análise processual e redação de manifestações processuais

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ANÁLISE PROCESSUAL E REDAÇÃO DE MANIFESTAÇÕES PROCESSUAIS 1 Bruno Costa Magalhães 2 Campinas, 24 de março de 2011. Vamos lá, pessoal? Boa tarde a todos! Estamos hoje na 11ª aula de nosso Ciclo de Palestras, que está caminhando para o final. O tema de hoje seria – e eu já digo por que seria – técnicas de redação e a aula terminaria com um tópico sobre denúncia. Mas eu vi que o assunto é muito longo e teremos que deixar o tema da denúncia para uma próxima aula. Vamos falar hoje apenas sobre redação. E mais, a redação na verdade será o tópico final da aula. Eu vi que tem tanta coisa para explicar, tanta coisa para se fazer antes de se chegar a redigir uma peça que eu preferi explicar isso para vocês do modo como eu entendo hoje. Eu nem sempre vi as coisas assim. Há pouco tempo eu comecei a colocar as coisas em ordem, porque eu vi que eu tinha que ensinar as pessoas a fazer. Eu não apenas tinha que fazer as peças, mas tinha que ensinar a fazer. E foi nesse ter de ensinar que eu fui depurando mais ou menos o processo. E eu vou explicar para vocês hoje o modo como eu vejo essa técnica de redação. Essa técnica não é só sentar e começar a redigir . Há 1

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Page 1: Análise processual e redação de manifestações processuais

ANÁLISE PROCESSUAL E REDAÇÃO DE MANIFESTAÇÕES PROCESSUAIS1

Bruno Costa Magalhães2

Campinas, 24 de março de 2011.

Vamos lá, pessoal?Boa tarde a todos! Estamos hoje na 11ª aula de nosso

Ciclo de Palestras, que está caminhando para o final. O tema de hoje seria – e eu já digo por que seria – técnicas de redação e a aula terminaria com um tópico sobre denúncia. Mas eu vi que o assunto é muito longo e teremos que deixar o tema da denúncia para uma próxima aula. Vamos falar hoje apenas sobre redação. E mais, a redação na verdade será o tópico final da aula.

Eu vi que tem tanta coisa para explicar, tanta coisa para se fazer antes de se chegar a redigir uma peça que eu preferi explicar isso para vocês do modo como eu entendo hoje. Eu nem sempre vi as coisas assim. Há pouco tempo eu comecei a colocar as coisas em ordem, porque eu vi que eu tinha que ensinar as pessoas a fazer. Eu não apenas tinha que fazer as peças, mas tinha que ensinar a fazer. E foi nesse ter de ensinar que eu fui depurando mais ou menos o processo. E eu vou explicar para vocês hoje o modo como eu vejo essa técnica de redação.

Essa técnica não é só sentar e começar a redigir. Há

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uma série de coisas que devem ser feitas antes, uma série de pressupostos que devem ser assimilados antes de você conseguir redigir uma boa manifestação processual.

É um tema muito importante. Na verdade, é um tema de ordem pública. Eu passo 2/5, mais ou menos, em um cálculo por estimativa, do meu tempo útil no trabalho corrigindo peças e buscando no processo informações que a peça feita pelo estagiário ou pelo servidor não conseguiu colocar ali. Ou seja, a peça feita pelo estagiário, pelo servidor, idealmente – em alguns casos não é assim – deve conter todos os dados necessários para a sua própria compreensão e para a compreensão do processo. Enfim, ela tem que dizer a que veio. Além disso, tem de haver uma síntese ali naquela peça dos dados que fundamentam a direção que ela tomou. Se você está pedindo uma busca e apreensão, você tem que indicar naquela peça, naquele pedido, tudo aquilo em que você se baseou, e se possível – é importante também isso – dizer as folhas em que está aquela informação. Não tem nada mais complicado que você se deparar com um processo de vários volumes, e ler na peça: na declaração de Fulano de tal – e você tem que encontrar aquilo no meio de oito volumes, para ver se de fato é aquilo. Sim, porque muitas vezes a citação é feita em um contexto, mas o que a testemunha disse não se encaixa exatamente nele, então é preciso conferir. Então você tem que compulsar o processo inteiro até achar aquilo lá. Não custa indicar as folhas. Então: conforme Fulano de tal disse (f. 297) – já fica fácil de chegar lá e olhar. Isso aí, para quem vai ler a sua peça, facilita demais.

Imaginem um juiz, com aquela pilha de processos para decidir, você pede uma coisa e se baseia em cinco elementos, e você diz onde é que estão os cinco elementos. Ele só vai olhar aquilo lá e vai pensar: é, realmente, tem razão, é isso mesmo – e vai decidir. Se você tiver que fazer com que ele procure aquilo no processo, ele pode se perder em outras linhas... ele está lá procurando e aí vê um negócio que é bom para a defesa, pronto, você já se ferrou nisso aí. Se você não mostrou onde é que está, e ele tem que procurar tudo, ele não terá tanta boa-vontade em decidir aquilo e você pode até não conseguir o que está querendo.

É importante demais isso, porque eu perco efetivamente muito tempo corrigindo erros na verdade muito bobos, que já deviam ter sido superados há muito tempo: crases, vírgula fora do lugar, frases mal-escritas, frases dúbias.

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Vocês têm aí em mãos aí uma espécie de manual de redação que eu fiz para o meu gabinete, com a ajuda do meu amigo e colega Gustavo Torres Soares, da PRM-Guarulhos, que tem algumas dicas dos erros mais comuns, erros e falhas mais comuns. Nem todos são erros, tem alguns estilos de redação um pouco complicados que não chegam a ser erros, mas eu digo aqui como é que, no meu caso, eu prefiro que seja redigido, como é que fica mais claro. E vocês podem usar isso aí para o dia-a-dia de vocês aqui na Procuradoria da República. Mas os meus estagiários, em especial, têm de seguir isso aqui à risca. Isso aqui é uma espécie de norma interna lá no gabinete.

Então, essa ideia de você se expressar bem, em especial por escrito, é uma coisa muito interessante, porque ela ajuda não só o seu procurador, que vai olhar a peça e já vai assinar direto, sem ter que corrigir nada. Esse vai-e-vem de peças corrigidas é muito desgastante. Às vezes é necessário. Às vezes de fato o estagiário não está pronto para entender tudo o que está acontecendo no processo. Às vezes ele não conseguiu entender um ponto, que você deve explicar melhor para ele, e ele vai corrigir aquele ponto. Mas muitas vezes, a maior parte das vezes, são erros, facilmente superáveis, de redação e de compreensão do processo.

Quando você consegue compreender bem o caso, consegue dar a direção correta para o caso e consegue redigir bem aquela peça, é quase certo que ela vai passar sem correções, que ela será assinada direto. Não há nada melhor do que isso, você ver que a manifestação confere com o processo, que está tudo certinho. Então você assina, e bola para frente com a próxima peça. Às vezes aquela coisa trava, você vê que aquele negócio vai e volta cinco, seis, sete vezes, caramba!, você vê que a coisa não está andando de jeito nenhum!

É muito importante que vocês também consigam se expressar melhor por escrito. Há alguma relação – embora não seja uma relação direta – entre o modo como você capta a realidade e consegue expressá-la para o outro e a sua inteligência, não é? Tanto é assim que um dos testes que se fazem para descobrir o Q.I da pessoa, o coeficiente de inteligência, é esse: você dá um tempo para a pessoa, para ela falar o maior número de palavras que ela conseguir em dois, três, quatro minutos. Quanto mais palavras ela falar, maior é naquele quesito a pontuação dela.

Um outro exemplo também interessante entre

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expressão e – nesse caso nem tanto a inteligência, mas de – maior horizonte de consciência é a psicanálise. O que é a psicanálise? É o sujeito sentar-se em frente ao psicanalista e começar a falar da sua própria vida. E ele vai falando, falando, falando e de repente ele fala uma coisa que ele não tinha percebido ainda. Estava lá no inconsciente dele, e ele consegue falar, expressar aquilo. E é pela fala que começa a cura. É pela fala que a cura psicanalítica começa. Ele fala aquilo lá e Caramba! É mesmo, entendi! E ele vai falando e entendendo mais a sua própria vida, enfim, vai articulando algumas partes dele que estavam inconscientes, que estavam desarticuladas, na sua própria experiência.

Então a ideia da fala, da expressão, não é só uma questão estética e gramatical, é uma questão de compreensão do mundo mesmo e de comunicação com o outro.

Um dos aspectos da comunicação é esse: é você ter algo na sua cabeça, você teve a experiência de algum fato, de alguma situação, de alguma teoria, e você consegue transportar – olha que interessante, não é? – da sua cabeça para a cabeça do outro, através da comunicação escrita, falada ou por meio de símbolos – sei lá, há mil formas. É uma transferência de um conteúdo, de uma experiência, de um ser humano para outro. Quanto mais transparente é esse processo, melhor é a comunicação, não é?, mais fácil é essa transmissão de informações de uma pessoa para outra.

Nos processos a gente faz isso: a gente capta do processo uma certa informação, um certo contexto, um certo crime, ou alguns crimes, decide o que vai fazer com aquilo, e pede ao juiz ou manda o delegado fazer. Enfim, a gente está ali comunicando uma ordem, comunicando algum tipo de conhecimento que você teve daquele processo, passando aquilo para a frente. E esse processo é muito complicado.

É por isso que eu não quis falar aqui somente sobre redação: a crase é assim, a vírgula é assado – isso seria muito chato e na verdade não adiantaria, pois se trata de um processo muito mais complicado. E eu tive algumas luzes nesses dias aí para explicar esse processo. Quer dizer: a gente sempre faz isso sem perceber, não é?

Eu tive a ideia de colocar isso em três fases, que na verdade são as três fases de qualquer ação humana que tenha como fim produzir um produto. Isso é o que os gregos chamavam de ações poiéticas. Há

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os conhecimentos teoréticos, que não querem mudar nada no mundo. São os conhecimentos filosóficos, por exemplo, que são conhecimentos que você tem e se sente melhor só em tê-los, ou só por tê-los você compreende melhor uma situação. Há os conhecimentos práticos, que são aqueles com que você tende a modificar alguma coisa em você ou nos outros, por exemplo, a ciência moral, a ética, é uma ciência prática, é um conhecimento prático, pois ele tende a modificar você, você fica mais virtuoso. E há o conhecimento poiético, que é aquele que tende a produzir um produto. A marcenaria, por exemplo, é uma ciência poiética, é a arte de fazer móveis. E a arte de fazer manifestações processuais é uma ciência poiética, há um processo para se fazer isso, você tem de seguir alguns passos, que, é claro, podem se entremesclar, mas eles são basicamente três.

É tão interessante falar sobre esses assuntos que você às vezes corre o risco de se perder nesse instrumento. Porque de fato a linguagem é um instrumento. No nosso caso é um instrumento para fazer a lei ser aplicada. Você pede ao juiz, você requisita ao delegado não por um fim em si mesmo, mas porque você quer que a lei seja aplicada. E há um risco muito grande de a gente se perder nisso. Quem gosta de linguagem, quem gosta de gramática, acaba se perdendo muito nisso aí. Eu às vezes me perco: quero corrigir as coisas e me esqueço um pouco do caso. Aí eu tenho que falar: Espera aí, aqui tem um crime, o negócio aqui não é só a linguagem.

Isso é o que está registrado em uma música do Oswaldo Montenegro, em uma música antiga dele, fantástica, chamada Lua e Flor, em que ele fala que amava como um pescador, que se encanta mais com a rede que com o mar. É interessante pensar sobre isso: o pescador, cuja missão é pescar o peixe, se interessa mais pela rede que pelo mar. Na música essa metáfora tem o seu lugar, mas no nosso dia-a-dia isso não é interessante. Porque o pescador que se interessa mais pela rede que pelo mar não vai pescar nada, ele voltará sem o peixe na mão, ou será tragado pelo mar, não é? Ele não se interessa pelo mar, o mar está revolto, ele não vai perceber e vai se ferrar. Então a linguagem é um instrumento, a gente não pode se fixar muito nesse instrumento, a gente tem de dominá-lo, ele tem que fazer parte da gente, é algo que tem de ser automático, você vai adquirindo aquele conhecimento e aos poucos ele é automático, você não se prende mais àquilo. Enquanto você está ali e você não conhece a coisa, enquanto você não conhece, por exemplo, o Direito Processual Penal, você pega um processo,

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você fica ali quebrando a cabeça, não é? Quando você passa a assimilar as regras, aquilo já está em você, você não pensa mais. É como andar, é como dirigir um carro. No começo você fica ali pensando: Segunda marcha, agora eu tenho que frear, o pedal do freio é aquele ali. A linguagem é um pouco assim: dá trabalho um pouco no começo mas depois a coisa fica automática, você já passa a ler as frases, a saber se a frase está espelhando a realidade ou não, se há alguma dubiedade ali, onde está o erro, onde está a falha.

Eu vou usar um pouco essa metáfora da rede e do mar para explicar um pouco essas três fases. Vocês vão estranhar um pouco porque o tema era redação, mas no fundo eu vou falar muito sobre a compreensão do processo e, na terceira fase, aí sim, sobre a redação. Por isso, porque a aula ficaria muito longa, é que eu não vou falar de denúncia hoje – mas eu vou falar ainda neste ciclo.

Então vamos pensar um pouco no pescador, não é? Qual é o fim do pescador? Qual é o objetivo dele? Seu objetivo é pescar o peixe, ou para sua família, ou para vender no comércio. Vamos pensar esse pescador como nós mesmos dentro de um processo judicial. Nossa finalidade é produzir uma manifestação processual, algumas folhas com alguns dizeres. Esse é o nosso fim – digamos que é o nosso peixe, o nosso produto.

Antes de o pescador entrar no mar, ele já tem que ter alguns conhecimentos prévios – necessariamente. Ele não pode entrar lá do nada. Eu não posso entrar lá agora no mar para pescar, porque certamente eu vou me ferrar, em especial se for à noite. Eu não sei quase nada de mar, sei muito pouco – é até estranho eu, aqui, um mineiro, falando para vocês, campineiros, de mar, não é? Ninguém aqui mora perto de praia, ninguém aqui navega. Bom, mas é uma metáfora interessante.

Digamos, o cara, antes de entrar no mar, tem de saber uma série de coisas – assim como nós, antes de pegar um processo, sabemos muita coisa sobre o Direito e sobre a vida em geral. Então, o pescador tem que saber um pouco sobre as marés, um pouco sobre as fases da Lua, um pouco sobre as constelações, um pouco sobre o rumo dos ventos, tem que saber algo sobre o hábito dos peixes, um pouco sobre os instrumentos que ele vai usar, o arpão, o anzol, a rede, tem que saber o que ele vai usar com que tipo de peixe (se ele vai pescar peixes pequenos e em grande quantidade, ele não poderá usar o anzol e nem o arpão, ele terá que pegar uma rede), ele tem que saber um pouco sobre a construção das embarcações, quando uma

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embarcação é considerada segura. Ele tem que saber inclusive um pouco sobre as leis, não é? Hoje em dia há os períodos de defeso, em que ele não pode pescar, durante uma certa época, determinado tipo de peixe. Ele tem que saber um pouco sobre os costumes sociais dos pescadores. Por exemplo: há um pescador passando mal, em apuros, com o seu barco ali próximo dele: é exigível que ele deixe sua pescaria para ajudar o pescador? Qual é o limite disso aí? Ele tem que saber um pouco sobre economia – quais são os peixes economicamente mais interessantes, como negociá-los com os comerciantes; um pouco sobre gastronomia – quais são os peixes mais saborosos. Vocês percebem que há uma série de coisas que ele tem que saber antes de entrar no mar. Está tudo na cabeça dele, está tudo ali dentro. Ele já entra no mar com essas informações dentro dele. Assim como nós pegamos um processo com todas as informações – nem todas, não é?, mas com algumas já – em nossa cabeça. Enfim, nós temos alguma ideia do que é um crime, do que se espera que o Estado faça diante de um crime, alguma ideia, por exemplo, de qual é a diferença entre furto e roubo, temos alguma ideia de qual é a nossa função aqui dentro, do que a sociedade espera da gente – nós não somos juízes, não somos defensores públicos, sabemos que o processo não pode ficar indefinidamente em nossa mesa aguardando uma inspiração, que há prazos. Enfim, uma série de fatores que nós já entramos sabendo, não é?

Quando o pescador entra no mar, o que ele vai fazer? Ele vai conferir esses dados que ele tem dentro dele com a realidade concreta. Então todas aquelas teorias, e todas as experiências que ele já teve na vida, e foram acumuladas, ele vai agora conferir com a realidade. Vai bater ali, vai entrar no mar e verá: ele sabia que se o vento está para tal lado, ele deve ir para a direção D – eu particularmente não sei como funciona isso aí. Mas enfim ele tem algumas informações ali: se é isso, então eu faço aquilo. Se é aquilo, então eu faço aquilo outro. Eu vou pescar tal peixe hoje, mas se eu não o encontrar, eu me contentarei com aquele outro; a constelação tal é a melhor para me orientar, mas ela não estiver visível nesta noite, eu me orientarei por outra. Nestas condições, eu costumo pescar determinado tipo de peixe, mas como terá uma festa especial na cidade nos próximos dias, eu darei preferência àquele outro. Enfim, ele vai entrar ali e já vai conferir tudo isso. Esses se vão virando algum tipo de realidade.

Então você encara o processo e vai conferindo o que você conhece com o que está ali no processo, se está batendo ou não está

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batendo, sempre dando prioridade à realidade. Se você tem uma teoria maravilhosa mas ela não confere com a realidade, a realidade ganha dessa teoria – pelo menos naquela situação concreta ali. Então também nós em um processo entramos cheios de teorias e experiências, e temos que conferir isso com a prática, com aquele processo ali, com aquele caso ali.

Então, enfim, você sabe que geralmente é o caso de denunciar o administrador da sociedade empresária que não repassa ao INSS as contribuições previdenciárias descontadas dos empregados. E naquele caso ali nas suas mãos isso aí aconteceu concretamente. Mas há sinais de que aquele que está aparecendo como administrador da empresa é um laranja de marca maior. Há aí uma dificuldade em simplesmente aplicar aquele postulado geral que você tinha em mente, não é?

Vocês percebem que vocês têm informações de um modo abstrato e assim que encaram um processo vão testando aquilo com o que sabem, não é? É uma troca, você tem algumas informações que constituem como que uma grade teórica, e a realidade vai meio que moldando aquilo, e você vai moldando também o que você apreende daquilo ali.

Então essa ainda é a primeira fase, a fase em que você tem informações e as vai conferindo com a realidade, você forma um quadro na sua cabeça, você tem um mapa mental da realidade na sua cabeça. Assim como você tem um mapa agora da sua casa, você tem uma noção da sua casa, se você fechar o olho você verá que tem uma imagem da sua casa, do seu quarto, a sala que fica ali, minha cama fica mais ou menos ali, isso está na sua cabeça. Você vai formando isso quando olha um processo, você vai montando na sua cabeça como foi aquele caso.

Digamos, em um crime de moeda falsa, você vai lendo: Tá bom, o sujeito tentou comprar um refrigerante com uma nota de R$50,00, aí a dona olhou para a nota, achou estranho e chamou a polícia. Então você vai montando um filme na sua cabeça sobre aquele caso. E você vai, com base nesse filme, já tentando ver que normas se aplicarão àquele caso. Lendo aquele caso é como se fossem surgindo alguns artigos na sua cabeça: Ah, passou nota falsa: art. 289 do Código Penal; foi preso em flagrante, se está preso ainda, o prazo para denunciar é de cinco dias. Enfim, você vai lendo e vão chegando informações de modo automático; você leu aquilo, cai um artigo ali, uma circunstância de lá, e você vai conferindo.

A segunda fase é a fase em que o pescador, e nós

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também, decidimos o que fazer. Você tem um panorama, montou esse quadro na sua cabeça, e decide o que fazer. É a segunda fase, a fase em que você conhece já o campo de trabalho, você leu o processo, conhece os fatos, tem mais ou menos o manejo da lei e decide o que fazer. É claro que isso não é assim automático – essas fases não são automáticas: Agora ou vou para a segunda fase, agora ou vou para a terceira fase. Não é sempre assim, às vezes essas fases vão e voltam. Você começa a ler o processo e já começa a escrever, e aí você vê que não era aquilo, você tem que voltar, entender mais, e às vezes muda o rumo, e depois você lê mais – enfim, a coisa vai e volta. Mas para fins didáticos as fases são essas.

Então você decide o que fazer. Está lá o inquérito relatado, por exemplo, e você decide denunciar, ou decide arquivar, ou decide pedir mais diligências. É a fase em que você decide o que fazer e a quem você irá se dirigir: é ao juiz, é ao delegado, é a algum outro órgão público? Enfim, é a fase de decisão.

E a última fase, também importante, é a fase da redação, em que você vai colocar tudo aquilo em prática, tudo aquilo que você conseguiu apreender do processo, que você trouxe com você, você vai materializar ali naquela peça naquele momento.

Então essa aí é a nossa situação diante de um processo. Às vezes explicando fica muito fácil, não é? Eu dei uma aula uma vez aqui em Campinas, na Escola de Governo, em 2009, uma aula prática sobre acesso à Justiça. Era uma aula para alunos que não conheciam o Direito a fundo, não eram da área jurídica. E eu fui explicando para eles que para cada lesão de direitos havia uma ação judicial correspondente. Eu fui explicando e fiz até um gráfico: Olha, Direito do Trabalho, se a lesão vem de relação de emprego, você deve procurar não-sei-quem; se é um crime, e é flagrante, você deve procurar a polícia – tudo muito bonito. Aí um aluno perguntou assim: Vem cá professor, não está muito certo isso aí não! Tem alguma coisa errada aí, porque, por exemplo, meu pai está com uma ação na justiça há seis anos e não se sabe quem vai julgar, se é a federal, se é a justiça estadual, e não resolve de jeito nenhum, e a coisa não está andando; além disso, uma vizinha minha estava apanhando do marido, e o vizinho ligou para a polícia e a polícia não foi lá. Em resumo: Isso aí está muito bonito, mas na realidade o negócio não funciona!

Com a gente é um pouco assim também. São muito

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bonitas essas três fases aí, mas quando a gente pega um processo nas mãos para fazer, não é tão fácil assim. Isso é um pouco como disse Fernando Pessoa: Navegar é preciso, viver não é preciso. Quer dizer: viver não é tão preciso assim, não há tanta precisão assim no viver. Na prática a teoria é outra. Você pega o processo, por mais que você saiba um pouco da lei, você conhece um pouco o crime, mas às vezes você fica ali meio que vacilante, não é?

Um dia a Thalita, minha estagiária, me disse que ela lia os artigos do Código Penal e estava tudo muito fácil, mas na hora do processo a coisa era diferente. E o caso era interessante porque era um caso de comunicação das circunstâncias elementares do crime (art. 30 do Código Penal). A gente lê o art. 30, que fala que não se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal, salvo se elementares do crime. A gente acha, quando não conhece o processo, que vai ter uma certidão lá, dizendo: Certifico e dou fé que neste caso comunicaram-se as circunstâncias elementares, porque o beneficiário sabia da condição do servidor. O referido é verdade. Isso aí não estará no processo nunca! Essa certidão não existe! Você terá que ver o fato concreto e tentar ver quais são as ligações necessárias para que, naquele caso, se comuniquem as circunstâncias elementares. Bem-vindos ao mundo real! No caso que tínhamos que analisar, era necessário que o beneficiário soubesse que o sujeito era servidor público, senão não se comunicava. Mas não terá lá uma certidão, para você dizer: Beleza, agora eu tenho certeza. Você terá que fazer efetivamente uma operação mental, uma operação intelectual para compreender e dizer: Aqui se aplica ou aqui não se aplica. É claro que no nosso caso essa conclusão sempre estará sujeita a uma sanção judicial – o juiz terá que ver se de fato se comunica ou não se comunica, e o juiz está sujeito ao tribunal. Mas a gente decide naquele caso se, na nossa visão, aplica ou não aplica aquela norma. Então não é nem tão preciso nem tão impreciso assim. A gente tem que analisar e decidir. No fundo é questão de analisar e decidir. De ver os fatos e decidir.

Nesse aspecto é também interessante você notar que em relação a muitos dos fatos processuais, a muitos dos casos que a gente vê, você não tem certeza de muita coisa. Nesse ponto é interessante fazer uso da teoria dos quatro discursos3, do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, que diz o seguinte. Todo conhecimento que nós temos pode ser classificado em quatro graus de certeza: temos conhecimentos possíveis (aquilo que é possível); há

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aquilo que é verossímil; há aquilo que é provável; e há aquilo que é certo. Os graus de certeza aumentando de cima para baixo.

Em um processo há esses quatro tipos de fatos. A gente nem sempre terá certeza de tudo. Na faculdade a gente é um pouco enganado sobre isso aí. A gente acha assim... a gente ouve muito sobre segurança jurídica, sobre verdade real, e isso impacta a gente – Poxa, o negócio aqui é sério, não é? Tudo tem que ser certo e real. Mas na vida real, prática, e no Direito mesmo, muitas vezes a gente não tem certeza de quase nada. A gente age, quase sempre, com base em probabilidade e verossimilhança. Em quase tudo é assim. E em um processo não é diferente, de modo nenhum é diferente.

Você tem algumas certezas. Por exemplo: o crime de moeda falsa. Vem o laudo pericial – às vezes o laudo pericial se engana também, viu? – e diz que a nota é falsa, você pegou a nota nas mãos e viu que ela realmente é falsa. Aqui eu tenho certeza de que a nota é falsa, está na cara que é falsa, porque está muito mal-feita, está até borrada, vejam só! Então, nesse caso você pode ter certeza de que é falsa. Agora, quanto à autoria, nem mesmo a confissão dá certeza da coisa – às vezes nem a confissão. Então a gente age muito com base na probabilidade.

Sobre o depoimento de um policial, se o investigado, ou o acusado, não deu motivos para que o policial o tenha perseguido, se não foi uma questão pessoal do policial com o preso, não houve perseguição, a gente pensa: Poxa, não tem motivo nenhum para o policial estar mentindo aqui, não é? Até pode ter. Alguns dizem que o policial quer justificar o seu trabalho, então ele chega lá para o juiz e fala: Eu prendi mesmo, foi ele mesmo o autor do crime. Mas, enfim, não é sempre assim: o policial às vezes fala que não sabe o que aconteceu. Então, se o policial prendeu aquele cara com a nota falsa, ele não tinha muitos motivos para mentir. Mas a gente sempre pode desconfiar disso, nunca é uma certeza absoluta. A gente vai juntando alguns elementos, e a coisa vai ficando mais provável ou menos provável, e é com base nisso que a gente faz a maior parte das denúncias.

E mais: as condenações também são assim: você vai juntando vários elementos prováveis, e no fim a chance de ter um erro é milimétrica, é de 0,1%, aí você condena o sujeito. Ou às vezes ele confessa, e aí fica quase certo, não é? São poucos os réus que confessam crimes que não cometeram. É raríssimo acontecer, embora possa acontecer. Especialmente em crimes que ficam famosos. Por exemplo: o maníaco do parque matou dez

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mulheres, chega um maluco lá e diz: Fui eu! O cara quer aparecer na televisão! Isso é uma doença psiquiátrica, o cara realmente quer confessar para ficar famoso. Mas isso é um caso raro. Em geral a confissão é tida na verdade como certa.

Mas a gente percebe que nem tudo o que a gente vê no processo é certeza. A gente tem que ver esses graus aí: a coisa é possível, é verossímil, é provável ou é certa?

Há poucos dias eu fui a uma audiência, também de um caso de moeda falsa. O sujeito estava lá no município de Pedreira, SP, próximo de Campinas. Ele foi comprar alguma coisa lá, umas cumbucas, com uma nota de R$50,00 falsa. A lojista não aceitou a nota e devolveu a ele. E ela divulgou na rádio local que havia alguém passando nota falsa ali no comércio local naquela manhã: Cuidado com não-sei-quem, com tais características, que está tentando repassar uma nota falsa de R$50,00. O sujeito ouviu aquilo no rádio e correu da cidade com sua moto, foi embora, deu linha. A Polícia Militar – eu não sei se ela ouviu a notícia na rádio ou foi acionada por alguém – foi lá no encalço dele. Os policiais se aproximaram dele, ele de moto chegando em Jaguariúna, e a Polícia vindo na direção contrária. Os policiais viram que ele descartou o tênis dele no barranco, na beirada da estrada. Ele viu a polícia, estava de moto, e jogou o tênis – sei lá como ele fez isso – jogou o tênis morro abaixo. A polícia viu, achou aquilo estranho, parou ele, pegou o tênis: havia várias notas falsas escondidas no tênis dele. Na Justiça, na cara do juiz, ele disse que foi apenas uma coincidência, que o tênis escapou do pé dele no exato momento em que a polícia apareceu, que ele não estava querendo esconder nada. Disse que foi a sogra dele quem deu aquelas notas para ele comprar alguns produtos, mas que ele não sabia que era falsa. Depois que ele soube, pela lojista, ele ficou com muito medo da situação, achou estranha a situação: Notas falsas? Minha sogra? Como assim? Ele então as colocou no tênis para devolver para a sogra, e por acaso o tênis soltou ali, foi para o barranco. O que é isso aí? É muito inverossímil esse negócio aí, não é? Não chega nem a ser verossímil. É possível? É claro que é possível, não é? Nesse caso é possível sim. Não é possível ele sair voando com aquela moto. Mas é possível que naquele momento ali, por algum motivo, o tênis tenha escapado involuntariamente do pé. Não é impossível. Mas não chega nem a ser verossímil, é muito inverossímil. O cara tenta passar nota falsa e não consegue, foge da cidade, encontra a polícia, e por mera coincidência o tênis,

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com várias notas falsas, cai naquele exato momento. Isso não é verossímil. Outra possibilidade é que ele, inicialmente, não sabia da falsidade da nota. E depois que descobriu ele passou a querer escondê-la. Isso também pode ter acontecido. Agora, o tênis escapar do pé por acaso, na hora em que a polícia se aproximou – isso aí não dá para levar em consideração.

Então, na análise do processo, a gente tem que fazer essa análise: nem tudo é certo, mas algumas coisas são muito prováveis. Se você vai juntando várias provas que dão um grau de quase certeza, você denuncia. Se há provas muito fracas, se a autoria é apenas verossímil, às vezes não cabe denunciar. É aquela dúvida cruel: denuncio ou não denuncio? Vou conseguir condenar ou não vou conseguir condenar? É uma situação complicada.

Então é assim: a vida não é simples. A vida oscila entre essas situações aí, não é? A gente mesmo, no dia a dia, a gente não tem certeza se vai voltar para a casa vivo, mas a gente sai mesmo assim, a gente vai para o estágio, a gente vai para o trabalho, e não sabe se vai voltar. É provável que volte, mas a gente não tem certeza.

Quando você se casa, você não sabe se a sua mulher vai ser fiel a você a vida inteira. Você não tem certeza. É provável. Você viaja um mês...

Comentário da plateia: ou verossímil...

(risos)

Pelo menos ela prometeu perante o padre, não é?Então essa mania de ter certeza e segurança, por um

lado é bom. Claro que é bom ter algumas certezas na vida, não é? Você não vai se casar com uma devassa, não é? Mas nem tudo é certo na vida. Você terá que saber navegar entre essas situações. Algumas certezas existem, mas outras situações ficarão em aberto... você não terá como saber tão cedo.

Vocês mesmos, e todos nós, quando a gente começa uma faculdade de Direito, no caso de vocês, muito jovens, com 17 ou 18 anos, você não têm certeza se é a sua praia, se é a sua vocação, não é? Você tem alguns elementos, você mais ou menos sente no ar o que é o Direito, quais são as carreiras, o que faz alguém que se forma em Direito, a que se dedica essa

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pessoa. E aí você vai mais ou menos pelo rumo: Ah, parece que é bom. Parece uma boa ideia. Mas certeza mesmo ninguém tem. Mesmo depois que você se forma, passa no concurso, ainda vêm as dúvidas: Será que eu estou na vocação certa?

No processo não é diferente. Nem tudo é certo. Você tem que juntar as provas, as pistas e tentar montar um quadro. Essa montagem do quadro, na sua cabeça, com algumas coisas possíveis, outras apenas verossímeis – mas que também são importantes –, outras prováveis e algumas certezas, é que vai te dar o direcionamento daquele caso.

Muitas vezes faltará uma certeza importante. Um exemplo clássico aqui: crime tributário, de natureza material, você não tem certeza ainda se o recurso administrativo que o sujeito impetrou já foi julgado. Nesse caso você tem que ter a certeza, você não pode denunciar apenas achando: Ah, eu acho, parece que foi julgado, então eu vou denunciar. Não, não dá! Você tem que ter certeza do trânsito em julgado do recurso na via administrativa. Algumas certezas são exigidas. Você não pode denunciar o sujeito, por exemplo, por moeda falsa, sem a nota, sem saber da nota. Só porque alguém olhou a nota e parecia que era falsa, mas ele correu. Aí o policial encontra o cara sem a nota. Você vai denunciá-lo porque parece? Não! Você tem que ter a prova material da falsidade. Até porque nesse caso muitas vezes você não sabe se o sujeito tinha consciência de que a nota era falsa. Então se você não sabe nem se a nota era falsa, muito menos saberá que ele sabia que era falsa.

É importante saber o qual é a certeza exigível, o que basta ser provável, o que pode ser verossímil. Então isso aí é muito importante antes de começar a escrever, é fazer a análise do processo mesmo. É um caminho que não tem como deixar de percorrer. Muitas vezes a gente passa por isso aí sem perceber, vai lendo, vai achando como se aquilo lá fosse um jornal, você leu a notícia e diz para você mesmo: Beleza, entendi, e passa para a próxima. Não é assim! Você tem que de fato articular aquela situação na sua cabeça, tem que compreender o que está acontecendo ali, não é?

Muitas vezes a gente não tem experiência suficiente para isso – e esse é o tema do próximo tópico, ainda sobre esse ponto inicial. Muitas vezes falta imaginação na gente para compreender um processo. Por exemplo, em crimes fiscais, que envolvem muita contabilidade, muita fraude, envolvem muitos papéis, muito dinheiro vivo, dinheiro que corre pela conta,

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que vai pela internet – você não entende muito bem como é que aquilo aconteceu. Eu, por exemplo, nunca tive nenhum empresário, sequer um comerciante próximo na família, eu nunca vivi um dia-a-dia de um comércio de verdade. Então, como é que eu vou saber como é que funciona uma empresa no dia-a-dia? Eu tenho que ter uma imaginação bem formada. E uma boa forma de se fazer isso é ler muitos romances, muitas biografias – nesse exemplo que eu citei, em especial biografias de empresários. O cara vai contar como ele foi decidindo a vida dele: Ah, eu tive uma crise financeira e eu tive que fazer isso, aí naquela situação eu tive que optar por não-sei-o-quê. Ele vai contando a vida dele, como ele foi decidindo as coisas, e você vai conseguindo imaginar esses fatos – que passam a ser ferramentas com as quais você vai trabalhar os processos, com as quais você vai raciocinar dali para a frente.

Eu não sei se isso está muito claro para vocês. Eu tenho um exemplo mais interessante para dar, de como a imaginação da gente, com base na experiência e nas leituras, ajuda a compreender os fatos. Pensem bem. Uma situação mais corriqueira. Vamos pensar no Rodeio de Jaguariúna, que é um exemplo mais próximo de vocês aqui.

Imaginem que você vai ao Rodeio de Jaguariúna com 15 anos de idade, acompanhado dos seus pais. Imagina lá. Com 15 anos de idade o que você entendeu da situação ali? Muito pouco, não é? Você compreendeu: tinha um show ali, alguém tocando algum tipo de música, alguma coisa para comer, interessante, legal e tal. Muito pouco você vai compreender da coisa. É claro que você capta algumas outras coisas: há alguns casais ali se agarrando, tem um rapaz querendo chegar na menina e não conseguiu, tem outro ali que conseguiu. Você já capta tudo isso, não é? Pois bem. Agora imaginem um policial que vai ao Rodeio de Jaguariúna a trabalho. Imaginem o tanto de coisa que ele percebe que você com 15 anos não percebeu, o tanto de coisa que ele capta ali naquela realidade que você não percebeu: ele suspeita do cara que parece que está armado (ele está mexendo muito aqui na região da cintura), ele vê um sujeito com uma cara muito estranha, nervoso, com cara de quem irá passar uma nota falsa para comprar o churrasquinho, ele tem noção do tamanho de uma briga que está apenas começando naquele outro lado ali. Ele tem que ter olhos de águia, mas ele não nasceu com isso. Foi a experiência dele, o dia-a-dia dele, que foi preparando ele para as situações, ele foi se acostumando a perceber as coisas. Ninguém nasce com essa percepção das coisas, a gente vai percebendo com a nossa experiência. E a leitura, a leitura

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imaginativa, a leitura de ficção mesmo, e a leitura de biografias, serve muito para isso. Você verá situações que você não é capaz de perceber, que você não vivenciou, e quando você revir aquela situação, você vai conseguir enxergá-la. Isso é impressionante! É realmente impressionante! Às vezes você não enxerga o negócio que está na sua frente porque você não consegue imaginar as relações que estão ali. Digamos, situações de pessoas que estão sofrendo por algum motivo, às vezes você nem imagina que aquilo lá possa causar sofrimento, mas a pessoa está sofrendo na sua frente, e você não consegue perceber por que ela está sofrendo – e às você nem sequer percebe que ela está sofrendo.

Digamos, em um caso de divórcio. Você, muito jovem, vai se formar em Direito e vai estar lá para julgar, como juiz de direito, um divórcio. Mas os seus pais não se divorciaram, felizmente. Na sua família ninguém se divorciou. Você nunca viu ninguém sofrer por divórcio. Nesse primeiro caso que você pegar, será difícil para você compreender o que está acontecendo ali mesmo. Você não vai conseguir entender muito bem. Claro, você saberá que se trata de um casal que se desentendeu e que está se separando, que há um divórcio, que é uma instituição prevista no Código Civil. Você entenderá a estrutura, mas você não vai vivenciar o drama humano que está ali. Você não vai conseguir perceber aquilo porque você nunca viu aquilo antes. Você terá apenas uma noção, uma notícia a respeito daquela situação real. Se for um caso muito dramático, em que o pessoal chora – tem muito disso em audiências de família, o pessoal chora muito, os filhos estão lá, aquela confusão – é claro que isso impactará você, mas você vai digerir isso apenas daí a alguns meses. Você vai começar a entender o negócio daqui a algum tempo. Isso demora um pouco, não é? É como o alimento: a gente demora um pouco para digerir a coisa.

Então essa formação de sua imaginação é muito importante para você conhecer os processos, e os detalhes dos casos mesmo. Em diversas vezes você bate o olho em algum interrogatório, você já sabe o que está acontecendo ali. Pelo jeito que o cara falou, você, que é mais experiente, já compreende o que aconteceu ali. Há alguma coisa que lhe fala ali e você conclui: Nesse caso aconteceu isso. Alguma coisa acontece em você, que você capta aquilo, e é surpreendente. Quando você está com esses dados já na sua cabeça, e você lê, você tem um panorama muito mais amplo, não é? É impressionante. E a solução que eu tenho para isso aí não é outra a não ser

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essa: ler muita literatura, e boa literatura – não é ler romances mal-escritos, que às vezes nem o autor vivenciou aquilo que ele escreveu. É ler bons autores, os clássicos. Por quê? Porque esses caras conseguiram ter experiências humanas muito profundas e conseguiram expressar a experiência por meio de palavras. Eles conseguiram aquilo que é impressionante, conseguiram transmitir para a gente experiências humanas interessantíssimas que nós não conseguiríamos captar sem que alguém dissesse para a gente. São dramas humanos interessantes, aos quais a sociedade em que você vive pode não ser capaz de lhe proporcionar o acesso. São dramas humanos que só quando a gente lê em narrativas ou quando alguém explica para a gente é que a gente percebe: É, tem pessoas que pensam assim; isso aí pode acontecer.

Então, por exemplo, você às vezes não imagina que uma empresa de cosméticos possa ser usada para traficar drogas. Às vezes você leu isso em um romance e o próximo caso que você pega você fala: Espera aí, tem alguma coisa esquisita aqui, eu vou olhar esse caso mais a fundo; é possível que esteja acontecendo isso neste caso aqui. Enfim, você já tem uma dica ali na sua cabeça para explorar um ou outro ponto da realidade, que se você não percebesse iria passar batido sem você notar. Você iria comer mosca mesmo.

E isso acontece muito mesmo com gente experiente. Eu mesmo digo que eu já comi algumas moscas. Eu pego um processo, meses depois de uma manifestação, e falo: Caramba, aqui tem um negócio, um aspecto para explorar, que eu não tinha percebido. Não é porque eu não li, mas é porque não atinei para a coisa, não deu aquele click, entendeu? Faltou imaginação para falar: Espera aí, aqui tem alguma coisa, aqui eu posso me aprofundar mais, aqui eu posso pedir mais alguma coisa. Faltou imaginação mesmo, faltou ter a imagem dessas possibilidades.

E é isso o que é interessante: a literatura vai preencher o seu imaginário com as possibilidades humanas, e isso vai lhe permitir, mais à frente, tratar essas possibilidades como algo efetivamente possível de ter acontecido naquele caso – tenha ou não acontecido. E se você não tem aquilo nem como possibilidade, você não vai conseguir chegar a perceber isso aí. E tudo isso pode resultar – e resulta – em uma peça mal-feita. Se você leu o caso mas você ficou apenas na superfície, se você apreendeu mal-mal a superfície do caso, a sua peça não vai ser muito útil, não é? Ela será inútil mesmo. O seu

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chefe terá que rever o caso, terá que pegar o caso e olhá-lo com maior profundidade, fazer o que você não fez.

Então, nesse primeiro ponto, as falhas mais comuns são essas: primeiro, a deficiência no conhecimento da lei.

Às vezes a gente não tem muito bem os artigos do Código Penal na cabeça nessa fase do estágio. Então você vai ler um caso, e não sabe que é crime, e nem em que circunstâncias exatas aquela conduta configura um crime. Nem atinou para a coisa. Às vezes o inquérito policial é para investigar o crime A, mas tem um crime B ali, e você leu tudo, mas por não conhecer a lei nem sequer percebeu que era crime. Então essa é uma deficiência muito comum.

Outra deficiência é aquela relativa ao entendimento dos fatos. Eu já falei muito sobre isso. Você lê, lê e lê e não entende o negócio. Você lê e não sabe o que é uma GFIP, você lê e não sabe o que é uma DI – essas siglas que estão por aí. Você tem que entender o que é aquilo ali. E se não souber tem que perguntar, não é motivo de vergonha! Eu não sei, eu nunca vi isso aqui, o que é isso aqui? Eu não nasci sabendo isso, como é que é isso? É preciso perguntar para compreender os fatos. É compreendendo os fatos que você vai conseguir jogar sobre eles a luz da lei, não é?

A terceira falha, também comum, é justamente essa: você conhece a lei, conhece os fatos, mas você não conseguiu muito bem juntar uma coisa na outra, por alguma outra deficiência.

A segunda fase, que é a fase da abordagem, do direcionamento, é mais simples, mas também há falhas aqui. Você compreendeu bem o caso, mas você não tem muita experiência sobre o que é melhor fazer naquele caso. Tudo bem: já há prova suficiente para a denúncia. Mas naquele caso pode ser muito útil ter também provas contra um segundo potencial denunciado. Então naquele caso pode ser interessante você pedir mais diligências. Em um caso em que você denunciaria direto, você tem a chance de ter mais um réu (culpado) ali. Então essa decisão depende muito também da sua apreensão dos fatos. É a fase em que você decide a quem vai se dirigir, em que termos, e o que vai falar, o que vai pedir. É a fase da deliberação.

E nessa fase também há algumas falhas muitos comuns.Uma falha que eu tenho visto muito nos últimos tempos

é a falha de abordagem no texto. Muitas vezes a gente acaba fazendo um

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relatório do procedimento. E muitas vezes isso é muito chato de ler. Eu faço relatório, às vezes, em papel de rascunho. Escrevo lá: Folhas tais, depoimento de não-sei-quem, folhas tais, laudo pericial – em uma folha, com caneta mesmo, para eu me orientar. Mas quando eu for escrever para o juiz, fica muito enfadonho eu falar: Às folhas tais está o ofício de não-sei-o-quê, às folhas tais, depoimento de não-sei-o-quê, às folhas tais – fica impossível de ler um negócio desse, é muito chato de ler isso aí, não é? A nossa atividade é falar sobre o Direito, que segundo Miguel Reale é fato, valor e norma, e não fato, valor, norma e documentos. A gente tem que falar sobre o fato. O nosso foco é o fato. Em alguma situação, claro, você tem que abordar o laudo pericial, tem que abordar algum documento ali, para quê? Para pedir uma perícia, é claro que isso é necessário. Mas muitas vezes, a gente inverte a coisa. A gente fala assim: Segundo o laudo pericial, a nota é falsa. Poxa, é preciso dizer: A nota é falsa, isso é que é o importante, não é o que o laudo pericial disse. Isso é, em segundo lugar, importante. Mas o fato ali é que a nota é falsa. Você tem que dizer o fato direto. Então, não é assim: Segundo fulano de tal, o acusado se dirigiu à casa às tantas horas. Você tem que dizer: O acusado foi à casa às tantas horas. Se for preciso, e quase sempre é, você dirá, entre parênteses: (depoimento da testemunha Fulano de tal – f. 15).

O que eu quero dizer é que nosso objeto é o mundo real, não é o processo. O relatório é necessário, às vezes é imprescindível, nas sentenças judiciais. Os juízes têm o dever de fazer um relatório. Para quê? Para garantir que ele leu o processo. Então ele tem que fazer um relatório. O delegado tem que relatar o inquérito policial. Nesses casos o relatório é necessário. Agora na nossa manifestação, na nossa fundamentação, temos que falar sobre os fatos, sobre a realidade, sobre o que aconteceu mesmo. Isso é importante, porque é aquela diferença entre você falar sobre História e falar de fatos históricos, você fazer crítica literária e falar sobre os fatos narrados no romance. Por exemplo: os críticos literários falam sobre o tempo narrativo em João Guimarães Rosa, moral e religião em Dostoiévski. Mas nós somos os atores do negócio, a gente não é o crítico literário. A gente é o autor do romance e às vezes e com muita frequência somos até mesmo um dos personagens. A gente tem de agir. Então você vai ficar falando: Segundo o ofício, segundo o depoimento, segundo... ? Poxa! Entrem no fato mesmo, falem da realidade: Neste caso ainda não temos provas de que o crime ocorreu. Para ter a prova, é necessário um laudo pericial, é necessária a oitiva de não-sei-

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quem. É preciso dizer sobre a realidade, voltar os pés para a realidade mesma. Em segundo plano estão os documentos, claro, que estão ali no processo. Mas é apenas em segundo plano. O nosso assunto são os fatos. E é bom a gente voltar um pouco a atenção para os fatos, voltar a descrever os fatos ali no processo, não é?

Então, por exemplo, está ali o inquérito relatado. Você não denunciará ainda. Você devolverá à polícia, para outras diligências. Então você terá de dizer qual é a sua visão do fato, e não o que está no processo. O que está lá todo mundo está vendo. O delegado já viu o que está lá no processo, às folhas tais está tal documento. Ora! Ele já sabe disso. Você terá que dizer, por exemplo: Neste caso se investiga o crime tal, a autoria está clara porque o investigado confessou, mas não há prova ainda de não-sei-o-quê. Então você vai dizer o que está faltando naquele caso e vai pedir que ele faça. É isso que é importante nesse caso, não é ficar narrando simplesmente o que tem e o que não tem. É importante voltar para a realidade mesma. E isso é frequentemente esquecido.

Uma outra falha também comum, embora seja mais simplória, mas que acontece muito, é o costume de se dirigir à pessoa errada e, às vezes, com o pronome errado. Por exemplo, chamar o delegado de Excelência, chamar o juiz de Vossa Senhoria não é certo. Você tem que saber os pronomes corretos a utilizar. Em geral, Excelência se usa para os juízes, para nós do Ministério Público, e para as pessoas que estão no último escalão dos órgãos em geral, ministérios, secretarias, prefeituras. Então prefeito é Excelência, ministro é Excelência, secretário de estado é Excelência, deputados e senadores são Excelências.

Um outro erro muito comum é não só usar o pronome errado, mas se dirigir à pessoa errada. Muitas vezes em um ofício você tem que fazer um pedido para o juiz, e você pede para o delegado. Às vezes você requisita ao juiz, isso está muito errado. Requisição é ordem, tem que ter fundamento em lei. Só pode requisitar aquele que a lei permite requisitar. Nós podemos requisitar alguns documentos para algumas pessoas, mas para outras não. Em geral a gente não solicita. Por cortesia a gente costuma solicitar documentos a outros juízes que não sejam o daquele caso. Então, por exemplo, eu estou com uma peça informativa, e eu preciso que o juiz tal me encaminhe a sentença que ele proferiu em um caso conexo. Então eu solicito a cópia da sentença. O correto mesmo é requisitar. É ordem. Mas fica muito

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chato, não é? O juiz não vai gostar de ver isso aí. E além do mais eles sempre respondem. É bom usar requisição com pessoas renitentes, o cara que não quer responder. Aí você requisita, põe um prazo para forçar o cara a responder, e aí é ordem mesmo. Mas para os juizes vale a pena solicitar, pois eles sempre respondem.

O requerimento é usado quando você espera uma decisão da pessoa. Então a gente requer ao juiz a expedição de um ofício. A gente não requer nada ao delegado, você manda o delegado cumprir as diligências necessárias, você as requisita. Você pode solicitar alguma gentileza ao delegado. Por exemplo: você requisita uma diligência e solicita a gentileza de atentar para não-sei-o-quê. Pode até ser. Mas o termo certo para encaminhar diligências ao delegado é requisição, que é uma ordem e ele não pode descumprir. Ele até pode ponderar às vezes, porque tem algumas ordens nossas que não têm nem pé nem cabeça. Olha, doutor, pense bem, tem sentido isso aí? Mas é ordem. Então é preciso usar o verbo certo para as pessoas certas, saber se dirigir de modo correto às pessoas corretas para fazer aquilo que você quer, não é?

Uma outra falha muito comum em denúncias é a falta de formalidade essencial. Denúncias onde não se pede a condenação do acusado. Isso é péssimo! Isso de fato é caso de inépcia de denúncia. Você narra o fato e não pede nada. O juiz falará: Beleza, estou sabendo do caso – mas ele não poderá condenar porque você não pediu a condenação. Isso é muito feio, mas na prática acontece de colegas não pedirem a condenação, se esquecerem de pedir, e mesmo assim o juiz condenar. O acusado também entendeu, não é?, pois ele vê escrito lá denúncia, crime, ele acaba entendendo que alguém quer que ele seja condenado. Então não há uma nulidade muito grave, mas que é uma falha muito vergonhosa é – você fazer a peça e não pedir nada.

Também na denúncia às vezes acontece de você não narrar bem a conduta. Aqui há também a síndrome do relatório. Você relata o inquérito policial para o juiz, e você não narra nada. Isso é gravíssimo. Relatório quem faz é o delegado. Você tem que narrar o fato criminoso para o juiz: Fulano de tal atirou em não-sei-quem com vontade de matá-lo. Não é: Segundo se constatou, Fulano de tal foi vitimado por um projétil originado da arma do acusado. Isso aí é notícia de jornal. Em jornal você vê muito isso, não é? Não-sei-quem morreu, encontraram-se notas falsas. Não! Você tem que

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narrar o fato e imputá-lo diretamente a alguém. A denúncia – e vocês entenderão melhor isso na aula de denúncia – é para imputar um fato a alguém. Há colegas nossos que se sentem muito pouco à vontade nessa função de acusar. É verdade! O pessoal às vezes acha que é muito grave acusar. Eu vou acusar? Logo eu? Já ouvi caso em que um colega, depois de ver tanta denúncia inepta de outro colega, chegou para ele e disse: Colega, o negócio é o seguinte: eu queria lhe falar, eu estou meio sem jeito, sem graça, mas eu preciso de falar, para o bem da Instituição. Olha, nas suas denúncias, você tem que acusar, você tem de dizer o que aconteceu mesmo, tem de narrar dizendo 'ele fez aquilo e aquilo outro'. E o outro colega ouviu aquilo e disse: Nossa, mas eu? Eu vou acusar? Logo eu? Não, eu não fico à vontade! Para essa pessoa o acusar é uma tarefa emocionalmente muito negativa. Para ela nós somos todos pecadores e não podemos acusar. Para a Religião isso pode funcionar. Ou seja: não acuse para não ser acusado, perdoe o seu próximo setenta vezes sete. Mas aqui você está sendo pago para acusar, é uma função importante e necessária para o convívio social. É a função essencial do Ministério Público. Não é condenação, você está acusando. Ali está a prova e você está dizendo que a pessoa fez aquilo. É preciso dizer mesmo. É uma falha muito grave você não narrar o fato, narrar aquilo de modo jornalístico: A polícia chegou e encontrou notas falsas, foi encontrada nota falsa – olha, nada disso é crime! Encontrar nota falsa qualquer pessoa pode encontrar na sua própria casa. Isso quer dizer que você teve o dolo de praticar o crime? Não, não quer dizer! Às vezes encontrou lá porque – sei lá – alguém foi lá naquele dia e por descuido deixou lá. Então para não correr esse risco você tem que dizer: Ele guardou nota falsa, com consciência da falsidade e tal e tal – mas veremos isso na aula que eu darei sobre denúncia.

Uma outra falha também, não muito grave, mas muito comum, são peças muito longas para pouca providência. Eu sei porque acontece isso. Vocês pegam o processo e começam a escrever a peça. Aí chega no fim e percebem que era uma coisa muito simples. Então, por exemplo: Fulano de tal foi denunciado por tal crime. Suspendeu-se o processo mediante tais condições. Ele cumpriu as condições tais e tais. E no fim você põe lá: Ante o exposto, o Ministério Público está ciente de tal ofício e aguarda a chegada da resposta. Poxa! Você gastou três folhas para dizer que está ciente de um documento e que aguarda a resposta. Você tem que pegar o foco da coisa. Você tem que dizer para quê veio o processo, qual o fim específico.

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Se ele veio e você de fato constatou nesse caso citado que o cara cumpriu todas as condições, aí você faz um relatório bem fundamentado, claro: As condições foram tais e tais. Ele cumpriu a primeira (f. 34), cumpriu a segunda (f. 45), mas se ele não cumpriu tudo não precisa fazer esse relatório inteiro. Basta você pedir: Meritíssimo Juiz, as condições de f. tais não foram cumpridas ainda. O MP aguardará o seu cumprimento – ou o MP requer a expedição de ofício a não-sei-quem. Você não precisa relatar todo o processo. Não é necessário nesses casos.

Há casos, por exemplo, em que a Alfândega manda a apreensão de dois maços de cigarros paraguaios. É claro que você vai arquivar esse negócio pelo princípio da insignificância. Aí para justificar o arquivamento de dois maços de cigarro você gasta seis folhas. Você acha que o juiz vai ler isso aí? Ele não lerá essas seis folhas. Ele lerá no máximo o final da manifestação, a conclusão. Então para um caso de menor importância, gastaremos menos tempo e menos folhas também. Por mais que você só troque o nome, você gastou seis folhas, você demonstrou que aquele caso tem alguma importância. Quanto tempo você gasta para ler seis folhas? Nem você leu nem o juiz lerá, mas não deixa de ser seis folhas! Então se o caso tem pouca importância, dê pouca importância a ele. São dois maços de cigarros paraguaios? Dez linhas são suficientes para arquivar o caso. Não há dúvida. E, claro, em questões mais sérias, você falará em cem páginas se for necessário. Se a questão pedir uma maior abordagem, você usará as cem páginas para tratar dela. É preciso ajustar o gasto de energia de vocês à magnitude do caso.

Finalmente, chegamos na terceira parte, que é a da redação.

Há algumas teorias linguísticas acontecendo aí, que dizem que é muito preconceito você querer falar certo, querer que todo mundo fale certo, querer escrever certo. Dizem: Isso é imposição da elite, tudo isso são normas criadas pela burguesia para separar pessoas entre maus-falantes e bons-falantes, entre quem sabe escrever e quem não sabe escrever. Há um autor muito famoso nessa área, que é o Marcos Bagno. Parece que os pais dele foram pessoas muito simples, e eu acho que ele tomou as dores e prega isso aí: liberdade total da língua, está tudo certo.

Eu até entendo o que ele quer dizer: muitas pessoas têm uma dificuldade física mesmo de falar direito, não é? Eu sei muito bem o

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que é isso. Tem pessoas que têm gagueira, não tem jeito, a palavra não sai, não dá para falar aquilo lá. Tem pessoas que não conseguem expressar uma certa palavra. Eu já vi muitas pessoas que não conseguem falar a palavra vive: Aquela pessoa vive em tal cidade – mas falam aquela pessoa vévi. Não é porque a pessoa não sabe, é porque ela sempre ouviu aquilo daquele jeito. E se você disser: Não, minha senhora, não é vévi, é vive – ela não vai conseguir, porque é o negócio já foi registrado profundamente no físico da pessoa. Não é burrice, não é má-vontade, é de fato o aparelho fonético da pessoa que não se acostumará a falar corretamente. Gente que fala: Dois menino – não adianta você explicar para a pessoa que é dois meninos. Às vezes até a gente mesmo fala isso no dia-a-dia. Por quê? É o aparelho fisiológico. Você sabe que o certo é um menino, dois meninos, mas na hora o seu aparelho fonético já está acostumado. Então não é questão de preconceito, mas há um costume enraizado.

Enfim, se você passou a mensagem, a pessoa apreendeu, tá bom, a comunicação cumpriu a sua função. E, ademais, juntamente com a fala nós temos acesso a outros meios de compreensão, não é? Nós temos a expressão do olhar, a expressão corporal, os gestos, o tom da voz, enfim, tem outros mecanismos para você compreender a mensagem que lhe é falada. Às vezes até pelo silêncio você compreende uma mensagem. O silêncio diz muita coisa também. Mas na escrita não tem outro jeito: a pessoa só deixou na escrita aquelas letras que estão na folha. Não tem tom de voz, não tem olhar. É só o que está escrito ali. Então se a mensagem está mal-escrita ela não é bem passada, não tem jeito. Se você não domina as regras de gramática, as regras de articulação da linguagem, será muito difícil decifrar o seu texto – porque aí será o caso de decifrar mesmo. Espera aí, o que ele quis dizer com isso aqui? Não precisamos de chegar a esse ponto, não é?

Nesse manual há até um tópico em que eu brinquei com isso aí: Essas mensagem mais complicadas, cifradas, deixem para os poetas ou para os correspondentes de guerra – que precisam passar a mensagem em cifra, os primeiros para garantir que a expressão captou bem a realidade, complexa por si mesma, e os segundos para não ser interceptados pelo inimigo. Aqui a gente tem que ser o mais claro possível. É muito comum querer complicar a linguagem sem necessidade. Eu já fui assim, já fui estagiário também. É você querer impressionar o seu chefe, usar palavras muito complicadas, não é? Insta salientar – umas coisas assim que não precisa

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usar; outrossim – isso aí, gente, não precisa usar. Houve uma época em que era possível escrever assim porque a linguagem oral era assim. Se você pega os discursos de Rui Barbosa, o cara falava assim, falava assim no dia-a-dia. Ele provavelmente dizia à mulher dele, em momentos mais dramáticos: Insta salientar, minha senhora... Mas hoje em dia ninguém fala assim mais. Não precisa falar essas palavras rebuscadas.

A gente começa a fazer estágio e já herda, já é intoxicado por esse bando de palavras que ninguém sabe usar bem, ninguém sabe usar adequadamente. Eu não sou contra falar bonito, não sou contra usar palavras bonitas. Aliás, quanto mais você domina o vocabulário, mais você domina a realidade. Se você não tem o nome de uma coisa é mais difícil comunicá-la a outra pessoa. Às vezes – é muito comum com quem viaja para o exterior – você não sabe falar bem o inglês ou o francês, e você faz gestos para comer, beber, aponta para o produto. Então quanto mais você domina o vocabulário de uma língua, mais você se comunica bem. Mas o problema está no seguinte: nos textos feitos por alguns estagiários a gente vê muito claramente que às vezes há palavras que são desnecessárias mesmo. A pessoa quer complicar muito, e ela não passa a mensagem dela. São frases que ficam às vezes sem muito nexo. Eu até trouxe um exemplo que está no manual, na página 10, é o último exemplo da página. Aliás, todos esses exemplos foram tirados de casos do gabinete mesmo, eu mudo o nome dos acusados, não digo quem escreveu, mas são casos que aconteceram mesmo. Olhem essa frase aí: No que tange a tese do flagrante preparado, é, da mesma forma, teatrológica. Não foi nenhum de vocês, eu posso garantir isso! Aí está escrito teatrológica, quando o certo seria teratológica. Quer dizer, é uma decisão sem pé nem cabeça. Teatrológica deve ser algo relativo a teatro, não é? E mais, a frase está mal-escrita. Por quê? Esse tal de no que tange, no que se refere é um desperdício. Eu leio muito nas manifestações: No que tange ao acusado tal, ele é culpado, no que tange ao laudo pericial, ele atesta a materialidade do crime. Poxa! Diga a verdade em voz direta: A tese tal é teratológica, não precisa ficar no que tange a não-sei-o-quê, é isso, no que tange àquilo outro, é aquilo. Isso aí gasta muito tempo, é chato de ler, fica uma leitura muito pausada, a coisa não fica fluente. Eu coloquei aí uma sugestão de frase mais fluente – não quer dizer que é o modo correto, mas é sem dúvida mais recomendável.

Então a pessoa abusa da linguagem e complica muito o

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meio de campo. Quer falar muito bonito mas às vezes não domina o próprio idioma. Então, o que eu quero dizer é isso: se você de fato usa palavras rebuscadas de um modo natural, quem ler sentirá a naturalidade – fiquem tranquilos! Mas a coisa tem que ser natural, não adianta você forçar a barra, porque quem ler saberá que você está fingindo. Não adianta você querer inventar moda. Através da leitura dos clássicos da literatura de língua portuguesa, de filosofia, de história, você acaba vendo aquele português difícil de ler. Mas você vê que é natural, que a coisa flui, você não compreende tudo, mas você sabe que o cara efetivamente falou daquilo que ele sentiu, daquilo que ele sabe falar. Muitas vezes nas manifestações não é isso o que a gente vê. Esse é o grande problema: a gente vê frases muito complicadas e quando você pergunta o que ela quer dizer, o estagiário responde: Ah, doutor, não sei, já estava aí, eu só mudei uma parte da frase. Mas isso é um absurdo, você tem que escrever aquilo que você mesmo entendeu!

Eu tenho a tendência de usar uma linguagem muito simples nas minhas manifestações, e eu não perco nada com isso. Eu sei usar uma palavra difícil quando é necessário no caso, mas você não tem que mostrar que você é erudito com palavras difíceis, você tem que mostrar que você é bom na análise do caso, e não na linguagem que você está usando. Isso às vezes serve para esconder a análise que foi mal-feita, não é? Às vezes você não entendeu bem o caso e você colocou umas palavras ali para impressionar, não é? Isso não adianta, só causará confusão.

O texto tem que ser translúcido, ou seja, o texto tem que passar despercebido. É possível usar aqui aquela expressão interessante sobre as traduções bem feitas: a tradução bem feita é aquela em que o tradutor não é notado. Ou seja, ao ler a sua manifestação, o ideal é que a pessoa já entre em contato direto com o caso. Se o texto da sua manifestação chama muito a atenção para si, em especial se é pelo seu aspecto negativo, é porque tem alguma coisa errada. Se ele está muito rebuscado, ou se há muitas falhas, ou está muito dúbio, você ficará preso ainda no texto, você está nele, você não entrou no caso ainda. E o assunto aqui não é o texto, é o caso concreto, é o processo. Então o texto tem que ser translúcido, tem que ser uma espécie de vidro através do qual você olha o processo. Ele vai te indicando no processo as partes principais, a sua decisão e os fundamentos dela. Essa é a função dele. Não é chamar a atenção para ele próprio.

A respeito da correção gramatical, há algumas falhas

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muito corriqueiras. Concordância verbal. Isso aí é muito chato também. Eu me formei no ensino médio sem saber gramática. Eu fui aprender gramática prestando concursos de nível médio, foi aí que eu tive que ler gramáticas. Eu achei que sabia gramática depois que saí do colégio, mas eu não sabia nada. Eu fiz três concursos, para a BHTrans, para o TRE-MG e para a TCE-MG, e não passei em nenhum deles. Aí eu comprei três gramáticas, as li inteiras, fiz muitos exercícios. E foi aí que eu aprendi realmente as regras gramaticais. E eu vi o quanto é importante, o quanto é útil você saber gramática. Para quê? Para você incorporar aquilo em você, e não ficar preso a esse tipo de coisa. A coisa já flui. E como é bom ler um texto bem escrito, fluente. Você se esquece do texto, você vai direto ao assunto mesmo, o texto o leva ao assunto.

Eu disse isso porque eu também não sabia essas coisas quando eu me formei no colégio, eu aprendi isso na época da faculdade mesmo.

Há erros muito simples que com pouco treino você consegue superar. É bom que cada um de vocês tenha uma gramática em casa, uma gramática de estimação. Eu não saberia indicar uma gramática que seja melhor – cada um tem o seu estilo. Há gramáticas muito simplórias, que são gramáticas para colégio, mas em geral as mais famosas são boas.

Há algumas regras que não há como deixar passar batido, são regras que são básicas. Por exemplo: concordância verbal. Um erro muito comum é aquele cometido pelo pessoal que não entende a tal da partícula apassivadora. Por exemplo: vendem-se cachorros. É assim que se escreve e se fala. É errado dizer vende-se cachorros. Porque o se está aí fazendo a função do verbo. É cachorros são vendidos e não cachorros é vendido. Então o correto é vendem-se cachorros.

Outro exemplo, de uma exceção: não se fala tratam-se de peças informativas, mas sim trata-se de peças informativas, porque o se aí não é partícula apassivadora. Então você tem que inverter a ordem da frase e conferir. Então, por exemplo: Fazem-se presentes provas – eu sei que é muito feio, porque não é muito estético – mas o certo é isso mesmo e não faz-se presentes provas, porque as provas estão presentes. Você tem que inverter um pouco a ordem e ver se é plural ou não. Agora, você deve falar cuida-se de peças informativas, cuida-se de autos, e não cuidam-se de autos, porque você não tem como inverter aí. Frequentemente eu vejo falhas nisso aí, inclusive de muitos colegas.

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Há falhas também em colocação pronominal. Vocês têm que entender que há algumas palavras que atraem o pronome. O correto é não se faz e não não faz-se. Palavras negativas sempre atraem o pronome para perto delas. Então o correto é não se cuida e não não cuida-se, entenderam? São detalhes pequenos, mas, enfim, existe a regra – não é lei, não é crime não fazer – mas, poxa, não custa seguir o negócio. Para quê avacalhar se tem a regra, não é? Às vezes eu penso: Poxa, o estagiário não quer aprender isso aqui. Será que eu estou sendo chato? Não! Chato é ele que não quer fazer o negócio certo, não é?

Então, nesses casos, palavras negativas puxam sempre o pronome: não, nunca. O que e o quando também puxam o pronome. Vale a pena dar uma olhada em alguma gramática, para guardar essas regras. Com o tempo, com a prática, a coisa vai ficando automática.

O uso da crase também é uma maravilha. Eu sei que há uma regra entre as pessoas que não conhecem o uso da crase, que é: Na dúvida, use a crase. Isso é péssimo! Às vezes não tem nada a ver a crase ali no lugar, mas vocês colocam porque acham que é melhor pecar pelo excesso do que pela falta. Mas às vezes é melhor pecar pela falta mesmo, porque em muitas vezes a crase é facultativa. Então, na dúvida – não é necessário ter dúvida, porque as regras são simples –, não ponha a crase.

Vocês sabem que a crase é a junção de dois ás, não é isso? Então, por exemplo, um caso de crase facultativa. Eu vou à minha fazenda. O verbo ir é transitivo indireto: quem vai vai a algum lugar. Então já tem um a aí, certo? Eu vou a algum lugar. Fazenda é substantivo feminino, então também tem um outro a aí. Então você diz eu vou à fazenda. Tem a crase, por quê? Porque juntou os dois ás e virou um a com crase. Dois ás juntos viram um à, com crase. E nesse caso é facultativo, por quê? Para testar você sempre tem que pegar uma palavra masculina. Então, por exemplo, troque fazenda por sítio. Você pode dizer, indiferentemente: Eu vou ao meu sítio ou eu vou a meu sítio. Se você tiver de usar obrigatoriamente o ao, então com a palavra feminina terá a crase, porque o a com o, no caso masculino, viram a com a no caso feminino. Também não há crase antes de verbo. Enfim, as gramáticas têm as regras todas, não é o caso de falar de todas elas, até porque eu não me lembro de todas elas. Acaba que eu faço um pouco por intuição, e às vezes eu acabo errando também. Mas são regras simples, não são mais que dez. É bom pegar isso aí, ficar uns dias com isso na carteira, e

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sempre que lembrar dar uma olhada. Você provavelmente não errará nunca mais.

Um outro erro muito comum é o erro de regência. E fica muito ruim porque não tem como passar batido, não tem como assinar a peça com um erro grave de regência. Às vezes eu até assino, ou porque eu não percebi ou porque estou com pressa e deixo passar. Assino e mando embora. Por exemplo, você coloca lá: O crime a que o réu foi condenado – isso não está certo. Ninguém é condenado ao crime, mas é condenado pelo crime ou pela prática do crime. Então, o correto é dizer: O crime pelo qual foi condenado ou o crime por cuja prática foi condenado. Você dizer o crime de peculato a que o acusado foi condenado é um vergonhoso erro de regência, e pode ser sinal de que sua percepção da realidade não está muito adequada.

Então são vários errinhos que se repetem muito, às vezes até irritam a gente. Quando o estagiário é novo a gente aceita. Mas quando o estagiário está com um ano, dois anos de casa, você vê ele errando de novo, e de novo, e de novo. É claro que é chato, não é? Parece que o sujeito está completamente fechado ao conhecimento. Parece que ele é contra fazer certo – e ponto final. A gente tenta explicar, tenta ensinar, e às vezes é falta de atenção mesmo. Você percebe que o estagiário sabe aquilo, mas ele não leu bem a peça antes de entregar, não leu com atenção, e você tem que corrigir aquilo. É uma coisa bem chata e desgastante.

Às vezes, eu vou ser sincero, quando é algum erro de crase, alguma coisa assim, eu até assino a manifestação. Mas é muito comum você ver um erro de crase e dizer esse aí passa, mas aí você vê outro erro lá na frente – aí você acaba corrigindo tudo. Não custa ficar mais atento, para saber as regras e saber usá-las.

Outro erro muito comum são os erros semânticos, que são erros no significado das palavras. Às vezes a gente usa a palavra, mas não sabe muito bem o que ela significa. A gente conhece uma nuance dela, mas vamos usar em outro sentido, e dá errado. Às vezes não é nem isso, mas você errou porque falhou mesmo. Por exemplo, o pessoal que fala em atipicidade do crime. Pô, está errado isso aí! O crime é um fato típico, para começar a conversa. Então a atipicidade não é do crime, mas é do fato ou do ato cometido. Um crime nunca é atípico. Se ele é atípico ele não é crime. Isso aí demonstra inclusive que a pessoa não atentou para aquilo que ela estava dizendo, ou ela não compreendeu o que é um crime. Entenderam? Então pela

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linguagem você vai pegando alguma falhas de compreensão da pessoa, falta de apreensão do contexto ou do objeto. Porque se a pessoa acha que um crime pode ser atípico, é porque ela não sabe que ele é, por necessidade, típico.

Um outro caso também que já é consagrado é o tal do posto que. Tradicionalmente o posto que não quer dizer tendo em vista que. Parece que é isso, mas não é. Há até um poema do Vinícius de Moraes, que diz que não seja imortal / posto que é chama, mas isso não é certo. O Vinícius de Moraes errou naquele poema. Posto que quer dizer ainda que, apesar de que. Quer dizer apesar disso, é aquilo. Ele não quer dizer posto que houve o crime, deve-se condenar o acusado. O posto que tem uma relação contrária ao que parece. Mas o uso consagrado, errado, é esse. Eu até tenho a impressão que na língua espanhola o puesto que quer dizer tendo em vista que, mas eu não tenho certeza. Eu já vi em alguns lugares com esse significado – mas não demora muito para o pessoal lá também ter invertido o uso. Eu até acho que isso deve mudar daqui a pouco, o pessoal vai consagrar o posto que como tendo em vista que. Mas para quem lê muitos livros antigos, às vezes é preciso mudar um pouco a chave de leitura. Espera aí, agora eu estou lendo uma peça de um estagiário, agora eu estou lendo um livro de Machado de Assis. Porque é exatamente o contrário, você tem que ler a frase, o parágrafo, e ver o contexto. Isso dificulta muito a compreensão: Esse posto que aqui quer dizer tendo em vista que ou apesar de quê? Eu até acho que não vale a pena usar o posto que, porque causa essa confusão.

Outra coisa muito comum – eu peguei alguns casos que eu lembrei, mas há vários – é o tal do amiúde. Amiúde não quer dizer em pequenas porções. Em alguns casos a pessoa fala assim: O acusado descarregou as notas falsas no comércio local amiúde, querendo dizer que o cara passou as notas falsas em pequenas quantidades. Mas não é isso. Amiúde não tem relação com miudezas, mas sim quer dizer várias vezes. Amiúde quer dizer com frequência. Ele vai amiúde à casa de sua noiva – quer dizer, ele vai lá muitas vezes. Mas não quer dizer uma situação em que a coisa é miúda, que se apresenta em pequenas porções. Às vezes eu pego isso aí em algumas manifestações e tenho que corrigir.

O tal do apurar em tese também é péssimo. Olha, o em tese é uma herança maldita. Parece que a gente já entra nos estágios lendo isso aí e acaba usando para tudo. O em tese é usado quando você não tem provas contra a pessoa e ainda não pode acusá-la concretamente daquele

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crime. Então, por exemplo, se em um inquérito policial há dois suspeitos, você pode, para fazer menção a um deles, falar: Ele cometeu, em tese, o crime. Por quê? Porque você não tem certeza ainda se foi ele ou se foi o outro. Mas o em tese é apenas para imputar o crime ao sujeito. Você não vai dizer que o crime está sendo apurado em tese. Ele está sendo apurado de verdade mesmo. Não é apenas em tese! A coisa ali é séria, o crime está verdadeiramente sendo apurado. E às vezes você pode até mesmo dizer que aquele investigado o cometeu. Por exemplo, se o sujeito foi surpreendido em flagrante delito, você pode dizer: O crime cometido pelo investigado, não tem muito perigo, não haverá condenação da gente a pagar danos morais, fiquem tranquilos! Ele cometeu mesmo, você não está condenando o sujeito ainda, ele não será necessariamente preso em razão da sua manifestação. Essa linguagem pode ser usada. O em tese é usado às vezes até em denúncias. Isso é péssimo. Você está denunciando o sujeito e põe que é em tese. Uai, se é em tese então é só uma questão acadêmica, não foi um caso concreto. Em tese quer dizer em abstrato. A questão é apenas uma tese, mas eu estou denunciando – isso não dá! Ou é em tese ou aconteceu mesmo. Mas em especial você deve evitar usar o apurar em tese. Se você vai colocar no inquérito policial que ele cometeu, em tese, o crime ou cometeu o crime, isso tanto faz. Mas o apurar, em tese fica muito esquisito, porque a apuração é real mesmo, e não apenas em tese.

Há também trechos desnecessários, não é? Impende salientar que é cediço; é importante ressaltar que está claro que – o pessoal complica tanto para chegar ao negócio, que fica difícil entender. Diga a coisa certa, direto! Não custa! Se você está dizendo é porque impende salientar aquilo. Se não fosse imperioso salientar você não estaria dizendo. Então você não precisa dizer que é imperioso dizer. Às vezes é um recurso retórico, e isso é permitido, mas muitas vezes é apenas um vício de linguagem, uma coisa desnecessária que torna a peça mais chata de ler. Eu estou falando que é chato, mas não é que vocês sejam chatos, mas às vezes as peças são chatas – não é nada pessoal! Às vezes eu também me pego fazendo essas coisas nas peças, leio e acho chato. Não levem para o lado pessoal, por favor...

Frases mal construídas. Isso é pior ainda. Às vezes a estrutura da frase está muito complicada. Esse tal do em relação a. Nem todos fazem isso, alguns são muito diretos. Outros gostam de falar: Em relação ao acusado tal, ela cometeu o crime. Não precisa disso! Quando ao fulano de tal, está provada a materialidade. Não precisa ficar cheio de pausas e

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interrupções. Fale direto: A materialidade do crime cometido por Fulano de tal está provada – é mais direto, é mais bonito e é mais verdadeiro.

Frases muito longas também são uma coisa ruim. Uma boa solução para isso é usar o ponto-e-vírgula. Ele é interessantíssimo, porque você não dá aquela interrupção completa na frase, mas também não continua a frase na mesma toada. Mas nem toda frase comporta um ponto-e-vírgula. Em geral depois do ponto-e-vírgula tende a haver a continuação da frase, em geral com o mesmo sujeito. Um exemplo simples para vocês compreenderem: Fulano de tal levou o requerimento ao guichê; lá conversou com Beltrano. Quando a nova oração começa com o lá você entende que aquele mesmo sujeito que está lá atrás na frase conversou com Beltrano. Você está continuando a frase antecedente. Você não pode usar o ponto-e-vírgula para uma frase assim: Fulano de tal levou o requerimento ao guichê; a prova do delito está no laudo pericial. Isso não faz sentido. Com o ponto-e-vírgula, naquele mesmo assunto, se possível com base no mesmo sujeito da frase, você continuará no mesmo ritmo do que ia dizendo. A frase fica mais repartida, e a chance de você cometer uma dubiedade é menor.

Frases muito longas contribuem para complicar muito o meio de campo. Às vezes você chega no final da frase e não lembra qual é sujeito dela – você se perde ali no meio, não é? É bom dividir a frase para você compreender o contexto de cada uma delas. Repartir em tantas frases quanto for necessário.

Gerúndio também é uma fonte de vários equívocos. Tem gente que adora dividir as frases começando com gerúndio: Ele foi ao parque, levando consigo a arma, planejando matar a vítima e atirando nela à queima roupa ou o acusado assinou o documento contendo informação falsa, contribuindo com isso para a prática criminosa, sabendo que esse documento seria utilizado para o requerimento do benefício, e tendo plena consciência da participação do servidor público – a coisa fica muito longa. Eu não tenho uma teoria ou uma técnica para melhorar isso, mas eu evito muito usar o gerúndio, porque ele complica muito o meio de campo. Ele realmente gera dubiedades. Há um exemplo nesse roteiro, de uma situação em que efetivamente o gerúndio confundiu. Você não consegue saber se ele faz menção a uma pessoa ou a outra, porque ele está distanciado dos sujeitos. Geralmente ele não é necessário, pois você pode cortar a frase naquele ponto e começar outra frase.

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E o gerúndio, por dar a noção de ação que está em andamento, às vezes te tira do foco da coisa, te impede de entender a situação (gerando, fazendo, cumprindo, furtando etc.), te tira um pouco do tempo da ação. Porque há o tempo presente, que é o tempo em que você está redigindo a manifestação, e o tempo passado, o tempo do crime. Então às vezes o gerúndio te confunde, não permite que você tenha clareza do que se trata. Fica uma espécie de nuvem pairando ali na frase.

Uma outra coisa, simples, mas que não custa lembrar, é evitar a mania de colocar todos os números por extenso e entre parênteses. Isso é uma cautela que a gente usa em cheques, em contratos, para evitar fraudes. Eu já vi muitas fraudes em cheques – às vezes o sujeito faz mágica! Consegue unir as letras e os números de um jeito inacreditável. Mesmo por extenso eles conseguem fraudar. Imaginem se fosse apenas em numeral! Então é uma cautela que se usa em situações assim, para evitar fraudes. Em manifestações processuais não tem o menor sentido dizer: Fulano de tal foi 05 (cinco) vezes à agência bancária. Eu criei uma regra particular: quando o numeral tem apenas uma palavra, eu coloco ele por extenso. Por exemplo: vinte, cem, mil. Porque é mais fácil ler, não é? Quando ele demanda mais de uma palavra, aí eu já uso o número. Por exemplo: 27, 1.100 etc. Mas eu não coloco o numeral e o valor por extenso, pois não há necessidade, nem mesmo quando é o valor de uma quantidade monetária. Então há lá uma nota de R$ 50,00 e o sujeito coloca entre parênteses cinquenta reais – isso não é necessário de modo algum. Nessa folha há algumas exceções – que não são minhas, na verdade; eu fiz a base desse manual, e o Dr. Gustavo Soares, meu colega de Guarulhos, como eu já disse, gostou da ideia e acabou acrescentando algumas regras dele também. Então ele colocou algumas regras para se escreverem números por extenso, regras que ele achou interessantes, e eu mantive aí, mas eu, em regra, não coloco por extenso. Ele estava no carro com 03 (três) pessoas – isso não tem sentido nenhum!

O básico é isso. Vocês viram que a redação da peça não é só sentar e escrever. Há um grande trabalho prévio que é até mais importante e difícil de fazer. Exige verdadeiramente toda uma formação humanística da pessoa, que tem que ter um domínio da lei mais ou menos abrangente, e um domínio da vida também, mais ou menos abrangente.

Daí que muitas vezes procedem as críticas às pessoas que passam em concursos muito jovens. Eu mesmo fui um deles – embora

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agora, depois de todos esses anos, eu já tenha alguma experiência. Mesmo que você entre muito jovem no cargo, você ainda poderá aprender muito em pouco tempo, desde que não esteja fechado para a experiência do aprendizado. Tem gente que se fecha na sua independência funcional e acha que ela vai lhe ensinar algo. Isso aí não acontece.

Mas às vezes você pega um caso e não está entendendo nada do negócio. Por quê? Porque você não tem experiência ainda. Você não está entendendo porque você não viveu aquela situação, ninguém te contou aquele caso ainda. É a primeira vez que você está vendo aquilo. Então até você entender vai demorar alguns dias. E às vezes o prazo da manifestação é de 24 horas. Como é que você fará? O prazo está correndo e você não entendeu nada, mas tem que fazer! Nesses casos você deve pedir ajuda, pois é o jeito.

Esse trabalho prévio é importantíssimo. E ele demanda isso: que você faça na sua cabeça uma imagem, uma imagem mental de todo o processo e das circunstâncias que estão em torno daquela situação concreta que você está analisando.

Há um trecho interessante, que está na folha 08 desse manual, dessas orientações. É uma parte em que eu falo da estrutura que está na sua cabeça: antes de se sentar para escrever você tem que ter uma noção do caso na sua cabeça. E essa é a primeira fase. Por que você tem que ter isso na cabeça? Porque isso que está na sua cabeça é o que fatalmente estará no papel. Não há mágica nisso aí! Você está lá, confuso com o caso, não entendeu quase nada, e acha que vai conseguir fazer uma manifestação bem-feita, passar alguma coisa para o papel? Mas não tem o que passar! Como eu disse aí, acontece algo como na relação semente-fruto. Então primeiro é preciso compreender efetivamente aquele caso, montar na sua cabeça a estrutura do caso, tentar ver todos os atores do caso – às vezes não tem jeito, às vezes há poucos depoimentos, poucos indícios, então você tem que montar com o que tem.

Muitas vezes nem mesmo os autores do crime sabem tudo. Se é um crime de quadrilha, por exemplo, um assalto a banco, o cara que ficou do lado de fora dando cobertura não sabe o que aconteceu lá dentro. Nenhum deles sabe em que hora a polícia foi acionada. Nem os caras que estão lá na situação criminosa sabem de tudo. Nós temos que montar o panorama daquela situação na nossa cabeça, com os dados que há no

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inquérito policial ou no processo. Às vezes o processo vem ao Ministério Público por alguma questão formal, mas mesmo aí você tem que montar um panorama na sua cabeça, um panorama do procedimento. E aí você pode se sentar e escrever. Às vezes acontece um vai-e-vem entre aquelas três fases: você entendeu mais ou menos, começa a escrever, aí lê um pouco mais, entende um pouco mais, e volta a escrever.

Essa compreensão que está na nossa cabeça, que a gente vai formando, é nosso patrimônio, isso é seu mesmo, ninguém tira isso de vocês. Vocês têm que formar isso, esse campo fértil, essa riqueza do imaginário. É com base nele que você vai conseguir atuar bem, decidir bem – e isso não é só para o processo não, mas para a vida de vocês mesmo. Às vezes você tem uma chance interessante na sua frente, mas você não está enxergando, você não concebe aquilo nem como possibilidade. É como se você estivesse cego para aquilo lá, você vê e não enxerga – são os mistérios da vida!

Com a experiência, com o seu imaginário mais formado, você vai conseguindo ter mais noção da realidade e vai entendendo qual é a sua função no contexto em que você está. Aí você aperta o botão certo e as coisas começam a acontecer na sua vida.

Eu trouxe aqui um trecho interessante de um livro do André Maurois, chamado Arte de viver – ou a pequena filosofia da vida4, um livro antigo que talvez vocês só encontrem hoje em sebos.

O autor vai dizendo no começo do livro – ele está lá na sala de estudos dele, nos arredores de Paris, e vai olhando pela janela, vê as montanhas e pensa em alguma coisa, ele vê uma igreja e pensa no final do Império Romano e etc. E ele vai vendo que há um mundo interior dentro dele, um mundo bem interessante, que ele mesmo vai montando dentro dele com a ajuda das coisas que ele percebe no exterior. Eu vou ler um trecho em que ele explica como ele vê isso aí e como, principalmente, ele tem que decidir com base nisso aí.

Ele fala – ele está olhando pela janela, e fala: Assim, não só os aspectos presentes do universo, mas as imagens de terras longínquas, de acontecimentos antigos, e as hipóteses sobre um futuro imprevisível... Quer dizer, mesmo aquilo que ainda não aconteceu já está aqui na cabeça, matutando …formam a matéria de minha divagação. Parece que meu espírito é um pequeno mundo interior em que se reflete, sem limite de

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tempo nem de espaço, o imenso mundo exterior. Os filósofos chamaram algumas vezes de microcosmo esse modelo reduzido do universo, e macrocosmo o mundo gigante no meio do qual vivemos e que desejaríamos compreender e transformar. “O espírito, como um anjo”, escrevia um alquimista na Idade Média, “apodera-se de todas as coisas que estão encerradas no macrocosmo”. Digamos que o espírito ensaia apoderar-se de todas as coisas e que o mundo se reflete em nós... é um ensaio, não é? Quando a gente pega um processo, a gente está ensaiando saber tudo sobre ele, mas nunca saberemos tudo. É apenas um ensaio de apreensão daquele caso por completo …o mundo se reflete em nós, deformado, como o céu e as flores se refletem na bola de vidro prateada de jardim.

E ele prossegue: O que provoca a extrema confusão desse devaneio é que tudo aqui, o espelho… nossa mente ...como o objeto, o microcosmo como o macrocosmo, está em perpétuo movimento.

Vocês percebem que a todo momento a gente muda de assunto na cabeça, não é? Você está pensando um negócio, de repente bate um vento e você perde o fio da meada, já troca de ideia. É muita confusão! O nosso mundo interno é realmente muito inconstante, não é? E o mundo externo também, as coisas mudam a toda hora!

Prosseguindo: Há uma imagem que parece mais ou menos clara: é a desta grade, dessas folhas, dessas colinas e desses pássaros, que constituem o lugar e o tempo presentes. Mas tudo o que é lembrança, antecipação, raciocínio, ondula ao léu das vagas do mar interior. Minhas ignorâncias, minhas paixões, meus erros e meus esquecimentos deformam as coisas, enquanto essas mesmas coisas tomam a cada instante formas estranhas e novas. O vasto mundo é, em nosso pensamento, como uma carta de contornos baralhados, de linhas movediças e, no entanto, temos de, a cada instante, escolher uma direção.

Vejam que drama interessante! É tudo muito mutável, tudo muda, confusão na cabeça, mas a gente tem de decidir. Aí ele dá um exemplo: o filho dele está passando mal, está muito mal de saúde: Qual é o seu mal? Físico ou moral? Quem deveríamos consultar? Que vale a medicina? É ela uma ciência verdadeira? Que é a ciência? Estas questões exigiriam, para serem estudadas seriamente, uma vida inteira, mas que fazer?

Ele pensa: O que é eu não sei, mas eu tenho que decidir o que eu farei com o meu filho doente: É preciso responder, porque nosso

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doente está à morte. Falta tempo para uma exploração do mundo exterior. A única imagem que podemos consultar rapidamente é aquela, minúscula e perturbada, que nos apresenta o nosso espírito.

Isso tem muito a ver com a gente. A gente não é um artista que pode levar três anos para pintar um quadro ou cinco para escrever um romance – porque as manifestações têm que ser feitas naquele momento, não é?

Prossegue o autor: Chamamos pensamento o esforço do homem para adivinhar ou prever, combinando símbolos ou imagens, os efeitos que produzirão seus atos entre as coisas reais. Todo pensamento é um esboço de ação.

Foi por isso que eu disse: você cria essa imagem em você e vai agir com base nela, fará a manifestação, decidirá o que fazer no processo. É a imagem da ação, é um rascunho. Você pode implementar essa imagem ou não. Às vezes você planeja fazer alguma coisa, mas desiste, embora ela estivesse em projeto na cabeça.

Continuando: Será de acordo com esse esboço que se pintará, não sem correções, o quadro de nossa vida. Para agir bem, precisamos, como dizia Pascal, trabalhar para pensar bem. E o que é pensar bem? É chegar a fazer, de nosso pequeno modelo interior do mundo, uma imagem, tão exata quanto somos capazes, do grande mundo real. Se as leis do nosso microcosmo coincidem mais ou menos com as do macrocosmo, se nossa carta representa com uma relativa precisão o caminho através do qual devemos dirigir-nos, então teremos também alguma probabilidade de querer atos bem adaptados a nossas necessidades, a nossos desejos ou a nossos temores.

Então, se você não consegue ter essa imagem do que você vai fazer, do que se apresenta a você (no caso do pescador, a imagem do mar, o que acontece com o mar em geral, e como está aquele mar naquele momento ali), sua ação muito provavelmente será deficiente.

Enfim, como é que está aquele processo que chegou às suas mãos? Ele está bem instruído, não está, o que falta nele? Se você não tem essa imagem na sua cabeça, você não vai conseguir agir bem, não vai conseguir atuar bem no processo, fazer uma manifestação bem feita, porque há uma falha de concepção dentro da sua cabeça. Não existe mágica nesse negócio. Eu quero viajar, mas eu não sei para onde, não tenho o mapa e não

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tenho o carro. Ora, então você não vai viajar, meu filho! Você será levado por alguém para algum lugar.

Então é importante isso aí, você ter essa consciência do mundo interior de vocês, para aí sim começar a redigir. A redação, na verdade, é muito mais simples do que parece. Ela é muito prática. Você tem que ter prática na redação, você tem que ler bons autores – e há autores no mundo jurídico que escrevem muito mal; às vezes são bons porque falam a coisa certa, mas a redação deles é péssima. Então é preciso saber em quem se espelhar para escrever bem, não é? Há autores de obras jurídicas que são fantásticos. Você vê que o sujeito escreve muito bem, são livros em que você pode se inspirar. Mas em outras situações você tem que deixar de lado o modo como o autor escreve e se inspirar em outros autores mais bem preparados.

Na redação em si não há muito segredo, é mais questão de saber as regras e praticar. Mas esse processo interior e anterior é mais complicado e mais trabalhoso, é coisa para ir aperfeiçoando a vida inteira.

Então vocês já viram que não tem como falar de denúncia hoje, tema que ficará para a próxima aula.

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1 Esta é a transcrição, com adaptações e alguns pequenos acréscimos, da palestra proferida no Ciclo de Palestras para os estagiários e servidores da Procuradoria da República no Município de Campinas, SP, ocorrido entre fevereiro e abril de 2011. As notas de rodapé foram acrescentadas posteriormente ao texto.

2 Procurador da República em Campinas, SP.3 A teoria dos quatro discursos na verdade é uma tentativa de reconstruir a estrutura de parte do pensamento do

filósofo grego Aristóteles através da captação de indícios colhidos em suas obras remanescentes – em geral, notas de aulas. Segundo o próprio autor da teoria, cuida-se de afirmar expressamente aquilo que Aristóteles não disse, mas que – ao que tudo indica – sabia e levou em conta na estruturação de sua atividade filosófica. A teoria está exposta no livro Aristóteles em nova perspectiva. Introdução à teoria dos quatro discursos. Editora É Realizações, São Paulo. O texto pode ser acessado, em parte, no sítio eletrônico do filósofo Olavo de Carvalho: http://www.olavodecarvalho.org/livros/4discursos.htm

4 Arte de Viver, de André Maurois. Editora Vecchi, Rio de Janeiro, 7ª Edição, 1971, p. 11-14.