nasce daí a responsabilidade civil da ré, pois não conseguiu demonstrar, como

deveria, ter tomado todas as cautelas e ter utilizado os mais modernos meios de

colheita, exame e análise de resultados.

3. Em relação aos danos morais, a situação concreta revela natural e profunda

angústia da parturiente, diante da comunicação falsa de possível contaminação pelo

vírus da AIDS.

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Note-se que não se exige a prova do sofrimento em si, de caráter nitidamente

subjetivo, mas sim da gravidade da ofensa e de sua repercussão sobre a vítima, que

gere a presunção hominis ou factis de lesão extrapatrimonial (Sérgio Cavalieri,

Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros, p. 80).

No caso em tela, nítido o dano moral causado a autora, que teve diagnosticado vírus

do qual não era portadora, por engano imputável ao laboratório, ainda mais ao se

tratar do vírus HIVAIDS, de indiscutível gravidade e gerador de estigma, por se

constituir em uma DST (doença sexualmente transmissível).

Disso decorre que o erro de diagnóstico certamente enseja inúmeros transtornos a

autora, tanto no âmbito familiar, como abalo psicológico e intensa angústia. Ainda na

lição de Hamid Charaf Bdine Júnior, "o dano que resulta do erro de diagnóstico pode

ser patrimonial ou extrapatrimonial. No primeiro caso, corresponde a despesas

porventura suportadas pelo paciente em razão do diagnóstico

equivocado que conclui por doença inexistente. O extrapatrimonial é representado

pela angústia e sofrimento provocados ao paciente com o apontamento de doença

de que não sofre." (ob. cit., p. 107)

No caso concreto, frise-se que a autora recebeu o diagnóstico incorreto no momento

em que daria a luz ao seu filho, o que certamente lhe causou angústia ainda maior

pelo risco de contaminação do seu filho (autor) e por ter sido privada de amamentá-

lo.

Quanto ao filho menor, também padeceu dano moral, privado do contato intimo com

sua mãe que lhe seria proporcionado pelo aleitamento.

Imperativo, pois, que os danos morais causados pelo erro de diagnóstico devem ser

indenizados pelo réu, que forneceu o resultado falso, sem justificar de modo

concludente a razão do erro.

4. Quanto à fixação do valor do dano moral, deve-se levar em conta suas funções

ressarcitória e punitiva.

Na função ressarcitória, olha-se para a vítima, para a gravidade objetiva do dano

que ela padeceu (Antônio Jeová dos Santos, Dano Moral Indenizável, Lejus Editora,

1.997, p. 62). Na função punitiva, ou de desestímulo do dano moral, olha-se para o

lesante, de tal modo que a indenização represente advertência, sinal de que a

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208

sociedade não aceita seu comportamento (Carlos Alberto Bittar, Reparação Civil por

Danos Morais, ps. 220/222; Sérgio Severo, Os Danos Extrapatrimoniais, ps.

186/190).

No presente caso, fixo a indenização por danos morais em R$ 7.000,00 para a

autora, necessária à reparação da aflição que lhe foi causada em razão do resultado

falso positivo e por ser privada do contato com o seu filho. Quanto ao autor, fixo a

indenização por danos morais, em R$ 5.000,00, necessária à reparação da privação

do contato íntimo que a aleitamento materno lhe proporcionaria.

A indenização será atualizada a contar desta data, pois fixada em valores

contemporâneos.

Incidirão juros moratórios desde a data da citação, por se tratar de ilícito contratual.

Arcará o réu com o pagamento das custas do processo e de honorários

advocatícios, que fixo em 50% sobre o valor da condenação.

Diante do exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso.

Participaram do julgamento, os Desembargadores Teixeira Leite (Presidente e 3-

Juiz) e Ênio Zuliani

(Revisor).

DECISÃO – A Turma, por votação unânime, deu provimento ao recurso, de

conformidade com o relatório e voto do Relator, que ficam fazendo parte do acórdão.

Os Desembargadores Teixeira Leite (Presidente e 3- Juiz) e Ênio Zuliani (Revisor)

votaram com o Sr. Desembargador Relator.

RESPONSABILIDADE CIVIL. Município. Unidade de Urgências. Atropelamento.

Fratura na perna. Diagnostico equivocado. Danos morais cabíveis. Sofrimento

desnecessário. Sentença improcedente. Recurso provido.( Apelação 994061690634.

Relator(a): Paulo Galizia. Comarca: Piracicaba. Órgão julgador: 10ª Câmara de

Direito Público. J. 07/12/2009. Data de registro: 05/01/2010)

Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença de fls. 87/93, de

relatório adotado, que julgou improcedente a ação de indenização ajuizada pela

apelante.

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209

Em suas razões, alega, em síntese, que o juiz a quo foi condescendente com o

poder público por tratar todo o seu sofrimento como mero dissabor da vida cotidiana.

Alega cerceamento de defesa, pois foram desentranhados documentos essenciais

dos autos e não foram produzidas as provas orais e periciais requeridas, devendo,

portanto, a r. sentença ser anulada. Alega, ainda, que houve negligência médica e

diagnóstico equivocado que lhe causou sofrimento e dor e requer a procedência da

ação com o devido arbitramento da indenização a título de danos morais. / í

Recurso tempestivo.

Contrarrazões (fls. 103/109 e 111/126).

É O RELATÓRIO.

Cuida-se de ação de indenização ajuizada por Eveline da Costa Silva contra

Prefeitura Municipal de Piracicaba, na qual alega, em apertada síntese, que em 22

de maio de 1994 foi atropelada por uma moto, sendo encaminhada para a Unidade

de Atendimento de Urgências "Dr. Fortunato Losso Netto" e atendida pelo Dr. Aytan

Hachuy. Alega, ainda, que sentia muita dor, porém o medico lhe garantiu que não

havia nenhuma fratura e que as dores eram normais em virtude do acidente.

Sustenta que, após dois dias do acidente, foi constatado que as radiografias

retiradas não eram da sua perna esquerda e sim da perna direita e que sua perna

esquerda, de fato, estava fraturada. Sustenta, ainda, que em virtude na demora do

atendimento médico sofreu de trombose venosa profunda o que lhe causou

sofrimento.

Aduz que o erro no diagnostico médico lhe causou sofrimento além do normal e

requer indenização a título de danos morais.

A r. sentença julgou improcedente o pedido Inconformada, a autora apelou nos

termos anteriormente

mencionados. A alegação de cerceamento de defesa não merece acolhida.

O Código de Processo Civil, no tocante a questão da prova, adotou a teoria do livre

convencimento motivado ou da persuasão racional do juiz, tendo o magistrado

ampla liberdade na análise dos elementos de convicção contidos nos autos,

afastando, assim, provas que considerar desnecessárias à solução da lide (art. 130

do Código de Processo Civil).

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210

In casu, o desentranhamento do documento (fls. 82) não causou prejuízo às partes,

pois a sua retirada visou apenas o melhor manuseio dos autos, como esclarecido no

r. despacho, não prejudicando qualquer análise quando se fizesse necessário, tanto

é assim que o referido documento

encontra-se em apenso a estes autos até o presente momento.

Desnecessária a produção de provas orais ou periciais, pois é incontroverso nos

autos que a autora foi internada e atendida pelo serviço emergencial e que, na

ocasião, não foi constatada nenhuma fratura e que, após dois dias, foi constatado

fratura em sua perna, conforme alegado na inicial.

O ponto controvertido a ser discutido é se esse infortúnio pelo qual passou a autora

é passível de indenização.

Afastada a alegação de cerceamento de defesa, passa-se ao exame do pedido de

indenização.

Com já mencionado, a autora, após sofrer atropelamento por uma moto, foi

conduzida ao atendimento médico na Unidade de Atendimento de Urgências e foi

submetida aos devidos procedimentos médicos/ (fls. 34/35).

O documento de fls. 35 comprova que a autora teve alta e foi liberada da Unidade de

Atendimento de Urgências. Não consta no referido documento nenhum

encaminhamento da autora para algum centro

especializado em ortopedia ou alguma outra recomendação, o que leva a crer que

não foi constatada, na ocasião, a fratura na perna da autora.

Os documentos de fls. 64/78 demonstram que a autora realmente estava com a

perna esquerda fraturada e que necessitava de um atendimento com maior atenção.

Inegável, portanto, que houve um diagnóstico equivocado na Unidade de

Atendimento de Urgências que proporcionou à autora, durante dois dias, um

sofrimento que poderia ter sido amenizado se suas reclamações tivessem sido

ouvidas com maior atenção, podendo, além disso, ser vitima de consequências mais

desastrosas.

Vê-se que a indenização a título de danos morais pleiteada pela autora não é

descabida, pois quando se procura um atendimento médico se espera, no mínimo,

uma atenção da parte da equipe médica.

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211

É possível que a Unidade de Atendimento de Urgências não tivesse todos os

equipamentos suficientes para um atendimento de qualidade - uma vez que se

tratava de uma unidade de urgências – mas poderia, se o diagnóstico fosse correto,

ter encaminhado a autora a um centro de ortopedia para melhor verificação. Em

virtude do diagnostico equivocado, foi dado alta à autora que, nesta ocasião,

experimentou muito mais que mero dissabor, pois foi alijada de um tratamento digno

sentindo dores, vindo a sofrer desnecessariamente.

Aplica-se, in casu, o escólio do eminente Desembargador Celso Pimentel:

"Dano moral, exatamente porque moral, não se demonstra nem se comprova, afere-

se segundo o senso comum do homem médio. Resulta por si mesmo da ação ou

omissão culposa, in re ipsa, porque se traduz em dor física ou psicológica, em

constrangimento, em sentimento de reprovação, em lesão e em ofensa ao conceito

social, à honra, a dignidade". (Apelação 01.188.907-0/1, 28a Câmara de Direito

Privado, DJ. 16/09/2008).

Assim, caracterizada a ofensa à autora de rigor a procedência da ação.

Considerando que a autora não sofreu nenhuma sequela permanente e levando em

conta os critérios de proporcionalidade, arbitro a indenização a titulo de danos

morais no valor de R$5.000,00 atualizados a partir deste acórdão com juros de mora

a partir da citação. Arbitro os honorários advocatícios em 10% sobre o valor da

condenação.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso da autora.

Responsabilidade civil - Ação indenizatória - Improcedência – Inconformismo.

Desacolhimento - Pretensão fundada em erro de diagnóstico de tipagem sanguínea

– Dano hipotético, em decorrência de suposto risco de morte - Dano moral

presumido não caracterizado - Particularidades do caso que mitigam o dever de

reparação moral - Sentença mantida – Recurso desprovido. (Apelação

994051046784. Relator(a): Grava Brazil. Comarca: Catanduva

Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado. J. 24/11/2009. Data de registro:

06/01/2010)

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212

I - Trata-se de sentença que, em ação indenizatória, proposta por MARIA GENI

WOHNRATH SANCHES contra LABORATÓRIO DE ANÁLISES CLÍNICAS UNIMED,

julgou a demanda improcedente. Confira-se fls. 102/103.

Inconformada, apela a autora (fls. 105/108), narrando que utiliza marca-passo

cardíaco e que, diante da necessidade de realização de intervenção cirúrgica,

submeteu-se a exame, realizado pela ré, para verificação de tipo sanguíneo. Alega

que a ré reconheceu o erro de diagnóstico, razão pela qual deve responder pelos

danos morais, pois se "não tivesse o cuidado de verificar o resultado do exame,

certamente já teria falecido".

0 preparo não foi recolhido, ante a concessão dos benefícios da gratuidade (fls. 16),

sendo o recurso

recebido (fls. 110) e contra-arrazoado (fls. 111/116).

É o relatório, adotado, quanto ao mais, o da sentença apelada.

I I - A apelante ajuizou a presente demanda, em junho de 2004, objetivando

reparação moral, em

decorrência de alegados transtornos, por conta de erro de resultado, em exame de

tipagem sanguínea, efetivado pela apelada, em março daquele ano.

De acordo com o narrado na petição inicial, o resultado apresentado indicou tipo A+,

enquanto que,

conforme exames realizados em outros estabelecimentos, o correto seria a

constatação do tipo 0+. Entendeu, assim, a apelante, que suportou dano moral,

diante da possibilidade de transfusão de sangue incompatível, pois, "se não tivesse

dedicado um breve momento à leitura do fatídico resultado, estaria hoje morta".

O i. Julgador de origem rejeitou a pretensão, destacando, em síntese, que "um mero

descontentamento não gera o dever de indenização".

A despeito do incontroverso equívoco do resultado de exame de sangue, forçoso

concluir que, pelas

razões externadas no inconformismo, o dano apontado é hipotético (eventual risco

de morte) e não está sujeito à reparação.

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Também não se vislumbra abalo moral presumido, pois a apelante confirmou que

"percebeu o erro antes que o pior acontecesse". Logo, não houve repercussão

negativa a causar desconforto passível de indenização.

Concluindo, andou bem o Magistrado de primeiro grau, ao dar pela improcedencia

da ação, razão pela qual a r. sentença é confirmada, por seus próprios fundamentos.

I I I - Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso. É o voto.

Ação de indenização por danos morais e estéticos. Autora que apresentava um

quadro de apendicite. Demora de diagnóstico. Ausência dos sinais característicos da

enfermidade. Diagnóstico, no caso, difícil. Ausência de defeito na prestação de

serviços pelas rés. Inaplicabilidade, ademais, à atividade médica a responsabilidade

civil decorrente do risco (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil). Arte médica

que não é ciência exata. Necessidade, apenas, de que seja dispensado o tratamento

adequado, sem garantia de cura. Improcedência da ação reconhecida. Sentença

reformada. APELO da RÉU HOSPITAL SANTA PAULA PROVIDO, PREJUDICADO

O RECURSO DA AUTORA. (Apelação 994080424203. Relator(a): Donegá

Morandini. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado. J.

15/12/2009. Data de registro: 07/01/2010)

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS -

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO 1. Exame Laboratorial - Teste HIV - Falso

Positivo - Teste Elisa reagente - Resultado negativo no exame "Western Blot para

anti HIV 2. Não há evidências de atendimento inadequado à paciente que recebeu

diagnóstico inicial não conclusivo de ser portadora do vírus HIV. 3. Não restou

caracterizada falha no serviço, de modo que não incide a regra do art. 37, § 6o, da

Constituição Federal. 4. Ação julgada improcedente. Sentença confirmada - Recurso

improvido. (Apelação Com Revisão 3139125800. Relator(a): Cristina Cotrofe.

Comarca: F.D. CABREÚVA/ITU. Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Público. Data

do julgamento: 02/12/2009. Data de registro: 18/12/2009)

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n°

313.912-5/8-00, da Comarca de F.D. CABREUVA/ITU, em que é apelante SHIRLEI

DAIANA SPINA CORDEIRO sendo apelados PREFEITURA MUNICIPAL DE

ITANHAÉM E VALDEZ LOPES DA SILVA:

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ACORDAM, em Oitava Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado

de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "NEGARAM PROVIMENTO AO

RECURSO, V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este

acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores PAULO DIMAS

MASCARETTI (Presidente, sem voto), JOSÉ SANTANA e CARVALHO VIANA.

São Paulo, 02 de dezembro de 2009.

Trata-se de ação indenizatória promovida por Shirlei Daiana Spina Cordeiro em face

da Prefeitura Municipal de Itanhaem e Valdez Lopes da Silva objetivando a

condenação dos apelados ao pagamento de indenização por danos morais e

materiais decorrentes de erro de diagnóstico, teste de HIV, falso positivo.

A respeitável sentença de fls. 211/216, cujo relatório fica adotado, julgou

improcedente a ação sob o fundamento de que não restaram comprovados os

requisitos da responsabilidade civil dos apelados. Condenou a apelante ao

pagamento das custas e despesas processuais bem como honorários advocatícios

fixados em 10% do valor da causa.

Inconformada a vencida busca a reforma do julgado, aduzindo, em síntese, que a

decisão foi proferida em dissonância com as provas carreadas aos autos, uma vez

que restou cabalmente demonstrada a culpa dos apelados e, sendo assim,

presentes os requisitos da responsabilidade civil.

Recebido o recurso e devidamente processado, foram apresentadas as

contrarrazões.

É o relatório.

A ação visa à indenização por danos morais e materiais decorrentes de erro de

diagnóstico.

O apelo não comporta provimento.

Pelo que se depreende do conjunto probatório houve adequado atendimento da

apelante que recebeu diagnóstico inicial não conclusivo de ser portadora do vírus

HIV, posteriormente infirmado. Verifica-se que não houve falha do serviço do ente

estatal imputado ou de seu agente.

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Verte dos autos que a apelante buscou o posto de saúde com a finalidade de doar

sangue, submeteu-se a exame laboratorial, método Elisa, o resultado foi reagente ao

Anti HIV 1 e 2.

Face a este diagnóstico a demandante foi submetida a coleta de uma segunda

amostra e através do Método Western Blot, obteve-se resultado negativo e, em data

posterior foi repetido o teste "Western

Blot", que desta feita apresentou resultado indeterminado e reagente pelo método

Elisa.

Vê-se, assim, que foram realizados exames necessários à conclusão da existência

ou não de alguma enfermidade, para possibilitar tratamento.

Ademais, como bem ressaltou o MM. Juiz sentenciante: "De trivial sabença,

constituindo até mesmo regra de experiência nos dias atuais, sendo inclusive noticio

de jornais e televisão, que para confirmação do diagnóstico de AIDS, necessária a

realização de mais de um exame".

Assim, não há que se falar em dano moral ao paciente que toma conhecimento de

um exame que apenas sinaliza para a possibilidade da doença. Neste sentido:

"Responsabilidade Civil do Estado Laboratório de Hematologia do estado. Teste

único imunoenzimático (E.LI.S.A.) que, não constitui diagnóstico definitivo da

presença de Síndrome da Imuno Deficiência Adquiríada (AIDS) que, aos exames

específicos posteriores se revelou inexistente no paciente. Alegação de dano moral.

Inadmissibilidade. Tratando-se o E.LI.S.A. para HIV de

reação sorológica de triagem, não apresentando isoladamente valor conclusivo,

podendo ocorrer

reações cruzadas falso-positivas, não há como considerar ter o autor sofrido dano

moral por ter tido

conhecimento de um exame que apenas sinalizava a possibilidade de ter HIV, mas

não concluía que o tivesse. Ação Improcedente. Recurso Improvido." ] Os

documentos de fls. 41/52 e 62/76 demonstram que o atendimento prestado à

demandante foi adequado. Não se pode cogitar de erro de diagnóstico, tanto que a

própria imediatidade de um segundo exame naquele hospital, por si só, demonstra

que ainda não havia um diagnóstico conclusivo A apelante não fez prova, ônus que

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lhe incumbia, de que o médico lhe dera a notícia conclusiva de que era portadora do

vírus HIV.

Ao contrário, o médico apelado informa que a autora foi por ele convocada e

esclarecida sobre os vários resultados que se obtivera e encaminhada ao Serviço de

Infectologia para investigação e seguimento, pois ante a divergência dos resultados

apresentados havia necessidade de acompanhamento ambulatorial.

Não se pode olvidar as angústias e sofrimento profundo que o resultado desta

espécie causam no espírito da pessoa, contudo, para a configuração do dano moral

indenizável há a necessidade da prova da falta de esclarecimentos por parte do

médico a fim de se evitar sofrimentos antecipados, o que não ocorreu na espécie.

Por outro lado, restou claro que os exames de HIV não são realizados no Banco de

Sangue de Itanhaem, mas sim no laboratório do Núcleo de Hematologia e

Hemoterapia de Santos, o que não se dá por mera liberalidade dos apelados, mas

sim por força de determinação da Secretaria Estadual de Saúde. Se houve falha,

esta não pode ser atribuída aos aoeiodos

Assim, ante a ausência de nexo de causalidade, não há que se falar em

responsabilidade objetiva nos termos preconizados no artigo 37, § 6o, da

Constituição Federal. Esse é o ensinamento de Odete Medauar: "Para configurar a

responsabilidade civil do Estado há que se verificar o nexo causai entre ação ou

omissão do poder público e o evento danoso. Se outra atuação, outro

acontecimento, provocados pela Administração, levaram ao dano, sem o vínculo ou

sem vínculo total com a atividade administrativa. poderá haver isenção total ou

parcial do ressarcimento."2

Ante o exposto, pelo meu voto nega-se provimento ao recurso.

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL.

ERRO MÉDICO.

NEGLIGÊNCIA. INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL.

1. A doutrina tem afirmado que a responsabilidade médica empresarial, no caso de

hospitais, é objetiva, indicando o parágrafo primeiro do artigo 14 do Código de

Defesa do Consumidor como a norma sustentadora de tal entendimento.

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217

Contudo, a responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano

decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao

hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional

médico, mormente quando este não tem nenhum vínculo com o hospital – seja de

emprego ou de mera preposição –, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de

indenizar.

2. Na hipótese de prestação de serviços médicos, o ajuste contratual – vínculo

estabelecido entre médico e paciente – refere-se ao emprego da melhor técnica e

diligência entre as possibilidades de

que dispõe o profissional, no seu meio de atuação, para auxiliar o paciente.

Portanto, não pode o médico assumir compromisso com um resultado específico,

fato que leva ao entendimento de que, se

ocorrer dano ao paciente, deve-se averiguar se houve culpa do profissional – teoria

da responsabilidade subjetiva.

No entanto, se, na ocorrência de dano impõe-se ao hospital que responda

objetivamente pelos erros cometidos pelo médico, estar-se-á aceitando que o

contrato firmado seja de resultado, pois se o médico não garante o resultado, o

hospital garantirá. Isso leva ao seguinte absurdo: na hipótese de intervenção

cirúrgica, ou o paciente sai curado ou será indenizado – daí um contrato de

resultado firmado às avessas da legislação.

3. O cadastro que os hospitais normalmente mantêm de médicos que utilizam suas

instalações para a realização de cirurgias não é suficiente para caracterizar relação

de subordinação entre médico e

hospital. Na verdade, tal procedimento representa um mínimo de organização

empresarial.

4. Recurso especial do Hospital e Maternidade São Lourenço Ltda. provido.

Acórdão

Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti,

acompanhando o voto da Sra. Ministra Relatora, e dos votos dos Srs. Ministros

Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior, conhecendo do recurso e dando-lhe

provimento, acompanhando a divergência inaugurada pelo Sr. Ministro João Otávio

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de Noronha, o Sr. Ministro Ari Pargendler proferiu voto de desempate no mesmo

sentido, e a Seção, por maioria, conheceu do recurso especial e deu-lhe provimento,

vencida a Sra. Ministra Relatora e os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti.

Votaram com o Sr. Ministro João Otávio de Noronha os Srs. Ministros Ari

Pargendler, Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior.

Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão e Carlos

Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF 1ª Região), art. 162, § 2º, RISTJ.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ari Pargendler.

(REsp 908359 / SC. RECURSO ESPECIAL 2006/0256989-8. Relator(a) Ministra

NANCY ANDRIGHI (1118)

Relator(a) p/ Acórdão. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA (1123). Órgão

Julgador: S2 - SEGUNDA SEÇÃO. Data do Julgamento: 27/08/2008. Data da

Publicação/Fonte: DJe 17/12/2008)

RECURSO ESPECIAL DE JPGB E OUTROS. ADMINISTRATIVO.

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ERRO MÉDICO. HOSPITAL

MUNICIPAL. AMPUTAÇÃO DE BRAÇO DE RECÉM-NASCIDO. DANOS MORAIS E

ESTÉTICOS. CUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE. QUANTUM INDENIZATÓRIO

FIXADO EM FAVOR DOS PAIS E IRMÃO. RAZOABILIDADE E

PROPORCIONALIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

1. É possível a cumulação de indenização por danos estético e moral, ainda que

derivados de um mesmo fato, desde que um dano e outro possam ser reconhecidos

autonomamente, ou seja, devem ser passíveis de identificação em separado.

Precedentes.

2. Na hipótese dos autos, em Hospital Municipal, recém-nascido teve um dos braços

amputado em virtude de erro médico, decorrente de punção axilar que resultou no

rompimento de veia, criando um coágulo que bloqueou a passagem de sangue para

o membro superior.

3. Ainda que derivada de um mesmo fato - erro médico de profissionais da rede

municipal de saúde -, a amputação do braço direito do recém-nascido ensejou duas

formas diversas de dano, o moral e o estético. O primeiro, correspondente à violação

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do direito à dignidade e à imagem da vítima, assim como ao sofrimento, à aflição e à

angústia a que seus pais e irmão foram submetidos, e o segundo, decorrente da

modificação da estrutura corporal do lesado, enfim, da deformidade a ele causada.

4. Não merece prosperar o fundamento do acórdão recorrido no sentido de que o

recém-nascido não é apto a sofrer o dano moral, por não possui capacidade

intelectiva para avaliá-lo e sofrer os prejuízos psíquicos dele decorrentes. Isso,

porque o dano moral não pode ser visto tão-somente como de ordem puramente

psíquica - dependente das reações emocionais da vítima -, porquanto, na atual

ordem jurídica-constitucional, a dignidade é fundamento central dos direitos

humanos, devendo ser protegida e, quando violada, sujeita à devida reparação.

5. A respeito do tema, a doutrina consagra entendimento no sentido de que o dano

moral pode ser considerado como violação do direito à dignidade, não se

restringindo, necessariamente, a alguma reação psíquica (CAVALIERI FILHO,

Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, pp.

76/78).

6. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 447.584/RJ, de relatoria do

Ministro Cezar Peluso (DJ de 16.3.2007), acolheu a proteção ao dano moral como

verdadeira "tutela constitucional da dignidade humana", considerando-a "um

autêntico direito à integridade ou à incolumidade moral, pertencente à classe dos

direitos absolutos".

7. O Ministro Luix Fux, no julgamento do REsp 612.108/PR (1ª Turma, DJ de

3.11.2004), bem delineou que "deflui da Constituição Federal que a dignidade da

pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a

existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os

efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação

umbilical entre os direitos humanos e o direito processual".

8. Com essas considerações, pode-se inferir que é devida a condenação cumulativa

do Município à reparação dos danos moral e estético causados à vítima, na medida

em que o recém-nascido obteve

grave deformidade - prejuízo de caráter estético - e teve seu direito a uma vida digna

seriamente atingido - prejuízo de caráter moral. Inclusive, a partir do momento em

que a vítima adquirir plena

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consciência de sua condição, a dor, o vexame, o sofrimento e a humilhação

certamente serão sentimentos com os quais ela terá de conviver ao longo de sua

vida, o que confirma ainda mais a efetiva existência do dano moral. Desse modo, é

plenamente cabível a cumulação dos danos moral e estético nos termos em que

fixados na r. sentença, ou seja, conjuntamente o quantum indenizatório deve somar

o total de trezentos mil reais (R$ 300.000,00). Esse valor mostra-se razoável e

proporcional ao grave dano causado ao recém-nascido, e contempla também o

caráter punitivo e pedagógico da condenação.

9. Quanto ao pedido de majoração da condenação em danos morais em favor dos

pais e do irmão da vítima, ressalte-se que a revisão do valor da indenização

somente é possível quando exorbitante ou insignificante a importância arbitrada.

Essa excepcionalidade, contudo, não se aplica à hipótese dos autos. Isso, porque o

valor da indenização por danos morais - fixado em R$ 20.000,00, para cada um

dos pais, e em R$ 5.000,00, para o irmão de onze (11) anos, totalizando, assim, R$

45.000,00 -, nem é irrisório nem desproporcional aos danos morais sofridos por

esses recorrentes. Ao contrário, a importância assentada foi arbitrada com bom

senso, dentro dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

10. Recurso especial parcialmente provido, apenas para determinar a cumulação

dos danos moral e estético, nos termos em que fixados na r. sentença, totalizando-

se, assim, trezentos mil reais (R$ 300.000, 00).

RECURSO ESPECIAL ADESIVO DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO.

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. REVISÃO

DO VALOR DA INDENIZAÇÃO. INVIABILIDADE. SÚMULA 7/STJ. RECURSO NÃO-

CONHECIDO.

1. O recurso especial adesivo fica prejudicado quanto ao valor da indenização da

vítima, tendo em vista o exame do tema por ocasião do provimento parcial do

recurso especial dos autores.

2. O quantum indenizatório dos danos morais fixados em favor dos pais e do irmão

da vítima, ao contrário do alegado pelo Município, não é exorbitante (total de R$

45.000,00). Conforme anteriormente ressaltado, esses valores foram fixados em

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221

patamares razoáveis e dentro dos limites da proporcionalidade, de maneira que é

indevida sua revisão em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7/STJ.

3. Recurso especial adesivo não-conhecido.

(REsp 910794 / RJ. RECURSO ESPECIAL. 2006/0273335-8. Relator(a) Ministra

DENISE ARRUDA (1126). Órgão Julgador. T1 - PRIMEIRA TURMA. Data do

Julgamento. 21/10/2008)

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. ALEGADA

VIOLAÇÃO DO ART. 535, I E II, DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA.

RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. HOSPITAL PRIVADO.

ATENDIMENTO CUSTEADO PELO SUS. RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO.

OFENSA AOS ARTS. 7º, IX, A, E 18, I, X E XI, DA LEI 8.080/90. ILEGITIMIDADE

PASSIVA DA UNIÃO. PRECEDENTES. PROVIMENTO.

1. Não viola o art. 535, I e II, do CPC, nem importa negativa de prestação

jurisdicional, o acórdão que decide, motivadamente, todas as questões arguidas pela

parte, julgando integralmente a lide.

2. A questão controvertida consiste em saber se a União possui legitimidade passiva

para responder à indenização decorrente de erro médico ocorrido em hospital da

rede privada localizado no município de Campo Bom/RS, durante atendimento

custeado pelo SUS.

3. A Constituição Federal diz que a "saúde é direito de todos e dever do Estado" (art.

196), competindo ao "Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua

regulamentação, fiscalização e

controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e,

também, por pessoa física ou jurídica de direito privado" (art. 197), ressalvando-se,

contudo, que as "ações e serviços públicos de saúde integram uma rede

regionalizada e hierarquizada", constituindo um sistema único, organizado, entre

outras diretrizes, com base na descentralização administrativa, "com direção única

em cada esfera de governo" (art. 198, I).

4. A Lei 8.080/90 – que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e

recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

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222

correspondentes – prevê as atribuições e competências da União, Estados, Distrito

Federal e Municípios quanto aos serviços de saúde pública.

5. Compete à União, na condição de gestora nacional do SUS: elaborar normas para

regular as relações entre o sistema e os serviços privados contratados de

assistência à saúde; promover a descentralização para os Estados e Municípios dos

serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal;

acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde,

respeitadas as competências estaduais e municipais (Lei 8.080/90, art. 16, XIV, XV e

XVII).

6. Os Municípios, entre outras atribuições, têm competência para planejar, organizar,

controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços

públicos de saúde; participar do planejamento, programação e organização da rede

regionalizada e hierarquizada do SUS, em articulação com sua direção estadual;

celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras de serviços privados de

saúde, bem como controlar e avaliar sua execução; controlar e fiscalizar os

procedimentos dos serviços privados de saúde (Lei 8.080/90, art. 18, I, II, X e XI).

7. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou

conveniados que integram o SUS serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes

previstas no art. 198 da CF/88, obedecendo, entre outros, o princípio da

descentralização

político-administrativa, com "ênfase na descentralização dos serviços para os

Municípios" (Lei 8.080/90, art. 7º, IX, a).

8. "Relativamente à execução e prestação direta dos serviços, a Lei atribuiu aos

Municípios essa responsabilidade (art. 18, incisos I, IV e V, da Lei n.º 8.080/90),

compatibilizando o Sistema, no

particular, com o estabelecido pela Constituição no seu artigo 30, VII: 'Compete aos

Municípios (...) prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do

Estado, serviços de atendimento à saúde da população'" (REsp 873.196/RS, 1ª

Turma, Rel. p/ acórdão Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 24.5.2007).

9. Recurso especial provido, para se reconhecer a ilegitimidade passiva da União.

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(REsp 717800 / RS. RECURSO ESPECIAL. 2005/0007310-7. Relator(a). Ministra

DENISE ARRUDA (1126). Órgão Julgador. T1 - PRIMEIRA TURMA. Data do

Julgamento 25/03/2008).

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224

Código de Ética Médica

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

RESOLUÇÃO CFM Nº 1.931, DE 17 DE SETEMBRO DE 2009

Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 24 set. 2009. Seção I, p. 90-2

Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 13 out. 2009. Seção I, p. 173 -

RETIFICAÇÃO

Aprova o Código de Ética Médica.

O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei

n.º 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto n.º 44.045, de

19 de julho de 1958, modificado pelo Decreto n.º 6.821, de 14 de abril de 2009 e

pela Lei n.º 11.000, de 15 de dezembro de 2004, e, consubstanciado nas Leis n.º

6.828, de 29 de outubro de 1980 e Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999; e

CONSIDERANDO que os Conselhos de Medicina são ao mesmo tempo julgadores e

disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar, por todos os meios

ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom

conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente;

CONSIDERANDO que as normas do Código de Ética Médica devem submeter-se

aos dispositivos constitucionais vigentes;

CONSIDERANDO a busca de melhor relacionamento com o paciente e a garantia

de maior autonomia à sua vontade;

CONSIDERANDO as propostas formuladas ao longo dos anos de 2008 e 2009 e

pelos Conselhos Regionais de Medicina, pelas Entidades Médicas, pelos médicos e

por instituições científicas e universitárias para a revisão do atual Código de Ética

Médica;

CONSIDERANDO as decisões da IV Conferência Nacional de Ética Médica que

elaborou, com participação de Delegados Médicos de todo o Brasil, um novo Código

de Ética Médica revisado.

CONSIDERANDO o decidido pelo Conselho Pleno Nacional reunido em 29 de

agosto de 2009;

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225

CONSIDERANDO, finalmente, o decidido em sessão plenária de 17 de setembro de

2009.

RESOLVE:

Art. 1º Aprovar o Código de Ética Médica, anexo a esta Resolução, após sua revisão

e atualização.

Art. 2º O Conselho Federal de Medicina, sempre que necessário, expedirá

Resoluções que complementem este Código de Ética Médica e facilitem sua

aplicação.

Art. 3º O Código anexo a esta Resolução entra em vigor cento e oitenta dias após a

data de sua publicação e, a partir daí, revoga-se o Código de Ética Médica aprovado

pela Resolução CFM n.º 1.246, publicada no Diário Oficial da União, no dia 26 de

janeiro de 1988, Seção I, páginas 1574-1579, bem como as demais disposições em

contrário.

EDSON DE OLIVEIRA ANDRADE

Presidente

LÍVIA BARROS GARÇÃO

Secretária-Geral

CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

PREÂMBULO

I – O presente Código de Ética Médica contém as normas que devem ser seguidas

pelos médicos no exercício de sua profissão, inclusive no exercício de atividades

relativas ao ensino, à pesquisa e à administração de serviços de saúde, bem como

no exercício de quaisquer outras atividades em que se utilize o conhecimento

advindo do estudo da Medicina.

II - As organizações de prestação de serviços médicos estão sujeitas às normas

deste Código.

III - Para o exercício da Medicina, impõe-se a inscrição no Conselho Regional do

respectivo Estado, Território ou Distrito Federal.

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226

IV - A fim de garantir o acatamento e a cabal execução deste Código, o médico

comunicará ao Conselho Regional de Medicina, com discrição e fundamento, fatos

de que tenha conhecimento e que caracterizem possível infração do presente

Código e das demais normas que regulam o exercício da Medicina.

V - A fiscalização do cumprimento das normas estabelecidas neste Código é

atribuição dos Conselhos de Medicina, das comissões de ética e dos médicos em

geral.

VI - Este Código de Ética Médica é composto de 25 princípios fundamentais do

exercício da Medicina, 10 normas diceológicas, 118 normas deontológicas e quatro

disposições gerais. A transgressão das normas deontológicas sujeitará os infratores

às penas disciplinares previstas em lei.

Capítulo I

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade

e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.

II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da

qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

III - Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas

condições de trabalho e ser remunerado de forma justa.

IV - Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina,

bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.

V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o

melhor do progresso científico em benefício do paciente.

VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu

benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou

moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra

sua dignidade e integridade.

VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar

serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje,

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227

excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou

emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto,

renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou

imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

IX - A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como

comércio.

X - O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de

lucro, finalidade política ou religiosa.

XI - O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha

conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos

em lei.

XII - O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano,

pela eliminação e pelo controle dos riscos à saúde inerentes às atividades laborais.

XIII - O médico comunicará às autoridades competentes quaisquer formas de

deterioração do ecossistema, prejudiciais à saúde e à vida.

XIV - O médico empenhar-se-á em melhorar os padrões dos serviços médicos e em

assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à educação sanitária e à

legislação referente à saúde.

XV - O médico será solidário com os movimentos de defesa da dignidade

profissional, seja por remuneração digna e justa, seja por condições de trabalho

compatíveis com o exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento

técnico-científico.

XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição,

pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente

reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da

execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

XVII - As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no

respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o

interesse e o bem-estar do paciente.

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228

XVIII - O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade,

sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos.

XIX - O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos

seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados

com diligência, competência e prudência.

XX - A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza

relação de consumo.

XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus

ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de

seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles

expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização

de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos

pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.

XXIII - Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá

com isenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a

sociedade.

XXIV - Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer

animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a

vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa.

XXV - Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias,

considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas

futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma

razão vinculada a herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e

integridade.

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Capítulo II

DIREITOS DOS MÉDICOS

É direito do médico:

I - Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo,

nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de

qualquer outra natureza.

II - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas

cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.

III - Apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições em que

trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si

mesmo, ao paciente ou a terceiros, devendo dirigir-se, nesses casos, aos órgãos

competentes e, obrigatoriamente, à comissão de ética e ao Conselho Regional de

Medicina de sua jurisdição.

IV - Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as

condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a

do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse caso, comunicará

imediatamente sua decisão à comissão de ética e ao Conselho Regional de

Medicina.

V - Suspender suas atividades, individualmente ou coletivamente, quando a

instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições

adequadas para o exercício profissional ou não o remunerar digna e justamente,

ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar

imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina.

VI - Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados e públicos com caráter

filantrópico ou não, ainda que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as

normas técnicas aprovadas pelo Conselho Regional de Medicina da pertinente

jurisdição.

VII - Requerer desagravo público ao Conselho Regional de Medicina quando

atingido no exercício de sua profissão.

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VIII - Decidir, em qualquer circunstância, levando em consideração sua experiência

e capacidade profissional, o tempo a ser dedicado ao paciente, evitando que o

acúmulo de encargos ou de consultas venha a prejudicá-lo.

IX - Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam

contrários aos ditames de sua consciência.

X– Estabelecer seus honorários de forma justa e digna.

Capítulo III

RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL

É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como

imperícia, imprudência ou negligência.

Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser

presumida.

Art. 2º Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão

médica.

Art. 3º Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou

ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.

Art. 4º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha

praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu

representante legal.

Art. 5º Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não

participou.

Art. 6º Atribuir seus insucessos a terceiros e a circunstâncias ocasionais, exceto nos

casos em que isso possa ser devidamente comprovado.

Art. 7º Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua

obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por

decisão majoritária da categoria.

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Art. 8º Afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem

deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes internados ou

em estado grave.

Art. 9º Deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandoná-lo

sem a presença de substituto, salvo por justo impedimento.

Parágrafo único. Na ausência de médico plantonista substituto, a direção técnica do

estabelecimento de saúde deve providenciar a substituição.

Art. 10. Acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a Medicina ou com

profissionais ou instituições médicas nas quais se pratiquem atos ilícitos.

Art. 11. Receitar, atestar ou emitir laudos de forma secreta ou ilegível, sem a devida

identificação de seu número de registro no Conselho Regional de Medicina da sua

jurisdição, bem como assinar em branco folhas de receituários, atestados, laudos ou

quaisquer outros documentos médicos.

Art. 12. Deixar de esclarecer o trabalhador sobre as condições de trabalho que

ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos empregadores

responsáveis.

Parágrafo único. Se o fato persistir, é dever do médico comunicar o ocorrido às

autoridades competentes e ao Conselho Regional de Medicina.

Art. 13. Deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais

ou profissionais de sua doença.

Art. 14. Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação

vigente no País.

Art. 15. Descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou de

tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação ou terapia

genética.

§ 1º No caso de procriação medicamente assistida, a fertilização não deve conduzir

sistematicamente à ocorrência de embriões supranumerários.

§ 2º O médico não deve realizar a procriação medicamente assistida com nenhum

dos seguintes objetivos:

I – criar seres humanos geneticamente modificados;

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II – criar embriões para investigação;

III – criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar

híbridos ou quimeras.

§ 3º Praticar procedimento de procriação medicamente assistida sem que os

participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo.

Art. 16. Intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na

terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que resulte na

modificação genética da descendência.

Art. 17. Deixar de cumprir, salvo por motivo justo, as normas emanadas dos

Conselhos Federal e Regionais de Medicina e de atender às suas requisições

administrativas, intimações ou notificações no prazo determinado

Art. 18. Desobedecer aos acórdãos e às resoluções dos Conselhos Federal e

Regionais de Medicina ou desrespeitá-los.

Art. 19. Deixar de assegurar, quando investido em cargo ou função de direção, os

direitos dos médicos e as demais condições adequadas para o desempenho ético-

profissional da Medicina.

Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer

outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público

ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de

prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no

interesse da saúde do paciente ou da sociedade.

Art. 21. Deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação

pertinente.

Capítulo IV

DIREITOS HUMANOS

É vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal

após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco

iminente de morte.

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Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua

dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente

sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-

lo.

Art. 25. Deixar de denunciar prática de tortura ou de procedimentos degradantes,

desumanos ou cruéis, praticá-las, bem como ser conivente com quem as realize ou

fornecer meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos que as facilitem.

Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz fisica

e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo

cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco

iminente de morte, tratá-la.

Art. 27. Desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou utilizar-se de meio

que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em investigação policial ou

de qualquer outra natureza.

Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição

na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade.

Parágrafo único. Caso ocorram quaisquer atos lesivos à personalidade e à saúde

física ou mental dos pacientes confiados ao médico, este estará obrigado a

denunciar o fato à autoridade competente e ao Conselho Regional de Medicina.

Art. 29. Participar, direta ou indiretamente, da execução de pena de morte.

Art. 30. Usar da profissão para corromper costumes, cometer ou favorecer crime.

Capítulo V

RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES

É vedado ao médico:

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir

livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em

caso de iminente risco de morte.

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Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento,

cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

Art. 33. Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em

casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico

em condições de fazê-lo.

Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os

objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar

dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Art. 35. Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a

terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros

procedimentos médicos.

Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados.

§ 1º Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o

paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao

atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante

legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as

informações necessárias ao médico que lhe suceder.

§ 2º Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o

médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou

incurável e continuará a assisti-lo ainda que para cuidados paliativos.

Art. 37. Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do

paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada

de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente após cessar o

impedimento.

Parágrafo único. O atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou

de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina.

Art. 38. Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados profissionais.

Art. 39 Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo

paciente ou por seu representante legal.

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Art. 40. Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para

obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu

representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer

todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou

terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade

expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

Art. 42. Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método

contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança,

reversibilidade e risco de cada método.

Capítulo VI

DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS

É vedado ao médico:

Art. 43. Participar do processo de diagnóstico da morte ou da decisão de suspender

meios artificiais para prolongar a vida do possível doador, quando pertencente à

equipe de transplante.

Art. 44. Deixar de esclarecer o doador, o receptor ou seus representantes legais

sobre os riscos decorrentes de exames, intervenções cirúrgicas e outros

procedimentos nos casos de transplantes de órgãos.

Art. 45. Retirar órgão de doador vivo quando este for juridicamente incapaz, mesmo

se houver autorização de seu representante legal, exceto nos casos permitidos e

regulamentados em lei.

Art. 46. Participar direta ou indiretamente da comercialização de órgãos ou de

tecidos humanos.

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Capítulo VII

RELAÇÃO ENTRE MÉDICOS

É vedado ao médico:

Art. 47. Usar de sua posição hierárquica para impedir, por motivo de crença

religiosa, convicção filosófica, política, interesse econômico ou qualquer outro, que

não técnico-científico ou ético, que as instalações e os demais recursos da

instituição sob sua direção, sejam utilizados por outros médicos no exercício da

profissão , particularmente se forem os únicos existentes no local.

Art. 48. Assumir emprego, cargo ou função para suceder médico demitido ou

afastado em represália à atitude de defesa de movimentos legítimos da categoria ou

da aplicação deste Código.

Art. 49. Assumir condutas contrárias a movimentos legítimos da categoria médica

com a finalidade de obter vantagens.

Art. 50. Acobertar erro ou conduta antiética de médico.

Art. 51. Praticar concorrência desleal com outro médico.

Art. 52. Desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente, determinados por

outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria, salvo em

situação de indiscutível benefício para o paciente, devendo comunicar

imediatamente o fato ao médico responsável.

Art. 53. Deixar de encaminhar o paciente que lhe foi enviado para procedimento

especializado de volta ao médico assistente e, na ocasião, fornecer-lhe as devidas

informações sobre o ocorrido no período em que por ele se responsabilizou.

Art. 54. Deixar de fornecer a outro médico informações sobre o quadro clínico de

paciente, desde que autorizado por este ou por seu representante legal.

Art. 55. Deixar de informar ao substituto o quadro clínico dos pacientes sob sua

responsabilidade ao ser substituído ao fim do seu turno de trabalho.

Art. 56. Utilizar-se de sua posição hierárquica para impedir que seus subordinados

atuem dentro dos princípios éticos.

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Art. 57. Deixar de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à comissão de

ética da instituição em que exerce seu trabalho profissional e, se necessário, ao

Conselho Regional de Medicina.

Capítulo VIII

REMUNERAÇÃO PROFISSIONAL

É vedado ao médico:

Art. 58. O exercício mercantilista da Medicina.

Art. 59. Oferecer ou aceitar remuneração ou vantagens por paciente encaminhado

ou recebido, bem como por atendimentos não prestados.

Art. 60. Permitir a inclusão de nomes de profissionais que não participaram do ato

médico para efeito de cobrança de honorários.

Art. 61. Deixar de ajustar previamente com o paciente o custo estimado dos

procedimentos.

Art. 62. Subordinar os honorários ao resultado do tratamento ou à cura do paciente.

Art. 63. Explorar o trabalho de outro médico, isoladamente ou em equipe, na

condição de proprietário, sócio, dirigente ou gestor de empresas ou instituições

prestadoras de serviços médicos.

Art. 64. Agenciar, aliciar ou desviar, por qualquer meio, para clínica particular ou

instituições de qualquer natureza, paciente atendido pelo sistema público de saúde

ou dele utilizar-se para a execução de procedimentos médicos em sua clínica

privada, como forma de obter vantagens pessoais.

Art. 65. Cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina à

prestação de serviços públicos, ou receber remuneração de paciente como

complemento de salário ou de honorários.

Art. 66. Praticar dupla cobrança por ato médico realizado.

Parágrafo único. A complementação de honorários em serviço privado pode ser

cobrada quando prevista em contrato.

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Art. 67. Deixar de manter a integralidade do pagamento e permitir descontos ou

retenção de honorários, salvo os previstos em lei, quando em função de direção ou

de chefia.

Art. 68. Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria

farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação,

promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja

sua natureza.

Art. 69. Exercer simultaneamente a Medicina e a Farmácia ou obter vantagem pelo

encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de medicamentos,

órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza, cuja compra decorra de

influência direta em virtude de sua atividade profissional.

Art. 70. Deixar de apresentar separadamente seus honorários quando outros

profissionais participarem do atendimento ao paciente.

Art. 71. Oferecer seus serviços profissionais como prêmio, qualquer que seja sua

natureza.

Art. 72. Estabelecer vínculo de qualquer natureza com empresas que anunciam ou

comercializam planos de financiamento, cartões de descontos ou consórcios para

procedimentos médicos.

Capítulo IX

SIGILO PROFISSIONAL

É vedado ao médico:

Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua

profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do

paciente.

Parágrafo único. Permanece essa proibição:

a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido;

b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico

comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento;

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239

c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar

segredo que possa expor o paciente a processo penal.

Art. 74. Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a

seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de

discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente.

Art. 75. Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus

retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios

de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.

Art. 76. Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de

trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições,

salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade.

Art. 77. Prestar informações a empresas seguradoras sobre as circunstâncias da

morte do paciente sob seus cuidados, além das contidas na declaração de óbito,

salvo por expresso consentimento do seu representante legal.

Art. 78. Deixar de orientar seus auxiliares e alunos a respeitar o sigilo profissional e

zelar para que seja por eles mantido.

Art. 79. Deixar de guardar o sigilo profissional na cobrança de honorários por meio

judicial ou extrajudicial.

Capítulo X

DOCUMENTOS MÉDICOS

É vedado ao médico:

Art. 80. Expedir documento médico sem ter praticado ato profissional que o

justifique, que seja tendencioso ou que não corresponda à verdade.

Art. 81. Atestar como forma de obter vantagens.

Art. 82. Usar formulários de instituições públicas para prescrever ou atestar fatos

verificados na clínica privada.

Art. 83. Atestar óbito quando não o tenha verificado pessoalmente, ou quando não

tenha prestado assistência ao paciente, salvo, no último caso, se o fizer como

plantonista, médico substituto ou em caso de necropsia e verificação médico-legal.

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Art. 84. Deixar de atestar óbito de paciente ao qual vinha prestando assistência,

exceto quando houver indícios de morte violenta.

Art. 85. Permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não

obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade.

Art. 86. Deixar de fornecer laudo médico ao paciente ou a seu representante legal

quando aquele for encaminhado ou transferido para continuação do tratamento ou

em caso de solicitação de alta.

Art. 87. Deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente.

§ 1º O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do

caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora,

assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina.

§ 2º O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o

paciente.

Art. 88. Negar, ao paciente, acesso a seu prontuário, deixar de lhe fornecer cópia

quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua

compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros.

Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por

escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.

§ 1º Quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito

médico nomeado pelo juiz.

§ 2º Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá

solicitar que seja observado o sigilo profissional.

Art. 90. Deixar de fornecer cópia do prontuário médico de seu paciente quando de

sua requisição pelos Conselhos Regionais de Medicina.

Art. 91. Deixar de atestar atos executados no exercício profissional, quando

solicitado pelo paciente ou por seu representante legal.

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Capítulo XI

AUDITORIA E PERÍCIA MÉDICA

É vedado ao médico:

Art. 92. Assinar laudos periciais, auditoriais ou de verificação médico-legal quando

não tenha realizado pessoalmente o exame.

Art. 93. Ser perito ou auditor do próprio paciente, de pessoa de sua família ou de

qualquer outra com a qual tenha relações capazes de influir em seu trabalho ou de

empresa em que atue ou tenha atuado.

Art. 94. Intervir, quando em função de auditor, assistente técnico ou perito, nos atos

profissionais de outro médico, ou fazer qualquer apreciação em presença do

examinado, reservando suas observações para o relatório.

Art. 95. Realizar exames médico-periciais de corpo de delito em seres humanos no

interior de prédios ou de dependências de delegacias de polícia, unidades militares,

casas de detenção e presídios.

Art. 96. Receber remuneração ou gratificação por valores vinculados à glosa ou ao

sucesso da causa, quando na função de perito ou de auditor.

Art. 97. Autorizar, vetar, bem como modificar, quando na função de auditor ou de

perito, procedimentos propedêuticos ou terapêuticos instituídos, salvo, no último

caso, em situações de urgência, emergência ou iminente perigo de morte do

paciente, comunicando, por escrito, o fato ao médico assistente.

Art. 98. Deixar de atuar com absoluta isenção quando designado para servir como

perito ou como auditor, bem como ultrapassar os limites de suas atribuições e de

sua competência.

Parágrafo único. O médico tem direito a justa remuneração pela realização do

exame pericial.

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Capítulo XII

ENSINO E PESQUISA MÉDICA

É vedado ao médico:

Art. 99. Participar de qualquer tipo de experiência envolvendo seres humanos com

fins bélicos, políticos, étnicos, eugênicos ou outros que atentem contra a dignidade

humana.

Art. 100. Deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de pesquisa em

seres humanos, de acordo com a legislação vigente.

Art. 101. Deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de

consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres

humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as consequências da

pesquisa.

Parágrafo único. No caso do sujeito de pesquisa ser menor de idade, além do

consentimento de seu representante legal, é necessário seu assentimento livre e

esclarecido na medida de sua compreensão.

Art. 102. Deixar de utilizar a terapêutica correta, quando seu uso estiver liberado no

País.

Parágrafo único. A utilização de terapêutica experimental é permitida quando aceita

pelos órgãos competentes e com o consentimento do paciente ou de seu

representante legal, adequadamente esclarecidos da situação e das possíveis

consequências.

Art. 103. Realizar pesquisa em uma comunidade sem antes informá-la e esclarecê-la

sobre a natureza da investigação e deixar de atender ao objetivo de proteção à

saúde pública, respeitadas as características locais e a legislação pertinente.

Art. 104. Deixar de manter independência profissional e científica em relação a

financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo

vantagens pessoais.

Art. 105. Realizar pesquisa médica em sujeitos que sejam direta ou indiretamente

dependentes ou subordinados ao pesquisador.

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Art. 106. Manter vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas, envolvendo

seres humanos, que usem placebo em seus experimentos, quando houver

tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada.

Art. 107. Publicar em seu nome trabalho científico do qual não tenha participado;

atribuir-se autoria exclusiva de trabalho realizado por seus subordinados ou outros

profissionais, mesmo quando executados sob sua orientação, bem como omitir do

artigo científico o nome de quem dele tenha participado.

Art. 108. Utilizar dados, informações ou opiniões ainda não publicados, sem

referência ao seu autor ou sem sua autorização por escrito.

Art. 109. Deixar de zelar, quando docente ou autor de publicações científicas, pela

veracidade, clareza e imparcialidade das informações apresentadas, bem como

deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses,

equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar

conflitos de interesses, ainda que em potencial.

Art. 110. Praticar a Medicina, no exercício da docência, sem o consentimento do

paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e privacidade

ou discriminando aqueles que negarem o consentimento solicitado.

Capítulo XIII

PUBLICIDADE MÉDICA

É vedado ao médico:

Art. 111. Permitir que sua participação na divulgação de assuntos médicos, em

qualquer meio de comunicação de massa, deixe de ter caráter exclusivamente de

esclarecimento e educação da sociedade.

Art. 112. Divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista,

promocional ou de conteúdo inverídico.

Art. 113. Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta

cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão

competente.

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Art. 114. Consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação

de massa.

Art. 115. Anunciar títulos científicos que não possa comprovar e especialidade ou

área de atuação para a qual não esteja qualificado e registrado no Conselho

Regional de Medicina.

Art. 116. Participar de anúncios de empresas comerciais qualquer que seja sua

natureza, valendo-se de sua profissão.

Art. 117. Apresentar como originais quaisquer idéias, descobertas ou ilustrações que

na realidade não o sejam.

Art. 118. Deixar de incluir, em anúncios profissionais de qualquer ordem, o seu

número de inscrição no Conselho Regional de Medicina.

Parágrafo único. Nos anúncios de estabelecimentos de saúde devem constar o

nome e o número de registro, no Conselho Regional de Medicina, do diretor técnico.

Capítulo XIV

DISPOSIÇÕES GERAIS

I - O médico portador de doença incapacitante para o exercício profissional, apurada

pelo Conselho Regional de Medicina em procedimento administrativo com perícia

médica, terá seu registro suspenso enquanto perdurar sua incapacidade.

II - Os médicos que cometerem faltas graves previstas neste Código e cuja

continuidade do exercício profissional constitua risco de danos irreparáveis ao

paciente ou à sociedade poderão ter o exercício profissional suspenso mediante

procedimento administrativo específico.

III - O Conselho Federal de Medicina, ouvidos os Conselhos Regionais de Medicina

e a categoria médica, promoverá a revisão e atualização do presente Código quando

necessárias.

IV - As omissões deste Código serão sanadas pelo Conselho Federal de Medicina.

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