o que é questão agrária [josé graziano da silva, 1980]

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Jose Graziano da Silva o QUE E QUESTAO AGRARIA

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Page 1: O que é questão agrária [José Graziano da Silva, 1980]

Jose Graziano da Silvao QUE E

QUESTAO AGRARIA

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Capa:Roberto Strauss

Caricaturas:Emilio Damiani

Revisiio:Jose E. Andrade

jUJeditora brasil iense s.a.01042 - rua barao de itapetininga, 93sao paulo - brasil

- Introdu~ao .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ?- 0 Desenvolvim.ento Recente da Agricultura

Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 20- A Heran~a Hist6rica . . . . . . . . . . . . . . .. 20- 0 Diagn6stico da Estrutura Agraria como

Obstaculo a Industrializa~ao . . . . . . . . .. 28- A Questao Agraria nos Anos Setenta. . .. 43

- Os Trabalhadores da Agricultura Brasileirae Sua Organiza~ao Sindical . . . . . . . . . . . .. 68- Os Distintos Grupos de Trabalhadores

Rurais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 68- 0 Sindicalismo Rural Brasileiro 82

- A Questao Agraria Hoje 91- As Reivindica~oes dos Trabalhadores Ru-

rais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 91- A Retomada da Solu~ao "Reforma Agra-

ria" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 99- Notas .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 107••••• ••

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Para osFormandos de 1980 doCurso de Engenharia Agricolada UN/CAMP.

Em homenagem aAlberto Passos Guimariies,Caio Prado Jr.,Igndcio Rangel.

INTRODU<;AO

o debate sobre 0 que se convencionou chamar"A Questao Agniria no Brasil" vem se intensifi-cando nos ultimos anos.

Nao e, entretanto, a primeira vez que esse temae discutido entre nos. Na verdade, essa polemicaja polarizou grande parte dos debates tambemem outras epocas da vida nacional. Na decadade trinta, por exemplo, essa discussao giravaem torno da crise do cafe e da grande depressaoiniciada com a quebra da Bolsa de Nova lorqueem 1929.

Ja no final dos anos cinquenta e in(cio dosanos sessenta, a discussao sobre a questao agrariafazia parte da polemica sabre os rumos que deveriaseguir a industrializa<;:ao brasileira. Argumentava-seentao que a agricultura brasileira - devido ao

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seu atraso - seria um empecilho ao desenvolvi-,,,{mento economico, entendido como sinonimo

!~a industrializal;ao do pais.I Esse diagnostico vinha reforcado pela criseda economia brasileira, particularmente no pen'o-do 1961/67. Depois de 1967, ate 1973, 0 paisentrou numa fase de crescimento acelerado daeco~lOmia. Nesse perlodo, que ficou conhecidocomo 0 do "milagre brasileiro", pouco se falouda questao agraria. Em parte porque a repressaopolltica ncIo deixava falar de quase nada. Mas!em parte tambem porque muitos achavam que

,a questao agraria tinha sido resolvida com 0 auJmento da produ~o agrt'cola ocorrido no perlododo milagre. Embora todos reconhecessem que

. esse aumento vinha beneficiando os entao chama-dos "produtos de exportacao" (como 0 cafe,a soja, etc.), em detrimento dos chamados "pro_dutos alimentt'cios" (como 0 feijao, arroz, etc.),cOl1tra-argumentavam alguns que isso era urn desa-

. juste passageiro que logo se normalizaria. Outros\.; \piziam ainda que ncIo haveria problema se pudesse-

'mos continuar exportando soja - que era maislucrativa - e, com os recursos obtidos,compraro feijao de que necessitavamos.

Mas 0 "milagre" acabou. Passada a euforiainicial, muitos comel;:aram a se dar conta de queqs frutos do crescimento acelerado do pert'odo1967/73 tinham beneficiado apenas uma mino-ri~ privilegiada. E, entre os que tinham sido penali-

zados, estavam os trabalhadores em geral, e,de modo particular, os trabalhadores rurais.

De 1974 em diante a economia brasileira deixarlde apresentar os elevados t'ndices de cresci mentor\"~do perlodo anterior, e no trienio 1975/77 comel;:a,a s~ deli near claramente outra situal;:ao de crise.'j

E muito interessante observar que em 1978rmuitas coisas voltam a ser discutidas, com 0 inlcio

,'(de uma relativa abertura polltica no pais. E, entre'elas, retoma-se com pleno vigor 0 debate sobrea questao agraria, novamente dentro do contextomais geral das crises do sistema economico capi-talista.

A escolha da agricultura como "meta priori-taria" do governo reaviva as discussoes que setravam em torno do conteudo politico e socialdas transformal;:oes que se operaram no campobrasileiro nas duas ultimas decadas. Nem mesmoa tao anunciada "supersafra" - que nao chegoua ser tao "super" assim - consegue esconder

G9 "ressurgimento da questao agraria", como. parte dos temas mais polemicos do momento.

Evidentemente nao e bem urn "ressurgimentoda questao agraria", pois ela nao foi resolvidaanteriormente. De um lado, ela havia sido esque-cida ou deixara de ser um tema da moda da grandeimprensa. Do outro lado - da parte daquelesque nao a podiam esquecer, porque a questaoagraria faz parte da sua vida diaria, os trabalha-dores rurais - ela fora silenciada. Para isso foi

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agrlcolas, da mesma maneira que a questao agrI-cola tern suas ralzes na crise agraria. Portanto,e posslvel verificar que a crise agricola e a criseagraria, alem de internamente relacionadas, muitasvezes ocorrem simultaneamente. Mas 0 impor-tante e que isso nao e sempre necessario. Pelocontrario, muitas vezes a maneira pela qual seresolve a questao agr/cola pode servir para agravara questao agraria.

Em poucas palavras, a questao agricola dizrespeito aos aspectos ligados as mudan<;:as naprodur;fio em si mesma: 0 que se produz, ondese produz e quanta se produz. Ja a questao agrariaesta ligada as transformal/oes nas relar;oes de pro- •ducao: como se produz, de que forma se produz.

No equacionamento da questao agricola asvariaveis importantes sac as quantidades e osprel/os dos bens produzidos. Os principais indica-dores da questao agraria sac outros: a maneiracomo se organiza 0 trabalho e a prodw;ao; 0 nlvelde renda e emprego dos trabalhadores rurais;a produtividade das pessoas ocupadas no cam-po, etc.

A forl/a com que a questao agraria brasileiraressurge hoje nao advem apenas da maior liber-dade com que podemos discuti-Ia. Mas tambemdo fato de que ela vem sendo agravada peio modocomo tern se expandido as relal;oes capitalistasde prodw:;:ao no campo. Em outras palavras, amaneira como 0 pais tem conseguido aumentar

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«:a sua produc;:ao agropecuaria tem causado impac-, !I,itos negativos sobre 0 n Ivel de renda e de emprego

'\d~ sua populac;:ao rural. E a crise agraria brasi-lelra, como tambem ja havia notado Rangelja estava desde 0 inlcio dos anos sessenta Iigad~a uma liberac;:ao excessivC! ~gE!PQPula<;ao. rural: (Eram milhares de pequenos camponesesque,expulSos do campo, nao conseguiam encontrartrabalho produtivo nas cidades. Dal os crescentesIndices de migrac;:oes, de subemprego, para naofalar na mendicancia, prostituic;:ao e criminali-dade das metropoles brasileiras.

C? f~to e que a expansao da grande empresacapltallsta na agrol?ecuaria brasileira nas decadasde sessenta e setenta foi ainda muito mais acele-rada do que em perlodos anteriores. E essa expan-sac d~~!""-lIiLJoutr()srnilharesc:fepequenas unidade~de produc;:ao, onde 0 trabalhador rural obtinhanao apenas parte da sua propria alimentadiocomo tambem alguns produtos que vendia 'na~cidades. Foi essa mesma expansao que transfor-mou 0 colona em boia-fria, que agravou os confli-tos entre grileiros e posseiros, fazendeiros e Indios,e que concentrou ainda mais a propriedade daterra.

Falamos ha pouco das transformac;:oes quea expansao do capitalismo no campo provocasobr.e a produc;:ao agropecuaria. Mas qual e 0

sentldo dessas transformac;:oes?Como explica um recente trabalho: "Com 0

desenvolvimento da produc;:ao capitalista na agricul-tura (ou seja, nas transformac;:oes que 0 capital (provoca na atividade agropecuaria), tende a haverum maior uso de adubos, de inseticidas, de maqui- .'nas, de maior utilizac;:ao de trabalho assalariado,o cultivo mais intensive da terra, etc. Em resumo,a produ<;ao se torna mais intensiva sob 0 controledo capital".2

Quer dizer, 0 sentido das transformac;:oes capita-Iistas e elevar a produtividade do trabalho. Issosignifica fazer cada pessoa ocupada no setor agrl-

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cola produzir mais, 0 que so se consegue aumen-tando a jornada e 0 ritmo de trabalho das pessoas,e intensificando a produ¢o agropecuaria. Epara conseguir isso 0 sistema capitalista lanl;a

:

mao dos produtos da sua industria: adubos, maqui-nas, defensivos, etc. Ou seja, 0 desenvolvimento.das relal;oes de produvao capitalistas no campo'$e f;Z "industrializando" a propria agricultura., Essa industrializal;aO da agricultura e exata-mente 0 que se chama comumente de "pene-tral;ao" ou "desenvolvimento do capitalismono campo". 0 importante de se entender e quee dessa maneira que as barreiras impostas pelaNatureza a produl;aO agropecuaria VaG sendogradativamente superadas. E como se 0 sistemacapitalista passasse a "fabricar" uma Naturezaque fosse adequada a prodUl;;ao de maiores lucros.Assim, se uma determinada regiao e seca, tomela uma irrigal;ao para resolver a falta de agua;se e um brejo, la vai uma draga resolver 0 problemado excesso de agua; se a terra nao e fertil, aduba-se;e assim por diante.

" Vamos dar um exemplo bastante ilustrativodas transformal;oes que 0 sistema capitalistaprovoca na produvao agropecuaria: 0 da avicul-tura. Antigamente as galinhas, e os galos tambem,eram criados soltos nas fazendas e sltios. Ciscavam,comiam minhocas, restos de alimentos e as vezesate mesmo um pouco de milho. Punham uma certaquantidade de ovos - uma ninhada de doze,

quinze - e depois iam choca-Ios durante semanasseguidas. Mesmo que os ovos fossem retirados,periodicamente as galinhas paravam de botar,obedecendo ao instinto biologico da procriavao,e punham-se "em choco".

Mas logo descobriu-se que essa parte do processode procrial;ao das aves podia ser feita pela incu-badora (ou chocadeira) eletrica. E com maioreficiencia que a propria galinha, uma vez quepermitia controlar melhor a temperatura e evitarquebra dos ovos. Tornou-se necessario entaofabricar uma galinha que nao perdesse tempochocando, isto e, que se Iimitasse a produzir ovostodo 0 tempo de sua vida util. Evidentemente,uma produvao assim mais intensiva flao era POSSI-vel ser conseguida com galinhas que ciscasseme se alimentassem a base de engolir minhocase restos de comida. Foi precise fabricar uma novaalimental;ao para essas galinhas - as ral;oes - quepossibilitassem sustentar essa postura. Alemde melhor alimental;ao, as aves foram confinadasem pequenos cublculos metalicos, para que naodesperdil;assem energia ciscando. Estava consti-tu Ida uma verdadeira "fabrica aVlcola": de umlade entra ral;ao, a materia-prima; do outro saemovos, 0 produto. Tudo padronizado, lade a ladeumas das outras nas suas prisoes. Nessas alturasos galos que nao botavam ovos e s6 faziam baru-Iho e arrumavam encrenca ... E claro que algunspoucos - sera que privilegiados? - foram preser-

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vados para a procriac;:ao. Mas esta atividade passoua ser um outro ramo distinto: a produc;:ao de ovosse separou da produc;:ao de pintinhos. E a avicul-tura se tornou tao especializada que a produc;:aode matrizes - quer dizer, dos pais e das maesdos pintinhos - passou a ser um outro ramo

(tambem especializado. Quer dizer que: quem> produz ovos, compra os pintinhos; quem produz\pintinhos, compra as matrizes.I Mas por que uma galinha que nao choca, presanuma gaiola, comendo rac;:ao, e mais adequadaao sistema capitalista que a outra, que ciscavano terreno das fazendas a procura de minhocas?Ora, alem de produzir mais ovos que a outradurante a sua vida util, a galinha que nao chocada lucros tambem ao produtor de rac;:ao, ao quefabrica as gaiolas, ao do no da chocadeira eletrica,ao que vende os pintinhos, etc. Ou seja, a produ<;aode ovos com essa "fabrica avfcola" criou mercadopara a industria de rac;:ao, de gaiolas, de choca-deiras, de pintinhos, de matrizes. Por sua vez,a industria de rac;:ao dci lucros para 0 fabricantede medicamentos, ao comerciante de milho;a industria de gaiolas, ao fabricante de aramegalvanizado e chapas metalicas; e assim suces-sivamente.

Tudo isso porque uma galinha come minhocase a outra nao. E, seria 0 caso de se perguntar,quem ganha com isso? A resposta e obvia: osdonos das industrias de rac;:ao, de gaiolas, de

chocadeiras. .. 0 pequeno produtor, que criaos pintinhos e vende os ovos, esse nao. Ele ~e~que comprar rac;:ao, gaiolas, medica.mentos, £lmt'~nhos tudo de grandes companhlas. Entao, elogic~ que ele paga caro essas coisas, porqueo seu poder de barganha e nulo frente a essasgrandes empresas. Na hora de vender: e a. mesmacoisa: sac grandes compradores e ha mUlto ovo(Iembre-se que essas galinhas so fazem botar ovo~).Entao, 0 prec;:o e baixo, tao baixo que ele preC'~D--cuidar de milhares. dAe ~alinhas para consegulr (C~garantir a sua sobrevlvencla como. pequeno prod~-tor. Em resumo, ele trabalha mals e ganha relatl-vamente menos .

• ! A questao esta justa mente af: 0 sistema t?d.o; ~i;fOi feito para que ganhem os ~rande~ ca~l~als

,',e nao os pequenos produtores. Entao dlrlam\ certos anarquistas, hoje vestidos com 0 manto"ecologico": vamos voltar a produzir galinhasque ciscam no terreiro e comem .mi~hocas, p~rque,alem de combater 0 sistema capltallsta, estarlamosproduzindo um avo "mais saudavel" e po~pandoo milho para alimentar seres humanos. (E claroque ninguem defende que os ovos devam conterreslduos de DDT ou coisa semelhante.) Mas essaposic;:ao nao e apenas utopica, n:a~ tambe~ profun-damente elitista: ela reduzlrla drastlcamentea produc;:ao de ovos, 0 que el~vari.a ,b.rutal.menteseus precos alem de condenar a mlsena mllharesde trab~lh~dores empregados nesse "complexo

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avlcola". Essa proposta de "volta ao passado"e equivocada: tal como D. Quixote, acabamosdestruindo 0 moinho de vento pensando quecombatemos os gigantes. A questao nao e a gali-nha em si, mas 0 sistema que a orienta: a tecno-logia adotada e apropriada aos interesses dosgrandes capitais, nao aos dos pequenos produ-tOfes. Mas isso nao e proprio do sistema capi-talista?. E importante voltar a lembrar que 0 objetivo

das transforma~oes capitalistas na agricultura,,(como em toda a economia) e 0 de aumentara produtividade do trabalho. Isto e, fazer comque cada pessoa possa produzir mais durante:0 tempo em que esta trabalhando. No sistemalcapitalista, quando 0 trabalhador produz mais,,quem ganha e 0 patrao. E ele que aumenta seuslucros. Por isso, 0 sistema capitalista acumulariqueza de um lado e miseria de outro.

(\'1· r Mas a eleva(:ao da produtivid~de do trabalho. Y,e fundamental em qualquer socledade. Especial-

mente num sistema economico socialista, onde~o trabalhador e 0 done dos frutos do seu proprio. trabalho. AI, quando uma pessoa produzir mais

i.' por dia de servi~o, ela ganhara mais e podera inclu-sive trabalhar menos dias por ano, se isso forconveniente para todos. E claro que, num sistema,desse tipo, muitas tecnologias adotadas no capita-ismo terao que ser abandonadas. Afinal, oobjetivo

, nao sera mais aumentar os lucros dos grandes

capitals, mas promover 0 bem-estar dos trabalha-dores, 0 que inclui desde nao se produzir ovoscom reslduos de DDT ate nao poluir rios oudestruir bosques e florestas.

Todavia, antes de entrarmos nesses aspectospoh~micos da questao agraria no Brasil de hoje,vejamos rapidamente como se desenvolveu aagricultura brasileira no perlodo recente e quemsac os trabalhadores rurais neste pa (s. Esses sen3'o

r os assuntos tratados, respectivamente, nos capl-tulos um e dois. No terceiro capitulo, voltaremosa discutir os novos aspectos que assume hojea questao agraria no Brasil.

•••• fl..

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o DESENVOL VIMENTO RECENTEDA AGRICULTURA BRASILEIRA

SaD as maquinas e outros meios de produ<;:ao einstrumentos de trabalho.

E exatamente por ser a terra um meio de produ-lfaO relativamente nao reprodutfvel - ou pelomenos, mais complicado de ser multiplicado -que a forma de sua aproprialfaO historica ganhauma importancia fundamental. Desde que a terraseja apropriada privadamente, 0 seu dona podearrogar-se 0 direito de fazer 0 que quiser comaquele pedalfo de chao. Em alguns pafses, comono caso do Brasil, 0 proprietario de terra temate mesmo 0 direito de nao utiliza-Ia produti-vamente, isto e, deixa-Ia abandonada, e de impedirque outro a utilize. Por isso e que a estruturaagraria - ou seja, a forma como a terra esta distri-bufda - torna-se assim 0 "pano de fundo" sobre 0

qual se desenrola 0 processo produtivo na agri-cultura.

Se fosse facil fabricar novas terras, pouca impor-tancia teria a forma de aproprialfaO dos soloscriados pela Natureza, quer dizer, dos solos naofabricados. Ja dissemos anteriormente que 0

sistema capitalista procura superar essa barreirada limitalfaO dos solos disponfveis fabricandoas terras necessarias atraves da utilizal,::ao de tecno-logias por ele desenvolvidas. Por exemplo, umdeterminado pedalfo de solo nao pode ser utili-zado porque esta inundado, ou porque e muitoduro e seco, ou ainda porque tem baixa fertilidadee nao produz nada. Ora, com 0 uso de fertilizantes

Procuramos mostrar anteriormente que, com~ industrializalfao da agricultura, as limitalfoesImpostas pela Natureza a prodUlfaO agropecuariaVaG sendo gra.dativamente superadas. E comose 0 sistema capitalista passasse a "fabricar"uma Natureza adequada a sua sede de maioreslucros, a partir das conquistas tecnol6gicas dasua propria industria.. Mas 0 des~nvolvimento das relalfoes capita-

Iistas na agncultura tem particularidades. emrela~o ao da ind_ustria. A principal delas e queo melo de produl(ao fundamental na agricultura _a terra -: nao e suscetfvel de ser multiplicado(reproduzldo) ao livre arbftrio do homem, como 0

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e de maquinas pode-se fazer a correc;:ao desses"defeitos" atraves da drenagem, arac;:ao, irri-gac;:ao,etc.

Claro que e posslvel hoje "fabricar terras"ou ate rnesmo produzir alimentos e animais pratica-mente sem usar terra, como, por exemplo, atravesda agricultura hidroponica ou do confinamento.Mas;,evidentemente, isso nao aconteceu num passede magica, senao que pressupoe toda uma hist6riado . de.senvolvimento das relac;:oes de produ<;:aocapltallstas no campo, e das transformac;:oes que seopera ram entre os varios agentes socia is da produ-c;:aoagricola.

Seria necessario, portanto, que iniciassemospela ocupac;:ao hist6rica, inicial, das terras noBrasil, e que fossemos acompanhando esse desen- .volvimento. Todavia, acreditamos que os trabalhosexistentes sobre 0 tema4 colocam muito bema questaofundamental: a propriedade fundiariaconstituiu 0 elemento fundamental que separavaos trabalhadores dos meios de produc;:ao na agri-cultura brasileira. Vamos recapitular rapidamenteessa hist6ria.

o inlcio da colonizac;:ao do territ6rio brasileirose fez com a doac;:ao de grandes extensoes de terraa particulares, denominadas sesmarias. Da ( surgi-ram os latifundios escravistas: a necessidade deexportar em grande escala e a escassez de mao-de--obra na colonia uniram-se a existencia de umrentavel mercado de trafico de escravos.

Todas as atividades produtivas da coloniagiravam em torno da agricultura e do comercio,praticamente nao havendo industrias. 0 latifun-dio escravista produzia para exportar, essa eraa sua finalidade basica. 0 produto "mudava deacordo com os interesses da metropole: primeiroac;:ucar e, no fim da escravidao, 0 cafe. A expor-tac;:ao da produc;:ao, aliada a importac;:ao de escra-vos, e que garantia a lucratividade dos capitaiscomerciais metropolitanos.

o latifundio escravista era 0 eixo de atividadeeconomica da colonia, definindo as duas classessociais basicas: os senhores e os escravos. Masem torno deies havia uma massa heterogenea debrancos que nao eram senhores, de negros libertosque nao eram escravos, de Indios e de mestic;:os,que desempenhavam uma serie de atividades.Varios eram "tecnicos" empregados nos proprioslatifundios, como escreventes, contadores, capa-tazes, etc. Outros se dedicavam ao pequeno comer-cio, como mascates, vended ores ambulantes, etc.E outros ainda eram agricultores: ocupavamcertos pedac;:os de terra, onde produziam suasubsistencia e vendiam parte da produc;:ao nasfeiras das cidades. AI esta a origem da pequenaproduc;:ao no Brasil e sua estreita ligac;:ao coma produc;:ao de alimentos.

Os latifundios tambem produziam generosalimentlcios. Na maioria das vezes essa produc;:aoera feita tambem por pequenos agricultores, que

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pagavam uma renda ao proprietario, pela utili-zac;:ao das suas terras. Outras vezes, a produc;:aode alimentos era feita pelos pr6prios escravosnos seus "tempos livres" - domingos, feriadosou depois de terminada a jornada no eito.

Mas a produc;:ao de alimentos do latifundiovariava muito em func;:ao do prec;:o do seu produ-to principal destinado a exportac;:ao. Por exemplo,quando 0 prec;:o do ac;:ucar (e mais tarde do cafe)subia no mercado mundial, todas as terras e osescravos eram utilizados para expandir a suaproduc;:ao, diminuindo assim a produc;:ao de ali-mentos. Nesses per(odos havia fome na coloniae as autoridades estimulavam os pequenos agricul-tores a expandirem sua produc;:ao, para abastecernao s6 as vilas e cidades, como as vezes os pr6prioslatifundios.

No in(cio do seculo XIX, a extinc;:ao do regimede sesmarias, aliada a ausencia de outra legislac;:aoregulando a posse das terras devolutas, provocauma rapida expansao dos s(tios desses pequenosprodutores.

Em meados desse mesmo seculo, comec;:aa decli-nar 0 regime escravocrata. Sob pressao da Ingla-terra - agora interessada num mercado compradorpara seus produtos manufaturados, e nao apenasinteressada em vender escravos - 0 Brasil pro (beo trMico negreiro em 1850.

E sintomatico que nesse mesmo ana se crieuma nova legislac;:ao definindo 0 acesso a proprie-

dade - a Lei de Terras, como ficaria conhecida -que rezava que todas as terras devolutas s6 pode-riam ser apropriadas mediante a compra e venda,e que 0 governo destinaria os rendimentos obtidosnessas transac;:oes para financiar a vinda de colonosda Europa. Matavam-se, assim, dois coelhos comuma s6 cajadada. De um lado, restringia-se 0

acesso as terras (devolutas ou nao) apenas aquelesque tivessem dinheiro para compra-Ias. De outro,criavam-se as bases para a organizac;:ao de ummercado de trabalho livre para substituir 0 sistemaescravista.

E facil entender a importancia da Lei de Terrasde 1850 para a constituic;:ao do mercado de traba-Iho. Enquanto a mao-de-obra era escrava, 0 lati-fundic podia ate conviver com terras de "acessorelativamente livre" (entre aspas porque a proprie-dade dos escravos e de outros meios de produc;:aoaparecia como condic;:ao necessaria para alguemusufruir a posse dessas terras). Mas quando a mao--de-obra se torna formal mente livre, todas as terrastem que ser escravizadas pelo regime de proprie-dade privada. Quer dizer, se houvesse homem"livre" com terra "Iivre", ninguem iria ser traba-Ihador dos latifundios.

o per(odo que vai da proibic;:ao do traficoe da Lei de Terras ate a abolic;:ao (1850/1888)marca a decadencia do sistema latifundiario--escravista.

Ap6s 1888, comec;:a a se consolidar no pa (s

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urn segmento formado por pequenas fabricasde chapeus, de 10Ul;:as, de fialfao e tecelagem,etc. Essas industrias servem para fortalecer econsolidar varios centros urbanos que antes erampuramente administrativos - cidades sem vidapropria (quer dizer, sem gerar produtos), comose dizia - como, por exemplo, Sao Paulo e Riode -Janeiro. Embora bastante incipiente,esseprinclpio de industrializa<;:ao - e a consequenteurbaniza<;:ao dal decorrente - come<;:a a provocarvarias alteralfoes na produ<;:ao agricola. Conso-lida-se a produ<;:ao mercantil de alimentos foradas grandes fazendas de cafe. Alem da produlfaode alimentos, os pequenos agricultores tern tam-bem agora a possibilidade de produzir materias--primas para as industrias nascentes (como, porexemplo, 0 algodao, 0 tabaco, etc.), uma vez queo latifundio continua a monopolizar a produ<;:aodestinada a exportalfao - 0 cafe.

As alteralfoes de prelfos dessa cultura provocamcrises peri6dicas durante 0 inlcio do seculo XX,culminando em 1932, ana em que se da 0 augedos reflexos da crise de 29 sobre 0 setor cafeeiro.

o per(odo que se estende de 1933 a 1955marca uma nova fasede transi<;:ao da economiabrasileira. Nesse perlodo, 0 setor industrial vai-seconsolidando paulatinamente e 0 centro das ativi-dades economicas come<;:a vagarosamente a sedeslocar do setor cafeeiro - exportador. A indus-tria gradativamente vai assumindo 0 comando

do processo de acumula<;:ao de capital: 0 paisvai deixando de ser "eminentemente agricola"(como alguns ainda creem ser a sua "vocalfaohistorica").

Durante essa fase, a industrializalfao se faz pela"substituilfao das importalfoes": urn determinadoproduto, que era comprado no exterior, pas~aa ter sua produ~o estimulada no pais atravesde barreiras alfandegarias, que inclulam desdeimpostos elevados ate a propria proib.ilfa~ ,d~importa<;:ao. Mas vai ficando cada vez mals dlflcllessa substitui<;:ao. Antes eram tecidos, loulfas,chapeus; agora sac eletrodomesticos, carros,que precisam ser produzidos internamente.

E para isso se faz necessario primeiro implan-tar a industria pesada no pais: siderurgia, petro-qUlmica, material eletrico, etc. - 0 que e feitono perlodo de 1955/61. Resolvido 0 problemada industria, vai-se iniciar 0 que se poderia chamarde industrializar;ao da agricultura.

No infcio dos anos sessenta, que correspondeao final da fase de industrializalfao pesada noBrasil in~i.Q;(;II1l-~t!no pai:> et:i rabricas de maquinase ins~mos agrlcolas. Assim, por exemplo, sacimplantadas industrias de tratores ~ .equipame~to.sagrlcolas (a rados, grades, etc.), fertlliz~n:~s qu Iml-cos, ra<;:oes e medicamentos veterinarlOS, etc.Evidentemente a industria de fertilizantes e defen-sivos qUlmicos so poderia se instalar depois deconstitulda a industria petroqulmica; a industria

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de tratores e equipamentos agrlcolas, depois deimplantada a siderurgia; e assim por diante. 0importante e que, a partir da constitui<;ao dessesramos industria is no proprio pais, a agriculturabrasileira iria ,ter que criar um mercado consu-midor para esses "novos" meios de produ<;ao.Para garantir a ampliac;ao desse mercado, 0 EstadoimpLementou um conjunto de polfticas agr(colasdestinadas a incentivar a aquisi<;ao dos produtosdesses novos ramos da industria, acelerando 0

processo de incorporac;ao de modernas tecnologiaspelos produtores rurais. A industrializa<;ao daagricultura brasileira entrava assim numa outraetapa.

o diagn6stico da estrutura agniriacomo obstaculo a industrializa<;ao

Como ja dissemos, no final dos anos cinquentae in Icio da decada dos sessenta a agriculturabrasileira passou a ser um dos temas centrais emdiscussao. Os varios diagnosticos - entre os maisprogressistas e respeitados, diga-se de passagem,como, por exemplo, aqueles inspirados no arca-bou<;o teorico da Comissao Economica para aAmerica Latina (CEPAL) - convergiam na tenta-tiva de mostrar que a nossa estrutura agrariaextrema mente concentrada era limitante ao proces-so de industrializac;ao do pal's.

Os argumentos principais, do ponto. de vis.tadaqueles que pregavam a necessidade da Industr~a-lizac;ao do paiS, diziam respeito a concentra~aoda propriedade (e da posse) da terra nas maosde uns poucos latifundios, 0 que para eles repre-sentava:a) um "estrangulamento" na oferta de alimentos

aos setores urbanos, pois a produ<;ao reagiamenos que proporcional mente ao cresci mentodos pre<;os (em linguagem economica, era ine-lastica). Assim, na medida em que fosse aumen-tando a propor<;ao da populac;ao brasileiranas cidades, tenderia a haver uma pressao nospre<;os dos alimentos, c~~ consequente .ref.l~xono crescimento dos salanos, tornando Invlavelo processo de industrializa<;ao; .

b) a nao ampliac;ao do mercado Interno para aindustria nascente. As fazendas eram quaseque auto-suficientes, baseadas numa e~o~omia"natural": nao adquiriam a grande malona dosprodutos de que necessitavam, confeccionando--os a( mesmo em bases artesanais.Nao se podia pensar que a industria nascente

brasileira tivesse condi<;:oes de competi<;:ao noexterior ficando as suas possibilidades de mercadorestritas' ao pa (s. Como a grande maioria da popu-lacao ainda vivia na agricultura, esta deveria serre~ponsavel por uma parcela substancial do merca-do. Mas a estrutura agraria extrema mente concen-trada permitia que as grandes fazendas continuas-

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sem praticamente auto-suficientes, ou seja, naoconectadas a economia como um todo. Dal 0

diagnostico de uma estrutura agniria feudal oucom restos do feudalismo, enquanto outros nega-vam 0 feudalismo ao ressaltar a sua dependenciado setor exportador. Mas, de qualquer maneira,o diagnostico coincidia no seguinte aspecto:a agricultura, de modo geral, nao viria a se cons-tituir num mercado para 0 setor industrial nas-cente, representando, portanto, um estrangula-mento do processo de industrializacao do pais.

o que vamos procurar mostrar a seguir e quea estrutura agraria continuou concentrada (e atemesmo 0 grau de concentracao aumentou a partirdos anos sessenta), mas houve uma transforma<;a'ointerna - ao n (vel das relacoes de produ<;a'o -que permitiu que a agricultura respondesse asnecessidades da industrializacao. Ou seja, houvesimultaneamente:a) um aumento da oferta de matEwias-primas e

alimentos para 0 mercado interne sem compro-meter 0 setor exportador que ger2va divisaspara 0 processo de industrializacao, via substi-tuicao das importacoes;

b) a agricultura se conectou ao circuito globalda economia nao apenas como compradorade bens de consumo industriais, como tambemhouve 0 que podemos chamar de uma verda-deira "industrializa<;:ao da agricultura", namedida em que esta passou a demandar quanti-

dades crescentes de insumos e maquinas geradaspelo proprio setor industrial.Vejamos inicialmente como se deu a evolucao

da estrutura agraria brasileira nesses ultimos anos.Na primeira meta de dos anos sessenta, que

corresponde ao pedodo da crise economica de1961/67, ha urn aumento praticamente genera-Iizado de todos os tamanhos de propriedade.Mas ainda assim podemos notar que 0 crescimentodas grandes propriedades e maior que 0 das peque-nas, segundo os dados disponlveis do INCRAe do IBGE. Ja no pedodo seguinte, 1967/72,que corresponde ao perlodo de crescimentoe auge do que ficou conhecido como "milagrebrasileiro", aumenta apenas 0 numero de grandespropriedades. As pequenas propriedades perdemterreno, ou seja, sao engolidas pelas grandes, noque se convencionou chamar, a semelhanca dofenomeno biologico onde as grandes bacteriasengolem e digerem as pequenas a sua volta, "pro-cesso de fagocitose". Assim, por exemplo, umausina de acucar, quando adquire urn sftio emsuas proximidades, derruba as cercas e arvoresfrutlferas, casa do morador, etc., convertendotodas as terras em canaviais, de modo que dificil-mente depois de alguns anos se podera identificarqualquer vestfgio da outra unidade de producaoque ali existiu.

No perlodo 1972/76, que coincide com umaforte expansao da fronteira agricola na Amazonia

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Legal (incluindo al parte da Regiao Centro-Oeste),M novamente uma multiplica<;:ao das pequenaspropriedades, embora haja tambem urn cresci-mento ainda maior das grandes, especial menteas ligadas as empresas multinacionais.

A dinamica da recria<;a'o/destrui<;:ao da pequenapropriedade na decada dos sessenta/setenta noBrasil, portanto, e mais ou menos a seguinte:na fase de subida do cicIo economico, as peque-nas propriedades sac engolidas naquelas regioesde maior desenvolvimento capitalista no campoe empurradas para a fronteira, na maioria dasvezes na forma de pequenos posseiros. Na fasede descenso do cicio, as pequenas propriedadesse expandem, e verdade, mesmo em certas regioesde maior desenvolvimento capitalista e/ou deestrutura agraria consolidada. Mas essa expansaoe sempre limitada em termos absolutos e quasenunca significa tambem urn crescimento relativo,pois em termos mais gerais, do pais ou mesmodas regioes, a grande propriedade no Brasil vemcrescendo sempre a taxas superiores as das pe-quenas.

Em resumo, nas epocas favoraveis de expansaoda atividade economica, 0 grande prospera eengole os pequenos a sua volta. Na "crise", aocontrario, 0 grande se retrai. Ou seja, nas epocasdesfavoraveis, a grande propriedade procurareduzir os seus "custos variaveis" e os seus "ris-cos", repassando a responsabilidade pela explo-

ra<;a'o de parte de suas terras para pequenos par-ceiros e arrendatarios.

E importante ressaltar que essa "crise" .deque falamos nao e necesAsar.iamente uma criseno sentido do cicio economlco. Pod~ ser ta_m-bem uma catastrofe climatica (seca, lnunda9ao,etc.), por exemplo, ou uma queda drastic,a depre90s de urn determinado produto agricola,etc. A situa<;:ao e tlpica, por exemplo,. no ~asodas grandes geadas de cafe: no~ anos Imedlat~-mente subsequentes aumenta 0 numero de ~arcel-ros. E que e precise cortar 0 cafezal quelmadoe esperar varios anos para que ele rebrote e voltea produzir. 0 proprietario entao "da a t,erra, ~mparceria", para evitar ter que pagar .os salarlosintegrais, ate que 0 cafe volte a ~roduzlr. 0 traba-Ihador rural cuida do cafezal ate que ele se recu-pere plenamente e em. tro~a disso rece~e _paga-mentos irris6rios em dlnhelro e a perml.ss~o ?eplantar, nas entrelinhas, generos ~e sUbslsten~a,cuja colheita ainda tern que repartlr com 0, patrao.

Ve-se entao c1aramente que, num perlodo deprosperidade da economia agraria, as peque~asexplora90es - especialment~ aquelas ~ue ternformas precarias de acesso a terra - sac ~n.go-lidas pelos grandes estabelecimentos agrope~uarlos,ficando as suas possibilidades de cresclme~tonesses momentos, tambem, praticamente restrltasaos movimentos de expansao da fronteira agri-cola. Foi exatamente isso 0 que aconteceu nas

'----. .1

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decadas de sessenta e setenta na agricultura brasi-leira: um aumento da concentra<;:ao fundiaria,acompa~hado de uma rapida expansao de fronteira

O

agr(cola.Vamos explicar agora 0 que significou essa con-

centra<;:ao fundiaria que acompanha 0 desenvol-vimento do capitalismo na agricultura brasileira,e )J0r que essa concentra<;:ao nao significou umestrangulamento do mercado interno para a indus-tria, senao justa mente 0 contrario.. 0-

A agricultura brasileira depois de 1960 mostrouum claro processo de diferencia<;:ao em tn3s grandesregioes:a) 0 Centro-Sui, onde a agricultura se moderniza

rapidamente pela incorpora<;:ao de insumosindustriais - (fertilizantes e defensivos qufmicosmaquinas e equipamentos agrfcolas, etc.); ,

b) 0 Nordeste, que ap6s a incorpora<;:ao da fronteirado Maranhao (em mead os dos anos sessenta)e, mais recentemente, a da Bahia, permanecesem grandes transforma<;:oes fundamentais noconjunto de sua agropecuaria;

c} a Amazonia, incluindo af boa parte da regiaoCentro-Oeste (Mato Grosso e Goias), que repre-sentou a zona de expansao da fronteira agrfcolaa partir do in(cio dos anos sessenta.Nao se pode hoje, portanto, falar senao abstra-

tament.e numa "agricultura brasileira" de modogeral. E preciso descer a mais detalhes se quisermosenxergar realmente 0 que significa esse processo

de desenvolvimento capitalista na agriculturabrasileira e 0 processo de concentra<;:ao fundiariaa ele associado. Infelizmente nao e possfvel fazerisso aqui.

Mas vale a pena apresentar, ainda que rapida-mente, os dados mais recentes de que se dispoesobre a distribui<;:ao da posse das terras no Brasil.Se ordenarmos os quase 5 milhoes de estabele-cimentos agropecuarios recenseados em 1975do menor para 0 maior Osto e, colocando emordem crescente de tamanho}, podemos estabe-lecer as seguintes conclusoes:a} 50% dos estabelecimentos possufam apenas

2,5% da area recenseada. Ou seja, quase 2,5milhoes de pequenos produtores se espremiamem cerca de 160 milhoes de hectares, cabendoa cada um apenas 3 hectares em media;

b} somente 1% dos grandes estabelecimentosse apropriava de 45% da area total. Ou seja,menos de 50 mil propriedades eram donas dequase 150 milh5es de hectares, sendo que cadauma delas tinha em media uma area de quase3 000 hectares;

c} assim, se juntassemos cerca de 1 000 dos estabe-lecimentos daqueles pequenos produtores, elescaberiam todos dentro de apenas uma dessasimensas fazendas.Lembrando que a terra e 0 item mais impor-

tante do valor venal dos estabelecimentos agrf-colas e tambem que ela e fonte de prestfgio e meio

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de acesso a outras formas de riqueza, a rela<;aoentre as areas possuldas po de ser tomada comouma aproxima<;ao do poder POlitico, economicoe social do grande fazendeiro em rela<;ao aospequenos produtores, no nosso pais.

a gratico seguinte ilustra essa ideia mostrandoa diminuta fatia do bolo que cabe a metade dosagricultores brasileiros, enquanto que uma pequenamll10ria de grandes proprietarios se apossa deimensas areas de terras.

Muitos argumentam que essa concentra<;aoda posse das terras no Brasil nao deve preocuparporque ha ainda muitas terras devolutasa seremincorporadas pela expansao da fronteira agr{cola.De fato, a expansao da fronteira agricola nasultimas decadas foi muito grande, mas isso naomelhorou a distribui<;ao fundiaria do pais. Pe/ocontra rio, recentemente, a presen<;a de grandesempresas multinacionais agravou 0 problema.Entre 1960 e 1970, por exemplo, 0 numerode .estabel~cimentos agropecuarios passou de3,3 milhoes para 4,9 milhoes, e a area que ocu-pavam, de 250 milhoesde hectares para 294milhoes, 0 que significou uma amplia<;ao de 44milhoes de hectares em 10 anos. Em 1975, 0Censo Agropecuario indicava 5 mil hoes de estabe-lecimentos e uma area de 324 milhoes de hectares,o que significou cerca de 30 milhoes de hectares amais em apenas 5 anos, ou seja, um ritmo aindamaior de expansao do que 0 dos anos sessenta.

GrMico 1: Distribuic;:ao dos estabelecimentos agropecuarios noBrasil segundo 0 tamanho (censo de 1975).

1%maiores

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Mas convem notar que 0 numero de estabeleci-mentos s6 aumentou em 100 mil no perlodode 1970/75, contra 1,6 milhoes no perlodo de1960/70. Isso significa que na primeira metadeda decada dos setenta a expansao da fronteiraagricola - ao contnlrio dos anos sessenta - deu-secg.m b.,:se em grandes fazendas, especial mentena Reglao Amazonica. Assim, a expansao recenteda fronteira agricola no paiS, ao inves de melhorar,tem agravado a concentrac;:ao das terras.

Porem, 0 que significou a manutenc;:ao dessepadrao de concentrac;:ao da propriedade da terratao elevado no Brasil, aliado a uma nipida expansaoda fronteira agricola? Significou que milharesde pequenos posseiros, parceiros, arrendatariose mesmo pequenos proprietarios que iam perdendoas terras que possulam nao tiveram nova oportu-n.idade na agricultura. Em outras palavras, quetlveram de se mudar para as cidades em buscade uma nova maneira (nem sempre satisfat6ria)de ganhar a vida.

Em resumo, a manutenc;:ao de um elevadograu de concentrac;:ao da terra no pais funcio-nou como um acelerador do processo de urbani-zac;:ao. Por isso e que, quando analisamos a evo-luc;:ao n~ tempo da forc;:a de trabalho ocupadano Brasil, destaca-se a rapida reduc;:ao relativado numero de famllias ocupadas no setor agricola.Po~ exe~plo: em 1960, a distribui<;:ao da popu-la<;:ao atlva entre agricultura e industria era meio

a meio; em 1970, apenas 40% das famllias ocu-padas no pais dedicavam-se it agricultura. Toman-do-se os valores absolutos, 0 aumento das ativi-dades nao agdcolas fica ainda mais evidente:de 6,7 milhoes de famllias ocupadas, em 1960,passamos a ter 11,2 milhoes em 1970, isto e,quase 0 dobro.

Que importancia tem isso? Ora, essa urbani··za<;:ao da popula<;:ao ativa significou exatamentea amplia£;ao do mercado interno para a industria.o povo da cidade tem que comprar as coisasde que necessita; nao pode produzi-Ias na suapr6pria casa, como muitas vezes ocorria nasfazendas.

Esse processo de urbaniza<;ao significou tambemuma transforma<;ao nas pr6prias atividades agrl-colas. As fazendas nao podiam mais ser auto-sufi-cientes na produ<;ao de alimentos e dedicarem-seapenas it comercializa<;ao dos produtos de expor-tac;:ao. Era preciso produzir para alimentar 0 povodas cidades. Para fazer frente a essa demandacrescente do setor urbano, desenvolveu-se umaproduc;:ao mercantil de alimentos para abastecero consumo interne do pais. Mas a transforma<;ao ..da agricultura brasileira nos anos sessenta naoparou na expansao do setor mercantil de ali-mentos. Na medida em que as propriedades sevoltavam mais e mais para 0 mercado, houvetambem uma transforma<;ao qualitativa internaa elas: houve uma especializa£;ao da produc;:ao.

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Quer dizer, nao eram mais fazendas no sentidogenerico, que produziam tudo, desde 0 arroz,o leite, ate a cana e 0 cafe. Agora eram fazendasde cana, fazendas de cafe, fazendas de leite, fazen-das de arroz, etc.

Mas nao foi tambem uma especiaHzac;:aoapenasde prod Ul;:ao: a propria concepc;:ao da prodUl;:aoagticola se especializou. Antes, as fazendas produ-ziam tudo 0 que era necessario a produc;:ao: osadubos, os animais e ate mesmo alguns instru-mentos de trabalho, bem como a propria alimen-tac;:ao dos seus trabalhadores. Agora, nao: osadubos saD produzidos pela industria de adubos;parte dos animais de trabalho foi substituldapelas maquinas produzidas pela industria demaquinas e equipamentos agrfcolas, etc.

Isso significa que a propria agricultura se especia-lizou, cedendo atividades para novos ramos naoagrfcolas que foram sendo criados. Em outraspalavras, a propria agricultura se industriaHzou,seja como compradora de produtos industriais(principal mente insumos e meios de produc;:ao),seja como produtora de materias-primas paraas atividades industriais.

A moral da estoria e simples: a propria industria-lizac;:ao criou 0 mercado de que necessitava parasua expansao. De um lado, pelo processo simul-taneo de ampliac;:ao da fronteira agricola e deurbanizac;:ao crescente da populac;:ao anterior-mente dedicada as atividades agropecuarias. De

outro lado peias transformac;:6es que provocoUna propria' agricultura, ao transforma-Ia ~ambemnuma "industria", que compra certos msumos(adubos, maquinas) para produzir outros .insumos(materias-primas para as industrias de allmentos,tecidos, etc.).

E importante destacar aqui um aspecto f~nda-mental da economia capitalista, de que nao sederam conta muitos dos que afirmavam quea estrutura agraria seria um obstaculo a industria-lizac;:ao: a ampliac;:ao do mercado nao e ap~na.saumento do consumo de bens finais, mas pnncl-palmente 0 crescimento do consumo de bensintermediarios. .

Para exemplificar, tomemos uma economlaimaginaria que produza apenas .100 paes. Umacoisa e esses paes serem produzldos por campo-neses que plantam eles mes~os 0 trigo, f~ze~a farinha e consomem os paes. Dutra cOisa equando 0 trigo e produzido por uma fazenda,que por sua vez compra adubos qu(micos de umafabrica depois vende 0 trigo aos moinhos, quepor s~a vez compram sacos ,de. algodao, paraembalar a farinha, de outra fabnca, a qual porsua vez compra algodao, para fazer sacoS, deoutra fazenda; a farinha finalmente e ~endidaas padarias que fazem os mesmos 100 pae~, ~uesao agora vendidos aos que trabalham nas fabncase nas fazendas. Evidentemente, no caso do~ campo-neses que produzem 0 que consomem nao eXlste

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mercado algum. Mas a produc;:ao final e a mesmado caso em que os 100 paes sac produzidos parcial-mente por inumeras fazendas e fabricas.

Isso nos leva a conclusao de que quanta maiorfor a circulac;:ao da produc;:ao - ou, visto pelolado da oferta, quanto maior 0 numero de fasesde processamento do produto final - maior eo /mercado numa economia capitalista. 0 valorfinal da produc;:ao - os 100 paes - pode atemesmo, numa situac;:ao hipotetica, continuaro mesmo, porque a ampliac;:ao do mercado sefaz basicamente pelo lade da oferta, a medidaque se especializa a propria atividade produtiva.

Por isso e que nao foi fundamental para aampliac;:ao do mercado para a industria brasileirao aumento do poder aquisitivo das "massas rurais"pois essa ampliac;:ao nao depende eXclusivament~(nem principal mente) do poder aquisitivo dapopulac;:ao. Ao contrario, a ampliac;:ao do mercadointerno para a industrializac;:ao brasileira se fezcomo em todo 0 mundo capitalista, pela proleta:ri~a~o dos camponeses: atraves da sua ex pro-pnac;:ao como produtores independentes, conver-tendo-os em miseraveis "boias-frias".

Evidentemente nao estamos querendo dizerque essa ampliac;:ao do mercado interno tivesseque ser necessariamente feita dessa maneira.Ou que nao fosse posslvel ter side tambem conse-guida de outra maneira, como, por exemplo,por uma reforma agraria no campo e um aumento

dos salarios reais dos trabalhadores. A explicac;:aopara 0 fato de nao termos trilhado uma. outravia - democratica talvez - de desenvolvlmentodo 'capitalismo no pais deve ser buscada nao nasquestoes economicas, mas sim nos interess~s epoder dos grupos socia is envolvidos nesse processo.Em outras palavras, a escolha deste ou daquel?caminho foi uma questao eminentemente poll-tica. E enquanto tal so pode ser desvendada aluz dos conflitos que permearam a historia recenteda sociedade brasileira, 0 que escapa ao ambitodeste trabalho.

Finalmente, vale a pena ressaltar que 0 desenvol-vimento do capitalismo, em particular no campo,e um caminho sempre cheio de contradic;:oes, enao havia de ser diferente no caso brasileiro. Pelocontrario as contradic;:oes aqui foram acentuadastanto p~lo carater extremamente desigual dodesenvolvimento das varias regioes do pais, comopela presenc;:a marcante ?O Estado nesse processo.

A quesUio agraria nos anos setenta

Ja vimos anteriormente que determinadasmaneiras de resolver a questao agricola podemacabar agravando os problemas que dizem respeitoa questao agraria. E que ~sso f?i. ex~tamen.teo que aconteceu no nosso pais: a rapld~ mdustna-lizac;:ao da agricultura brasileira a partir dos anos

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sessenta agravou ainda mais a miseria de expressi-vos contingentes da nossa populac;:ao.

Mas ainda nao especificamos as mudanc;:asrecentes ocorridas na agricultura brasileira, nemexplicamos por que elas implicaram num agrava-mento da questao agraria. Para isso selecionamostn3s grandes modifica<;:oes ocorridas na ultimadecada e que, em nossa opiniao, tenderao a marcarprofunda mente 0 comportamento da agriculturabrasileira no futuro proximo:a) 0 "fechamento" de nossas fronteiras agrarias,

envolvendo as questoes de coloniza<;:ao da Ama-zonia e da participac;:ao da grande empresa pecua·ria deslocando a pequena produc;:ao agrIcola;

b) 0 processo acelerado de modernizac;:ao daagricultura no Centro-SuI do pais;

c) a crescente presenc;:a do capitalismo mono-polista no campo, ou seja, de grandes empresasindustriais que passaram a atuar tanto direta-mente na produ<;:ao agropecuaria propriamentedita, como fortaleceram sua presen<;:ano setorda comercializa<;:ao e de fornecimento de insu-mos para a agricultura.Vamos detalhar as consequencias de cada uma

dessas transforma<;:oes, para em seguida tentaruma analise das suas principais interdependencias.5

a) 0 ufechamento" da fronteira agricola

a padrao de crescimento da nossa agricultura

supos sempre uma variavel fundamental: a incorpo-ra<;:§ode novas areas a produc;:ao, ou seja, a exis-ten cia de uma fronteira agrIcola em expansao.

A fronteira nao e necessariamente uma regiaodistante, vazia no aspecto demogrMico. Ela efronteira do ponto de vista do capital, entendidocomo relac;:ao social de produ<;:§o. Nao se devepensar, pois, que a fronteira e algo externo ao"modelo agricola" brasileiro, se e que podemosnos expressar assim. Ao contnirio, a fronteirae simultaneamente condicionante e resultadodo processo de desenvolvimento da agriculturabrasileira. Vale dizer, a existencia de "terras-sem--dono" na fronteira funciona como um reguladorda intensificac;:ao de capital no campo, condicio-nando assim 0 seu desenvolvimento extensi-vo/intensivo. Em sentido contrario, 0 custo daintensifica<;:ao de capital na agricultura determinao ritmo de incorpora<;:§o produtiva das terrasna fronteira.

A expansao da fronteira vinha desempenhandopelo menos tres func;:oes basicas no "modeloagrIcola" brasileiro.

A primeira, no plano economico, e que a fron-teira era um "armazem" de generos alimentlciosbasicos, especialmente arroz e feijao. Quandoa produ<;:§o capitalista recuava por algum problema(seja de pre<;:o,seja de alterac;:ao climatica), haviaum suprimento do mercado nacional atravesdo escoamento dos "excedentes" da pequena

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produ<;:.3o camponesa, funcionando como estabi-lizador dos prel;:os. Quando, entretanto, a fronteirase "fecha", esse efeito de amortecimento tem queser buscado na importal;:ao de produtos agrlcolase no tabelamento dos prel;:os.

A segunda, dirfamos no plano social, e quea fronteira representava uma oriental;:ao dos fluxosmigratorios. Ela era 0 "locus" da recrial;:ao dape~ena produl;:ao, ou seja, 0 destino das fam(ljascamponesas expropriadas e dos excedentes popula-cionais. Quando a fronteira se "fecha", passaa haver urna multiplical;:ao de pequenos fluxosmigratorios e um grande contingente populacionalpassa a perambular desordenadamente por todoopals.

A terceira funl;:ao, vamos dizer no plano pol(-tico, e que a fronteira era a "va Ivula de escape"de tensoes sociais no campo. Os projetos de coloni-zal;:ao no Brasil sempre foram pensados politica-mente como alternativas a uma reforma agrariaque mudasse a estrutura de propriedade da terranas regioes Nordeste e Centro-SuI. Na medidaem que se agUl;:avam tensoes socia is, conflitospotenciais, pressoes pol fticas e economicas, afronteira aparecia como 0 "novo Eldorado"para os pequenos produtores. E hoje 0 que se vee que a propria fronteira esta se tornando umaregiao de conflitos socia is pela posse da terra.

Quando dizemos que a fronteira esta se fechan-do rapidamente, nao estamos pensando no con-

ceito c1assico de que nao ha mais terras para seremincorporadas ao processo de produ<;:.3o. 0 "fecha-mento" nao tem 0 sentido de utiliza<;:.3o produtivado solo, mas sim de que nao ha mais espac;:osque possam ser ocupados por pequenos produtoresde subsistencia (sao esses espal;:Os que estamoschamando de "terras-sem-dono").

Na Amazonia, 0 "fechamento" nao se da poruma ocupac;:ao no sentido c1assico de expansaodas areas exploradas a partir de regioes maisantigas, onde a produl;:ao capitalista substituia produl;:ao de subsistencia, como se deu no Su-doeste do Parana e no Sui de Mato Grosso. E,pelo contrario, um "fechamento de fora paradentro", onde a importancia da terra como meiode produc;:ao passa a um plano secundario, frenteas funl;:oes de "reserva de valor" contra a corrosaoinflacionaria da moeda e de meio de acesso aoutras formas de riqueza a ela associadas, comoas madeiras de lei, os minerios, 0 acesso ao creditofarto e barato e aos beneflcios fiscais.

Em termos de seus reflexos para 0 futuro,dado que as terras da Amazonia foram apropriadasfundamentalmente como "reserva de valor",coloca-se a questao de como realizar esse valor;ou seja, como converter nova mente a mercadoriaterra em dinheiro, ou entao como ocupa-Ia produti-vamente de modo a obter um rendimento a partirda atividade agropecuaria.

E preciso nao esquecer que a terra funcionou

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tambem na Amazonia como "contrapartida"dos incentivos fiscais, num jogo contabil ondeo imovel foi supervalorizado, de modo a obt'er,praticamente, "doa<;oes financeiras" do governopara projetos cuja grande maioria mlo passa aindahoje de verdadeiras "vitrines", embora ja tenhaconsumido a maior parte dos vultosos recursospr-evistos.

Assim, ou 0 governo mantem a atual polfticade incentivos fiscais, ou uma fra<;ao insignificantedesses projetos tera condi<;oes de chegar a bomtermo. Por isso, existe atualmente uma tend€mciaa se "reavaliar" esses projetos, numa opera<;aoem que os empresarios ficariam com as "vitrines"que constru fram com os incentivos fiscais e desti-nariam as areas restantes para projetos de colo-niza<;ao.

Assim, poderiam realizar 0 pre<;o da terra,numa conjuntura onde a valoriza<;ao da mesmaparece estar perdendo 0 fmpeto inicial, alemdo que assegurariam mao-de-obra barata dospequenos proprietarios vizinhos e melhoramentosde infra-estrutura. Evidentemente, sera precisoque 0 governo entre para "bancar" 0 negocio,isto e, financie os investimentos de infra-estruturanecessarios. Isso pode ser muito atraente quandose procuram novos projetos-impacto que permitamcaptar dividendos pol fticos e sociais, como sepensava inicialmente lograr com a abertura daTransamazonica.

b) A modernizar;:iio do Centro-SuI

E fate inegavel que a moderniza<;ao da agricul-tura, em especial a do Centro-Sui do pafs, se ace-lerou nos ultimos anos. Mas e precise destacarque esse processo nao e completo, caracterizandoo que se poderia chamar de uma modernizar;:iioparcial da agricultura, num duplo sentido.

De um lado, porque essa moderniza<;ao serestringe a alguns produtos e regioes. Nao e neces-sario repetir que em fun<;ao disso 0 cafe, a cana--de-a<;ucar, a soja, 0 trigo, etc., sac chamadosde "culturas de rico", ficando 0 feijao, 0 leite,a fava, grande parte do arroz e do milho conhe-cidos como "culturas de pobre". Tampoucoe necessario enfatizar que 0 Centro-Su I do pa ISnao e somente a regiao que concentra a produ<;aoindustrial, mas tambem a produ<;ao agricolado pais. Sao Paulo, por exemplo, conhecidopor seu parque industrial, e tambem urn dosestados mais importantes na produ<;ao agricolado pais.

a outro sentido em que se poderia chamara moderniza<;ao da agricultura brasileira de parciale que, mesmo em rela<;ao aos produtos e areasespecfficas em que se faz presente, ela atingiuapenas algumas fases do cicio produtivo. Porexemplo, as culturas tropicais como a cana, cafe,cacau e borracha nao tem a sua colheita mecani-zada, seja por razoes tecnicas em alguns casos

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e economicas em outros.A moderniza~ao parcial da agricultura, em

especial do Centro-Sui do pal's, traz pelo menostres grandes reflexos para seu desempenho nofuturo.

a primeiro e que as disparidades regionaisse acentuaram, nao apenas entre as tres macro--regloes do pal's - Nordeste, Norte e Centro-Sui -mas tambem dentro dessas regioes. Diga-se depassagem, por exemplo, como ilustra~ao das dispa-ridades entre as regioes, que 0 Centro-Sui absorvehoje mais de 80% das maquinas e equipamentosagr(colas e dos fertilizantes e defensivos, partici-pa~ao essa que vem tendendo a crescer com aincorpora~ao das areas de cerrados do planaltocentral. Crescem tambem as disparidades dentrodas regioes, por dois importantes fenomenos:a) a especializa~ao de algumas areas, que se trans-

formam em monocultoras em fun~ao de econo-mias externas (transporte, armazenamento, pro-cessamento do produto, etc.);

b) 0 fato de 0 progresso tecnico nao se difundirno ritmo que esperavam aqueles que admitiama falsa hip6tese de um mercado de concorrenciaperfeita no campo, nem muito menos de esseprogresso eliminar os menos eficientes, ou seja,aqueles que estivessem fora do "tamanhoMimo", conceito tambem falso, porque sebaseia numa transposi~ao de uma pretensaeconomia interna de escala que certamente

existe na industria, mas nao no atual estagiode desenvolvimento da agricultura brasileira(as evidencias emp(ricas indicam que a cana--de-a~ucar constitui-se na honrosa exce~aoque apenas confirma a regra).a segundo reflexo importante dessa modern i-

za~ao parcial e 0 crescimento da sazonalidade6 dotrabalho agr(cola. Isso porque a modernizacaonao atingiu todas as fases do cicio produti~o,especial mente a fase da colheita, que e uma dasmais exigentes em termos de mao-de-obra, etambem porque 0 progresso tecnico se incrustouem determinadas areas de monoculturas espec(-ficas, refor9ando as oscila~oes sazonais pr6priasdo calendario agr(cola. Isso nao s6 acelerou violen-tamente 0 exodo rural, como tambem transformouas rela~oes de trabalho nessas areas.

Assim, em algumas regioes do pal's, em certasepocas do ana ha uma escassez temporaria demao-de-obra, enquanto que em outras epocas,naquelas mesmas regioes, hci acentuados (ndicesde subemprego e de desemprego aberto. Emoutros termos, a moderniza~ao parcial da agricul-tura tem significado nao apenas uma menor expan-sao (ou ate mesmo uma reduc;ao) dos n(veis deemprego, mas sobretudo um grande aumento dotrabalho temporario no setor agr(cola. Ressalte-seque esse aumento do trabalho temporario, repre-sentado pelo aumento (pelo menos relativo)do contingente dos assalariados temporarios

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Griifico 2: Esquema ilustrativo da Varia;:ao das Exigencias deMao-de-Obra par unidade de area segundo as fases do ano agrfcolana agricultura moderna e tradicional.

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A linha tracejada reflete u ma maior sazonalidade do trabalho ruralna agricultura moderna, tanto pelo fate de ter reduzido a mao-de--obra necessaria nas atividades do plantio e dos tratos cu Itu rais eaumentado na colheita, como por ter introduzido a descontinui-dade da ocupac;:ao durante 0 ano agrfcola, devido a que a mesmaatividade pode ser realizada em menor tempo.

conhecidos como volantes, ou b6ias-frias, temsignificado uma redu<;:ao no seu n Ivel de rendafamiliar, dado que geralmente encontram trabalhoem apenas metade dos dias uteis do ano. Issovem obrigar a incorpora<;:ao crescente de mulhe-res e crian<;:as em idade escolar, especial mentepor ocasiao das atividades da colheita, segundo

se pode demonstrar a partir dos dados do CensoAgropecuario de 1975, na tentativa de mantero nlvel de renda familiar.

Como um aparente paradoxo, com a quedado nlvel de vida desse contingente cada vez maisnumeroso de assalariados temporarios, os salariosrurais continuam crescendo como forma de garan-tir a oferta necessaria de mao-de-obra nos momen-tos de pico. Deve-se recordar que e exatamenteesse crescimento dos salarios reais, aliado a escasseztemporaria de mao-de-obra que amea<;:a 0 cicioprodutivo no momenta crucial da colheita, querepresentam os incentivos necessarios para amecaniza<;:a-o dessa atividade. E que, se isso ocor-rer, passaremos de um problema de subempregodos volantes para 0 de desemprego aberto, amenos que os outros setores da economia possamabsorver esses contingentes de mao-de-obra libe-rados do campo. Em outras pala\tras, caso a moder-niza<;:ao da agricultura brasileira se completeao n Ivel dos ciclos produtivos das nossas princi-pais culturas tropicais - tendencias que vemse delineando para curto prazo - s6 teremosagravados os Indices de pobreza dos trabalhadoresrurais. E oportuno relembrar aqui que a "culpa"nao deve ser atribulda a mecaniza<;:a-oem si, comoquerem alguns; seria muito bom que os volantestrabalhassem meta de dos dias do ano, se ganhassemo suficiente para viver os outros dias sem trabalhar.

o terceiro grande reflexo dessa moderniza<;:a-o

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parcial da agricultura diz respeito ao que se poderiachamar de uma tendencia a unifica((ao do mercadode mao-de-obra nao qualificada nas regioes deagricultura mais desenvolvida. Essa tendenciapode ser traduzida no fato de os salarios ruraispassarem a acompanhar as varia((oes dos salariosur!?anos, especialmente da mao-de-obra empre-gada na constru<;:ao civil e nas demais atividadesurbanas que exigem pouca qualifica<;:ao. Essaunifica<;:a-o, se de um lado permite evitar umcrescimento maior dos salarios nos momentosde pica de demanda de mao-de-obra por partedas atividades agrlcolas, de outro lado representauma dificuldade crescente para a a((ao do Estadono sentido de minorar 0 subemprego. Por exemplo,grandes obras de constru<;:a-o civil, ou ainda umapolltica de descentraliza((ao industrial nessasregioes de agricultura parcial mente moderni-zada, s6 viriam a agravar a competi<;:ao por mao--de-obra em algumas epocas do ano. a mesmoocorreria em rela<;:ao a urna polltica que incenti-vasse 0 processamento local da produ((ao agricola,dado que as agroindustrias tambem tern umademanda sazonal de for((a de trabalho, com 0

pico na mesma epoca das colheitas, 0 que viriaa agravar ainda mais a escassez sazonal de mao--de-obra nessas regioes.

E nunca e demais repetir que e exatamenteessa escassez temporaria que representa para osempresarios um eStimulo adicional a procura

de novas formas de poupar mao-de-obra, 0 quetenderia a gerar ainda menores n Iveis de empregono setor agricola como um todo. E num paiscomo 0 nosso, onde a industria e altamente oligo-polizada e com sofisticados padroes tecnol6gicosdeterminados em fun<;:a-o das necessidades de eco-nomias mais desenvolvidas, a agricultura precisareter mao-de-obra, criar empregos, ao contrariodo que se propaga nas suas chamadas "fun<;:oesc1assicas", que valiam para a epoca do nascimentodo capitalismo concorrencial.

Nesse sentido, e importante salientar que amoderniza<;:ao, ainda que parcial, da agriculturabrasileira s6 tern sido posslvel gra<;:asa fundamentala<;:ao do Estado, subsidiando a aquisi<;:ao de insu-mos, maquinas e equipamentos poupadores demao-de-obra. Enquanto esses produtos chegama ser incentivados com altas taxas de juros reaisnegativas (em alguns casos superiores a 25% a.a.),os salarios carregam sobre si um onus adicional depelo menos 30% para 0 empregador. E, comoainda assim se mostram competitivos, isso nadamais demonstra do que os baixos nlveis de remune-ra<;:ao a que estao submetidos os trabalhadoresrurais brasileiros.

c) A crescente presem;a do capital monopolistano campo

A terceira importante modifica<;:ao na agricul-

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tura brasileira, e que tende a refletir profunda-mente sobre 0 seu comportamento no futuropr6ximo, e a crescente presenc;:a dos grandescapitais no campo. Essa presenl;a aumentou tantodo ponto de vista de sua participa~o na produl;aoagropecuaria propriamente dita, como tambemdo ponto de vista da sua participal;ao controlandoo processamento dos produtos agricolas e a vendados insumos adquiridos pelos agricultores.

Em relal;ao a presenl;a do grande capital naprodu~o agropecuaria, ja comentamos algunsdos seus aspectos quando tratamos do "fecha-mento" da fronteira agricola. Muitos poderiampensar, entretanto, que a grande empresa agrope-cuaria tern a sua expansao restrita a essas regioesde fronteira. Ledo engano: os dados mais recentesrevelam urn crescimento generalizado no graude concentra~o fundiaria no pais. Por exemplo,entre 1970 e 1975, 0 indice de GinF de concen-tral;ao da posse da terra no Brasil, calculadoa partir dos dados censitarios, se elevou de 0,840para 0,855, que e urn acrescimo significativopara urn curto periodo de 5 anos, ainda mais setendo em vista que vinha se mantendo estavelpelas tres ultimas decadas. A concentra~o dapropriedade da terra tambem se acentuou, a julgarpelos dados do cadastro do INCRA, no periodode 1972/76, tendo 0 indice de Gini aumentadode 0,837 para 0,849, considerado urn dos niveismais altos do mundo.

Esse aumento do grau de concentra~o fun-diaria, seja da posse, seja da propriedade da terra,deveu-se em parte a pol ftica de ocupal;ao dafronteira amazonica atraves das grandes empre-sas pecuarias, deslocando a pequena produ~oagricola, como ja dissemos anteriormente. Partesignificativa, contudo, deveu-se a expansao dasgrandes propriedades na regiao Centro-Sui, emespecial nos Estados de Goias, Sao Paulo, Paranae Rio Grande do Sui, vale dizer, nos estados deagricultura mais modernizada. Esse processode modernizacao do Centro-Sui resultou na ex pro-prial;a'o de pequenos produtores, em particulardaqueles que detinham formas precarias de acessoa terra, como os posseiros, parceiros e pequenosarrendatarios.

Vale a pena enfatizar que esse aumento do graude concentral;ao fundiaria se deu em inumeroscasos pela utilizal;ao da terra nao como meiode produ~o, mas fundamental mente como reservade valor e meio de acesso ao credito rural e aosincentivos fiscais, ou, simplesmente, como especu-lal;ao imobiliaria.

Mas deixemos de lade esses aspectos para nosdedicarmos urn pouco a questao da crescentedominal;ao do grande capital no campo a jusantee a montante do produtor rural, isto e, na vendados insumos e na compra da produl;a'o agrope-cuaria.! : '/

Podemos dizer que a renda do produtor rural,

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especial mente do pequeno, nas regioes de agricul-tura mais desenvolvida, encontra-se duplamenteprensada. De um lado, pela compra de insumosagrlcolas num mercado oligopolista, isto e, ondeexistem alguns poucos grandes vended ores quecontrolam os prel;os de venda, os quais vao seros custos do agricultor. Do outro lado, pela vendade '--sua produl;fio em mercados que podemos

Ichamar de monopsonicos ou quando muitooligopsonicos, ou seja, onde ha relativamentepoucos compradores e/ou em que hci uma ten-

.dencia ao fortalecimento de apenas um grandecomprador.

Essa articulal;ao entre vendedores de insumos,pequenos produtores e grandes compradores dosprodutos agrlcolas ocorre sob as mais variadasformas. Por vezes e 0 caso das redes de super-mercados que passam a comprar diretamentedos pror:Jutores ou das cooperativas, que desempe-nham tambem af 0 papel de vendedoras deinsumos, como acontece nos hortifrutigranjeirosem geral. Outras vezes e 0 casu das agroindustriasque estabelecem contratos diretamente com ospequenos produtores, como e 0 caso do tomate,do fumo e de outras atividades de alto risco eque saD bastante exigentes em termos de mao-de--obra por ocasiao dos tratos culturais. Em outrosainda, 0 pequeno produtor se ve preso em sistemasde comercializal;ao que foram teoricamente criadospara favorece-Io e se converteram numa formula

o que e Questiio AgrdriaI

mais eficiente de espolia-Io, como e 0 casu dosCEASAs (que acabaram fortalecendo os grandesintermediarios) e das cooperativas (que acabaramrepresentando apenas interesses proprios oude uma mi noria de grandes cooperados).

.. Essa articulal;ao entre 0 grande capital industrial

. e/ou comercial e a pequena produl;fio modificafundamentalmente 0 papel que ate entao estadesempenhava na agricultura brasileira. De um,Iado, esses pequenos produtores deixam de ser

('produtores de subsistencia, no sentido d~ oferta-, rem 0 lexcedente",8 e passam a produzlr funda-. mentalme'nte "'parao mercado. E agora, como

pequenos produtores mercantis, nao se liga.mnecessariamente a produl;fio de generos de subsls-tencia, dedicando-se muitas vezes tambem aschamadas "culturas de rico". De outro lado,porem, se devemos concordar que el~s. se tecni-ficam, dificilmente poderlamos admltlr que apequena produl;§o esteja sofrendo um proc:ssogeral de diferencial;ao, de modo a converte-Iosem pequenos capitalistas do "tipo farmer" (p~re-ce-me ser 0 casu de uma tecnifical;ao sem caplta-lizacao, entendendo que a capitalizal;fio implicanu~ processo dediferencial;ao social e economical.

Essa tecnifical;fio ocorre na maioria das vezespor imposil;ao do grande capitalista com~rador,que exige uma padronizal;ao da produl;ao, oupor neceSsidades inerentes ao proprio t~po decultivo. Nao se deve esquecer que as vanedades

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selecionadas que existem para a grande maioriadas "culturas de rico" s6 SaDaltamente produtivasquando acompanhadas de um verdadeiro "pacotetecnoI6gico". Tampouco se deve esquecer queesse pacote e uma imposic;:ao do grande capitalindustrial que produz os chamados insumos mo-dernos para a agricultura. 0 fundamental al naoe o.-'aumento da produ¢o em si, mas sim que ospequenos agricultores passem a desempenharum novo papel, 0 de compradores de insumos

l industria is, mesmo que isso se reflita numa ele-(" vac;:aodos seus custos.

E importante entender que foi esse processoI -de tecnffica¢o da pequena produc;:ao que repre-

sentou uma completa modificac;:ao na sua estru-tura de custos. Antes, 0 pequeno produtor desubsistencia utilizava-se quase que exclusivamenteda terra e da mao-de-obra familiar nao remune-

'rada para produzir seus "excedentes". Agora,entretanto, 0 pequeno produtor mercantil temcustos monetarios elevados, devido aos insumosmodernos que necessita utilizar. Ele nao podemais vender a sua produc;:ao "a qualquer prec;:o",como na economia do "excedente", pois ternagora um custo mlnimo a cobrir. Em outraspalavras, 0 fato de a agricultura se transformarnuma crescente consumidora de insumos indus-triais tern implicado um crescimento mais rapidodos prec;:os dos produtos agrlcolas, sem quenecessariamente 0 produtor se beneficie desses

acrescimos.Mesmo onde a pequena produ¢o nao se tecni-

ficou, como ainda e 0 caso dos generos alimen".t1cios basicos, 0 fortaleci,mento dos oligopsonicos. ,~:'mercantis tem-se refletido num encarecirTie-ntoda alimentac;:ao basica ao nlvel do consumidorurbano, especial mente de baixa renda, alem deatribuir a agricultura um componente inflacionariosignificativo.

A expropriac;:ao crescente da pequena produc;:aono Centro-Sui do paiS, aliada a dificuldade de

o [echam ento da [ronteira amazonico. Na toto mtiquinas doProjeto Jan, responsdvel pela oeupariio de grande parte dotemt6no amazonico.

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sua recria<;:ao na fronteira "fechada", tem impli-cado numa redu<;:ao gradativa da sua importanciacomo produtora de alimentos para trabalhadoresbrasileiros em geral. Por outro lade, essa redUl;:aoobrigou 0 grande capital industrial do setor deprocessamento de alimentos a satisfazer umaparcela crescente da cesta de consumo desses

",trabalhadores, que acabaram por substituir ahradicional combina<;:ao toucinho, arroz e feijaopor oleo vegetal, macarrao e farinhas.

Mas, se a pequena produ<;:ao perde importanciacomo ofertante de generos alimentlcios, paralela-mente ela ganha destaque como reservatoriode bra<;:os para as atividades capitalistas. Para

.\. f~!Zer frente it dupla compressao na sua renda -'\tanto pelo lade da compra de insumos, comot pelo da venda de suas mercadorias -, 0 pequeno

produtor e os membros de sLJa familia tem quese assalariar temporariamente nas grandes proprie-dades vizinhas, 0 que se torna compatlvel comos momentos de pico de demanda de mao-de--obra acentuados pela moderniza<;:ao parcial daagricultura, especialrnente no Centro-SuI. E esseum dos mecanismos responsaveis pelo aumentoda rotatividade da popula<;:ao rural em todo 0 pais.

E importante destacar que essa mesma moderni-i za<;:ao do Centro-Sui e tambem responsavel pela-~bnstitui<;:ao de um novo fluxo migratoria, a partirdessa regiao, em dire<;:ao a Rondonia, Acre e,mais rec~ntemente, Amazonas e Roraima. Ora,I .

na medida em que esses ultimos se esgotam, osfluxos migratorios que se dirigirem para a "fron-teira fechada" tendenlo a ser "rebatidos" paraas grandes metropoles do Centro-Sui, agravandoo caos em que se encontram, ou for<;:arao uma /rapida urbaniza<;:ao da propria regiao Norte. ojrisco de uma "urbaniza<;:ao precoce" nessa regiaotorna-se bastante real na medida em que para lacontinuam a se dirigir grandes levas de popula<;:ao "-que ja nao tem acesso it terra. Surgem, entao,verdadeiras cidades no meio da selva, como se,-costuma dizer, obrigando 0 Poder Publico a correr'atras desses fluxos migratorios, para garantiras condi<;:oes mlnimas it sua sobrevivencia urbana.

o fechamento da fronteira amazonica deverarecolocar a questao da ocupa<;:ao efetiva da "fron-teira interna" da regiao Centro-SuI. E sabido ',,-:que cerca de um ter<;:o da area total das proprie-dades agrlcolas dessa regiao nao e efetivamente "

\

explorada. E mais: uma fra<;:ao significativa daarea explorada com pecuaria refere-se a pastos _naturais, especial mente nas zonas de campos C:

de cerrados, com baixissima lota<;:§o por unidade .de area. Parece evidente que, entre ocupar produti- c~

vamente a Amazonia e os cerrados do planaltoi""central, esta ultima op<;:ao devera prevalecer. '

Isto porque tem a seu favor uma renda diferencial..,,de localiza<;:ao, uma infra-estrutura de transportes,alem de ter solos mais favoraveis it mecaniza<;:ao, "de facil desmatamento e possivelmente de fertili-

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dade igual ou superior it media da reglao Ama-zonica. Assim, 0 fechamento da fronteira amazo-

"nica, juntamente com a ocupa9ao da "fronteira, ~ interna" do planalto central, levarcIo a uma moder-'

niza9ao ainda maior da agricultura do Centro-SuI.Como ja dissemos anteriormente, a nao existen-

"Cia de Ifterras livres" obriga a que a agriculturase/ capitalize para responder ao crescimento da

, demanda de alimentose materias-primas. E essacapitaliza9ao sera mais intensa nas terras queapresentarem ma iores rendas diferenciajs, sejapela localiza9ao, seja pela fertilidade. E como,'se 0 capital tivesse que criar mais terras: 0 caminhoposslvel sera 0 aumento da produtividade porhectare atraves das tecnologias Hsicas, qu Imicase biol6gicas, ou seja, fertilizantes, sementes melho-radas, novas praticas agrlcolas, etc.

E posslvel, entao, que a difusao das inova<;:oesbiol6gicas se dinamize e tenda a acompanharainda mais de perto as inova<;:oes mecanicas.Neste caso, a produtividade do trabalho nas gran-des propriedades tendera a crescer simultanea~mente it produtividade da terra nos pequenosestabelecimentos, milagre que os agronomos e"os poetas acreditam ser a reden9c3'o dos agricul-

i tores brasileiros. Mas certamente esses aumentosi de produtividade virao acompanhados de uma\ presen9a cad a vez maior de capitais monopo-;\ listas controlando tanto a venda dos insumos,\basicos como a comercializa<;:ao e 0 processamento

dos produtos agrlcolas. E sera sUbm;ti.do a esseestreito controle oligopolista-monopsonicO que 0

i pequeno agricultor tera que organiz~r 0 seu or9a-mento, incorporando cada vez mals, 0 .trabalhodos membros da familia, tanto na propna produ-9ao, como na forma de trabalho assalariado alu-gado temporariamente. If "

Parece-nos evidente, portanto, qu,~ a velhaA

agricultura, entendida como um setor auto-nomo" tende gradativamente a desaparecer.A agri~ultura do futuro, tal como)a se esboc;:ahoje em algumas regioes do paiS, sera apenas m~l.sum ramo da industria, com pequenas especlfl-cidades ligadas ao papel desempenhado pela!terra como meio de produ9ao. De um lado" rece-.,bera materias-primas de certas industrias,como (\as de adubos, de defensivos, de maquinas, de \sementes e mudas selecionadas; de outro, forne-cera insumos a outras industrias, como as detecidos alimentos processados, cal~dos, etc.A I en~ao a produ9ao agropecuaria deixara deser uma esperan9a ao sabor das for<;:as da Natu-reza, para ser uma certeza sob ? .comando ~oCapital. Ou seja, se faltar chuva, ,lrrI~a-Se; se naohouver solos suficientemente fertels, aduba-se;se ocorrerem pragas e doen9as, responde-se comdefensivos ou tecnicas biol6gicas; e, se houveramea9as de inunda9ao, estarao previstas formasde drenagem.

Mas esse e um fango caminho a ser percorrido

Page 33: O que é questão agrária [José Graziano da Silva, 1980]

a partir do marco que temos hoje na agriculturabrasileira. 0 importante e que, da mesma maneiracomo 0 capital tentara encontrar suas propriasformas de superar os obstaculos nesse caminho,a resoluc;:ao dos problemas da popula<;:ao ruraltera que ser buscada por ela mesma, na medida

o em que se organizar e defender os seus propriosI (interesses. E, para ajudar a remover as pedras

ldesse caminho, precisamos reconhecer hoje a

,(' necessidade de autonomia e Iiberdade da estrutura) -' sindical, para que os trabalhadores possam falar" \ '(: \ por eles mesmos.

'\ I Finalmente, e precise ressaltar que da mesmamaneira que nao estamos diante de nenhumimpasse, tampouco estamos diante de nenhum

( milagre agricola, nem ha nenhuma soluc;:ao tecno-(~!.~cratica para a miseria dos pequenos produtores

\"'e trabalhadores rurais."\\ A importancia do momenta em que vivemos

reside em que tentamos superar uma fase de crise.b crescimento das economias capitalistas e cfclico.e as crises fazem parte dele. Elas representam

(' 0 momenta politico em que se renegocia 0 pactade poder e 0 momenta econ6mico em que sepreparam os mecanismos que ativarao a proximaetapa de expansao. Como explica Schumpeter,

/. um grande estudioso do problema, as crises desem-<~~~~ penham no sistema capitalista 0 mesmo papel

'- dos freios nos automoveis. E, por paradoxalque possa parecer, quanto melhores forem os

freios, mais rapidamente poderao correr osautomoveis sem que a sua seguranc;:a fique com-prometida.

•••• ••

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OSTRABALHADORESDAAGRICUL TURA BRASILEIRA ESUA ORGANIZA<:;AO SINDICAL

Ido imbricament0 que existe entre os diferentesgrupos sociais engajados diretamente nas ativi-dades produtivas. S6 para exemplificar, grandeparte dos trabalhadores que se assalariam tempora-ria mente sac tambem pequenos produtores de. "mercadorias, vivenciando uma dupla referencia ide "operarios e camponeses".

Como se isso nao basta sse para complicaros esquemas tradicionais, podemos acrescentaroutra dupla referencia igualmente contradit6ria,a de "empregados e empregadores". Apenas atitulo de ilustrac;:ao, de acordo com 0 Recadas-tramento do INCRA de 1972, os minifundistassac responsaveis pela contratac;:ao de mais de 40%da forc;:a de trabalho temporaria ocupada naagricultura brasileira. Ou seja, aqueles mesmospequenos produtores que sac obrigados a se assa-lariarem temporariamente em certas epocas doano, visto ser imposslvel garantirem sua sobrevi-vencia apenas com os precarios meios de produc;:aoque possuem, constituem urn dos grupos quemaisempregam assalariados na epoca de picode atividades do im6vel, geralmente a colheita.E e preciso enfatizar que 0 trabalho temporariose generalizou de tal forma na agricultura brasi-leira que se torna diflcil encontrar uma proprie-dade, seja ela "camponesa", seja uma grandeempresa comercial, que pelo menos na epocada colheita nao contrate mao-de-obra de fora .

Essa complexidade das relac;:oes de produc;:ao

Os distintos gruposde trabalhadores rurais

[' (. / "

, ( A complexidade das relac;:oes qe produc;:ao( I r('\\na agricultura brasileira e enormel/Ela advem,

"I Ide um lado, da multiplicidade de formas sob as'quais se organiza 0 trabalho no campo, sob 0

comando do capita 1.\ Por exemplo, desde a produ-c;:ao que tem por base a unidade familiar, organi-zada de uma maneira "artesanal", ate a grande

, empresa que se assenta no trabalho assalariado,organizada de um modo semelhante a uma grandemanufatura ou ate mesrno, em alguns casos particu-

/1 lares, a uma grande industria maquinizada.. ! \ De outro lado, essa complexidade decorre

,/

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na agricultura brasileira ja torna em si muitodiflcil - e muito discutlvel - qualquer analiseagregada das rela90es de trabalho no campo.

(Como se nao bastasse isso, ainda temos que,agregar a precariedade dos dados disponfveis

-/ ,",do IBGE e do INCRA, tanto pelo fate de nao(se >lispor de determinadas informa90es, comoipelas diferenc;as de criterios nas formas de apre-lsentac;ao e de coleta das diversas fontes e ate nasl:diferentes publicac;oes de uma mesma fonte.

r, Gostarfamos de deixar expl fcito que, ao sepa-rar os diversos grupos de trabalhadores rurais,estamos buscando apenas uma primeira aproxi-mac;ao, ainda que grosseira, das diferentes formassob as quais se organiza 0 trabalho na agriculturabrasileira. Evidentemente, isso s6 seria posslvelser feito com algum rigor se dispusessemos de umample e sistematico levantamento da realidadebrasileira, em todas as suas variac;oes. No entanto,nao podemos ficar apenas nos lastimando por naose dispor das condic;oes necessarias para tal em-preendimento; e precise tentar faze-Io a partir dasevidencias disponfveis, pelo menos para deixarclaro 0 pouco que ainda se sabe a respeito dostrabalhadores rurais brasileiros.

Para simplificar um pouco as coisas, vamosconsiderar aqui apenas os trabalhadores ruraisque vendem sua forc;a de trabalho, ou seja, todosos que obtem do trabalho assalariado pelo menosuma parte dos meios de sobre vivencia. Vamos

excluir, assim, os "pequenos fazendeiros" ou"camponeses medios" (bem como seus depen-dentes) que trabalham somente em suas proprie- /dades.9 Ou seja, vamos incluir apenas aquelespequenos produtores que organiiam a produc;ao)'}com base no trabalho da familia e que tem neces-'-sariamente de se assalariar fora certas epocasdo ana para conseguir sobreviver,como acontececom os proprietarios minifundistas, os pequenosposseiros e os pequenos rendeiros.

A Tabela 1 apresenta de modo resumido osresultados preliminares de uma pesquisa em anda-mento onde procuramos quantificar os trabalha-dores rurais ocupados no ana de 1975 a partirdos dados secundarios disponlveis. Os numerosexpostos representam uma manipulac;ao (nomelhor sentido que essa palavra possa ter) dosdadosdo Censo Agropecuario de 1970 e de 1975e do Recadastramento de Imoveis Rurais de1972 e de sua atualizac;ao para 1976, tomando-se\o Brasil como urn todo.

E importante destacar que 0 conceito de ocu- )pados e bastante vago e impreciso, baseando:-se- j

--e-xctosivamente nas informac;oes prestadas pelosdeclarantes junto ao INCRA e ao IBGE. Estaoal incluldos todos os declarantes e dependentesque trabalham, bem como seus empregados,contratados pelo proprio estabelecimento oupor empreitada, sem especificar 0 tempo em queestao efetivamente engajados na produc;ao propria-

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Tabela 1Estimativa da fon;:a de trabalho ocupada na

agricultura brasileira em 1975/76

Grupo'"

Milhoes de pessoasque tem na

agricultura sua"atividade

permanente"

Participac;:aorelativa

Proprietariosminifundistas*

Pequenos posseiros*

Pequenos rendeiros*

Empregados assalariados

(permanentes)

(temponlrios)

4,02,4

4,0

4,9

( 1,6)

(3,3)

0,26

0,16

0,26

0,32

(0,10)

(0,22)

• Inclui os dependentes ocupados sem remunera¢o.

Fonte dos dados basicos: Censo Agropecuario de 1970 e 1975 eRecadastramento de Im6veis Rurais de 1972 e sua atualiza¢opara 1976.

mente dita. Nos vamos consideni-Ios como pessoasque tern na agricultura sua atividade "perma-nente" ou "principal", pois mesmo no caso dos

trabalhadores temporarios utilizamos certos ajusta-mentos para toma-Ios comparaveis aos trabalha-dores permanentes. Assim, os valores apresen-tados na Tabela 1 devem ser entendidos como.uma aproximac;ao da forc;a de trabalho ocupadana agricultura brasileira e nao da mao-de-obratotal disponlvel no setor agricola.

A seguir faremos uma breve descric;ao de cadaum dos grupos listados na Tabela 1, segundose pode apreender das informac;oes disponlveis.

a) Proprietarios minifundistas \-c

Os proprietarios minifundistas representamum contingente de cerca de 4,0 milhoes de pessoasativas, ou seja, mais de 25% da forc;a de trabalho ;ocupada em carater "permanente" na agriCUlj-'tura brasileira.

Grosso modo, os proprietarios minifundistastem duas caracterlsticas marcantes:a) possuem uma propriedade menor que 0 modulo

rural, definido como a area que, "direta oupessoalmente explorada pelo agricultor e suafamilia, Ihes absorva toda a forc;a de trabalho,garantindo-Ihes a subsistencia e 0 progressosocial e economico, com area maxima fixadapara cada regiao e tipo de explora<;a'o, e even-tualmente trabalhada com a ajuda de terceiros"(Estatuto da Terra, Lei 4504 de 30/11/1964,

Page 37: O que é questão agrária [José Graziano da Silva, 1980]

art 49). Em resumo, sao pequenosproprietarios,com areas quase sempre inferiores a 50 ha.10

b) sao pequenos proprietarios pobres, com umvalor brute da sua prodUl;:ao equivalente aquantia de um ou no maximo dois salariosmlnimos.llDessas caracterlsticas fundamenta is decorre

a necessidade imperiosa que tem de se assalariar[ fora de suas propriedades para completar a subsis-

tencia da familia. Em outras palavras, esSes peque-nos proprietarios e os membros de suas famlliasnao poderiam sobreviver como pequenos produ-to res, ou seja, nao garantiriam a sua reprodUf;:iiosocial se nao lam;:assem mao do assalariamentotemporario em certas epocas do ana em outraspropriedades, como meio de complementar a

\ :sua renda. Isto, alias, decorre da propria defi-, ,I nir;:iio de modulo rural, entendido como a area

mInima que asseguraria a sobrevivencia da famIlia" \~r partir da produ~ao a( obtida; ou seja,se o mini-

'--","fundio .e inferior ao modulo, si!iiiifica que 0. proprietario e os membros de sua familia nao. conseguem retirar daquela terra 0 necessariopara a sua reprodu~ao como pequenos produ-tores.

A brganiza~ao do trabalho nessas pequenas"unidades se assenta basicamente sobre a familia,

, cincluindo 0 proprio proprietario e seus depen-\ dentes que a I prestam servi~os sem remunera~o.

Segundo os dados do INCRA, a participa~o

da familia na composl~o da for~a de trabalhopermanente dessas pequenas prQpriedades e supe-rior a 80%.

Ainda segundo 0 INCRA, os imoveis c1assifi-cad os como minifundios representavam 72%das propriedades cadastradas em 1972, mas ocu-pavam apenas l:2.%da.area ... Mesmo assim, eramresponsaveis por cerca de 50% da area colhidano Brasil com produtos basicos de alimenta~ao(arroz, feijao, fava, mandioca e milho), bem como,por estranho que possa parecer, por mais de 30%da area colhida com produtos de transforma~aoindustrial (destacando-se 0 algodao, amendoim,cacau, cafe, cha, fumo e mamona). Ou seja, ospequenos proprietarios minifundistas nao temapenas importancia na produ~ao de alimentosbasicos, consideradas "culturas de pobre", mastambem nas materias-primas industriais de origemagricola, tidas como "culturas de rico". E alnao necessariamente empregam uma "tecnologiaatrasada", como dizem certos tecnicos governa-mentais que querem estabelecer uma relac;aode causalidade dessa variavel com a situa~ao demiseria dos pequenos produtores rurais.

E na pressao do grande proprietario vizinho,

(do comerciante e do usunirio, na presen~a def grandes capitaiscontrolando a venda de insumos

'I!ii ( e a compra de seus produtos, que se deve buscar\ \ a razao ultima da miseria desses pequenos produ-

tores minifundistas.

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blPequenosposseifos

Inicialmente e preciso distinguir os verdadeirosposseiros (os quais, regra geral, sao pequenos

, iprodutores que buscam um pedalfo de terra para. subsistirl dos falsos posseiros. Estes ultimos,

, conhecidos por grileiros, perseguem a valorizalfaOdas -terras, principal mente em funlfaO da aberturade estradas e captalfaO de incentivos fiscais e,aproveitando-se da inexistencia de tltulos emmaos dos pequenos posseiros, tomam-Ihes asterras que cultivam.

Segundo dados do INCRA de 1972, mais de80% dos posseiros cadastrados sac minifundistas,com uma area media de menos de 20 ha. Nasregioes de estrutura agraria consolidada (Nordeste,Sudeste, Sull, os posseiros minifundistas cadas-trados detem mais de 40% da area de posse dessasregioes. Nas regioes "novas" (Norte e Centro--Oeste), en1reta nto, essa frm;:ao nao chega a 10%.Isso significa que, nas regioes mais novas (ondea area total de posse e bem maior), a grandeparte dessa area nao pertence aos pequenos e simaos grandes posseiros .. \.. 0 ( r ( .. ~

Isso revela tambem que a sistematica de ocupa-lfaO nas regioes de expansao da fronteira agrI-cola - que alguns consideram uma forma "demo-cratica" de acesso a terra - nao se da com igual-dade de oportunidades. 0 grande posseiro expulsa r/"o pequeno, seja atraves deman"liit:ilalfoes jUdiCiais~\;-:c"

seja atraves da violencia pura e simples. Portanto,a posse nas regioes mais novas, pela desigualdadeque estabelece desde 0 inlcio, tende a reproduzira mesma estrutura agraria existente nas regioesmais antigas, onde 0 grande numero de pequenosproprietarios detem Infimas parcelas de terra.

Os pequenos posseiros representam um contin-gente de cerca de 2,37 mil hoes de pessoas ocupadasno campo, 0 que significa cerca de 16% da forlfade trabalho empregada em carater "permanente"na agricultura brasileira.

Alem dos mais de 500 mil posseiros minifun-distas registrados pelo INCRA, que supoe-setenham uma certa "fixa<;§o" na area de terraque exploram, e preciso acrescentar quase outros1500 mil "ocupantes temporarios" ou "posseiros'itinerantes".12 Estes seriam os pequenos posseirosque sac continuamente expulsos it medida quese consolida a fronteira agricola nas regioes Norte,Centro-Oeste e Nordeste-Ocidental (Maranhao--Piauf), atraves da expansao da pecuaria e/ougrilagem pura e simples de suas terras.

Os pequenos posseiros tem uma forma deorganiza<;ao do trabalho tambem baseada nafamilia, de modo semelhante ao dos proprie-tarios minifundistas. A sua especificidade e dadapelo fa to de deterem apenas a posse, mas nao apropriedade da terra; em outras palavras, usu-fruem a terra sem que detenham a propriedadejur(dica da mesma, 0 que os coloca como alvo

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c)Pequenosrendeifos

Este grupo e constituldo basicamente pelospequenos arrendatarios e parceiros, bem como

"pelos subarrendatarios, "falsos parceiros", agre-gados e moradores, todos enfim que pagam, ao

I' 'proprietario da terra, renda em trabalho, rendaem produtos, ou mesmo uma renda em dinheiro(em propon;:ao fixa ou variavel da sua prodU<;:ao),mas onde esempre presente alguma forma de

\ i coen;:ao extra-economica.Segundo os dados disponlveis, esse grupo repre-

senta cerca de 4,0 milhoes de pessoas que ternna agricultura a sua "atividade permanente",o que da uma participac;:ao relativa de cerca de

-'25% da forc;:a de trabalho ocupada no campo.L E preciso destacar que a grande maioria dos

arrendatarios e parceiros existentes no pais econstitu Ida por pequenos produtores baseadosfundamentalmente na mao-de-obra familiar, quese utilizam de trabalhadores assalariados tempo-

'r<3rios unicamente como urn complemento no,perlodo de maiores atividades agrlcolas.

Os pequenos rendeiros sao, fundamental mente,uma "reserva interna de mao-de-obra" e umamaneira de complementar a explorac;:ao das terrasnas grandes propriedades. Em geral partilhampequenas areas, quase sempre inferiores ao modulo

rural, das quais obtem urn rendimento insuficientepara garantir a sua sobrevivencia enquanto peque-nos produtores de mercadorias, razao pela qual,constituem grande parte do contingente de traba-Ihadores rurais que se assalariam temporariamentenas grandes propriedades por ocasiao dos, picosde demanda de forc;:a de trabalho nas epocasde colheita.

d) Empregados assalariados

De acordo com a Tabela 1, os empregadosassalariados representam cerca de 4,9 milhoesde pessoas ocupadas, ou seja, cerca de urn terc;:oda forc;:a de trabalho empregada na agriculturabrasileira.

Este e 0 grupo mais heterogeneo dos apresen-tados na Tabela 1. Inclui desde 0 que 0 Censoconsidera como empregados permanentes (trato-ristas, feitores, retireiros, mensalistas) ate os c1assi-ficados como assalariados temporarios contra-tados ou nao por empreitadasP

Segundo 0 INCRA, os assalariados permanentesrepresentavam, em media, cerca de 10% da mao--de-obra residente ocupada na agricultura brasi-leira. Embora aparentemente pequena, a partici-pac;:ao dos assalariados permanentes e significativa,uma vez que estao ocupados principalmentenas grandes propriedades. Ou seja, os imoveis queutilizam assalariados permanentes,embora repre-

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sentem apenas 10% dos im6veis rurais, ocupamcerca de 34% da area total cadastrada do pais.

Ja os trabalhadores assalariados temporariosrepresentam pelo menos metade da mao-de-obraocupada nos momentos de maior atividade agri-cola, -como, por exemplo, a colheita. 0 trabalho

.assalariado temporario tem uma importanciarelcrtiva muito grande, seja se considerarmosas varias regi5es ou estados brasileiros, seja seconsiderarmos os varios tamanhos de propriedades.Apenas nos im6veis de menos de 100 ha os assala-riados temporarios nao representam 0 maiorcontingente empregado nos momentos de picodas exigencias de mao-de-obra.

Deve-se lembrar que a noc;ao de temporarioinclui, na verdade, dois tipos. de trabalhadores.Primeiro, 0 trabalhador assalariado "puro", que~vive exclusivamente da venda da sua for9a de'trabalho e, em geral, reside nas periferias daspequenas e medias cidades do interior. Essestrabalhadores sao encontrados com maior frequen-cia na regiao Centro-Sui, onde sao conhecidoscomo "b6ias-frias", volantes, etc.; mas existemtambem em outras regi5es, como os "c1andes-tinos" e os "moradores da rua" do Nordeste.

o segundo tipo de assalariado temponirioe formado por pequenos proprietarios, posseiros,parceiros e arrendatarios que se empregam forade sua unidade em determinadas epocas do anaporque nao conseguem assegurar a sua subsistencia

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unicamente com base na sua propria prodUl;:ao;1\/ ou seja, sac os "openlrios-camponeses" de que

falavamos no inlcio deste capitulo.As estatlsticas disponlveis nao permitem uma

boa aproxima<;:ao do numero de pessoas envol-vidas em trabalhos temponirios na agriculturabrasileira, nem muito menos indica<;:oes que possi-bilitem distinguir os "assalariados puros" , ouseja, aqueles trabalhadores rurais que sao sempreassalariados, daqueles que sao assalariados apenasalgumas epocas do ano.

Acreditamos que apenas em algumas regioesdo pais os assalariados "puros" representematualmente a parcela majoritaria da for<;:a detrabalho ocupada na agricultura, como, por exem-plo, no Estado de Sao Paulo, Sui de Minas, Nortedo Parana, Zona da Mata de Pernambuco, Sudestede Mato Grosso do Sui e Goias, Depressao Centraldo Rio Grande do Sui, para citar as mais conhe-cidas. Nas demais regioes do paiS, ainda hojea forma principal de trabalho assalariado parece

!,ser representada pelo "operario-campones", espe-!cialmente nas regioes Nordeste e Centro-Sui,!com as exce<;:oesja indicadas.

A estrutura do sindicalismo rural brasileiroe composta atualmente de uma confedera<;:ao

a nlvel nacional, 21 federa<;:oes (alem de delegaciano Acre) ,a/ nlvel estadual e mais de 2000 sindi-catos;a"n{vel municipal.

o seu modele 'de inspirac;;ao, como, alias, 0 detoda a estrutura sindical brasileira, foi a "corpo-rac;:ao fascista" de Mussolini, tendo sofridonessesanos todos apenas modifica<;:oes com 0 objetivode tomar esses 6rgaos de classe ainda mais atre-lados ao Estado.

Ainda hoje, por exemplo, 0 Ministerio doTrabalho (MT) "fiscaliza" as atividades sindicaisno Brasil. 15so significa que: a) as entidades temque ser registradas no MT para obter 0 seu reconhe-.,cimento jurldico; b) as eleic;;oessac regulamentadaspelo MT, sendo que os candidatos tem que serprevia mente aceitos e posteriormente referendadose empossados pelo MT (e comum, por exemplo,o caso de candidatos aceitos previamente seremdepois vetados em fun<;:ao do que disseram durantea campanha); c) 0 MT se reserva 0 poder de intervirnos sindicatos, de aprovar os programas da dire-toria, de fiscalizar os on;:amentos e de bloquearas suas contas bancarias; d) a c~ntribui<;:ao sindicale compuls6ria (um dia de salario por ana porempregado registrado), sendo 0 dinheiro distri- ,bUldo peto MT. "

A Confedera<;:ao Nacional dos Trabalhadoresna Agricultura (CONTAG), que e hoje 0 6rgaomaximo do sindicalismo rural brasileiro, foi funda-,da no final de 1963, tendo side reconhecida

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em janeiro de 1964. Mas em abril desse m~smoano, dias depois do golpe militar, sofreu uma Inter-venc;:ao que terminaria formal mente em 196?Nesse perlodo 0 sindicalismo rural que nasclano pais sofre 0 que os estrategistas militares

\c1assificariam de uma "polltica de terra arrasada":> nem mesmo os chamados "sindicatos cristaos",I' orgal'iizados por setores progressistas da Igreja

:'para se contraporem a ac;:ao do Par~ido Co~~-. n ista, conseguiram evitar as intervenc;oes e pnsao

de seus Iideres mais expressivos." A diretoria eleita para a CONT AG em 1965

permaneceu ate 1967. Na sua forma de a~i~ procu-rou sempre nao hostilizar 0 governo militar, naintenc;:ao de minorar a repressao ao movimentosindical, atuac;:ao essa que se poderia sintetizarpelas expressoes "colocar panos quentes" e "apa-gar incendios". . ..

Em 1968, essa postura modifica-se com a vltorlada oposi<;:ao, passando a CONTAG a empreenderum esforc;:o continuo para expressar e defenderefetivamente os interesses dos trabalhadoresrurais. Essa nova diretoria (com pequenos ajus-tes) vem se mantendo a frente da CONTAG e.msucessivas reeleic;:oes, tendo recentemente reaflr-made sua lideranc;:a por ocasiao do III CongressoNacional de Trabalhadores Rurais realizado nomes de maio de 1979 em Brasilia. Mesmo seusopositores mais ferrenhos reconhecem que nilo

1\ se trata de "pe.l~g~s", como aconteceu em outras

confederacoes sindicais brasileiras.EVident~mente, muitas crlticas tern side feitas

a atuac;ao da CONTAG nesse perlodo. Entre elasdestacam-se a de que nilo tem dado suficienteenfase na organizac;:ao das bases, a de manteruma postura estritamente legalista (decidindoo que pode e nilo pode ser feito em func;:ao dalegislac;:ao existente, de pareceres jurldicos, etc.)e a de nao buscar alianc;:as nos setores mais progres-sistas da sociedade brasileira.

Em resumo, a ac;:ao da CONTAG, segundo seuscrlticos, tern side a de "encaminhar as questoesas autoridades competentes", sem exercer umaforte pressao reivindicat6ria por outros meios. Issose justifica em parte pelo fate de a CONTAGnao dispor de maior sustentac;:ao nas suas pr6priasbases, e em parte pela falta de apoio sistematicode outros setores da sociedade brasileira nessesanos todos de repressao.\,

Sendo ou nao essas crlticas procedentes - e .algumas realmente 0 sac -, nao se pode deixar r

de destacar os meritos da CONTAG .. 0 maior'deles, sem duvida';e 0 de ter mantido acesa a, .chama da luta dos trabalhadores rurais brasi-.·~leiros contra 0 monop6lio da terra. E a CONTAG\faz isso atraves da bandeira da reforma agraria, Ii

mantida sempre desfraldada - -'por principio;:>"remedio para todos os males" dos trabalhadoresrurais brasileiros. Na verdade, a luta pela reformaagraria desenvolvida pela CONTAG nao era apenas

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polltica. Ela significava, na pnitica, uma lutapelo cumprimento da legislayao vigente (dala explicayao, em parte, da crltica a "condutalegalista" dos atuais sindicatos rurais, onde afigura de maior expressao e, muitas vezes, 0assessor juridico).

M~s do que manter acesa a chama da luta dostrabalhadores rurais pela Reforma Agraria, aCONTAG acumulou, nesses anos todos ..de repres-sac ao movimento sindical, importantes vit6rias.Ela soube avanyar, embora de ;maneira ,sempremuito precavida, nos momentos em que aconjun-

\ tura polltica do pais assim 0 permitiu. Por exem-\plo, a CONTAG sempre denunciou invasoes de!terras de posseiros, a cumplicidade do governo

\.com os grandes proprietarios rurais na definiyao""das pollticas agrlcolas, 0 desrespeito aos direitos\ ) mais elementares dos "b6ias-frias" e, mais recente-

mente, ate mesmo juntou a sua voz no coro depleno restabelecimento das liberdades democra-ticas e pela ampla, geral e irrestrita anistia.

~. A CONT AG tambem sou be recuar nos momen-r' '1' tos de crise. Manteve, porem, 0 escudo da legis-

layao vigente como um limite do aceitavel paraesse recuo, sem esquecer suas reivindicayoes, em-bora as mantivesse sempre num "plano legalista".

Assim, se fizermos um balanyo' das atividadesda CONTAG no perlodo 1968/78, mesmo quese coloque em duvida se mais poderia ter sidefeito, restara a certeza de que ela conservou a

autenticidade da luta dos trabalhadores ruraisbrasileiros. Em outras palavras, ha um saldo posi-tivo ao n Ivel das "contradiyoes externas" da (CONTAG, ou seja, na defesa dos trabalhadores I

rurais contra 0 Estado, personificado num governoautoritario que representa os interesses dos grandesproprietarios rurais e do grande capital. Mas eno nlvel das "contradiyoes internas", isto e, nochoque de interesses dos varios grupos de traba-Ihadores nela representados/4 que se colocahoje uma "nova questao" para a organizayaodo sindicalismo rural brasileiro.

o desenvolvimento do capitalismo no campo,/~~ -meclldii'em qlJeincbrporou maquinas, defen-. sivos, fertilizantes e outros insumos modernos,

modificou profundamente a base tecnica daproduyao de algumas regioes do Brasil, especial-mente do Centro-SuI. 0 resultado foi uma alte-rayao nas relayoes de trabalhoexistentes no campo,

.traduzidas na disseminayao do assalariamentotemporario por todo 0 pais e tiposde proprie-dades. Vale dizer, com a mercantilizayao dasrelayoes de trabalho no campo, 0 dinheiro passoua intermediar ate mesmo 0 que antes era conside-rado uma forma de ajuda mutua_entre pequenosprodutores, da qual 0 mutirao ~ra 0 exemplotlpico.

Assim e que, hoje, de um lado, coloca-se umcontingente significativo de trabalhadores ruraiscompletamente separados dos meios de produ<;:ao;

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de outro, trabalhadores rurais que ainda possuemum" dupla condi<;:ao de "empregados-empre-gadores", como ja salientamos anteriormente.Ou seja, de um lado, 0 pequeno produtor (sejaele posseiro, parceiro, arrendatario ou pequenoproprietario) que contrata assalariados tempo-rari0E apenas no momenta de pica de suas ativi-€lades e que nao se personifica como "patnlo",

I (consiqerando seus contratados como "ajudantes".i' ,De outro, porem, 0 assalariado temporario contra-, tado que se sente um trabalhador explorado

[pelO patrao. E preciso destacar que os pequenos

(i produtores que contratam assalariados tempo-, I rarios para ajudar nos momentos de pico tambem

I pagam baixos salarios e, em geral, nao cumprem"as exigencias da legisla<;:ao trabalhista. Alias,nao se deveria esperar coisa diferente, em fun<;:ao

'da precariedade da situa<;:ao em que se encontramesses pequenos produtores, a qual e fruto daexplora<;:ao a que se submetem nas suas rela<;:oescom 0 sistema capitalista de modo geral.

Essa dupla condi<;:ao de "empregado-empre-gador" dos pequenos produtores em muitas zonasdo pais leva, no plano da representa<;:ao sindical,a situa<;:oes~sdruxulas. As vezes, por exemplo,o sindicato se transforma numa verdadeira "Juntade Concilia<;:ao", decidindo sobre pendenciasentre seus proprios associ ados, as quais saD verda-deiras a<;:0es trabalhistas de empregado contrapatrao. Em outras palavras, pequenos patroes

e seus operarios muitas vezes convivem nummesmo orgao de representa<;:ao - 0 sindicato rural.

Temos observado tambem que';---emcertosmuniclpios, 0 numero de volantes sindicalizadosso deixou de ser insignificante quando a chapade oposic;ao, representante dos trabalhadoresassalariados, venceu a situa<;:ao, representadapelos pequenos produtores, que dominam aindahoje a maioria dos sindicatos da regiao Sui dopaiS, inclusive S. Paulo.IS Nesse estado ja apareceumesmo 0 pedido do reconhecimento de um sindi-cato de trabalhadores volantes distinto do atualsindicato de trabalhadores rurais. Isso entretantomio e permitido pela legislac;ao vigente, que impoeo sindicato unico a nlvel municipal.

Em resumo, em algumas regioes do paiS, devidoas modifica<;:oes na base tecnica da produc;ao esuas consequentes altera<;:5es nas rela<;:oes detrabalho, vem crescendo a participac;ao relativados operarios rurais completamente separadosda terra na forc;a de trabalho agricola. Acentuam--se, assim, as "contradi<;:oes internas" na baseda estrutura sindical brasileira, colocando-sehoje a questao da conveniencia ou nao da sepa-rac;ao em um sindicato apenas de trabalhadoresassalariados e outro de pequenos produtores.

Como era de se esperar, na discussao a respeito,duas posi<;:oes se cristalizaram. De um lado, os quedefendem a unidade na base, com a argumentac;aode que e perigosa uma divisao num momenta

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politico em que as "contradic;:5es externas" aindasaG fundamentais. De outro lado, os que defendem aseparac;:ao, ponderando que um sindicato de traba-Ihadores assalariados somente reforc;:aria a luta dostrabalhadores rurais, a medida que eliminasse grandeparte das "contradic;:5es internas" que se manifes-tam pa base, e que seria posslvel manter a unidadeao nlvel polltico, numa Confederac;:ao Nacional quese preocupasse apenas com as "contradic;:5es exter-nas" dos trabalhadores rurais, em geral.

Evidentemente, e imposslvel para alguemenvolvido no debate colocar a questao de umaforma "neutra", nem foi isso 0 que pretendemosfazer aqui. Gostarlamos apenas de ressaltar queo fortalecimento dos sindicatos rurais esta indisso-luvelmente Iigado a questao mais geral das liber-dades democraticas no campo, e das liberdadessindicais, em particular. Acreditamos que essaseja a grande bandeira de luta do momento, quepode ser encampada por todos os setores progres-sistas da sociedade brasileira. Assim sendo, 0sindicato de assalariados rurais ganha sentido sesurgir enquanto uma reivindicac;:ao de base, e naopor imposic;:ao do Estado como uma nova formade manter sob seu controle a luta dos trabalhadoresrurais brasileiros. Alias, e esse 0 sentido politicoda proposta de criac;:ao das "cooperativas volantes",atualmente sendo implantadas sob a egide do.Ministerio do Trabalho em todo 0 pais e que sao)manipuladas pelos grandes proprietarios rurais.-.•• ••

~.A QUESTAo AGRARIA HOlE

As reivindica<;6esr dos trabalhadores rurais

Durante muitos anos se discutiu qual seriaa reivindicac;:ao principal dos trabalhadores rurais:se seria a reforma agraria ou apenas a reivindicac;:ao'por melhores salarios. Muitos chegaram mesmoa afirmar que os trabalhadores rurais brasileiros

.! eram todos "assalariados disfarc;:ados" e que! queriam melhores salarios e nao terra, conside-\rando esta como uma reivindica<;:ao tipicamente\,camponesa (0 que para alguns era tido ate comoreacionario, pois significava uma volta ao passadol.

Na nossa opiniao, essa oposic;:ao "terra-salarios"s6 aparece quando nao se consegue entendera complexidade das rela<;:5es de trabalho na agri-

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cultura brasileira. No fundo, 0 que os trabalhadoresrurais querem - como todos os trabalhadores,

, em geral - sac melhores condi<;:oes de vida e de, trabalho. Se isso e posslvel obter trabalhando

num peda<;:o de chao que nao seja de outro, ourecebendo altos salarios, pouco importa: 0 funda-mental e que ele obtenha com isso os frutosdOSfW trabalho.

" (" Acreditamos que a reivindica<;:ao mais geral" ainda hoje dos pequenos proprietarios, parceiros,

posseiros e pequenos arrendatarios, que consti-tuem a grande maioria dos trahalhadores ruraisbrasileiros (conforme mostram os dados da Tabela1), e a reforma agraria. Ela e a reivindica<;ao maiorde todos aqueles que poderiam ser chamadosde "operarios-camponeses", os quais, por teremterra insuficiente e/oLl condi<;oes precarias de acessoa mesma, sac obrigados a se assalariar tempora-ria mente para garantir a sua sobrevivencia. Masnao sac apenas os "operarios-camponeses" quea reivindicam: tambem os assalariados tern nareforma agraria sua bandeira de luta pol(tica.

A reforma agraria que os trabalhadores ruraisem geral reivindicam nao e a pulveriza<;ao antieco-n6mica da terra; e sim uma redistribui<;ao darenda, de poder e de direitos, aparecendo as formasmultifamiliar e cooperativa como alternativasviaveis para 0 nao fracionamento da propriedade.Em resumo, nao desejam a mera distribui<;aode pequenos lotes, 0 que apenas os habilitaria

a continuarem sendo uma forma de barateamentoda mao-de-obra para as grandes propriedades.Mas almejam uma mudan<;a na estrutura pollticae social no campo, sobre a qual se assenta 0 poder ,dos grandes proprietarios de terras.

A reforma agraria e para os trabalhadoresrurais uma estrategia para romper 0 monop61ioda terra e permitir que possam se apropriar urndia dos frutos do seu pr6prio trabalho. Para tale necessario eliminar 0 latifundio e incidir sobrea domina<;ao parasitaria da terra, desde 0 casodaqueles que deixam a terra inculta a esperade valoriza<;ao imobiliaria, ate os que a utilizampara repassar recursos financeiros aos pequenosprodutores rurais.

Apesar das enormes desigualdades regionaisdo pars, nao ~e po de ignorar 0 desenvolvimentoecon6mico por que passou 0 campo brasileiro,especial mente nas ultimas duas decadas, nemas transforma<;oes pol (ticas a ele associadas. Emconseqi.h~ncia dessas transforma<;oes, a estrategiade pol (ticas alternativas reivindicadas pelos traba-Ihadores rurais nao se limita a reforma agraria.Ela concede lugar fundamental tambem a questoescomo pre<;os m(nimos, comercializa<;ao, creditoe assistencia tecnica, pol(ticas essas que, numregime democratico, poderiam estar voltadaspara os pequenos produtores e nao apen.as, ~arauma minoria privilegiada de grandes propnetanos.

a problema fundamental al, do ponto de

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vista dos trabalhadores rurais em particular, estaem que as pollticas agrlcolas permanecem orien-tadas de acordo com os interesses mais imedia-tos dos grandes capita is, em particular da indus-tria e dos bancos. E 0 seu principal beneficiariona agricultura (e, portanto, 0 aliado desses setores)eo grande proprietario de terras.

A,· pol Itica de credito rural subsidiado ilustra'bem essa trlplice alianl;:a entre industria, bancose latifundiarios, hoje, no Brasil. Como regra,apenas os gran des proprietarios tem acesso aocredito, pelo menos naqueles programas que sacmais vantajosos. De um lado, porque 0 creditoe para comprar coisas que somente os grandesfazendeiros podem comprar: tratores, colhedeiras,adubos e defensivos qu Imicos, etc. De outro,porque a burocracia bancaria da prefer€mciaao grande, porque 0 custo operacional de umfinanciamento, por exemplo, de mil cruzeirose 0 mesmo que 0 de um bilhao. Resumindoganham os grandes fazendeiros que recebe~o credito subsidiado. Ganham os bancos quefazem 0 emprestimo, e garantem mais um cliente.E ganham tambem os fabricantes de tratoresde adubos qUlmicos, de defensivos, etc., de que~esses fazendeiros compram os produtos.

Falamos das reivindica<;:oes mais amplas dostrabalhadores rurais em geral. Mas existem outrasreivindica<;:oes que dizem respeito especificamentea este ou aquele grupo de trabalhadores rurais.

Ou seja, as reivindica<;:oes mais espeC(ficas dostrabalhadores rurais variam em funl;:ao de suasdiferencia<;:oes internas e das desigualdades dodesenvolvimento regional do paiS, dando origema um grande numero de lutas especlficas.

Assim, por exemplo, nas zonas "mais modernas"da regiao Centro-Sui do paiS, as reivindicacoesdos assalariados temporarios pol" melhores sal~riose seguram;:a no trabalho (maior estabilidade, pro-te~o, previdencia social, etc.) ja se fazem ouvircom grande peso. 0 ponto central dessas reivin..,dical;:oes parece ser 0 nao cumprimento da legis-la~o trabalhista existente naquilo que ela beneficiao trabalhador rural assalariado (salario mlnimodomingo remunerado, ferias, indeniza<;:ao, etc.):Para se ter uma ideia a respeito, basta dizer quemais de 80% dos trabalhadores rurais assalariadosainda nao tem sequer suas carteiras anotadaspelo empregador, 0 que dificulta provar ate mesmoa sua condi<;:ao de empregado. Assim, emboraexista um consenso de que as garantias oferecidaspelo Estatuto do Trabalhador Rural e legisla<;:aocomplementar sac insuficientes, 0 problemafundamental enfrentado pelos assalariados ruraisno momento reside no desrespei~o a proprialegisla<;:ao vigente. Em outfas-paiavras, alem dePOLlCO, 0 queexiste em beneHcio do trabalhadorrural nao e cumprido. 0 nao cumprimento dalegisla<;:ao, segundo admitem seus proprios Iideresmais combativos, esta ligado somente em parte

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ao pequeno numero e a morosidade das Juntasda Justi<;:a do Trabalho. Na verdade, isso se devemuito a fraqueza dos sindicatos de trabalhado.resrurais no Brasil, ponto que voltaremos a enfatlzarmais adiante.

Ja na regiao Nordeste (com as exce<;:oesja ressal-tadas) e em certas zonas do Brasil Central, desta-ca-se- a luta dos pequenos rendeiros contra osproprietarios de terras. Como os trabalhad?~esrurais emgeral, a sua reivindica<;:a'o es~eclflcatambern e 0 cumprimento da legisla<;:aoeXlsten~e.Mas nao apenas da legisla<;:ao trabalhista propna-mente dita, porquanto eles sac ~ambem assala-riados tempon3rios, em algumas epocas do a~o,nas grandes propriedades. De modo espeCial,os rendeiros reivindicam a aplica<;:ao da legisla<;:aoagraria consubstanciada no Estatuto ~a !e~rae textos complementares. Essa legisla<;:ao Ilml taas exigencias que 0 proprietario pode fazer, querna partilha dos frutos da parceria, quer no~ pre<;:o.sdo arrendamento, com 0 objetivo de Impedlrcondicoes extorsivas.

Entretanto, as normas do Estatuto da !erraconstituem ainda um sonho. Segundo as Infor-ma<;:oes prestadas pelos proprios .fazendeirosao INCRA, ha um desrespeito generallzado a essalegisla9a'o, especial mente no que se ~efere ~oscontratos de arrendamento e parcena. Asslm,por exemplo, arrendatarios e parceiros sa~ o.b.ri-gados a vender a sua produ<;:ao ao propnetano,

a se abastecer nos armazens deste, a 'prestar servi<;:osgratuitos aos proprietarios, etc. Acontece quetodas essas c1ausulas sao proibidas expressamentepela lei. Veja 0 ponto a que chegam as coisasno campo brasileiro: um grande numero deproprietarios rurais declarou (por escrito e assi-nado) ao INCRA, por ocasiao do cadastro de1972, que desrespeitavam 0 Estatuto da Terra.E 0 INCRA, que e 0 orgao criado para fiscalizaro cumprimerit() do Estatuto, nao fez nada ...Em resumo, a grande maioria dos contratos deparceria e arrendamento no Brasil desrespeitaa lei, tanto no que se refere a condi<;:oes especiaisnao permitidas, quanto a porcentagem maximacobrada do parceiro e aos pre<;:osdo arrendamentodas terras.

Cumpre destacar ainda, nesse quadro geraldas reivindica<;:oes dos trabalhadores rurais brasi-leiros, a luta dos posseiros, em especial dos "possei-ros itinerantes", nas zonas de expansao da fronteiraagricola das regioes Norte e Centro-Oeste. AIha uma obstinada resistencia dos posseiros contraa grilagem de suas terras, que e uma das maneiraspelas quais a grande propriedade amplia seus doml-nios. A questao levantada pelos "posseiros itine-rantes" na verdade nao e apenas do domlnio dasterras em si, mas 0 sentido da sua ocupa<;:ao.Ele nao valoriza a terra como uma forma depropriedade, mas como seu instrumento'de traba-lho; ou seja, ele precisa da terra para viver, assim

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como 0 pedreiro precisa da colher e 0 pintordo pincel.

E a luta desses posseiros que coloca hoje urndos mais profundos questionamentos a proprie-dade capitalista da terra no Brasil. E a( que areivindicac;:ao "terra para quem trabalha" ganhaa sua expressao pol(tica mais profunda: 0 que 0

poS5'eiro da Amazonia quer nao e apenas as suasterras, mas que as terras em si deixem de tervalor.16 Em outras palavras, a resistencia dos pos-seiros contra os grileiros (que muitas vezes sacsofisticadas empresas multinacionais) e umaluta contra a utiliza<;:ao da terra para fins naoprodutivos, seja como uma forma de reservade valor contra a corrosao inflaciomiria da moeda,seja como meio de acesso a outras formas deriqueza (minerios, madeira de lei, incentivos

. fiscais, credito farto e barato, etc.).No plano mais concreto, os posseiros, de modo

geral, reivindicam uma a<;:ao efetiva do Estadocom vistas a titula<;:ao de suas terras pelos 6rgaosque deveriam incumbir-se dessa tarefa e, naverdade, dedicam-se justamente a ajudar os grilei-ros. Essa a<;:ao deveria impedir, acima de tudo,que os programas e iniciativas governamentaisvisando ao progresso social nas regioes de frontei-ras (estradas, etc.) se transformem em meiosde enriquecimento de poucos e preju (zo de muitos,como acontece hoje na Amazonia.

Essa regionaliza<;:ao das reivindicac;:oes espec(-

ficas dos trabalhadores rurais brasileiros nao signi-fica, em absoluto, a inexistencia de uma unidadenum plano mais geral. a essencial e que todosos grupos citados, em maior ou menor intensidadedependem da venda de sua forc;:a de trabalh~para sobreviver, seja por disporem de meios deprodu<;:ao insuficientes (como e 0 caso dos "ope-rarios-camponeses"), seja por nao disporem denada mais para vender alem de sua for<;:ade traba-Iho (como e 0 caso dos b6ias-frias). E, enquantotrabalhadores rurais, unem-se a luta dos trabalha-dores brasileiros em geral, em busca de melhorescondic;:oesde vida.

A retomada da solu9ao"Reforma Agnlria"

Ja vimos anteriormente que a reforma agrariae a aspirac;:ao maior dos trabalhadores rurais brasi-leiros nos dias de hoje. Mas por que a reformaagraria, equal reforma agraria?

Esse debate tambem nao e novo no pais. Mashoje ele tern uma conotac;:ao muito distinta daque teve em per(odos anteriores. Por exemplo,nos anos cinquenta, 0 debate da reforma agrariaestava Iigado a discussao mais geral dos rumosda industrializac;:ao brasileira. Como ja dissemosanteriormente, temia-se que a agricultura viessea constituir urn entrave ao processo de industria-

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Iizac;ao brasileira porque nao aumentaria a produti-vidade dos trabalhadores nela ocupados. Issosignificaria que, de urn lado, 0 setor agricolanao responderia as necessidades crescentes deproduzir alimentos e materias-primas de que aindustrializacao iria necessitar. De outro, quenao se eleva'riam os nlveis de renda da popula<;:aoagrIcola e, portanto, nao se conseguiria urn mer-cado suficiente para consul1)ir os produtos indus-trializados que se criariam.

Mas a expansao da fronteira agrIcola, a urbani-za<;:aoacelerada e a industrializac;ao da agriculturaacabaram criando simultaneamente a oferta e 0mercado consumidor que a industrializa<;:ao neces-sitava, como vimos anteriormente.

o importante a ressaltar aqui e que a reformaagraria aparecia no fim dos anos cinquenta comoo remedio para a crise agraria e para a crise agr(-cola por que passava 0 paIs. A reforma agraria

.. visava entao a alterar a estrutura de posse e usada terra no Brasil, para que pudesse haver urndesenvolvimento mais rapido das for<;:as produ-tivas no campo. Como se dizia na epoca/7 erapreciso acelerar a penetr~r;ao das relar;oes capi-

.....talistas de produr;ao na agricultura brasileira." Pretendia-se assim exorcizar os fantasmas dos.... "restos semifeudais" escondidos nos latifundios

'que atormentavam a vida dos trabalhadores rurais.A reforma agraria, entregando esses latifundiospara os camponeses, suprimiria as "rela<;:oes pre-

-capitalistas" (isto e, resolveria a questao agraria)e faria aumentar a produc;ao, uma vez que colo-caria as terras ociosas dos latifundios em cultivo(isto e, resolveria a questao agricola).

Sabemos que essa reforma agraria nao foi feita.Que nao houve redistribui<;:ao de terras, ate pelocontrario: os dados mais recentes mostram quea concentra<;:ao da propriedadeaumentou e ostn;lbalhadores rurais se tornaram ainda mais mise-raveis. E, no entanto, a estrutura agraria brasileiranao constituiu empecilho ao processo de industria-liza<;:ao do paIs. Ja vimos nos cap(tulos anterioreso erro desse "diagn6stico" e os fatores que levarama que a agricultura nao constitu Isse urn entraveao processo de industrializa<;:a-o. De maneira resu-mida, podemos dizer que 0 desenvolvimentodas rela<;:oes de produc;ao capitalistas na agricul-tura brasileira conseguiu grandes avan<;:os nasolu<;:ao das questoes agrlcolas, isto e, dos proble-mas Iigados a produ<;:ao propria mente dita. Masesse desenvolvimento s6 fez agravar a questaoagraria, ou seja, 0 n Ivel de miseria da popula<;:aorural brasileira.

E nesse contexto que 0 remedio da reformaagraria ressurge hoje no Brasil em nova embalagem,como reaparece sempre nas epocas de crise daseconomias capitalistas. A solu<;:a-o "reforma agra-ria" coloca-se especificamente hoje dentro docontexte de ser uma resolu<;:ao para a crise agrariabrasileira e nao mais para a crise agrIcola: ela e

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apenas uma reivindicat;a'o dos setores popularese nao mais da burguesia, se e que 0 foi algum dia.

Hoje esta claro que 0 processo de desenvolvi-mento capitalista no Brasil, como em todas aspartes, criou riqueza em poucas maos e miseriageneralizada. Muita gente tinha esperanca de queesse processo fosse representar nao apenas aredencao da burguesia nacional, mas tambemados trabalhadores brasileiros em geral. Por isso,as aliancas propostas eram as dos trabalhadores(rurais e urbanos) com a burguesia nacional, contraseus inimigos comuns: 0 latifundio e 0 imperia-Iismo. Hoje, 0 latifundio se aburguesou e se inter-nacionalizou. Nao sao mais apenas os velhoscoroneis do Nordeste. as grandes latifundiarios,hoje, sao tambem os bancos e as grandes multina-cionais: o· BRADESCO, a Volkswagen, a Jari. ..

a capitalismo brasileiro mostrou no campouma face do seu desenvolvimento profundamenteprejudicial e parasitaria, nao s6 do ponto de vistados trabalhadores, mas tambem da sociedadeno seu conjunto. E ilustrativo, por exemplo, 0

nlvel que atingiu a especulacao imobiliaria, coma propriedade da terra funcionando apenas comoreserva de valor contra a corrosao inflacionariae meio de acesso aos favores fiscais e creditlciosdas pollticas governamentais. Isso porque, nosistema capitalista, pouco importa que um pedacode chao produza soja ou cana-de-acucar ou feijao.a que interessa e que produza lucros. Nem mesmo

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interessa se esse lucro advem da utiliza<;ao produ-tiva do solo ou nao ...

E enquanto milh5es de hectares de terras ferteise bem localizadas SaD retidos improdutivamente,outros milh5es SaD apropriados, a custa de tram-biques e violencia, por grandes. empresas capita-listas que, como ja destacamos, nao SaD mais ape-nas os "velhos latifundios", mas tambem os bancose as empresas multinacionais. Como resultadodisso sao expulsas do campo, a cada ana quepassa, milhares de fam(lias, que nao tem paraonde se dirigir a nao ser as favelas das periferiasdas cidades. E por isso que a reforma agrariaaparece hoje como a unica solur;ao democraticaposs(vel para a questao agraria. Evidentemente,ha outras solu<;:5es, como, por exemplo, deixaros migrantes morrerem de fome, continuar confi-nando esses excedentes de popula<;:ao em novasfavelas, etc.

A questao agraria se alia hoje a uma serie de"outras" quest5es, como a questao energetica,a questao ind(gena, a questao ecologica, a questaourbana e a questao das desigualdades regionais.Ouseja, a questao agraria permeia hoje uma seriede problemas fundamentais da sociedade brasileira.No fundo, todos eles tem a ver com 0 caraterparasitario que atingiu a forma espedfica comose desenvolveu 0 capitalismo rleste pa (s.

Assim, 0 remedio "reforma agraria" tem que seapresentar hoje nao apenas com uma nova emba-

lagem, mas tem que ter tambem um outro con-teudo. A reforma agraria ja nao e mais hoje noBrasil uma reivindicar;ao do desenvolvimentocapita/ista, e sim um questionamento da formaque assumiu esse desenvolvimento.

Por isso, a reforma agraria e hoje - mais donunca - uma questao eminentemente pol (tica.Ela nao visa fundamental mente a aumentar aprodu<;§'o, embora isso tambem seja desejavele poss(vel de obter. A reforma agraria e hojea expressao da reivindica<;:ao dos trabalhadoresrurais pela apropria¢'o dos frutos do seu traba/ho.E e nesse sentido que a reforma agraria nao emais apenas uma reivindica<;§'o dentro da "legali-dade capitalista": nao e mais 0 direito de cadaum a sua propriedade, mas 0 direito dos trabalha-dores ao resultado da sua produ<;ao.

A reforma agraria e agora uma bandeira deluta pol (tica capaz de unificar nao so os traba-Ihadores do campo, mas inclusive de se estenderaos trabalhadores urbanos. A reforma agrariacome<;a a se apresentar hoje como uma luta pelatransforma<;ao da propria sociedade brasileirapara um outro sistema, onde 0 trabalhador naoso trabalhe, mas tambem se aproprie dos frutosdo seu trabalho.

Evidentemente, nao basta desejarmos isso.Essa e uma luta pol(tica de muitos, durante muitotempo. E apenas a organiza<;ao dos trabalhadoresdo campo e da cidade em sindicatos Iivres e auten-

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ticos poden! leva-Iaa frente.Resumindo em poucas palavras, 0 futuro da

agricultura brasileira depende basicamente dofuturo da democracia brasileira.

••fl •••

(1) RANGEL, Ignacio (1962). A Questiio Agraria Brasileira.Recife, Comissao de Desenvolvimento Economico de Pernam-buco. 108 pp.

(2) Graziano da Silva, Jos~, coord. (1980). Estrutura Agrariae Produ¢o de Subsistencia na Agricultura Brasileira. 2~ ed.,Sao Paulo, HUCITEC,op. cit., p. 64.

(3) Veja a respeito: Alberto Passos Guimaraes (19791. A CriseAgraria. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

(4) Veja-se por exemplo: CAIO PRADO Jr. (1970). Hist6riaEconomica do Brasil. 12~ ed. Sao Paulo, Brasiliense.

(5) 0 texto dessa seCao fez parte da exposiCao apresentada namesa-redonda preparat6ria do Seminario "Agricultura Brasi-leira - Agenda para 0 Amanha", realizado em Bras(lja de 15a 18 de janeiro de 1979. Foi publicado na Revista Encontroscom a Civilizar;iio Brasileira, Rio de Janeiro, 10:58-70 de abrilde 1979, com 0 t(tulo "Para onde vai a agricultura?".

(6) Ou estacionalidade do trabalho agr(cola. Refere-se as variacoesnas exigencias de miio-de-obra numa determinada cultura,fate que esta Iigado as diferentes estac;:oesdo ano agr(cola(ver gratico 2).

(7) 0 indice de Gini ~ uma medida do grau de concentraciio deuma distribuic;:iioqualquer. Ele assume 0 valor zero quandoa distribuic;:ao~ igualitaria. E tende para 0 valor um quandotoda a distribuiciio esm concentrada nas maos de uma s6pessoa.

(8) 0 termo "excedente" ~ sempre aqui usado entre aspas paraevitar a falsa impressao de que a parcela que ~ comercializadapelo pequeno produtor e 0 que sobra do consumo familiar.Longe disso, esse "excedente" ~ obtido exatamente as custasda reduCao do consumo da fam(lia e da extensao da jornadade trabalho de seus membros .

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(9) A quantificac;:ao desse grupo e praticamente imposs(vel deser feita a n(vel global por nao dispormos de cortes quali-tativos que pudessem ser agregados a estratificac;:ao por valorda produc;:ao e area total dessas propriedades. Uma avaliac;:aogrosseira indica que eles abrangeriam pelo menos 300 milunidades produtivas com um contingente familiar de cercade 1 milhao de pessoas ocupadas. Seria preciso, todavia,estuda-Ios nas' suas diferenciac;:oes nas varias regioes do parsa --partir de outras informac;:oes dispon(veis com estudos decaso, por exemplo.

(10) Apenas 6,7%, dos minifundios cadastrados em 1972 tin hamuma area total superior a 50 ha.

(11) Segundo 0 INCRA, 0 declarante informava 0 valor total daproduc;:ao (inclusive a parcela perdida) do ana agr(cola 1971/72. 0 maior salario m(nimo em vigor no pars de 01/05/71a 01/05/72 era de Cr$ 225,60 por mes, 0 que perfaz Cr$2.932,80 por ano, contando-se 13 salarios. 0 INCRA registrou1,6 milhoes de im6veis com menos de 50 ha na faixa de rendabruta anual inferior a Cr$ 3.000,00, e cerca de 400 mil im6-veis, dessa mesma dimensao, na faixa de renda de 3 a 6 milcruzeiros. Ou seja, cerca de 80% dos im6veis menores que 50ha tinham uma renda bruta inferior a dois salarios m(nimosanuais.

(12) Esse numero e aproximadamente obtido pela diferenc;:a entreo numero de ocupantes com menos de 10 ha registradospelo Censo de 1975 e 0 numero de posseiros com menosde 10 ha cadastrados pelo IN CRA em 1972.

(13) 0 Censo Agropecuario de 1975 registrou aproximadamenteuma media mensal de 2,2 milhoes de pessoas empregadascomo assalariados temporarios, excluindo.-se os contratadospor empreitadas. 0 numero de trabalhadores temporarioscontratados por empreitada foi por n6s estimado, grosseira-mente, dividindo 0 total de despesas com servic;:os de emprei-tada no ano de 1975 por 300 vezes a diaria do trabalhador .eventual no segundo semestre daquele ano, segundo levanta-

mento do Centro de Estudos Agr(colas da FGV. Obteve-seassim 1,1 milhoes equivalentes-homens, 0 que, somado amedia de 2,2 milhoes de temporarios contratados pelos estabe-lecimentos durante 0 ano de 1975, da um total de 3,3 milh6esde trabalhadores temporarios ocupados na agricultura em1975. Isto nao significa, evidentemente, que existam 3,3milhoes de trabalhadores temporarios que vivem exclusi-vamente da venda de sua forc;:a de trabalho no setor agr(cola.

(14) Teoricamente, SaD associ ados potenciais da CONTAG todosaqueles que nao saD empregadores rurais. Ou seja, tanto osassalariados rurais propria mente ditos, como os pequenosposseiros, parceiros e arrendatarios, ate os proprietarios mini-fundistas. Para uma analise das contradic;:i5es extern as e internasda CONTAG no per(odo recente, veja-se: Luzia Guedes Pinto,(1978). A CONTAG: uma Organiza¢o Contradit6ria. Brasflia,_ iDCS/UnB. 170 pp. (Dissertac;:ao de Mestrado). (

(15) Sao Paulo e 0 Estado da Federac;:ao onde os trabalhadoresrurais tem um diss(dio coletivo de trabalho desde 1976, muitoembora isso tenha tido ate agora pouco significado pratico,devido as artimanhas legais dos 6rgaos patronais e a poucaorganizac;:ao dos trabalhadores assalariados na maior partedos sindicatos. Segundo 0 Jornal 0 Estado de sao Paulode 26/04/79, 0 nao respeitoaos (ndices de reajuste salarialfixado no diss(dio coletivo de 1978 foi a causa da quartagreve de trabalhadores rurais de que se tem notl"cia, desde1962, na zona bananicultora do Iitoral sui paulista.

(16) Ver a respeito: Martins, Jose de Souza (1980). Expropria-r;:5oe Violencia: a Questao Pol(tica no Campo. Sao Paulo,HUCITEC.

(17) Ver a respeito 0 Iivro A Questao Agraria no Brasil: Textosdos Anos Sessenta. Sao Paulo. Ed. Brasil Debates.

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Jose Graziano da Silva nasceu em Urbana, Illinois, nosEstados Unidos, tendo no entanto nacionalidade brasileira.Formou"se engenheiro agronomo, em 1972, pela EscolaSuperior de Agricultura Luis de Queir6s da USP - Piraci-caba.

Defendeu mestrado, tambem na ESALQ-USP, em1974, com uma tese na qual desenvolve uma analise criticados estudos que aquele tempo se faziam sobre a distribuirraode renda no Brasil.

Doutorou-se em 1980 no Departamento de Economiada UNICAMP com a tese: "Progresso Tecnico e Relarroes deTraballio na Agricultura Paulista".

E coordenador de um livro sobre a estrutura agraria ea produ¢o de subsistencia na agricultura brasileira e prepa-ra para a Brasiliense uma cole tinea de textos classicossobre a questao agraria .

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