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    imagens

     e

     miragens Anais

     V congresso de Letras Clássicas e Orientais – LECO / UERJ

    Org.

    Amós Coelho da Silva e Fernanda Lemos de Lima

     Horus Educacional

    ISBN: 978-85-60250-30-1

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    Apresentação

    O V Congresso de Letras Clássicas e Orientais e I Congresso Nacional de Letras

    Clássicas e Orientais: Homenagem ao Prof. Dr. Nestor Dockhorn tem o apoio do Instituto

    de Letras –  UERJ, tanto em relação aos espaços físicos e multimeios quanto em relação à

    colaboração de funcionários e Direção: Profa. Dra. Henriqueta do Couto Prado Valadares e

    Profa. Dra. Maria Alice Gonçalves Antunes, sem o qual não seria possível tal realização.  

    O V CLCOIL  –   UERJ define-se com o tema geral: Imagens e Miragens: a

    Instância do Olhar na Antiguidade Clássica e Oriental   e pretende reunir, divulgar e

    ampliar múltiplos estudos sobre o mito clássico e oriental na sua formação, agenciamento,

    intertextualidade e interpretação a partir de disciplinas como Literatura, História das

    Civilizações, Religiões, Filologia, Linguística, Antropologia, Filosofia e Arte - buscandouma compreensão interdisciplinar nos pontos que assim são, promovendo o intercâmbio

    nacional e internacional dos estudos e pesquisas nesses campos, colaborando, no campo da

    ecdótica, com as demais áreas de estudo das Ciências da Linguagem, através de edições

    diplomáticas, críticas etc. e facilitando as interações entre as diversas subáreas dos estudos

    das linguagens humanas.

    É um evento promovido pelo Departamento LECO do Instituto de Letras da UERJ e

    será realizado nas dependências da própria Universidade, com apoio e suporte físico e

    administrativo do Instituto de Letras. 

    Prof. Dr. Amós Coelho da Silva e Profª Drª Fernanda Lemos de Lima

    Comissão Organizadora

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    Sumário 

    “Notícias sobre os poemas eróticos dos pré-neotéricos da Roma Antiga” Airto Ceolin Montagner ......................................................................................... 6 

    “Epístola dedicatória a Mem de Sá: reflexos de Gloria” Alice da Silva Cunha ............................................................................................. 10 

    “Comentários literários, históricos, estilísticos, sintáticos e filológicos sobre osTristia III, 14, 1-40 de Ovídio” Aline Chagas dos Santos ....................................................................................... 18 

    “O Espelho” Amós Coelho da Silva ........................................................................................... 30 

    “Machado e Petrônio” Ana Paula Vasconcelos ......................................................................................... 40 

    “Costumes e hábitos estrangeiros sob a ótica do investigador romano” Ana Thereza Basílio Vieira .................................................................................. 51 

    “Morrer em Homero, reviver na memória” Bruna Moraes da Silva ......................................................................................... 62 

    “Os olhos são, no amor, os guias” Carlos Ascenso André ........................................................................................... 71 

    “A mulher pelo olhar do homem feminino” Christiane Lima da Camara Monteiro ............................................................... 84 

    “Roma em Joachin du Bellay e Ottorino Respighi” Delia Cambeiro ...................................................................................................... 99 

    “O delinear do corpo feminino na Gynaicologia hipocrática” Dulcileide Nascimento ..........................................................................................107  

    “Os preceitos básicos do xintoísmo, budismo e confucionismo nos valores japoneses” Elisa Massae Sasaki ..............................................................................................120  

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    “Entre o Antigo e o Moderno: Kaváfis e a construção imagética de umahomoerótica Alexandria” Fernanda Lemos de Lima ................................................................................... 130 

    “Credo ut intelligam –  intelligo ut credam: a reciprocidade circular da relação entre

    fé e razão no pensamento de Agostinho de Hipona” Francisco de Assis Costa da Silva ...................................................................... 142 

    “Olhos nos olhos no texto bíblico” Jane Bichmacher de Glasman ............................................................................ 151 

    “A relação entre o homem e a natureza no Japão –   literatura, cinema e música” Janete Oliveira ..................................................................................................... 163

    “Aulo Gélio  –  perscrutador grego-romano” José R. Seabra ...................................................................................................... 173 

    “O quantum est in rebus inane: a estética do grotesco em derrocada na urbe e nomodus loquendi de Persius Flaccus” Luciana Póvoa de Almeida Silva ....................................................................... 178

    “As antíteses nos versos de Tirteu” Luciene de Lima Oliveira ................................................................................... 182 

    “A dinâmica do mos maiorum na constituição da identidade romana” Luiz Fernando Dias Pita ..................................................................................... 187 

    “O platonismo implícito e explícito de Apuleio” Luiz Karol ............................................................................................................ 198 

    “A elegia latina sob um olhar trágico” Márcia Regina de Faria da Silva ....................................................................... 201 

    “Patronato e clientelismo nos epigramas de Caiado” Marcio Luiz Moitinha Ribeiro ........................................................................... 211 

    “Um olhar entre o pr ivado e o público no episódio do encontro entre Heitor eAndrômaca no canto V”Marco Antonio Abrantes de Barros .................................................................. 216 

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    “Entre um olhar e um canto: uma leitura do projeto topológico de Michel Foucaultentre o olhar de Orfeu e o canto das sereias” Mary Kimiko Guimarães Murashima .............................................................. 221 

    “Recursos cômicos e de humor no livro III do  De re rustica de Varrão de Reate”

    Matheus Trevizam .............................................................................................. 236

    “O qi do taoísmo antigo no neijing  e problemas da transmissão no ocidente” Orley Dulcetti Junior .......................................................................................... 246 

    “O shen: noção do pensamento do taoísmo antigo e problemas na transmissão destasabedoria chinesa no ocidente” Orley Dulcetti Junior .......................................................................................... 260 

    “O filho sacrificado e a vingança destruidora –  Hipólito e Fedra” Pedro Ivo Zaccur Leal ........................................................................................ 269 

    “ Fazer ver o invisível, designar um olhar em nosso mundo a entidades do além: aimagem, o olhar e a religião: história e desenvolvimento da iconografia grega naobra de Jean Pierre Vernant”Pe. Pedro Paulo Alves dos Santos ...................................................................... 277 

    “Um olhar entre gr egos: Eurípides e Karyotákis” Tatiana Bernacci Sanchez .................................................................................. 288 

    “E as letras se fizeram forma, gesto, corpo e ação: as figuras de linguagem”  Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa ....................................................................... 298 

    “Diogo de Teive e as núpcias do príncipe João e da princesa Joana: as diversas facesda virtude” Vanda Santos Falseth .......................................................................................... 310 

    “Perseu e a mitopoese do olhar reflexivo” Walter Boechat .................................................................................................... 318 

    “Théatron, o espaço das imagens e da ilusão: da Antiguidade aos nossos dias” Zelia de Almeida Cardoso .................................................................................. 323

     

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    NOTÍCIAS SOBRE OS POEMAS ERÓTICOS DOS PRÉ-NEOTÉRICOS DAROMA ANTIGA

    Prof. Dr. Airto Ceolin Montagner (UFRRJ)

    O termo  poetae novi ou neóteroi, à grega, foi uma expressão irônica usada porCícero para definir os seguidores de uma corrente inovadora que desenvolvia um “modernogosto” literário que se firmava no primeiro século antes de Cristo. Como essa tendênciaincluía uma irreverente recusa dos valores da tradição romana, personificada por Ênio,Cícero também chamou-os de cantores Euphorionis, referindo-se a Euforião de Cálcides, poeta do III século a. C., famoso pela pesquisada densidade e pela preciosa erudição dassuas composições, características da poética alexandrina.

    Quando observamos o contexto em que esses poetas se inserem, percebemos queeles compreendem apenas um dos aspectos de um fenômeno mais amplo, que é ahelenização dos costumes e as transformações dos modos de vida decorrentes das

    conquistas romanas do século anterior. Com a anexação do mundo helênico a Roma, doismodos de vida são postos em confronto: a sociedade arcaica dos soldados-cidadãos latinose as populações já habituadas a formas de vida mais refinadas do Mediterrâneo oriental.Trata-se de um fenômeno civilizatório, que encontra em Roma a tenaz hostilidade doscultores das tradições, a exemplo de Catão.

    À medida que a literatura sofre influência dessa renovação, enfraquecem-se asformas prezadas pela tradição, como a preferência pelos gêneros moral e politicamenteempenhados, como a épica e o teatro, e emergem novas exigências ditadas pelorefinamento do gosto e da sensibilidade. Embora os poetas antecessores também tenham-seinspirado nos autores gregos, os  poetaenovi  estabelecem novas escolhas imitando-lhes osaspectos eruditos e preciosos que caracterizavam os alexandrinos. Tomam deles o gosto

     pela contaminação entre gêneros e pela experimentação métrica, buscando um léxico e umestilo sofisticados. Quanto ao conteúdo, sua poesia desobriga-se do culto das tradições edos deveres sociais. Seus cultores são uma elite culta romana que, ironicamente, dá espaçoao otium,desprezando os empenhos civis e dedicando-se à leitura e às conversações doutas;os sentimentos individuais e privados são postos no centro das preocupações, haja vista oamor e o desvelo pela elaboração formal e amaneirada das composições poéticas.

    O exemplo mais contundente da presença neotérica está na poesia nugatória, a qualalcança seu apogeu em Valério Catulo. Ali, percebemos o descarte da tradição literárialatina, a elegância amaneirada e o artificioso experimentalismo praticado a partir demodelos gregos, especialmente a valorização do otium, isto é, do tempo livre dedicado aos prazeres e ao convívio, à margem de um sistema cujos valores estão centrados nos deveres

    do civis. A poesia neotérica, sob o ponto de vista literário, apenas coroa uma tendência hátempos sensível na cultura latina: de um lado, com a decadência do modelo republicano,surge o desinteresse pela vida ativa gasta a serviço da urbs; por outro lado, o interesse pelootium, do tempo livre dedicado às letras e aos prazeres, à satisfação das necessidadesindividuais e privadas. É, pois, uma revolução de caráter ético e uma crise dos valores domosmaiorum que que substancia o novo gosto literário. Tais transformações amparam-se nadifusão do epicurismo, filosofia que predica a renuncia aos negotia politico-militares emfavor de uma vida tranquila e apartada, dedicada ao convívio com os amigos. Se o

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    epicurismo está presente entre os neototéricos, há uma diferença: os epicuristas buscam aataraxia, ou seja, o prazer sem perturbações; para eles, o éros é uma doença a ser evitada, pois é fonte de angústia e dor; para os neotéricos, o amor é o sentimento central da vida,fulcro e razão de vida a inspirar sua poesia.

    A afinidade de gosto entre os vários poetas da época reúne-os em círculos onde os

    contatos propiciavam encontros, discussões e leituras comuns para estabelecer uma críticafilológica acompanhada de uma atividade poética baseada no trabalho da forma, noescrupuloso cuidado pela composição, o paciente labor da lima. Trata-se pois, de umaatitude poética baseada em Calímaco, talvez o primeiro a opor-se, ironicamente, ao épos homérico, criticando o poema longo e prolixo, mas propondo um novo estilo, inspirado nabrevitas  e na ars. Da mesma forma, os neotéricosridicularizamos seguidores de Ênio, os pomposos cultores da épica tradicional, cultores das glórias passadas, estranhos ao gostoatual. Vemos então Catulo criticando Volusio, Sufeno, Ortênsio. Prevalecem os gênerosadvindos de Calímaco, os poemas breves, mais adaptados ao trabalho do cinzel, ao laborlimae, como o epigrama, o epíio, poema mitológico de pequenas dimensões. Taiscomposições, ensejam ao poeta manifestar sua erudição e urdir refinadas estratégiascompositivas.

    Hoje, a palavra neóteroi  é empregada pela crítica sem o acento irônico impetrado por Cícero. Reconhece-se nesse movimento uma virada definitiva no gosto literário latino, projetando no passado a literatura precedente e estabelecendo o gosto moderno comodefinitivo.

    Se falar dos neotériocos é falar de Catulo, pela dimensão de sua obra, não podemosesquecer que ele é apenas aquele que culmina todo um processo. Alguns poetas sãodesignados de pre-neotéricos, ou seja, aqueles que verdadeira mente encetaram odesenvolvimento do novo gosto. Dentre eles se destaca Lutácio Cátulo, um aristocrataeminente, cônsul na época da batalha contra os cimbros (101 a.C.). Homem poderoso,reúne em torno de si um círculo de literatos que comungavam do mesmo gosto pela poesialeve e de entretenimento. Escreveu epigramas inspirados no éros, do qual transcrevo umfragmento:

     Aufugit mi animus; credo, utsolet, ad Theotimum Deve nit. Sic est, perfugiumilludhabet.Quid, si non interdixem, ne illuncfugitivum Mitteret ad se intro, sedmagiseiceret? Ibimusquaesitum. Verum, neimpsinetneamur Formido. Quid ago? Da Venus, consilium.

    [Meu coração é fugitivo; como de costume, creio,foi até Teotimo. Isso mesmo: é lá que tem seu refúgio.Que aconteceria se não lhe tivesse proibidoDe dar refúgio àquele fujão?Se não lhe tivesse imposto de escondê-lo?Irei procurá-lo, mas tenho grande medoDe ser eu mesmo capturadoQue fazer? Dá-me, Vênus, um conselho!

    Outro poeta é Valério Edítuo, autor de epigramas eróticos de feitura amaneirada. Eisum exemplo, variação de um poema de Safo, também retomado por Catulo:

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     Dicere cum conor curam tibi, Pamphila, cordis,Quid mi abs te quaeram, verba labrisabeunt,

     Per pectusmanat súbito mihisudor:

    Sic tacitus, subidus, dum pudeo, pereo.(Dísticos elegíacos)

    [Quando eu tendo, Pânfila, dizerte a dor do meu coraçãoE aquilo que desejo de ti,restam os meus lábios mudos

    E de improviso, em chama meu peito se banha de suor:Assim mudo, ardendo, fico envergonhado aqui, a morrer.]

    Quid faculampraefers, Phileros, quaenil opus nobis? Ibimussic, luce tpectore flammasatis.

     Istamnampotis est vis saevaextinguereventi Autimbercaelocandiduspraecipitans:

    [Por que, Fílero, trazes a tocha diante de nós?[Não é preciso: caminharemos sem.Basta, para fazer luz, a chama do meu coração.

    O teu facho, pode apagá-lo a força selvagem do ventoOu uma lívida nuvem de chuva que se desencadeia do céu.]

    Outro pré-neotérico do qual possuímos fragmentos é Lévio, autor de  Erotopaegnia (Gracejos amorosos), do queal restaram cerca de cinquenta versos, no qual os mitos maisfamosos da tradição épica, como as histórias de Eitor, Helena, Circe, Protesilau eLaudamia, tornam-se temas de amor, narrativas apaixonadas, retratados com mórbidasensualidade. Segue abaixo um exemplo em que Heitor se dirige á coroa de flores trançada por Andrômaca:

    Te Andromacha per ludummanu LascivolaactenelullaCapitimeo, trepidanslibens, Insólita plexitmunera.

    [Andrômaca por brincadeira te enlaçouCom a ágil mãozinha delicada;Trépida e amorosa te enlaçoupara cingir-me a cabeça:Um dom extraordinário!]

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    Lévio tornou-se célebre também pela relativa liberdade com que realizavacomposições estranhas e também por experimentar formas métricas inusitadas. Seuscarmina figurata são composições cuja forma e ordem dos versos sugerem o objeto de queo texto é assunto Uma sanfona, um pássaro.

    O que se observa em todos eles, segundo conte e Pianezzola (1995, p 10), é que os

     pré-neotéricos, principalmente as composições de caráter nugatório, são muito dependentesdosmodelos helenísticos. Lévi, no entanto, elabora mais originalmente os textos que imita,tentando novas possibilidades expressivas. Por isso, ele pode ser considerado o maisimportante precursor da poesia neotérica da época de Valério Catulo.

    Referências bibliográficas:

    CATULO. O livro de Catulo. Tradução, introdução e notas de João Angelo Oliva Neto.São Paulo: EDUSP, 1996.CICADA, Piero e BARONI, Raouletta. Sintesiletteratura latina. Milano: Avaliardi, 2001.CONTE,GeianBiagio e PIANEZZOLA, Emilio. Storia e testi dela letteratura latina.Milano:Le Monier, 1995.MARIOTTI, Italo. Letteratura latina: storia e testi. Bologna: Zanichelli, 1989.MEDICI, Dorotea.  Poesia erotica latina. Note di Renato Badali. Milano: TascabiliBompiani, 1993.

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    EPÍSTOLA DEDICATÓRIA A MEM DE SÁ: REFLEXOS DE GLORIA 

    Profa. Dra. Alice da Silva Cunha (UFRJ)

    A epístola dedicada a Mem de Sá, Governador Geral do Brasil, que ora se nosapresenta para análise, integra a edição de 1563 do poema épico De Gestis Mendi de Saa,de autoria do Pe. José de Anchieta. Embora não se encontre, no manuscrito relativo à obra,qualquer referência a seu autor, suscita este fato alguns questionamentos que não chegam,entretanto, a comprometer a atribuição de autoria da referida obra ao Pe. José de Anchieta, por ser prática comum do autor, talvez, por humildade, deixar no anonimato as suascomposições poéticas, reservando, assim, a sua assinatura apenas a cartas ou documentosem que se fizesse necessária, ou mesmo, imprescindível.

    A referida obra anchietana acha-se em consonância com os parâmetros veiculados pela Antiguidade Clássica. Coaduna-se, pois, com o movimento humanista, cujos alvoresatingiriam o território português, segundo afirmação do Doutor Costa Ramalho, já noséculo XV, com a chegada a Portugal de Cataldo Parísio Sículo, no ano de 1485, com o propósito de cuidar da educação de D. Jorge, filho bastardo de D. João II. Portanto, à épocaem que José de Anchieta compõe sua obra, o humanismo encontra-se não apenasconsolidado, mas alcança acentuada projeção no contexto cultural lusitano.

    A inauguração do Colégio das Artes, fundado em Coimbra, por D. João III, no anode 1548, constitui um fato de enorme relevância no âmbito dos estudos humanísticos emPortugal. Mestres de renome tanto portugueses, muitos dos quais a lecionarem no exterior,

    como estrangeiros passam a integrar o quadro docente desta importante instituição deensino, que se torna uma referência no que diz respeito aos Estudos das Humanidades.

    José de Anchieta que nasce em Tenerife, nas Canárias, chega a Coimbra no ano de1548, em companhia de seu irmão mais velho, Pedro Nunez. Ao contrário do que ocorrecom seu irmão Pedro Nunez, cuja freqüência se acha documentada nos arquivos dauniversidade, não há qualquer documento comprobatório da frequência de José de Anchietacomo aluno do Colégio das Artes. Apenas por via indireta pode-se registrar a sua presençano referido Colégio: no processo movido contra Diogo de Teive, consta o nome de seualuno José de Anchieta, arrolado como testemunha, juntamente com D. Jorge de Ataíde,seu colega da primeira classe ministrada por Teive. Dada a sólida educação recebida desdea infância, o ingresso de Anchieta no Colégio das Artes deve-se ter limitado às classes maisadiantadas; sua dedicação aos estudos é reconhecida e mencionada por seus biógrafos eencontra, sem dúvida, respaldo em sua obra.

    Como missionário da Companhia de Jesus, embarca em Lisboa, a 8 de maio de1553, e chega a Salvador nesse mesmo ano. Sua atuação em terras brasileiras se faz notarem diversos momentos, alguns deles bastante críticos, envolvendo situações de difícilsolução, como, por exemplo, os conflitos existentes com alguns povos indígenas. Por sua

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     primorosa educação e vasta cultura, dedicou-se não apenas à missão evangelizadora, mastambém às questões relacionadas com o ensino: funda o colégio de Piratininga (1553), maistarde, transferido para outro local com o nome de Colégio de São Paulo, estando, assim,vinculado à fundação da cidade de São Paulo. Aplicou-se, com esmero, a ensinar os jovensque pertenciam à ordem, os filhos de portugueses, os indígenas e os mamelucos; dominava,

    com grande maestria, não apenas a língua portuguesa, mas também a espanhola e a latina;e, ainda, no que se refere à esfera dos estudos lingüísticos, empenhou-se na aprendizagemda língua dos indígenas, elaborando uma gramática do tupi. Em latim, compôs o primeirogrande poema literário escrito no Brasil: De Beata Virgine Dei Matre Maria.

    O padre Anchieta, que trabalhava em estreita colaboração com o padre Manoel da Nóbrega, esteve, segundo relatos da época, na armada de Estácio de Sá, o capitão-mor,quando este entrou na baía de Guanabara, com o objetivo de lançar os fundamentos dacidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Além do mais, acompanhou o GovernadorGeral do Brasil, Mem de Sá, em 1567, estando presente no derradeiro combate travado

    contra os franceses, empresa vitoriosa que culminou com a expulsão definitiva dosfranceses da costa do Rio de Janeiro. Este feito glorioso de Mem de Sá constitui o ensejo para a composição do poema heróico De Gestis  Mendi de Saa  a ele dedicado, o qual seconfigura de acordo com os princípios estabelecidos segundo os modelos de composiçãovigentes na Antiguidade Clássica. A primeira edição do poema vem à luz, em Coimbra, acargo do tipógrafo João Álvares, no ano de 1563.

    Objeto do presente estudo, a Epistola Nuncupatoria, dedicada a Mem de Sá, integranão só a editio princeps, mas também as edições elaboradas, a partir do manuscrito deAlgorta. A citada epístola, composta em dísticos, metro usualmente empregado no gêneroepistolar, perfaz um total de 108 versos, e constitui o que se poderia considerar um

     preâmbulo dos fatos a serem narrados no poema heróico propriamente dito. A narrativa dacarta como um todo reveste-se de um teor laudatório, uma vez que prenuncia a bem-sucedida gesta empreendida por Mem de Sá, durante o período em que ocupou o cargo deGovernador Geral do Brasil.

     Nota-se, logo no primeiro dístico, de forma bastante contundente, e algo conclusiva,os parâmetros por que se vai orientar o desenvolvimento do poema.

    “Adspicis en quantum su peri diuina TonantisPatrauit uirtus, maxime Rector, opus.” 

    (v.1-2)

    [ Eis que tu já podes ver, ó ilustríssimo Governador, quãograndiosa obra realizou o poder divino do Supremo Tonante.]

    De imediato, delineiam-se os dois planos que fundamentam a estrutura do poema: o plano divino e o plano humano. Anchieta, em sua elocução, dirige-se à principal figurarepresentativa do reino, em solo brasileiro, para tanto faz uso da forma superlativa maximerelacionada a rector , deixando, deste modo, patente que o governador se acha investido de

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    todas as honrarias pertinentes ao cargo que ocupa. Nesse mesmo dístico, assinala, ainda, o poeta, numa referência ao poder divino, ser tão magnífica obra realização do DeusSupremo. Cabe, aqui, considerar o emprego do epíteto Tonantis, referente a Júpiter nostextos clássicos, atribuído, na epístola, ao Deus Cristão. Procedimento este largamentedifundido na Renascença, cujas origens remontariam à Idade Média. Há, pois, que se

    considerar, aqui, dois aspectos: de um lado, a inegável vertente religiosa inerente ao poema,motivada, até mesmo, pela condição de ser o próprio autor um missionário, empenhado naárdua e difícil missão evangelizadora; de outro, o fato de que este aspecto, no contexto daobra como um todo, não inviabiliza a importância da ação humana como fator essencial detransformação da realidade social da qual emerge. Assim sendo, os feitos realizados porMem de Sá são dignos não só de reconhecimento, mas também de celebração, por parte detoda uma coletividade, a exemplo do que ocorre com aqueles que merecem serconsiderados heróis.

    A epístola constitui, de certo modo, um prólogo à obra  De Gestis, cuja temática

    versa sobre lutas empreendidas durante o governo de Mem de Sá, terceiro GovernadorGeral do Brasil, que à sua chegada se depara com inúmeros problemas, desde os conflitosindígenas, até as invasões externas levadas a cabo por franceses, no litoral do Rio deJaneiro. Diante de situações tão caóticas, em que, para além de tudo o mais, grassavam a peste e a fome, tentou pacificar os indígenas, com a prestimosa ajuda dos jesuítas Manuelde Nóbrega e José de Anchieta. Estes, empenhados em sua missão evangelizadora,conforme o descreve o próprio Anchieta em sua obra, têm a sua frente, além dessa ingentetarefa, todas as dificuldades inerentes às condições inóspitas que envolvem todo umcontexto de uma dada realidade, profundamente marcada pela carência, em alguns casos,absoluta, dos meios necessários para a própria sobrevivência.

    O cenário bélico é, por assim dizer, inusitado, uma vez que os combates têm lugarem terras brasileiras, espaço este pertencente a um Novo Mundo, cujo conhecimento resultadas grandes viagens empreendidas por navegantes que singraram mares ainda por navegar.Abre-se, pois, aos olhos dos homens da Renascença um mundo, até então, desconhecido,espaço das Descobertas, que altera substancialmente os conhecimentos geográficosdifundidos pelos antigos. Refere-se, portanto, este poema a uma época conturbada porinúmeros fatores que tornam bastante vulnerável a situação, já por demais crítica,vivenciada na colônia. A empresa é deveras imensa, a começar pela própria natureza,exuberante e bela, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, inóspita, desconhecida, e, por quenão dizer até, ameaçadora, com os riscos a que estariam forçosamente sujeitos aqueles queousassem desbravá-la. A conversão dos gentios, ou seja, dos próprios habitantes da terraconstitui um fator essencial no processo civilizatório empreendido por Mem de Sá, o qualencontra paralelo na luta contra os invasores franceses, que, para além de fatores de ordem político-social e econômica, professavam a doutrina protestante. Estes, unidos aos índiostamoios, impuseram firme resistência aos portugueses e índios aliados, na baía deGuanabara. No embate derradeiro, Mem de Sá alcança a almejada vitória e, à maneira do

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    que, por vezes, sucede aos que praticam atos de heroísmo, reveste-se a sua gesta de umaaura que o dignifica e o torna singular.

    “Iam nunc egregii laetabere laude triumphi: Haec peperit nomen nobile palma tibi.

    Redde Deo laudem, propriis qui uiribus hostesMoeniaque inuicta contudit alta manu:Ipsius est etenim saeuos superare tyrannos;Trudere ad ima malos, tollere ad alta bonos.” 

    (V., 37-42)

    [Já podes, agora, alegrar-te com a honra deste egrégio triunfo: esta palma alcançou-te umnome ilustre. Dá graças a Deus, que com seu próprio poder derrubou com sua mão

    invencível os teus inimigos e as soberbas muralhas. Pois, a Ele somente o poder de venceros cruéis tiranos, lançar às profundezas os maus, erguer às alturas os bons.]

    O triunfo é conquistado, após sucessivas e acirradas batalhas, em que as forçasenvolvidas nos combates eram desproporcionais, quer em número de soldados quer nosrecursos bélicos com a utilização de novos armamentos cuja capacidade de destruição era bem maior do que o dos equipamentos de guerra empregados em épocas anteriores.Assim sendo, o embate de Mem de Sá contra os franceses, detentores de um poder bélicosuperior, unido a um contingente numeroso de homens em combate, resultado da aliançacom os índios tamoios, exige não só coragem, mas cuidados e esforços de toda a ordem, pois, somente assim, poderia trilhar os caminhos que o levariam à vitória.

    A celebração da vitória, preconizada na carta - dedicatória, configura-se, pois, deacordo com as normas clássicas de composição, em que o herói se acha revestido demerecida glória, uma vez que suas ações, dignas do maior apreço, encontram respaldo nomérito que lhe é conferido por toda uma coletividade, em estreita sintonia com os ideais prefigurados na missão a ele destinada. Portanto, ao vencer o inimigo invasor, Mem de Sá(herói) se torna digno de receber a palma do triunfo, alcançando, assim, o troféu quesimboliza a glória. Seguindo a esteira dos clássicos, a glória conjuga-se com o louvor, namedida em que os seres humanos desejam ser lembrados e reconhecidos por seus atos.

    O conceito de glória, na Antiguidade Clássica, é objeto de acirradas disputas,mormente no que diz respeito à busca desenfreada da glória, que, tantas vezes, mergulha oser humano na desgraça. Muitos são os caminhos que podem conduzir o homem à glória;

    além dos feitos heróicos, há que se considerar também os atos vinculados à vida pública, bem como o engenho e a arte demonstrados no campo das letras. Conforme o refere MariaHelena da Rocha Pereira, em  Estudos de História da Cultura Clássica, a etimologia dovocábulo  gloria é desconhecida, contudo o seu emprego, no âmbito da literatura latina, éatestado desde Ênio. Cícero escreveu o De gloria, tratado esse que se perdeu, e a que fazmenção no  De Officiis, deixando, ainda, expresso o seu devotado amor à glória em váriasde suas obras, dentre as quais se pode mencionar, por exemplo, o discurso no qual faz a

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    defesa do poeta grego Árquias. Assim sendo, no  Pro Archia, assinala: “...trahimur omnesstudio laudis, et optimus quisque maxime gloria ducitur .” (XI,26) [ somos todos seduzidos pelo desejo do louvor, mas são, particularmente, os melhores, os conduzidos pela glória.];em outro passo da referida obra afirma: “... et de meo quodam amore gloriae nimis acrifortasse, uerum tamen honesto uobis confitebor.” (XI,28) [e do meu especial amor à glória,

    revelar-vos-ei ser ele talvez demasiadamente intenso, mas, entretanto, honesto], criticando,assim, alguns filósofos, cujo desprezo à glória manifestava-se, a seu ver, apenas no níveldas aparências. Portanto, seria lícito ao ser humano aspirar à glória, pois, antes de tudo omais, representa o reconhecimento coletivo das ações realizadas por um ou mais indivíduosintegrantes de uma dada sociedade. Acrescente-se, ainda, um outro aspecto de enormerelevância subjacente à obtenção da glória: o fato de se lhe atribuir uma natureza positiva,uma vez que se circunscreve àqueles notadamente reconhecidos como bons. No  Pro Sestio, o orador latino adverte: “...qui autem bonam famam bonorum quae sola uere glo rianominari potest, expetunt, aliis otium quaerere debent et uotuptates, non sibi.” (LVI,138-9)

    [ aqueles, porém, que anseiam a boa fama dos bons, a única que pode, verdadeiramente,ser chamada glória, devem desejar o ócio e os prazeres aos outros, não a si próprios.]Assim, a concepção de glória reveste-se de um teor eminentemente positivo, pois estárestrita ao mérito dos que praticam ações dignas de louvor, cujo reconhecimento encontra,também, guarida em homens de bem. Deve-se, pois, assinalar, nesta reflexão acerca daglória, o caráter amplamente positivo que envolve este conceito, se comparado ao que severifica, por exemplo, em relação à fama, que tanto pode ter um sentido positivo comonegativo. Nesse sentido, Cícero, em Tusculanae Disputationes reafirma esse mesmo teor:“ ... ea [gloria] est consentiens laus bonorum” ( III,3) [ ela [a glória] é o louvor unânime dos bons].

    O culto da glória, entre os antigos, encontra lugar de relevo nas cerimônias públicas,na realização dos jogos, nos cortejos, na construção de arcos, verdadeiros marcos dotriunfo, e também nas obras literárias, mormente, nas epopéias, verdadeiros monumentoserguidos à celebração dos feitos heróicos. No Renascimento, a celebração da glóriaencontra um campo fértil para a sua disseminação, advindo, notadamente, da recepçãoengendrada pela retomada dos valores preconizados pela cultura clássica. Acrescente-se,ainda, o fato de que sensíveis mudanças ocorrem neste período da História, momento emque as marcas do progresso se fazem notar nas mais diversas áreas do conhecimento,através de invenções e descobertas, promovendo, deste modo, o alvorecer de uma nova era,fundamentada no conhecimento científico, que tem como esteio o primado da razão. Avisão antropocêntrica afigura-se, então, como uma característica essencial desta época, emque o homem se depara com um novo mundo, que lhe instiga, ao mesmo tempo, o interesse pelo saber nas mais diversas áreas do conhecimento, e o desafia como enigma.

    Ao se retomar a obra anchietana, mais precisamente, a epístola em questão, a palmada vitória concedida a Mem de Sá, representa, sem dúvida, o galardão que lhe é devido porsuas ações heróicas, contudo, em sua elocução, Anchieta lembra ao governador oagradecimento que deve dirigir a Deus pelo auxílio recebido no combate; demonstrando,

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    assim, estar a sua glória vinculada à piedade. No contexto histórico, encontra-se, portanto,um dos pilares de estruturação do poema, fator de inegável importância, uma vez queconstitui o referencial a partir do qual se articulam os demais elementos pertinentes àtessitura do texto epistolar. O vivenciar dessa dura realidade instiga o poeta a recriar aatmosfera bélica, campo propício para o desenrolar da ação heróica, dando ensejo à

    manifestação da uirtus  como meio de alcançar a glória. É evidente que, no poemarenascentista, a glória se reveste, a exemplo do que se pôde observar na concepção daglória entre os clássicos, de toda uma valorização semântica positiva, na medida em que aação reconhecidamente heróica é patenteada por homens tidos como os melhores de umadada coletividade. Há que se ressaltar que, no poema, o plano divino sobrepõe-se aohumano, assim sendo a proteção divina à ação heróica de Mem de Sá reveste-a de uma auraimpregnada de religiosidade, que encontra ressonância no ideal de cruzada pertinente àexpansão ultramarina portuguesa.

    Em outro passo do poema, o autor adverte o seu interlocutor para os riscos que

    correm aqueles que se lançam à busca desenfreada da glória, instando-o a seguir o caminhoque o conduz à verdadeira glória.

    “Laudibus adspira, caeli quibus affluit aula, Si tua contigit pectora laudis amor:

     Nam subito mendax praesentis gloria mundiDeperit, et nimia mobilitate fugit;

    Scilicet effracti per rimas uasis ut undaEffluit, et plenum non sinit esse sui:

    Sic honor effugiens elabitur atque liquescit,Per mediasque abiens effluit usque manus.” 

    (v. 43-50)

    [Aspira aos louvores, com que se pode chegar à moradaceleste, se o amor da glória atingir o teu coração. Pois, desúbito, perece a falsa glória deste mundo, e, com extremarapidez, desaparece. Certamente, do mesmo modo que a águaflui pelas fendas de um vaso rachado e não se pode enchê-lo,assim também é fugaz a honra que escorre, se esvai e escapa, passando por entre os dedos.]

    Em sua reflexão acerca da glória, o poeta contrapõe aspectos valorativos que

     permitem elucidar, de alguma maneira, as conseqüências a que estão sujeitos os homensque, a qualquer preço, almejam a glória. Numa época profundamente marcada por uma busca, até certo ponto, desenfreada da glória, quer no nível individual ou coletivo, o autordeixa transparecer em sua linguagem a religiosidade que lhe vai na alma, e adota o símile,tão comum na linguagem bíblica, como expressão mais convincente e, poder-se-ia atémesmo dizer, mais eficaz para transmitir os ensinamentos da doutrina cristã. Assim sendo,é vã toda a glória, fruto da soberba, que escraviza o homem, fazendo-o perecer: ‘sic transitgloria mundi’.

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    A verdadeira glória encontra a sua essência em Deus, somente a Ele deve seratribuída, a Ele o único Senhor. Por isso, imbuído de um espírito, cujas raízes repousam nohumanismo cristão, o poeta, imprime ao texto um viés que reitera o seu compromisso coma catequese.

    “Si sapis, a Domino uerae pete munera laudis Quae uenit: A Domino gloria uera uenit.Si sapis, instabilis mendacia respue mundi,

     Ne te compedibus uinciat ille suis:”(v. 59-62)

    [Se quiseres ser prudente, busca os dons da verdadeira honra,que vem de Deus: A verdadeira glória vem do Senhor. Sequiseres ser prudente, despreza as falsidades deste mundo, para que não te acorrente com os seus grilhões.]

    A sabedoria, que rege o homem sensato, deve estar também presente no herói, razão pela qual o poeta, em seu ardor missionário, o exorta a suplicar a Deus, fonte da verdadeirasabedoria, os dons necessários para que possa alcançar o discernimento; fator esteindispensável à percepção das aparências enganosas que revestem a glória do mundo, causade tantos infortúnios para aqueles que se apegam, de forma desordenada, às ilusões de quesão mais propriamente reféns.

     Nos versos subseqüentes, Anchieta reafirma a importância dos feitos realizados porMem de Sá, digno do triunfo alcançado e por isso objeto da mais elevada consagração.

    “Te manet aethereus thalamus; te lucida Olympi 

    Templa serenati, maxime Mende, uocant:Cuius inhumanis laudari nomen in orisEfficis, extollet nomen ad astra tuum;

    . Aeternamque tibi diuina laude coronamReddet, et aetherei sceptra superba poli.

    Dumque per australes Christi celebrabitur oras Nomen , et aeterni lexque fidesque Dei,

    Qui tibi succedent insignes fascibus, ibuntIndeclinato per tua facta pede.” 

    (v. 95 – 104)

    [A morada celeste te aguarda; chamam-te, ó ilustrissimo Memde Sá, os fulgurantes templos do sereno Olimpo: Aquele cujonome fazes honrar nas plagas bárbaras, erguerá o teu nomeaté os astros; e, com divinos louvores, te concederá umacoroa eterna e o cetro imponente do etéreo firmamento. Eenquanto o nome de Cristo for celebrado pelas plagasaustrais, e a lei e a fé do eterno Deus, aqueles que te

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    sucederem, insignes com as honrarias do poder, seguirão,com passo firme, o percurso dos teus notáveis feitos].

     Neste último excerto, o poeta dirige-se ao herói, maxime Mende, evocando, de certomodo, o primeiro dístico da epístola, maxime Rector , como que a prenunciar o ciclo que se

    fecha em torno do governo de Mem de Sá. A imagética da vitória assume contornos deuma verdadeira apoteose. A glória alcançada por Mem de Sá configura-se, ao longo detodo o poema, como verdadeira; conta com o reconhecimento de toda uma coletividade,comprometida com a sua missão; a coroa e o cetro, símbolos da realeza, ser-lhe-ãoconferidos por Cristo, cujo nome fez conhecido nas regiões austrais. Assim, a glória emseu divino esplendor, ilumina com seus reflexos os feitos humanos, dignos de louvor,revestindo-os da aura da imortalidade.

    Referências bibliográficas:

    ANCHIETA, Joseph de.  De gestis Mendi de Saa. Introdução, versão e notas do Pe.Armando Cardoso, S.J. São Paulo: Edições Loyola, 1986.CIDADE, Hernani. Lições de Cultura e Literatura  Portuguesas. Coimbra: Coimbra EditoraLimitada, 1951. vol. I.PEREIRA, Maria Helena da Rocha.  Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.RAMALHO, A. da Costa.  Estudos sobre o século XVI . Lisboa: Imprensa Nacional –  Casa da Moeda, 1983.------.  Para a História do Humanismo em Portugal . Lisboa: Imprensa Nacional –  Casa daMoeda, [s.d.] v. III.

    RODRIGUES, P. Vida do Padre José de Anchieta, S.J . São Paulo: Edições Loyola, 1978.

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    COMENTÁRIOS LITERÁRIOS, HISTÓRICOS, ESTILÍSTICOS, SINTÁTICOS EFILOLÓGICOS SOBRE OS TRISTIA  III, 14, 1-40 DE OVÍDIO

    Profa. Aline Chagas dos Santos (UFRJ)

    1.  A elevação de Caio Otaviano e a restauração de Roma

    Caio Júlio César Otaviano, membro do último triunvirato da República, foi o primeiroimperador de Roma, recebendo do Senado, no ano 27 a.C, o título de Augusto ( Augustus),que significa “magnífico” ou “venerado”. Nasceu em 24 de setembro de 63 a.C e foiadotado em 45 a.C por uma irmã de César.

    Devido à morte de César, ele reivindicou a herança de seu pai adotivo e se tornou rivalde Antônio, o então senhor de Roma. Em 43, formou, com Antônio e Lépido, o II

    Triunvirato, solução de compromisso que dividiu o mundo romano entre os triúnviros.Um novo regime foi instalado, o principado: uma monarquia organizada atrás de uma

    fachada republicana. Novas instituições consolidaram o novo Estado: Augusto cercou-se deum Conselho Imperial, e o Senado, reformado, foi despojado de grande parte de seus poderes políticos. Criou também um corpo de funcionários nomeados e recrutados por ele:a ordem senatorial e a ordem equestre. Encontra-se, também, na reorganização das províncias, essa preocupação de centralização. Elas foram divididas, de um lado, em províncias imperiais, que necessitavam da presença de tropas, para onde o imperadorenviava seus legados; e, de outro lado, em províncias senatoriais, pacificadas, que

    respondiam ao Senado.Augusto se mostrava um grande administrador, principalmente quando procurouimpedir a desordem, que atingia toda a Itália, abrindo novas estradas, restaurando Roma.“Tentou melhorar as condições de vida na Itália e fazer com que os pequenos proprietáriostomassem a posse dos imensos latifúndios que se haviam acumulado nas mãos de alguns,assim como procurou revalorizar a família e a religião, pondo fim à decadência moral, quelentamente ia se alastrando”, (LEI, Raquel Lindenblatt Madeira de. O emprego dos troposna elegia ovidiana. Rio de Janeiro, UFRJ, 2005, Dissertação de Mestrado em Língua eLiteratura Latina). Exercia funções religiosas, pois era o sumo pontífice, isto é, o chefe dareligião romana. Manda construir novos templos, reaviva e incentiva velhas cerimônias

    religiosas e o culto das antigas divindades, ressuscita o velho culto da reverência aosoberano.

    Durante o resto do longo reinado de Augusto, a paz reinou perfeitamente, e, atravésdela, o mundo prosperou. Pode-se considerar que nesse momento começa em Roma o augeda literatura latina, que se torna, então, a força operante do Estado Romano. O culto e oexercício literários passam a ser, até, sustento de alguns cidadãos romanos. Percebe-se ogosto pelas letras, que se desenvolve sempre mais. São formados círculos literários, onde a

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    leitura pública se torna importante fato social. Surgem as primeiras bibliotecas públicas,frequentadas pelos cidadãos romanos.

    O florescimento da poesia tem como contexto o poder centralizado e a imortalidade doimperador é alcançada através da proteção concedida a poetas e literatos. É por esse motivoque a literatura latina cresce bastante nesta época.

    1.1 A poesia elegíaca em Roma

    Atualmente, a ideia de elegia está muito ligada à expressão da tristeza, ao lamento, àsaudade e à recordação de momentos significativos da vida.

    Voltando-se às origens do gênero elegíaco, percebemos, todavia, uma abundância decomposições acompanhadas de música, através da flauta, abordando vários temas. Essascomposições serviram de veículo à expressão patriótica; assumiu, depois, caráter moral e,finalmente, sentimental. É por esse motivo que não podemos classificar as primeiras elegias

    apenas como lamentos.A elegia não existia, na Grécia antiga, enquanto gênero literário. A composição dos poemas era, para os antigos, em dísticos formados de um hexâmetro e de um pentâmetro,mas poemas que não possuíam nem unidade de tema nem de tom.

     No período alexandrino, a elegia se torna uma das formas literárias prediletas e foramos autores helenísticos que aperfeiçoaram o gênero, prescrevendo os princípios da novatécnica.

    Para o entendimento da constituição da elegia romana é essencial observar a poéticaalexandrina, uma vez que a elegia também provém da literatura grega.

    Segundo a professora doutora Ana Thereza Basílio (2005: 34) em Roma, o precursor

    do gênero foi Catulo, poeta que soube harmonizar um intenso subjetivismo aos ditames danova escola e que conseguiu anunciar, através de três poemas realmente consideradoselegíacos, 65, 66 e 68, a marca da poesia amorosa e erótica que os grandes elegíacos daépoca de Augusto desenvolveriam mais tarde.

    “Sabendo-se da influência dos autores gregos na estruturação do estilo catuliano, podemos dizer que muitos dos assuntos tratados em Calímaco (poeta alexandrino) sãoretomados nas composições de Catulo. O tratamento amoroso foi um dos temas de destaquedessas obras. Catulo assume uma atitude inovadora ao retomar os temas e as regras domestre alexandrino, acarretando, com isso, um cunho original ao tratamento do amor emsuas composições”, afirma Raquel L. M. Lei (2005:21).

    Desta maneira, a modalidade literária nascida da imitação de originais gregos, supera-os através de uma maior expressividade e vai ganhar impulso com Tibulo e Propércio,responsáveis por grande quantidade de elegias, e com Ovídio, último elegíaco latino da Erade Augusto, cuja versatilidade poética o fez passar por diversos caminhos da poesia.

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    1.2. Ovídio

    Dos poetas líricos que viveram na época de Augusto, o mais versátil é Ovídio.

    Talentoso e culto, irreverente e irônico, Publius Ovidius Naso nasceu em Sulmona, em 20de março do ano 43 a.C., de uma rica família de cavaleiros.

    Muito jovem, foi mandado para Roma com um irmão, mais velho, para estudarespecialmente eloquência e jurisprudência com os mestres mais célebres: Arélio Fusco e M.Pórcio Latrão. Desde cedo sentia-se atraído pela poesia e o que experimentava escreverquase sempre resultava em verso.

    O pai de Ovídio tentava acabar com esta aptidão, lembrando-lhe que ela não trariavantagem. O poeta atendeu a tais conselhos, preparou-se para o foro, começando a advogarem Roma.

    O poeta exerceu, com brilho, cargos elevados em Roma. Por esse motivo, poderiater chegado ao senado pelo seu talento, mas Ovídio resistia ao trabalho e não sendoambicioso deixou de buscar a dignidade senatorial, dedicando-se ao culto das musas e àociosidade.

    Único herdeiro do patrimônio deixado por seus pais, pois seu irmão falecera aos 20anos, o poeta vivia no meio dos prazeres e fazendo versos, cercado de amigos atraídos peloseu talento e cultura.

    Com um pouco mais de 20 anos, era admirado por seu talento e quase célebre. Foicontemporâneo e amigo de Horácio, Tibulo, Basso, Pôntico e era íntimo de Propércio.Virgílio era de uma geração mais antiga de poetas, que por isso mal o conheceu.

    Casou-se pela primeira vez muito jovem, mas depressa se divorciou, e o mesmoaconteceu com a segunda mulher. Encontrou finalmente o amor na terceira mulher, Fábia,que lhe conservou o seu afeto também durante o exílio.

     No ano 8 da era cristã, o poeta no auge de seus triunfos literários, inesperadamente,recebe um decreto imperial que o relegava para Tômis, hoje Constança, sobre o Mar Negro,sem uma razão aparente. Tômis estava no Ponto Euxino, país dos getas e sármatas, nosconfins do império romano. Era um lugar desagradável, horrível, detestável, e, segundo o poeta, nada no universo podia ser mais triste que Tômis. O clima do Ponto Euxino erainsuportável para Ovídio; não se acostumava com as águas, a casa em que habitava nãotinha conforto e a alimentação era inadequada. Por esse motivo, o poeta se julgava uminfeliz e chorava sempre, procurando o alívio para a sua tristeza, na poesia. Tinha sempre aimagem da cidade, de sua querida esposa, de sua confortável casa e de seus verdadeirosamigos.

    O exílio do poeta é um dos mistérios da antiguidade. Ovídio alude várias vezes arazões que omite, fazendo vagas alusões ora à publicação da Arte de amar ora a um erro.Apesar de tudo, o poeta sofreu uma forma mais suave de exílio, a relegatio, que lhe permitiu conservar os bens e direitos civis em Roma.

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    Percebe-se tudo isso nos Cantos tristes e nas Cartas Pônticas, onde Ovídio reuniusua poesia do exílio. Na juventude, escreveu a Arte de Amar ( Ars Amatoria), os Remédiosdo Amor ( Remedia amoris), Produtos de beleza para o rosto da mulher ( De Medicamine Faciei Feminae), Heróides e Amores. No período da maturidade, o poeta escreveu asMetamorfoses ( Metamorphoseon Libri) e os Fastos ( Fasti), poema que trata do calendário

    religioso romano, ficando incompleto por causa do seu desterro.Após várias tentativas em vão, desiludido de conseguir o perdão do imperador e

    voltar a Roma, Ovídio morreu no ano 17 d. C., tendo ficado desterrado por 8 anos.

    2. Texto da Elegia: Tristia  III, 14, 1-40

    2.1 Original latino

    Cultor et antistes doctorum sancte uirorum,Quid facis ingenio semper amice meo ?ecquid, ut incolumem quondam celebrare solebas,

    nunc quoque, ne uidear totus abesse, caues ?conficis exceptis ecquid mea carmina solis 5

     Artibus, artifici quae nocuere suo ?immo ita fac, quaeso, uatum studiose nouorum,

    quaque potes, retine corpus in urbe meum.est fuga dicta mihi, non est fuga dicta libellis,

    qui domini poenam non meruere sui. 10 saepe per externas profugus pater exulat oras,

    urbe tamen natis exulis esse licet. Palladis exemplo de me sine matre creatacarmina sunt; stirps haec progeniesque mea est.

    hanc tibi commendo, quae quo magis orba parente est,hoc tibi tutori sarcina maior erit. 16

    tres mihi sunt nati contagia nostra secuti:cetera fac curae sit tibi turba palam.

     sunt quoque mutatae, ter quinque uolumina, formae,carmina de domini funere rapta sui. 20

    illud opus potuit, si non prius ipse perissem,certius a summa nomen habere manu:

    nunc incorrectum populi peruenit in ora,in populi quicquam si tamen ore mei est.hoc quoque nescioquid nostris appone libellis, 25

    diuerso missum quod tibi ab orbe uenit.quod quicumque leget (si quis leget) aestimet ante,

    compositum quo sit tempore quoque loco.aequus erit scriptis, quorum cognouerit esse

    exilium tempus barbariamque locum : 30

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    inque tot aduersis carmen mirabitur ullumducere me tristi sustinuisse manu.

    ingenium fregere meum mala, cuius et ante fons infecundus paruaque uena fuit.

     sed quaecumque fuit, nullo exercente refugit, 35

    et longo periit arida facta situ.non hic librorum, per quos inuiter alarque,copia: pro libris arcus et arma sonant.

    nullus in hac terra, recitem si carmina, cuiusintellecturis auribus utar, adest. 40

    2.2. Tradução 

    Ó cultor e santo chefe dos homens doutos,Que fazes sempre amigo de meu talento?Por ventura, como costumavas outrora homenagear a mim incólume,Agora também cuidas para que eu não pareça estar inteiramenteausente?Por ventura reúnes meus poemas, excluídas somente 5As artes que prejudicaram a seu autor?Pois bem, age desta maneira, suplico, ó cultor dos poetas novos,E da maneira que puderes, conserva minha obra poética na cidade (emRoma).O exílio foi ordenado a mim, não foi ordenado aos meus livros,Que não mereceram o castigo de seu autor. 10Frequentemente o pai desterrado é banido para longínquas regiões,É permitido, entretanto, aos filhos do exilado ficar na cidade.À semelhança de Minerva, os meus poemas foram originados de mim,sem mãe;Esta é minha família e descendência.Recomendo-a a ti, pois quanto é órfã de paiTanto maior será o encargo para ti como tutor.Três filhos meus acompanharam minha desgraça:Age ostensivamente para que o grupo restante esteja sob teus cuidados.Existem também quinze volumes das Metamorfoses,Poemas arrancados do funeral de seu autor. 20Aquela obra podia, se eu mesmo não me tivesse desgraçado antes,Ter um nome mais seguro pela última demão:Agora chega incorreta à presença do povo,Se, entretanto, alguma coisa de mim está na presença do povo.Ajunta também a meus livros qualquer obra que seja,Que chegue enviado para ti de uma região afastada do mundo.Todo aquele que o ler (se alguém o ler) que pense antes,Em que época e também em que lugar ele foi escrito.Será benevolente para meus trabalhos, quando tiver reconhecido

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    Que o tempo deles é o exílio e o local um país bárbaro: 30E admirar-se-á de que eu no meio de tantas adversidadesTivesse podido compor algum verso com minha infeliz mãoAs desgraças enfraqueceram meu talento, cuja fonteEra antes infecunda e a veia fraca.

    Mas qualquer que tenha sido, retraiu-se, sem nenhum exercícioE tornando-se árida pela longa inação se perdeu. Não há aqui abundância de livros, pelos quais eu seja estimulado eentretido:Em lugar dos livros, os arcos e as armas ressoam. Ninguém existe nesta terra de cujos ouvidos me utilizeE que possam me compreender, se eu recitar meus versos.40

    3. Comentários sobre os Tristia III, 14, 1-40

    (verso 1)Cultor et antistes doctorum sancte uirorum,

    Caio Otávio recebeu do Senado o título de  Augustus  em 27 a.C. que significava“magnífico” ou “venerado”. A sua posição era ma is alta do que a de um cidadão comum,logo o nome de  Augustus  aplicava-se aos deuses. Por esse motivo, o poeta emprega ovocábulo, no vocativo, ‘sancte’, que significa ‘estabelecido’, ‘santo’, ‘venerável’,

    ‘poderoso’ para se dirigir ao imperador. Cabe destacar que a perífrase “Cultor et antistes doctorum sancte uirorum,” (Cultor e

    santo chefe dos homens doutos) ressalta a origem divina de Augusto e a relação entre ele eos poetas, homens doutos.

    A época de Augusto é conhecida como “período da poesia latina”. Segundo Zélia deAlmeida (2003:59), “A língua poética estava estruturada, o vocabulário se enriqueceragraças a importações e formações neológicas, os modelos gregos e alexandrinos achavam-se difundidos. O próprio Augusto, além disso, quer porque realmente amasse as letras, quer porque nelas visse um instrumento que poderia ser colocado a serviço de sua política, deu-lhes grande incentivo, fundando bibliotecas e favorecendo os escritores que, de algumaforma, se dispusessem a divulgar suas idéias reformistas e renovadoras”. Não é em vão queo poeta utiliza também o vocábulo cultor , que significa ‘aquele que se dedica adeterminado estudo’, ‘que dá condições para o nascimento’, ‘que procura formar,conservar’. Quando o autor menciona a perífrase, refere-se por meio de uma antonomásia,ao soberano Augusto, que consiste em pôr uma perífrase no lugar do nome próprio.

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    (versos 7 e 8)immo ita fac, quaeso, uatum studiose nouorum,

    quaque potes, retine corpus in urbe meum

    Mais uma vez o poeta utiliza a perífrase uatum studiose nouorum  para se dirigir aAugusto, implorando-lhe, através do verbo  fac, que se encontra na segunda pessoa doimperativo afirmativo, que conserve a sua personalidade na cidade que lhe proporcionougrandes prazeres.

    Em relação à expressão uatum nouorum  ou neoteroi, cabe lembrar que foi ummovimento poético que chegou até os dias de Augusto, de tendências alexandrinas. Catulofoi o principal representante.

    (versos 9 e 10)

    est fuga dicta mihi, non est fuga dicta libellis,qui domini poenam non meruere sui.

    Observa-se que Ovídio dá ênfase, ao dizer que o exílio foi ordenado a ele ( est fugadicta mihi), e não aos livros (non est fuga dicta), uma vez que a expressão est fuga dicta aparece duas vezes, mas em uma das vezes acompanhada do advérbio de negação non.

    As obras foram condenadas junto com o seu autor. Elas ficaram excluídas das bibliotecas e sua leitura proibida. Segundo Ettore Paratore (1983:512):

     Augusto intimava-lhe que abandonasse imediatamente Roma e que se confinasse, sozinho, sem a mulher, sem as coisas mais queridas, à longínqua Tômis, nas margens do Mar Negro, que se quis identificar com a atual Constance; ao mesmo tempo, ordenava-seque se retirasse das bibliotecas públicas a Ars amatoria.  

    (versos 11 e 12) saepe per externas profugus pater exulat oras,

    urbe tamen natis exulis esse licet.

    O destino do poeta é a solidão. Ele partirá sozinho, sem recursos e sem companheiros,rumo ao exílio. Todavia é permitido aos filhos do exilado, ou seja, suas obras

     permanecerem na cidade depois de suplicar a Augusto. No verso 11, o poeta menciona  profugus pater , aludindo a ele próprio, por meio deuma antonomásia. Um dos empregos da antonomásia consiste, segundo Lausberg, emcolocar uma perífrase no lugar do nome próprio. Além disso, percebe-se que o verboexulat , cujo prevérbio ex indica movimento de dentro para fora, põe em relevo o caráterirrevogável de seu desterro. No verso 12, o adjetivo exulis também faz parte desse camposemântico.

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    (versos 13 e 14) Palladis exemplo de me sine matre creata

    carmina sunt ; stirps haec progeniesque mea est.

    O poeta, através da metáfora, compara a forma como seus versos foram originadoscom a forma como Palas ou Minerva foi originada. Na religião romana, Minerva é a deusadas ciências, das artes e da guerra.

    Etimologicamente, o vocábulo provém da raiz MEN, donde mens, memini, moneo.Portanto, Minerva ou Palas é “a deusa da sabedoria”. Era filha de Júpiter, o qual sentiu umaterrível dor de cabeça e recorreu a Vulcano, que lhe abriu o crânio com uma machadada. Deseu cérebro saiu Minerva toda armada e numa idade que lhe permitiu socorrer seu pai naguerra dos gigantes, em que se distinguiu por sua valentia. Essa alusão à mitologia é uma

    reminiscência alexandrina constante na obra ovidiana.

    (Versos 17 e 18)

    tres mihi sunt nati contagia nostra secuti:cetera fac curae sit tibi turba palam.

    Os três filhos (tres nati)  aludem aos três livros da “Arte de Amar”, que foramcondenados por Augusto.

    A obra é um conjunto de três livros em dísticos elegíacos, nos quais o poeta, apesar

    do espírito moralizante que reinava, constrói uma verdadeira “teoria da sedução”. Enquanto escrevia, os  Fastos  e as  Metamorfoses, os quais não haviam recebido os

    últimos retoques, Ovídio foi exilado cruelmente para Tômis em novembro do ano 8 d.C. O pretexto oficial desta decisão era a imoralidade da  Arte de amar , obra que provocou umagrande indignação. A causa real, que levou o poeta a sofrer profundamente o exílio, foi omisterioso error .

    O grupo restante (cetera turba), que o poeta menciona no verso seguinte, refere-se àsoutras obras que escreveu. Ovídio suplica a Augusto para que proteja os demais trabalhos.Percebe-se isto através do verbo fac que se encontra na 2ª pessoa do singular do imperativo

     presente.

    (versos 19 e 20) sunt quoque mutatae, ter quinque uolumina, formae,

    carmina de domini funere rapta sui.

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    As  Metamorfoses de Ovídio, história das crenças do paganismo, da transformação dosseres, obra de ciência e de cultura, são consideradas sua obra-prima. Quando foi exilado,não tinha ainda dado a última demão a esta obra, como diz em diversas elegias, e quis atirarao fogo os originais, o que seus amigos não permitiram. Podemos observar nos seguintesversos:

    illud opus potuit, si non prius ipse perissem,certius a summa nomen habere manu:

    nunc incorrectum populi peruenit in ora,in populi quicquam si tamen ore mei est.

    (Tristia 3, 14, 21-24)

    (Aquela obra podia, se eu mesmo não me tivesse desgraçado antes,Ter um nome mais seguro pela última demão:Agora chega incorreta à presença do povo,Se, entretanto, alguma coisa de mim (minha) está na presença do povo.)

     No momento em que Ovídio recebe um decreto imperial inesperadamente, o queacarreta a separação da pátria, dos familiares, dos amigos e seu triste fim em uma longínquaterra estrangeira, o autor internaliza a ideia de morte que se repete em muitos versos daelegia. Segundo Raquel L.M. Lei (2005:55), “a saída da pátria, acarretando uma mudançaradical no seu modo abastado de vida para um completamente humilde, e o afastamento emrelação às pessoas queridas e do lar causam-lhe profundo abatimento. Por causa de sua partida para Tômis, partida que mais se assemelha à ida para o seu funeral, o autor remete-nos à metáfora da morte, não propriamente física, mas espiritual e moral”.  

    (verso 26)diuerso missum quod tibi ab orbe uenit.

    O pronome tibi, utilizado por Ovídio, que se refere a Augusto, é um dativo dedestinação, já que indica a que se destina a obra, sendo empregado, como aparece no verso,com o verbo de movimento ‘uenit’ e o particípio ‘missum’. 

    (versos 27 e 28)

    quod quicumque leget (si quis leget) aestimet ante,compositum quo sit tempore quoque loco.

    Distante da pátria, inconformado, amargurado, Ovídio extravasa o sofrimento nasmelancólicas elegias que compõem os Cantos Tristes (Tristia).

     Nos Cantos Tristes, em cinco livros, o poeta fala de sua viagem, descreve o paísinóspito em que se encontra e se dirige a amigos e conhecidos, protestando sua inocência e

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    lamentando-se de sua sorte. O tom é sombrio e percebemos a dor e a tristeza presentes noscantos. Por esse motivo é que o autor chama a atenção dos leitores em relação ao tempo eao lugar. O tempo, ao qual se refere, é a fase mais difícil de sua vida: os últimos anos noexílio. Já o lugar diz respeito a uma terra estrangeira e desconhecida com váriasadversidades: Tômis. E percebemos isso nos versos seguintes:

    aequus erit scriptis, quorum cognouerit esseexilium tempus barbariamque locum (...)

    (versos 29 e 30)

    (Será benevolente para meus trabalhos, terá reconhecidoQue o tempo deles é o exílio e o local um país bárbaro (...))

     Neste dístico, há uma oração reduzida de infinitivo, com o verbo dicendi ou

    declarandi ‘cognouerit’, que se encontra no futuro perfeito do indicativo, a fim de mostrarque Augusto terá reconhecido o ‘tempus’ e o ‘locus’, ambos sujeitos da oração reduzida. O poeta conta com a benevolência do imperador para com suas obras, utilizando-se deargumentos como, por exemplo, a fase do exílio e o país bárbaro, onde se encontra. Essesseriam os motivos pelos quais a obra não sairia perfeita, segundo o poeta.

    (versos 31, 32, 33 e 34)

    inque tot aduersis carmen mirabitur ullumducere me tristi sustinuisse manu.

    ingenium fregere meum mala, cuius et ante fons infecundus paruaque uena fuit. 

    Segundo Othon M. Garcia (1971:80), na Comunicação em prosa moderna, há umainfinidade de metáforas constituídas por palavras que denotam ações, atitudes ousentimentos próprios do homem, mas aplicadas a seres ou coisas inanimadas. É umaespécie de “animismo” ou “personificação”. No verso 32, o “objeto” manu  (mão) adquirecaracterísticas típicas dos seres humanos, evidenciando a personificação, pois o poetaconfere à mão atribuição tipicamente humana quando esta se encontra infeliz no meio de

    tantas adversidades que existiam numa terra inóspita, de clima frio no meio de populações bárbaras. Ainda assim o poeta, com sua desventurada mão, consegue traçar algum verso.

    Da mesma forma, acontece no verso 33, uma vez que a palavra mala  também éempregada de forma personificada, pois um conceito inanimado (mala) age como se fossehumano (animado).

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    (versos 37 e 38)non hic librorum, per quos inuiter alarque,

    copia: pro libris arcus et arma sonant.

     No verso 37, percebemos que o advérbio hic  (aqui) alude a Tômis, em que o poeta

     para exprimir todo o país com seus habitantes, cultura, clima e língua preferiu citarsimplesmente o advérbio, que se refere à região bárbara com toda a sua rudeza e longadistância em relação a Roma.

    Longe da pátria, privado das regalias, Ovídio julgava-se um infeliz, desestimulado, pois enquanto em Roma se destacavam os livros, instrumentos dos poetas, em Tômisdestacavam-se as armas e os arcos, instrumentos dos bárbaros.

    (versos 39 e 40)nullus in hac terra, recitem si carmina, cuius

    intellecturis auribus utar, adest.

    Faltava-lhe, no exílio, a convivência dos amigos cultos de Roma, de cujos ouvidos seutilizassem e que pudessem compreender, se o poeta lhes recitasse seus versos.

    Os habitantes de Tômis, getas e sármatas, eram de costumes violentos, não conheciamlatim, e seu idioma era uma mistura de grego e de um dialeto local. Havia, portanto, doisobstáculos: a língua e o costume. 

    Concluímos, enfim, este artigo na certeza de que na época de Augusto, houve um poeta que ficou eternizado com seus lamentosos versos: Ovídio, poeta elegante e versátil.As obras que compôs vieram à luz e se tornaram conhecidas no momento em que o

    imperador, segurando as rédeas do poder no mundo romano, consolidava um dos maioresimpérios.

    Ovídio utilizou o metro elegíaco, com êxito, para falar do amor. Agora canta sua própriador, a fim de escrever os Tristia, permitindo nascer uma nova variedade de poesia elegíaca.

    Verificamos, neste poema estudado (Tristia  III, 14, 1-40), uma grande variedade derecursos estilísticos que põem em relevo a tristeza do poeta em um país inóspito, privadodos prazeres de Roma. Além disso, a experiência adquirida no manejo do dístico elegíaco, a profunda erudição tirada como exemplo dos poetas alexandrinos e sua formação retóricaestão presentes.

    O poeta superou Vergílio e Horácio na maior independência com que seguiu os modelos

    gregos.

    4. Referências bibliográficas:

    BAYET, Jean. Literatura latina. Prólogo de José Alsina Clota, Barcelona, Ariel, 1972.BORNECQUE, Henri & MORNET, Daniel.  Roma e os romanos. Trad. Alceu Dias Lima.São Paulo: E.P.U / EDUSP, 1978.

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    CARDOSO, Zélia de Almeida. A Literatura Latina. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Martins Fontes, 2000.FARIA, Ernesto. Gramática superior da Língua Latina. Rio de Janeiro, LivrariaAcadêmica,1958.GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 2.ed. Rio de Janeiro, Fundação

    Getúlio Vargas, 1971.GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 1987.LAUSBERG, Heinrich.  Manual de retórica literária. Fundamentos de una ciencia de laliteratura. Trad. José Perez Riesco. Madri: Gredos, 1968.LEI, Raquel Lindenblatt Madeira de. O emprego dos tropos na elegia ovidiana.  Rio deJaneiro, UFRJ, 2005, Dissertação de Mestrado em Língua e Literatura Latina.MARMORALE, Enzo. Historia da literatura latina. Trad. João Bartolomeu Júnior. Lisboa,Editorial Estúdios Cor, 2 v. NASONIS, P. Ovidi. Tristium. Recongnouit breuique adnotatione critica instruxitS.G.Owen. Oxford: Oxonii: Typ. Clarendoniano, 1915.PARATORE, Ettore.  História da Literatura Latina. Trad. S. J. Manuel Losa. Lisboa:Fundação C.G., 1983.SARAIVA, F.R. dos Santos.  Novíssimo dicionário latino-português. 11.ed. Rio de Janeiro:Livraria Garnier, 2000.VIEIRA, Ana Thereza Basílio. Conceitos e máximas morais na elegia de Ovídio. Anais daXXV Semana de Estudos Clássicos / Intertextualidade e Pensamento Clássico. Rio deJaneiro, UFRJ, 2005. 

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    O ESPELHO

    Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva (UERJ)

    1.  Do conto “O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana” 

    Machado de Assis promove uma recepção ambígua, quando diz que numa reuniãode quatro ou cinco cavalheiros debatiam “questões de alta transcendência”. Ambígua porque coloca o leitor na defensiva: “Por que quatro ou cinco?” O que o Autor demonstraquerer isso mesmo, ou melhor, uma espécie de preparação paradoxal em que a personagemque há de falar, nega este desejo de se pronunciar. Por fim, afirma que a competição é danatureza humana, ou como o diz o próprio Machado: “a discussão é a forma polida doinstinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial.”  Dito de outro modo:

    estamos sempre em atividade competitiva, isso desde aquele momento prestes a fundaçãoda origem da vida, ou melhor, da fecundação do óvulo. Em todo o fluxo de leitura o leitorvai se encontrar exatamente assim, como o Ulisses atado ao mastro do seu navio pelos seuscompanheiros, que estavam com cera no ouvido, mas ele, Ulisses, não. Ele poderá ouvir ocanto da sereia e se desesperar. Até lutar para se desamarrar para ir ao encontro das sereias,mas em vão...

    O leitor machadiano está assim como diante de um palco simulado, partindo do ponto de que “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro parafora, outra que olha de fora para dentro...” (p.345) No decorrer da vida, a alma que olha defora para dentro, a alma exterior, pode alternar pontos de seu interesse. A personagem

    Jacobina, no momento em que estivesse em solidão absoluta, longe de sua tia Marcolina,sem a consideração especial da tia Marcolina, cuja expansividade era total, o que elevavasua autoestima. No entanto, quando viu sua imagem diluída no espelho, sentiu-sedeprimido. Sua alma exterior estava se desmanchando, e só conseguia que se recompusesseno momento do sono, porque, nesta hora, entrava em ação sua alma interior...

    Os exemplos de alma, que “olha de fora para dentro”, entram em gradação: vai do“botão de  camisa” ao de Shylock, personagem judeu de “O Mercador de Veneza”, cuja“segunda alma” eram alguns ducados, mas na iminência de perdê-los... O que o confessa aTubal, nome também de personagem bíblico, quinto filho de Jafé e continuador da tradição patriarca... É Tubal que ouve sua confissão: “‘é um punhal que me enterras no coração.’

    Vejam bem esta frase: a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele.” (p.346)Também são interessantes exemplos de almas exteriores “absorventes” como “a pátria, coma qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma de César e de Cromwell.”(p.346) Quanto a Camões se trata de alusão à passagem da estrofe 145 (Canto X),representativa do desconcerto da alma camoniana ou até mesmo o mundo em que eleacreditava que existia:

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     No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda e endurecida.(...)

    Mas para Jacobina, há almas volúveis, como uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estaçãolírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto,um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

    Cumulativamente, a antroponímia preserva histórias biográficas exemplares, e corre paralelamente à configuração poética sugerida no âmago da enunciação; assim, Jacobina,que nos dicionários denota radicalismo, nacionalismo exaltado, no conto vem como “estecasmurro”, que o próprio Machado explica in  Dom Casmurro, e bem no início deste contodá o significado: “homem calado, metido consigo mesmo”. 

    De modo que em Machado tem-se a oportunidade de levantar questões complexasde reflexão sobre o duplo, no sentido psicanalítico de que na linguagem o homem seduplica ao recriar imagens do seu próprio reflexo ou questões sobre a sua própria sombra,enfim aquilo que muitas coisas são vistas sobre si mesmo, mas se guarda segredo... Aindatambém aqui pode-se debater sobre o intrincado tema da ‘mímesis’, que é semprecontemporâneo.

    Retomemos do conto o ponto da promoção de Jacobina a alferes da Guarda Nacional. D. Marcolina, tia de Jacobina e viúva do Capitão Peçanha, que morava com umcunhado dela, irmão do falecido Capitão e, foi neste sítio que passou a ser o novo convíviodo jovem alferes...

    Cercado de afetividade por todos os lados e por todos os momentos, emborainsistisse em ser chamado simplesmente de “Joãozinho como dantes”, mas não conseguiasuperar o novo obstáculo, pois tornara-se “Era ‘senhor   alferes’ (...) Na mesa tinha eu omelhor lugar, e era o primeiro a ser servido.” (...) “o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica (...)”. ContaJacobina que “a alma exterior, que era  dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças,mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa (...)”

    Mas, em dado momento, encontrou-se repentinamente só, dadas as circunstâncias dasua tia Marcolina, acompanhada do cunhado, ter ido socorrer uma de suas filhas que estava

    mal e à morte. Até os escravos se evadiram. Jacobina passou a viver absolutamente só. Umdia foi se olhar no espelho e viu sua silhueta diluída e esgarçada. No entanto, no sono: “osono fardava-me eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a almainterior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que meelogiavam o garbo, que chamavam alferes...”

    Certo dia resolveu vestir-se com a farda e consultar o espelho. O reflexo delereproduziu aquele “alferes da Guarda Nacional” integralmente. “Cada dia, a uma hora

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    certa, vestia-me de alferes, e sentava-me outra vez. Com este regime pude atravessar maisseis dias de solidão sem os sentir...”

     Na expressão lacaniana: “Pois o risco da loucura se mede pelo atrativo mesmo dasidentificações nas quais o homem engaja ao mesmo tempo sua verdade e seu ser. Longe deser portanto a loucura o fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a

    virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência.” (FAGES, 1971: 15) Pareceque se afirma aqui que o homem cria uma busca: talvez ficar no lugar do rei, ou ser amigodo rei, como o disse Manoel Bandeira no poema Vou-me Embora pra Pasárgada:

    Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei

    Então, pergunta-se onde fica  Pasárgada? Ora, se a vida nos oprime, criamos um

    lugar utópico. Isso já aconteceu até nos planos religiosos dos homens, concebendo um paraíso, um refúgio, um abrigo. Um local mimético que acolha o seu desejo, ora reprimido.

    2.  Episódio mítico “Eco e Narciso” 

     Na Grécia, Eco, um relato mítico com múltiplos mitos etiológicos, esclarecedoresque são, por exemplo, da origem do eco, é a ninfa dos bosques e das fontes. Uma possívelsignificação de ninfa é o seu vir a ser que é o próprio existir da natureza, já que morre erenasce, constantemente. De modo geral, as ninfas povoam os campos, os bosques e aságuas. Ovídio (43 a. C. a 18 d. C.), nas  Metamorfoses, nos dá uma versão do mito de Eco e

     Narciso, cuja etimologia nos é Narciso, do grego Νάρκισσος, (Nárkissos), -‘narke’ significa“entorpecimento, torpor” (...) ‘nárke’, uma base etimológica de nossa palavra narcótico etoda uma vasta família com elemento ‘narc-’. Liríope, ao nascer Narciso, consultouTirésias, que dava para o povo respostas oraculares irrepreensíveis, e sobre a felicidadefutura da criança, o vate respondeu: “Si se non nouerit / uiderit, se ele não se conhecer /vir”. 

     Entre os maias, Eco é um dos atributos do grande deus ctoniano, o Jaguar. (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1994: ECO). É o jaguar elemento míticoemblemático da cultura maia e, em geral, dos índios da América do sul; esse atributo divinoé o de ser um deus ctônio, relacionado às montanhas, aos animais selvagens, em especial,

    ao tapir, que é equivalente simbólico da serpente entre os maias ( Ibidem), e, de modocurioso, ao tambor , cujo simbolismo está estreitamente vinculado à caverna, à gruta e àmatriz. Concluindo com Junito Brandão (1987: 179):  Em síntese, o tambor é o “eco” sonoro da existência.

     Na Grécia, Eco é a ninfa dos bosques e das fontes. Uma possível significação deninfa é o seu vir a ser que é o próprio existir da natureza, já que morre e renasce,constantemente. De modo geral, as ninfas povoam os campos, os bosques e as águas. São a

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    energia canalizada para uma eterna juventude, já que não são imortais e vivem tanto quantouma ‘palmeira’, ou seja, ‘cerca de dez mil anos’   (BRANDÃO, 1991: NINFA) Sãoclassificadas como divindades menores, porque não têm moradia no Olimpo e conforme ohabitat, temos como as  Náiades, cujo nome “provém de nân, escorrer, correr’’” ( Idem: NÁIADES), são divindades das fontes e dos ribeiros; Nereidas, sufixo -id-, cuja forma

     plena é -ides, e denota patronímico, ou seja, ‘as filhas de Nereu’. Nereu tem o epíteto de “ovelho do mar”, ‘hálios guéron’, ou ainda  Proteu, o primeiro, o mais antigo. As Oréadas,das montanhas; Potâmidas, dos rios; Creneias, das fontes; Pegeias, das nascentes;Limneidas, dos lagos; Dríadas e Hamadríadas, das árvores e dos carvalhos.

    Públio Ovídio Nasão, Publius Ovidius Naso, ou simplesmente Ovídio (43 a. C. a 18d. C.), nas Metamorfoses, com versos em hexâmetro datílico, do verso 340 a 510, do LivroIII, nos dá a seguinte versão do mito de Narciso. Preferimos nos ater aos hexâmetrosdatílicos das  Metamorfoses1 do seu texto latino, mas com alguma pequena lacuna para otrabalho não ficar muito extenso, já que o poeta de Sulmona constrói uma linguagem

     poética e fácil de se acompanhar, mais ou menos como exponho a segui. Antes umaobservação: temos inclusive uma certa convicção que foi a leitura preferida por SigmundFreud (1856 –  1939), para construção do complexo de narcisismo.

    3.  A poesia de Ovídio 

    Tirésias,2 cuja fama era bastante célebre pela Aônia, dava para o povo que pedisserespostas oraculares irrepreensíveis. Liríope levava no útero uma criança. (O rio) Cefisooutrora a enlaçou, abraçando-a com força. A mãe que sempre deseja o melhor para a suacriança colheu da segura voz do adivinho da tragédia as primeiras provas sobre a existência

    do seu filho Narciso. Enfim, consultado se Narciso haveria de viver longos tempos, Tirésiasrespondeu: “Si se non nouerit / uiderit, se ele não se conhecer / vir” .3 A partir do verso 350 há o relato de Ovídio, que, durante longo tempo as palavras

    do áugure pareceram vãs; a consequência, bem como o fato, a profecia justifica: a naturezade seu estranho delírio e da morte de Narciso. Assim, aos quinze anos, Narciso acrescentouum fato novo: o rapaz era visto também como um jovem homem e entre as pessoas jovens,muitas moças o desejavam; escondia na sua forma delicada tão duro orgulho e nenhuma das pessoas jovens o tocava e nem mesmo as delicadas moças.

    (V. 356) Enquanto Narciso agitava nas redes de caça cervos temerosos,A ninfa Eco, de voz que ressoa, e que não aprendeu a se calar

    Perante aquele que está com a palavra e nem mesmo sabe falar por primeiro, o vê.Eco até então tinha corpo, não era só uma voz (como agora); de fato,(V. 360) Sua tagarelice tinha outra utilização das palavras, a qual hoje (só) tem

    1 A responsabilidade da tradução é nossa. Esta obra ovidiana está em hexâmetro datílico. As outras são em pentâmetro elegíaco.2 O texto latino de Ovídio utilizado neste trabalho foi o estabelecido por Georges Lafaye que observa que: On ne connaît point de poètequi ait traité avant Ovide la légende de Narcisse, Não se conhece poeta que tenha tratado antes de Ovídio a lenda de Narciso.3 Lê-se no aparato crítico: no manuscrito A está nouerit e no sH está uiderit , conforme p. 80, na edição Les Belles Lettres, Livro III.

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    A de poder repetir de muitas apenas as últimas palavras.Juno fizera isso, porque, como a deusa poderia surpreender, Nas montanhas, as ninfas enquanto frequentemente acariciavam Júpiter,Ela, Eco, (colocada de plantão) tinha retido a deusa com longa conversa,(V. 365) (Tempo suficiente para que) as (outras) ninfas fugissem. Depois que isso

    A filha de Saturno percebeu: “O pouco poder desta língua, que me enganou,A ti será dado um brevíssimo uso das palavr as”.E (a deusa) confirmou a ameaça com o fato: ela, com efeito, ela redobraE repete as palavras ouvidas no fim de (cada) discurso.(V. 370) Portanto, ao ver Narciso, enquanto (este) vagava pelos campos afastados,Ardeu de paixão por ele e seguia seus passos furtivamente.E quanto mais o segue, (mais) a chama do amor intimamente ardia. Nem é de outro modo que os ativos enxofres consomem as chamasPróximas untadas nas extremidades dos pinhos.4 

    (V.375) Oh! o quanto quis ela se aproximar com palavras brandasE acolhê-lo com súplicas suaves. (Mas) a natureza dele repugna. Nem permite que se comece; mas, o que permite, ela se preparouA espreitar os sons vocais dele aos quais ela poderia devolver com as palavras dela.Quis o destino que o rapaz, separado da turma dos seus fiéis companheiros,(V.380) disse(sse): “Quem se apresenta?” e respondeu Eco: “apresenta”.Ele a destrata, e quando ele olha para todas as partes, chama com voz mais alta:“Venha!”; ela, então, diz “venha”. E ele olha para trás, e não vê ninguém que chegue : “Por que”, disse,“Foges de mim?” e exatamente tantas palavras disse, quantas recebeu de volta.

    (V. 385) Insiste e irritado na reprodução da sua voz alternadamente:“Aqui, nos reunamos!”, disse, e com mais prazer  (que nunca) Eco,Que havia de responder com (o mesmo) som vocal, devolveu “reunamos”.Ela mesma se auto-aprova nas suas palavras e fora do bosque se lança,Para que pudesse atirar os braços ao pescoço esperado.(V. 390) Ele foge e, enquanto foge, diz, “tire as mãos que me abraçam,Antes eu morra do que a possibilidade de me teres.”  Ela não respondeu nada, a não ser “do que a possibilidade de me teres.”Desprezada, esconde-se nas selvas, e envergonhada, protege seu rostoSob as folhagens, como também vive, desde então, em antros solitários.(V. 395) Mas também o amor por ele se arraiga no seu coração e cresce pela dor da

    repulsa.As preocupações intensas extenuam seu corpo miserável;A fraqueza enruga sua cútis e o todo vigor do corpo se esvai.Apenas restam a voz e os ossos.A voz permanece; dizem que os ossos se transformaram em pedra.(V. 400) Daí, esconde-se nas selvas e não se vê nos montes;

    4 Note-se a hipálage: o enxofre ativo é que é consumido pelas chamas próximas, e não o fato de o enxofre ativo consumir as chamas próximas, admotas rapiunt uiuacia sulphura flammas (v.374). O Poeta emprega a forma verbal rapiunt, ou seja, roubam, arrebatam.

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    É ouvida por todos; é um som vocal, que sobrevive nela.Ele desdenhou, assim foi, assim outras ninfas nascidas das águas e das montanhas,Assim também, antes, uma multidão desdenhada de jovens homens.Por isso, alguém elevando as mãos aos ares:(V. 405) “Assim, seja permitido que ame a ele próprio, e desse modo não se apodere

    do objeto amado.” Tinha dito. A deusa de Ramnonte (Nêmesis) acolhe os justos pedidos.Havia uma fonte sem limo, argênteas águas brilhantes nascidas de um monte,As quais nem pastores nem rebanho de cabras de pasto maculavam; estas águas(V. 410) Nenhuma ave ou fera turvava, nem mesmo um ramo caído de uma árvore.Era cercada de grama, o que alimentava a umidade próximaE a selva fazia-se tépida sem sofrer os raios de um sol.Aqui o rapaz, cansado pelo esforço de caçar e pelo calor do verão,Inclinou a face e acompanhou a fonte do lugar.(V. 415) Tanto enquanto desejou apaziguar a sede, cresceu outra sede;E enquanto bebe, foi arrebatado pela imagem da forma vista,(Então) ama essa esperança sem corpo; pensa que o corpo há é o que está na água.Admira-se a si mesmo e contempla naquele rosto imóvel,Como uma estátua formada de mármore proveniente de Paros.Estendido no chão, olha o gêmeo, seus olhos, duas estrelas.(V. 420) Seus cabelos tão dignos de Baco, quão digno de Apolo;Sua face lisa, seu pescoço ebúrneo, sua boca graciosaE o rubor misturado ao branco níveo.Extasia-se diante de todas essas coisas nas quais é a ele próprio a se admirar.(V. 425) Sem perceber, ele deseja a si mesmo e, nisso, quem examina é que é

    examinado.Enquanto se dirige a ele, é dirigido a si mesmo, assim igualmente se inflama e se

    excita.Quantas vezes deu beijos vãos para a fonte falaciosa!Quantas vezes mergulhou as mãos para pegar o seu pescoço que viu no meio das

    águas, sem nada encontrar nelas!(V. 430) O que vê ele? Ignora; mas o que vê, o consome.E o mesmo erro que o engana, o incita.Ingênuo, por que tentas pegar em vão uma imagem fugaz?Buscas algo em nenhuma parte; o que amas, perdes ao desviar.Esta é uma forma de imagem refletida, que percebes, é uma sombra de imagem.(V.435) Não tem esta de si mesmo (seu reflexo): volta a ti