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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
CHIMBOTE: A CIDADE COMO PERSONAGEM NA OBRA
EL ZORRO DE ARRIBA Y EL ZORRO DE ABAJO DE JOSÉ MARÍA ARGUEDAS
Regina Duarte Viana
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do título de Mestre em Letras
Neolatinas.
Orientadora: Profª. Doutora Claudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Rio de Janeiro
Dezembro de 2011
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Chimbote: A cidade como personagem na obra El zorro de arriba y El zorro de
abajo de José Maria Arguedas
Regina Duarte Viana
Orientadora: Professora Doutora Claudia Luna
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profª. Doutora Claudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva - orientadora
_________________________________________________
Profª. Doutora Suely Reis Pinheiro - UFF
_________________________________________________
Prof. Doutor Júlio Aldinger Dalloz - UFRJ
________________________________________________
Profª. Doutora Rita de Cássia M. Diogo – UERJ, Suplente
Profª. Doutora Mariluci Guberman– PPG Letras Neolatinas – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Dezembro de 2011
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Ficha Catalográfica
Viana, Regina Duarte. Chimbote: A cidade como personagem na obra El zorro de arriba y el zorro de abajo de José María Arguedas. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2011. Xi, 246f.: il; 31 cm. Orientador: Claudia Heloisa Impellizieri Luna. Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pos-Graduação em Letras, 2011. Referências Bibliográficas: f.157-164. 1.José María Arguedas. 2.Heterogeneidade. 3.Cidade. 4.Transculturação. 5.Chimbote. I.Claudia Luna. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Chimbote: A cidade como personagem na obra El zorro de arriba y El zorro de abajo
de José María Arguedas
Regina Duarte Viana
Orientadora: Claudia H. Impellizieri Luna
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.
Aprovada por:
___________________
Presidente, Profª Claudia H. Impellizieri Luna
---------------------------
Profª. Suely Reis Pinheiro
---------------------------
Prof. Júlio Aldinger Dalloz
__________________
Profª Rita de Cássia M. Diogo
---------------------------
Profª Mariluci Guberman
Rio de janeiro Dezembro de 2011
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
RESUMO
Chimbote: A cidade como personagem na obra
El zorro de arriba y El zorro de abajo de José María Arguedas
Regina Duarte Viana
Orientadora: Claudia H. Impellizieri Luna
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.
Esta dissertação tem como objetivo observar a maneira como José María Arguedas (1911 – 1969), com a obra El Zorro de arriba y el Zorro de abajo (1971) oferece uma representação de Chimbote, cidade da costa peruana, conhecida por haver sido um dos maiores portos pesqueiros do mundo. O autor elabora nesta obra uma representação dos problemas enfrentados, na década de 60, pelo Peru, como também as transformações ocorridas em Chimbote. A migração dos serranos (indígenas) em direção às cidades costeiras peruanas e as duras condições de vida: todo esse complexo atraiu a atenção do etnólogo, antropólogo, escritor da cultura quéchua José María Arguedas. Chimbote simboliza a devastação como também a desagregação da sociedade peruana. Com esta obra, Arguedas expõe a costa e a serra, onde o elemento migrante se sente descentrado, já que deixa um equilíbrio (serra- zorro de arriba) e, ao chegar a outro espaço físico-cultural (costa- zorro de abajo) não consegue um novo equilíbrio; paira uma sensação de não-pertencimento. Há uma contraposição serra e costa, onde o primeiro é o espaço do sagrado, das tradições mágicas, enquanto o segundo é o do científico, da modernização, do capitalismo. Para pensar o tema da cidade utilizaremos os conceitos de Transculturação, apoiados em Fernando Ortiz e de Heterogeneidade a partir de Antonio Cornejo Polar. A obra A cidade letrada, de Ángel Rama, foi fundamental para tratar de nosso eixo temático, que é o estudo da cidade. Tais conceitos se fazem necessários pela coexistência de distintas línguas e etnias em berço peruano como de múltiplas vozes. A conflitividade ocorre em Chimbote, como um micro-cosmos do Peru, na última obra arguediana. Observaremos a Constituição peruana em contraponto com o conceito de Estado de Exceção; de Violência Simbólica, a partir de Pierre Bourdieu e a questão do Autodiscurso a partir de Mercedes Borbosky. Quanto à questão do Migrante nos apoiaremos em documentos relativos à Comunidade Andina das Nações (CAN). Aproximar-nos à obra de José María Arguedas nos possibilita refletir sobre questões de poder, alteridade e seres à margem. Palavras-Chave: Cidade, Ángel Rama, Chimbote, Arguedas, Peru, indígenas, migração, transculturação, heterogeneidade
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
ABSTRACT
Chimbote:
The city as a character in the work
El zorro de arriba y El zorro de abajo
By José María Arguedas
Regina Duarte Viana
Orientadora: Claudia H. Impellizieri Luna
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas.
This dissertation aims to observe the way as José María Arguedas (1911 - 1969), with the work El Zorro de arriba y el Zorro de abajo (1971) offers a representation of Chimbote, a city of the Peruvian coast, known for having been one of the largest fishing ports in the world. The author develops a representation of the problems faced in the 60's, by Peru, as well as the changes occurred in Chimbote. The migration of the mountaineers (indigenous) toward the Peruvian coastal cities and the hard living conditions: all this complex attracted the attention of the ethnologist, anthropologist, writer of Quechua culture, José María Arguedas. Chimbote symbolizes devastation and also the breakdown of the Peruvian society. With this work, Arguedas exposes the coast and the mountains, where the migrant element feels decentered, leaving an equilibrium (mountain- zorro de arriba), and when arriving at another physical cultural space (costa -zorro de abajo) he cannot get a new equilibrium, hovering a sense of not belonging. There is a contraposition: mountain and coast, where the first is the space of the holy, the magical traditions, while the second is the space of science, modernization, capitalism. To think the theme of the city, we will use the concepts of Transculturation, based on Fernando Ortiz, and Heterogeneity based on Antonio Cornejo Polar. The work The lettered city of Angel Rama, was essential to address our main theme which is the study of the city. These concepts are necessary for the coexistence of different languages and ethnic groups in Peru as a cradle of multiple voices. The conflict occurs in Chimbote, as a microcosm of Peru, in the last work of Arguedas. We will observe the Peruvian Constitution, in contrast with the concept of State of Exception; of Symbolic Violence, from Pierre Bourdieu, and the question of Self Talk from Mercedes Borbosky. Concerning the Migrant, we will base on documents related to the Andean Community of Andean Nations (CAN). Bringing the work of José María Arguedas enables us to reflect on issues of power, otherness, people living on the edge. Kew-words: City, Chimbote, Arguedas, Ángel Rama, tranculturacion, migrant, Peru
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Dicen que no sabemos nada, que somos el atraso, que nos han de cambiar la cabeza
por otra mejor. (…)
Saca tu larga vista, tus mejores anteojos. Mira, si puedes.
(…) En esta tierra fría, siembro quinua de cien colores, de cien clases, de semilla
poderosa. Los cien colores son también mi alma, mis infaltables ojos. (…)
Ninguna máquina difícil hizo lo que sé, lo que sufro, lo que gozar del mundo gozo.
(…)
No huyas de mi doctor, acércate Mírame bien reconóceme. ¿Hasta cuándo he de
esperarte? Acércate a mí; levántame hasta la cabina de tu helicóptero. Yo te invitaré el licor
de mil savias diferentes.
Curaré tu fatiga que a veces te nubla como bala de plomo, te recrearé con la luz de las
cien flores de quinua, con la imagen de su danza al soplo de los vientos…
No, hermanito mío. No ayudes a afilar esa máquina contra mí, acércate, deja que te
conozca, mira detenidamente mi rostro, mis venas, el viento que va de mi tierra a la tuya es el
mismo; el mismo viento que respiramos; la tierra en que tus máquinas, tus libros y tus flores
cuentas, baja de la mía, mejorada, amansada. (…)
(Poema en quechua traduzido por José María Arguedas, intitulado Llamado a algunos doctores. Fez parte de um folder que compôs, dentre outros, a Exposição Interativa 2011, em Homenagem a José María Arguedas no Centenário de seu Nascimento, nos Jardins de PUCP, entre os dias 20 e 24 de junho, sob a gestão do CEMDUC Centro de Música y Danza).
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Dedico esta investigação a todos os rostos que encontrei pelas ruas de Chimbote,
Cuzco, Arequipa, Puno, Chivay, Paracas, Hungay;
Aqueles que foram desclassificados como americanos,
Que perderam ou são impedidos de dizer sua palavra, sua visão de mundo, suas
crenças;
Aqueles que buscam integrar-se ao mundo aonde chegaram aturdidos, sem rumo
Aqueles que conseguem superar a angústia do deslocamento,
o desencanto da chegada,
a apreensão frente ao desconhecido.
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À orientadora Claudia Luna por suas lúcidas observações
sobre meus caminhos e descaminhos na escritura dessa investigação.
À Professora Bella Jozef, que foi um alicerce em minha trajetória de mestranda, sempre com um incentivo a dar-me diante da dúvida,
da indecisão. Ao Professor Rômulo Monte Alto, da UFMG,
que, nas minhas idas e vindas de Belo Horizonte, soube preencher vazios acadêmicos que me permitiram chegar até aqui.
Ao escritor, professor e amigo Óscar Colchado Lucio, que, não importando-se com a distância,
foi quem esteve mais perto de minhas angústias. Aos meus diretores, Mariana e Maicon,
que souberam compreender meus pedidos de dispensa. A Flora de Jesus,
que me acompanhou em minha jornada a Chimbote.
À querida amiga e incentivadora Elizabeth Quireza, que me impulsionou a ingressar no Mestrado
Agradecimento aos profissionais que me brindaram apoio, parafraseando Rama em A cidade das letras.
Às Professoras Leitoras Márcia Regina, Rosane Maranhão,
Patrícia dos Anjos e Elisangela Santos que anotaram meu texto,
nesses últimos momentos, enriquecendo a obra
com sugestões e críticas. Minhas limitações, porém,
me impediram de aproveitar devidamente todo o olhar crítico dessas colegas.
A Gloria Martins, pela grande generosidade
ao levar minha escritura à outra margem linguística.
Aos amigos que cruzam céus e mares para fortalecer-me! A Zulmira, minha mãe,
que constantemente mostrou-se uma guerreira, tentando dizer sua palavra, ainda que invariavelmente
tentassem calar sua voz.
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A Carlota Martins, minha querida avó, a qual com seu jeito, entre terno e decidido,
levou-me a crescer de forma firme. A Clarissa, minha filha e amiga,
que me deu a mão e meu presente maior: Miguel!
A Gabriel e Eric, Que souberam, à distância,
colaborar para minha calma na trajetória. A Otávio, amigo, companheiro, amante, irmão,
por seu abraço terno No choro do parto
deste filho. E o agradecimento mais especial
que é a Ti, Senhor meu Deus,
Que me permitiu ultrapassar inúmeros obstáculos olhar além do possível
ensinando-me a lançar-me ao sonho para chegar até esse momento
Senhor meu Deus, “És Deus de perto
e não Deus de longe nunca mudaste
Tu és fiel”. Ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas pelo auxílio financeiro para pesquisa no Peru,
participação em evento e apresentação de trabalho.
11
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
2. REPRESENTAÇÕES DA CIDADE E PROJETOS DE NAÇÃO PERUANA
2.1 PRIMEIRAS PALAVRAS......................................................................................7
2.2 PENSANDO A TRANSCULTURAÇÃO ............................................................9
2.3 CORNEJO POLAR: FERVILHAM AS DIFERENÇAS.......................................11
2.4 LUZES DA CIDADE
2.4.1 A Cidade de Rama....................................................................................18
2.4.2 A Cidade de Romero................................................................................37
2.5 REVISITANDO ALGUMAS IDÉIAS...................................................................39
3 LANÇANDO LUZ A JOSÉ MARÍA ARGUEDAS
3.1 TRAJETÓRIA ENTRE DUAS CULTURAS........................................................51
3.2 UM POUCO DE AGUA..........................................................................................57
3.3 OS DIÁRIOS E RELATOS ARGUEDIANOS ILUMINAM CHIMBOTE .........60
3.4 LOS ZORROS: PANORÂMICA DE DOIS MUNDOS…….................................77
4 CHIMBOTE: A CIDADE QUE TRANSBORDA
4.1 MIGRANTE, ERRANTE, PEREGRINO: TODOS EM BUSCA DA
IDENTIDADE..............................................................................................................86
4.2 A VOZ DA CONSTITUIÇÃO ..............................................................................95
4.3 ESPAÇOS DE VIOLÊNCIA SIM (BÓLICA)........................................................98
5 VOZES DA BARRIADA: UTOPIA DE INTEGRAÇÃO VERSUS
IDENTIDADES CONFLITIVAS NA CIDADE ARGUEDIANA
5.1 DESCORTINANDO O VÉU DA CIDADE.........................................................106
5.2 DIFERENTES VOZES NO CENTRO DE CHIMBOTE
5.2.1 Moncada: A rua expõe a versão dos fatos..............................................114
12
5.2.2 A marcha dos mortos..............................................................................119
5.2.3 Antolín: O som da montanha migra em sua guitarra..............................123
5.2.4 Don Diego e Don Ángel: Os zorros observam a cidade........................124
5.3 LLOQLLA: ENTRE REFLEXÕES E CERTEZAS..............................................125
5.4 CHAUCATO: DIVISÃO POR DOIS...................................................................138
5.5 A PRESENÇA DE CHIMBOTE PÓS-ARGUEDAS
5.3.1 Gusmán Aranda: Río-Santa Editores invade o Peru..............................141
5.3.2 Thorndike e seu Banchero......................................................................144
5.3.3 Óscar Colchado: O homem da Isla Blanca............................................145
6 CONCLUSÃO...........................................................................................................147
7 POSFÁCIO................................................................................................................152
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................154 9 ANEXOS 9.1 ANEXO I: GLOSSÁRIO......................................................................................162
9.2 ANEXO II: DIÁRIOS DE VIAGENS..................................................................164
9.3 ANEXO III: POESIA EM HOMENAGEM A ARGUEDAS...............................167
9.4 ANEXO IV: ENSAIOS FOTOGRÁFICOS DO UNIVERSO ARGUEDIANO
9.2.1 Bloco I: Exposição “Chimbote en Blanco y Negro”..............................169
9.2.2 Bloco II: Exposição Fiestas Pátrias........................................................178
9.2.3 Bloco III: Chimbote................................................................................190
9.2.4 Bloco IV: A face do Peru.......................................................................215
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PREFÁCIO Em tempos de discussão ao redor da Cidade do Rio de Janeiro e das Unidades de
Polícia Pacificadora (UPPs), corrupção policial, poder das milícias, a necessidade de
aproximar o poder instituído das favelas que inundam o meio urbano, seus moradores,
alijados dos direitos básicos, como saneamento básico, acesso à rede pública, limpeza urbana,
a discussão que propiciamos através da obra Los Zorros parece incrivelmente pertinente e
necessária.
Um dos pontos que atraiu nossa atenção foi o fato de a unidade policial (BOPE)
propiciar um momento para que os habitantes de uma das favelas, a Rocinha, expressassem
seus anseios e insatisfações; falou-se em resgatar a noção de cidadania, em relação aos
habitantes/moradores dessas favelas ocupadas.
Várias unidades da mídia exploram questões relativas à migração de nordestinos para
os grandes centros urbanos, como por exemplo, o Rio de Janeiro e sua necessidade de ocupar
espaços possíveis, com o aparecimento das favelas; atitudes/desenvolvimento nas políticas
voltadas para locar/oferecer uma forma para que não se necessite deslocar-se de sua terra, de
sua cultura, numa incessante busca de oportunidades de trabalho. Constatou-se que o principal
motivo que leva a tal deslocamento é o econômico.
De forma alguma oferecemos soluções, mas a oportunidade de ter em pauta tais
temáticas. Escrever no ar, testemunhar o diálogo entre raposas, ser envolvidos por lloqlla - eis
um grande desafio: enlaçar, entremear, tal como A Moça Tecelã, de Marina Colasanti, um
pequeno enigma que é a obra póstuma de J.M.A. Los Zorros, com tantos conceitos e autores
desafiantes. Convidamos cada olhar a despertar frente às vozes que sussurram suas verdades,
suas dores, suas origens, suas perspectivas.
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Certamente deixaremos grandes vazios no percorrer de nosso texto. Primeiro motivo
que nos leva a tal certeza: a complexidade frente à obra El zorro de arriba y el zorro de abajo.
Percorrer caminhos, atalhos, debater-se com inúmeros obstáculos, tais como o misto de
espanhol com o quéchua, e nosso completo desconhecimento em relação a essa língua, tanto
quanto o número incalculável de personagens. Talvez o maior enfrentamento tenha sido o
impacto de, diante das primeiras linhas, ser tomada pela verdade: a obra estava sendo tecida
como forma de esperar a morte, a qual seria o objeto/objetivo que regeria a obra, ora como
autodiscurso ora como um discurso que envolvia os personagens e a cidade de Chimbote. Por
todos esses motivos e mais alguns que ao longo do trabalho serão desvelados, admito a
decepção que ficará ao final da leitura em relação a esta investigação.
Lancei pontos de luz em direção a algumas questões, as quais poderão e deverão ser
questionadas pelos leitores: Por que tal ou qual enfoque não foi pensado/refletido a partir de
alguma perspectiva determinada, algum personagem e/ou situação?
Segui a linha de minha intuição, de nossos sentidos, de nossa racionalidade. Houve o
primeiro momento: Trataria da questão feminina, a partir do enfoque dado no primeiro
capítulo à temática da Prostituição, da mulher como centro de um capitalismo desvairado,
tendo seu corpo como eixo central do comércio, naquele lugar, naquele momento. A obra
Grandes Burdeles del Mundo nos auxiliaria a entender melhor esse universo; Jaime Gusmán
Aranda com seu jornal e sua obra lançada em um prostíbulo (Três Cabezas) seria uma grande
fonte de inspiração para nossa investigação e reflexão de maneira concomitante. Logo, porém,
fomos tomados por caminhos inimáginaveis, não planejados. O surgimento do Colóquio
Internacional A Herança de Arguedas aos 40 anos de sua ausência, ocorrido na UFMG, em
2010, me possibilitou contato com perspectivas, visões, pessoas que não haviam sido
cogitadas, simplesmente, porque não existiam em meu universo.
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Sentir a paixão (quase conseguindo apalpá-la) de Rômulo Monte Alto ao conduzir o
evento com a maestria de um apaixonado pela sinfonia arguediana; aproximar-me de Óscar
Colchado Lucio, autor de Cholito y el río hablador, Rosa Cuchillo, El Hombre del Mar,
nascido em Ancash, onde a cidade de Chimbote se situa; ter tido a oportunidade de falar-lhe
sobre minha investigação e pedir-lhe algumas orientações; tudo isso me deslocou de meu
propósito inicial e me fez enveredar por locais nunca antes sonhados e/ou planejados. Novas
formas de condução, outros aportes teóricos, um novo olhar foi lançado para a obra; haver
vencido grandes desafios para poder ir a Chimbote e, por conseguinte, ter realizado trabalho
de campo, que constou de entrevistas informais, emoção ao estar no porto, no muelle, o tempo
chuvoso, a ida a locais singulares, tais como nos dois cemitérios; o registro fotográfico, o
depoimento de Jaime Gusmán Aranda, abordando inúmeros pontos relativos a Arguedas,
inclusive sobre sua descrença religiosa e sua reaproximação a Deus, a partir da figura de um
padre, envolvido com a Teologia da Libertação.
Não consigo, neste texto que me é possibilitado, externalizar tantas informações e
emoções pelas quais passei como leitora, como investigadora, como pessoa, como
profissional, a partir do contato com a obra, com Arguedas e sua trajetória, seja como escritor,
como cidadão, como amante da cultura indígena. O impacto frente ao planejamento e/ou a
certeza da morte diminuiu sensivelmente após trilhar tantos caminhos e descaminhos.
Voltando um pouco mais no tempo, minha participação no congresso ocorrido na Puc
de Valparaíso (Chile), em 2009, tendo como eixo temático a cidade, talvez tenha sido a
semente desta dissertação, fator determinante para o desenvolvimento de alguns pontos
abordados no corpo deste trabalho.
Como últimas palavras, falo a partir de um lugar: sou oriunda de uma barriada, tenho
olhar de migrante.
1 INTRODUÇÃO
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Eu teria procurado um país no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos; porque, quem melhor do que eles podem saber sob que condições lhes convém viver juntos em uma mesma sociedade?
Jean-Jacques Rousseau
Quantas reflexões podem advir desse pequeno pensamento de Rousseau?
Certamente temáticas referentes à cidade e, por conseguinte, cidadania, expressão
individual, identidade, país, região fronteira, convivência, direitos do cidadão, igualdade de
direitos. Começamos nosso trabalho, propondo uma pausa para começar a pensar sobre cada
um desses conceitos e de que maneira podemos enlaçá-los com a obra póstuma do escritor
peruano José María Arguedas (Andahuaylas, 1911- Lima, 1969).
Este ano comemora-se o centenário de nascimento do autor de Los Ríos Profundos,
Yawar Fiesta, Todas las sangres, El Zorro de arriba y el Zorro de abajo, dentre outras obras.
Por conta deste fato, inúmeros eventos estão ocorrendo pelo mundo. O principal deles,
segundo minha perspectiva, foi o que ocorreu na terceira semana de junho na Pontifícia
Universidade Católica de Lima, no Peru, de que tive oportunidade de fazer parte. Inúmeros
estudiosos participaram do congresso e eu não poderia deixar de considerar tais acréscimos
para minha dissertação, como as visões de Julio Ortega, Martin Lienhard, Rodrigo Montoya e
Rômulo Monte Alto1.
Esta investigação versará sobre o estudo dos procedimentos empregados na
representação da cidade de Chimbote, na obra de José María Arguedas, El zorro de arriba y
El zorro de abajo, partindo dos conceitos de Transculturação de Fernando Ortiz e
Heterogeneidade de Cornejo Polar. O objeto de investigação é a última obra de Arguedas e
surgiu como forma de avaliação, através de apresentação de seminário, a partir de questões
1 Atualmente o nome brasileiro mais ligado aos estudos de Arguedas, que está, inclusive, traduzindo sua obra póstuma.
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intensamente trabalhadas em nossas discussões em sala de aula, como aluna especial: zona de
contato, utopias sociais, poder e transgressão, literaturas indígenas, poder simbólico, relatos
de viagem, questões de identidade e alteridade, centro e periferia, dentre outras.
Pergunto: Como se constrói a ideia de cidade, a partir de uma realidade fragmentada,
tal como é apresentada em El zorro de arriba y El zorro de abajo (Los Zorros2)? De que
maneira se representa o entremear de culturas peruanas nessa mesma realidade partida? Por
que refletir sobre cidade como tema central? O trabalho se volta para questões tais como: Que
problemas, no corpus escolhido, nos encaminham para o eixo centro/periferia? De que
maneira as identidades se posicionam diante da alteridade?
Minha hipótese é que José María Arguedas constrói em seu romance algo semelhante
ao que ocorreu em sua vida: uma impossibilidade de coexistência pacífica entre duas culturas;
e que traçando um perfil da modernização ocorrida em Chimbote na década de 60 consigamos
refletir sobre nossas cidades e tantos problemas que elas apresentam.
A obra em questão direcionou meu olhar para inúmeras possibilidades de pesquisa:
representação da modernidade, na década de 60, na sociedade peruana; a questão da mulher; o
sujeito migrante. Naturalmente, nem todos estes assuntos, por inúmeras circunstâncias,
poderão e serão abordados com o devido cuidado e profundidade exigidos. Quero
compartilhar alguns pensamentos de meu encontro com Arguedas e sua última representação
de cidade: Chimbote, a cidade real e sua representação, neste romance que constitui uma
tentativa de entender o fenômeno urbano em sua grande complexidade.
Em última análise, tenho por objetivo aproximar-me de um assunto que há muito me
persegue: a barbárie travestida de civilização. Explico: como o desenvolvimento humano,
com todo o seu esplendor, regride de tal forma que não consegue esconder as garras do
horror. É impossível não pensar na imagem célebre do médico e do monstro habitando o
2 A partir de agora, utilizaremos Los Zorros para designar a obra El zorro de arriba y el zorro de abajo.
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mesmo corpo. Também desejo observar a maneira como José María Arguedas (J.M.A.3)
elabora nessa obra uma representação dos problemas enfrentados, em meados de 1960, pelo
Peru, e as transformações ocorridas na cidade de Chimbote; observar como o processo
histórico de modernização chega à cidade e desconstrói visões (revitalização do porto e da
pesca, por exemplo). É uma tentativa de entender o fenômeno urbano em sua grande
complexidade.
J. M. A. nos legou uma obra na qual as ideias em confronto com as realidades
complexas do continente são trabalhadas em profundidade por um etnólogo e antropólogo,
que desejava intervir num processo histórico-cultural de que discordava, que o incomodava.
No segundo capítulo, discutiremos sobre as temáticas que serão abordadas nas análises
do corpus, tendo como suporte teórico os estudos de Ángel Rama, em A cidade letrada, num
enfoque mais detalhado, como também a obra de José Luís Romero, A cidade e as idéias, de
forma compacta, para a questão da cidade. Analisaremos os conceitos de transculturação,
criado pelo cubano Fernando Ortiz e heterogeneidade, do peruano Antonio Cornejo Polar.
Muitos autores revisitaram questões ao redor dos conceitos de Transculturação e
Heterogeneidade. Por isso, daremos espaço neste capítulo para que suas visões sejam postas a
título de reflexão.
A terceira parte de nosso trabalho objetiva tratar sobre a Modernização que se faz de
maneira descontrolada em terras peruanas, em especial, em cidades costeiras, como
Chimbote, cidade – personagem da obra Los Zorros. O assunto da migração, vale ressaltar
(vide capítulo dedicado a Arguedas), está presente desde 1935, com o conto Agua (1935),
passa por Los ríos profundos (1958), Todas las sangres (1964) e culmina em Los Zorros
(1971). Por este motivo central, acreditamos ser interessante perceber no texto Agua, ainda
que não seja o nosso corpus central, algumas nuances relativas aos temas da migração, da
3 Utilizaremos J.M.A. para referir-nos a José María Arguedas.
19
cidade desordenada. Observaremos a trajetória pessoal e profissional de J.M.A. a fim de
entender melhor sua obra. A partir desse enfoque, trataremos do conceito de Autodiscurso,
proposto por Mercedes Borbosky, com a finalidade de refletir sobre o enlaçamento de diários
na composição de Los Zorros.
No capítulo quatro, observaremos a cidade pelo prisma de Pierre Bourdieu, através do
conceito de Violência Simbólica, do Estado de Exceção pela ótica de Giorgio Agamben, a
“cidade ordenada” baseando nosso olhar na Constituição Peruana. Faremos também, nesta
parte, uma reflexão sobre o lugar do migrante fora e dentro da obra.
A quinta parte desenvolve-se tendo em foco os grupos marginais da supra-citada
cidade como foco para melhor entender a construção de identidades em conflito. Arguedas, no
capítulo 5 de Los Zorros, com riqueza de detalhes, ilumina a migração de corpos, do
cemitério para um local com delimitação geográfica incerta. Esta parte é de especial
importância para nossa investigação, já que “ouviremos” as loucuras de Moncada, o pranto de
Tinoco, a suave música do cego Antolín Crispín, as visões proféticas de Don Diego, a
ambição desmedida de Don Ángel, o diálogo entre as raposas míticas e a despedida de J.M.A.
A parte intitulada Pós-Arguedas compõe-se da centralidade de Chimbote no imaginário
peruano; seus ecos na literatura da nação. O leitor há de concordar, ao final da leitura deste
trabalho, que Arguedas fundou uma nova maneira de fazer literatura e certamente está sendo
complementada por muitos: Alejandro Ortiz, Óscar Colchado Lucio, Rômulo Monte Alto,
Jaime Gusmán Aranda e Guillermo Thorndike. Arguedas forma o embrião de inúmeros
trabalhos/produções que o sucederam; é a sua presença ecoando até nós.
Não podemos deixar de perceber os temas transversais que cortam nosso eixo: o
migrante que abandona sua terra; a violência que o espera cerceando sua língua, seus
costumes, sua visão de mundo, suas crenças. O episódio da procissão dos mortos é de suma
importância nesse momento. Por isso, iremos deter-nos sensivelmente nesse episódio. O tema
20
da errância e da migração é muito bem sinalizado pelo personagem Pico Largo, de Del mar a
la ciudad, do escritor “ancashino” Óscar Colchado Lucio.
Por último, teceremos algumas considerações. Que se possa refletir sobre tais questões
e, possivelmente, encontremos algumas respostas ou, pelo menos, caminhos que possam
esclarecer tantos questionamentos. Pensar o outro é tematizar o que difere dos desejos de um,
de uma ideologia, de posições políticas. São muitas as questões sobre as políticas da diferença
(Bornheim, 2001) que permeiam este trabalho. São questionamentos sobre as relações entre
seres humanos, os contextos sociais, culturais, econômicos, onde essas relações têm um
movimento que incorpora a voz do outro. Interrogações que tentarão refletir sobre como nos
constituímos em sujeitos da alteridade, em relação entre uma subjetividade é o que o outro é,
pode ser, deve ser.
A parte dedicada aos anexos está composta por quatro materiais distintos: um
glossário, um diário de viagem, fotos e uma poesia. Quando de minha visita à cidade de
Chimbote, após haver percorrido alguns locais que aparecem na narrativa de El zorro de
arriba y El zorro de abajo, me pus a registrar situações através de fotos que me emocionaram,
que me auxiliaram a retirar a venda que ainda me ocultavam a situação de penúria dos
indígenas. Acredito que seja bastante apropriado incorporá-las à dissertação por auxiliar-me
na comprovação de tudo que será discutido no corpo deste trabalho, para que desta maneira
nosso leitor entenda que nossa discussão é mais do que uma utopia e/ou uma quimera. Em
relação ao outro elemento que compõe a seção de anexos, é uma poesia que compus após
minha visita, ainda em Chimbote, quando aguardava meu retorno à cidade de Lima. O
Professor Óscar Colchado Lucio me solicitou a poesia quando soube que eu a compusera no
dia que visitei a cidade de Chimbote, a qual foi publicada posteriormente pelo professor, sem
meu conhecimento.
21
A edição que usamos para análise da obra Los Zorros pertence à Coleção Archivos.
Para a Banca, no entanto, utilizei como cópia a Edição Losada, pelo fato de não conter
anotações pessoais. Há uma grande diferença entre as duas edições que tento esclarecer agora:
a edição da Coleção Archivos apresenta uma sequencia de capítulos e, ao final, o discurso de
Arguedas: “Yo no soy un aculturado”; a de Losada, ao contrário, coloca este texto como parte
inicial de Los Zorros, além de apresentar manuscritos e fotos com legendas originais de
Arguedas. Esta edição teve um comitê de edição firmada pro Sybila Arredondo de Arguedas
(que compilou e incluiu nesta edição), Antonio Cornejo Polar, Francisco Carrillo Espejo e
Humberto Damonte Larran. Certamente, esse deslocamento tanto quanto às inserções do
material descrito há pouco transformam sensivelmente a leitura da obra.
Sentimos a necessidade de utilização de notas explicativas para esclarecer significado
de alguns vocábulos, os quais são vitais para a compreensão da escritura, em espanhol e
quéchua, como também de incluir ao final da dissertação um glossário com os termos lexicais
mais recorrentes, tais como, por exemplo, a palavra barriada. Salientamos que foi vital a
utilização do glossário, anexo I, de Martin Lienhard4, integrante da Edição Archivos, já que
algumas expressões e termos em quéchua e espanhol são utilizados durante toda a narrativa.
Alguns termos principais foram colocados ao pé de página, com uma tradução nossa.5
Evidentemente, as formulações deste trabalho são provisórias e abertas à contestação.
A opinião sobre tais questões pode vir a transformar-se, já que estou apenas iniciando minhas
investigações e reflexões.
4 A partir de dicionários e de sua própria experiência, por haver, por alguns anos, convivido entre indígenas peruanos. 5 Uma tradução da obra ainda inexiste; o acesso a um exemplar desta obra é difícil de encontrar. Porém antecipamos a informação que Rômulo Monte Alto, da UFMG, está em processo de editar a obra Los Zorros brevemente em português.
22
2 REPRESENTAÇÕES DA CIDADE E PROJETOS DE NAÇÃO
PERUANA
As grandes idéias percorrem a história da cidade e a conformam.6 O olhar percorre os caminhos como páginas escritas: a cidade diz tudo aquilo que deves pensar, faz-te repetir o seu discurso, e quando pensas estar visitando Tamara não fazes mais do que registrar os nomes com os quais ela se define a si própria e a todas as suas partes.7
2.1 PRIMEIRAS PALAVRAS
Pensar o tema da cidade nos conduz a olhar os caminhos que seguiu para ser o que
vemos, entender suas partes, como se compõe, ouvir sua gente. Como ponto de partida é
preciso voltar ao ano de 1492, data que marca o início da história do Novo Mundo para o
Ocidente e o fim da história das grandes civilizações ameríndias, como afirma Regina Simon
da Silva (2008, p.13). Desde o princípio a antítese esteve presente nessas relações, deixando
marcas do grande abismo existente entre as culturas europeia e indígena envolvidas nesse
processo. A expansão marítima de 1492 inaugurou o que Enrique Dussel chama de origem da
Modernidade:
Hasta 1492, las historias de todas las culturas habían sido, inevitablemente “regionales”. (...) Sólo los portugueses (que articularon Europa con América y por allí con el Asia de las Filipinas) la historia mundial llegó por primera vez a ser un “hecho” de la vida cotidiana y científica. Europa comienza a ser “centro” y todo el resto de la humanidad es constituída como “perifería” (primero como “periferia cultural, posteriormente neocolonial y actualmente como Tercer Mundo “subdesarrollado”. (DUSSEL, 1992, p.20-21)
O encontro das culturas europeia e índia no descobrimento do Novo Mundo seria
melhor definido pela palavra choque, devido às consequências desastrosas que ele
representou, afirma Regina Simón (2008, p.12). De acordo com González Echeverria, quer
6 Aldo Rossi, A arquitetura da cidade, 1966. 7 Italo Calvino, Le città invisible, Turim, Einaudi, 1972, p.22.
23
como perspectiva o principio ou o final de todas as formas,“el Descubrimiento marcaba una
ruptura.” (1984, p.9).
Estas informações são pertinentes porque nos auxiliam a compreender o tema
estudado. Retomando os pontos mais significativos expostos até o momento, podemos, como
afirma Simon, “considerar três formas de organização social: o selvagem, habitante da
floresta; o bárbaro, nômade das periferias e o civilizado, morador das cidades.” (SIMÓN,
2008, p.32). Rousseau, em seu Ensaio sobre a origem das línguas (1755), afirma que “o
selvagem corresponde ao caçador, o bárbaro ao pastor e o homem civilizado (civil) ao
trabalhador da terra” (ROUSSEAU, 1981, p. 89).
Eduardo Galeano (1992, p.14) é incisivo em suas observações sobre América Latina
em relação aos conquistadores europeus e a todos que os sucederam em expoliar/explorar
nossas terras e nosso povo. Observa a divisão internacional do trabalho de forma muito clara:
de um lado “alguns países especializam-se em ganhar, e outros em que se especializaram em
perder” (GALEANO, 1994, p.13). Observa que até mesmo a perda do direito de chamarmo-
nos americanos foi perdida no meio do caminho. Este termo, ao ser pronunciado, remete-nos
aos norte-americanos. Ou seja: se falamos americanos, não se pensa mais em peruanos,
uruguaios ou qualquer outro povo que não seja oriundo dos EUA. Como tudo foi sendo
conquistado, possuído, retirado, por que não também a utilização do vocábulo americano?
Terra, recursos naturais, força de trabalho, modo de produção, tudo tem sido decidido
de fora para dentro, como boas marionetes que somos, diz Galeano. Toda essa imagem nos
remete aos títeres manejados pelo louco Moncada, em mais uma de suas representações (vide
capítulo 5).8
8 Nosso trabalho tem a característica de ser repetitivo em alguns momentos, mas tal necessidade ocorre porque alguns tópicos circulam de forma incessante e insistente.
24
2.2 PENSANDO A TRANSCULTURAÇÃO
Fernando Ortiz, antropólogo, na década de 40, em sua obra Contrapunteo cubano del
tabaco y el azúcar, realiza um estudo sobre as interferências mútuas que ocorrem entre
culturas, a cubana e a norte-americana, que se aproximam, ainda que uma se faça dominante
em termos lingüísticos, políticos, culturais. O termo aculturação foi substituído por indicar
uma cultura subalterna. Ou melhor, como afirma Malinowsky “adquisición de una cultura
extranjera por un pueblo o cultura sometido”. Bronislaw Malinowski9, na introdução desta
obra, afirma que Ortiz lhe disse que iria introduzir o conceito Transculturação “para
reemplazar varias expresiones corrientes, tales como “cambio cultural”, “aculturación”,
“difusión”, “migración y ósmosis de cultura” e outras que, de acordo com Ortiz, não
traduziam bem o que o complexo encontro de culturas poderia desencadear para ambas.
Desejava encontrar algo que pudesse expressar com mais clareza que se ajustasse aos
acontecimentos. Ortiz percebe uma troca entre o tabaco que foi levado para a Europa e o
açúcar que foi incorporado à cultura americana.
Poderíamos dizer que um imigrante deveria acolher a outra cultura que passou a
encarar como sua; os indígenas, considerados pagãos ou infiéis, bárbaros o salvajes que
estariam sendo agraciados pela benesse de serem submetidos à cultura ocidental. O termo em
questão designava que o considerado inculto, de uma cultura menos prestigiada, teria que
converter-se no outro, numa relação de passividade. Cria um termo que supera o sentido de
aculturação: o conceito de transculturação. Este termo, a partir de Fernando Ortiz, foi o que
melhor designou o encontro de culturas, que, afinal, não iria modificar apenas um lado, aquele
do supostamente inferior, mas, também, ainda que de diferentes proporções, modificaria o
outro. Podemos afirmar, tal como Malinowski tecendo considerações sobre a obra de Ortiz,
que é
9 Polonês, mestre contemporâneo de Ortiz, que o conheceu em sua primeira visita à La Habana em 1939.
25
un proceso en el cual ambas partes de la ecuación resultan modificadas. Un proceso en él cual emerge una nueva realidad, compuesta y compleja; una realidad que no es una aglomeración mecánica de caracteres, ni siquiera un mosaico, sino un fenomeno nuevo, original e independiente. (ORTIZ, 2002, p.47)
Com este termo e concepção, percebe-se que ambos são ativos, com contribuições,
resultando numa nova realidade para as duas ou mais culturas envolvidas, como já foi
expresso (franceses, espanhóis, alemães). Como diz Ortiz, é um “toma lá dá cá”.
Ángel Rama, em Transculturação Narrativa em América Latina irá apropriar-se do
conceito de transculturação, criado por Fernando Ortiz, para desenvolvê-lo em relação à
literatura, como o próprio título levar a crer. No entanto vou centralizar minha ótica em outra
obra sua, A cidade das letras, por achá-la mais pertinente em relação ao assunto da cidade,
centro de minha investigação. Rama afirma que antes mesmo de os conquistadores europeus
criarem cidades na América, estas já eram concebidas mentalmente. Ou seja, surgiam antes de
existir no real:
A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para impedir assim toda futura desordem, o que alude à peculiar virtude dos signos de permanecerem inalteráveis no tempo e seguir regendo a mutante vida das coisas dentro de rígidos marcos. (RAMA, 1984, p.29)
Nesta obra, Rama identifica como, através das letras, a dominação ocorrerá em solo
latino-americano. Surgirá um continente com “cidades ordenadas”, com ideologias que as
precederão. Serão cidades regidas por homens que dominem as letras, a escrita; que possam a
partir destas, dominar o meio em que estão inseridos. Rama estuda José María Arguedas
dentre os autores que incluem a transculturação narrativa em sua prática, já que em Los
Zorros podemos observar, dentre outros elementos, o cultural andino. Por haver vivenciado
esta realidade, Arguedas soube compreender, diz Raquel Araújo, e “expressar com fidelidade
os anseios e medos, as esperanças e perspectivas daquele povo”. (2007, p.23)
26
2.3 ANTONIO CORNEJO POLAR: FERVILHAM AS DIFERENÇAS
A partir da obra Escribir en el aire (2003), de Antonio Cornejo Polar, objetivamos
traçar um panorama do conceito de Heterogeneidade.
No primeiro capítulo desta obra, El comienzo de la heterogeneidad en las literaturas
andinas - Voz y letra en el Diálogo de Cajamarca (p.20-42), Cornejo Polar enfatiza diferenças
conflitivas, iniciando com o antagonismo entre o que chama de “oralidad primaria” e a
escritura. O autor cita estudos de Martin Lienhard sobre a área andina e a inexistência de
simetria entre o universo oral e a escritura, expresso em La voz y su huella (1989, p.19) e a
tentativa de transposição, de ponte, entre esses dois universos, aparentemente “equidistantes”
e antagônicos.
Cornejo Polar considera que a América Latina é de grande complexidade a partir dessa
perspectiva, já que “su literatura no sólo es la que escribe en español o en otras lenguas
europeas la elite letrada” (CORNEJO POLAR, 2003, p.20).
Considera como grau zero da interação o episódio referente ao “diálogo” entre o Inca
Atahuallpa e o Padre Valverde, em Cajamarca, em 1532. É sobre esse momento que Cornejo
Polar centraliza parte deste capítulo, momento esse que “deflagra” a interlocução impossível
entre essas duas forças, focando a distância, repulsão e até mesmo agressão entre os extremos,
tamanhas as diferenças.
Acredita o autor que a faceta heterogênea teve seu início antes mesmo da Conquista,
pelos espanhóis, e continua hoje, na produção literária peruana, andina e, em boa parte, latino-
americana. Percebe que situações semelhantes ao episódio de Cajamarca ocorram em toda a
América. Num mesmo espaço culturas diversas e distintas possam interagir, denunciando sua
faceta heterogênea.
A partir da descrição do ocorrido, acredita que
27
el destino histórico de dos conciencias que desde su primer encuentro se repelen por la materia linguística en que se formalizan, lo que presagia la extensión de un campo de enfrentamientos, mucho más profundos y dramáticos, pero también la complejidad de densos y confusos procesos de imbricación transcultural. (CORNEJO POLAR, 2003, p.22-23).
É importante salientar que o episódio entre Valverde y Atahuallpa somente possui
testemunhas do lado hispânico, já que o poder imortalizou suas perspectivas dos fatos. É o
poder da cidade letrada, lembrando Ángel Rama (vide capítulo respectivo). A Bíblia, objeto
da discórdia, possui um valor simbólico na cultura do Ocidente, mas é destituída de
significado na cultura andina, já que não possui uma história. Uma das testemunhas narrou
que a dificuldade do Inca Atahuallpa em abrir a Bíblia, o fez jogá-la ao solo, o que,
obviamente, foi visto com maus olhos pelos espanhóis, europeus, ocidentais. Nessa obra há a
análise em relação à obra de Icaza (Huaysipungo) e do conto “Un hombre muerto a
puntapiés” de Palácios. Isso me leva a refletir qual pode ter sido a contribuição de J.M.A. para
a literatura e a linguagem. Acredito que tal como afirmou Mariátegui, em 1926, em seu artigo
La realidad y la ficción:
El realismo nos alejaba en la literatura de la realidad. La experiencia realista no nos ha servido sino para demostrarnos que sólo podemos encontrar la realidad por los caminos de la fantasía (...). Pero la ficción no es libre. Más que descubrirnos lo maravilloso, parece destinada a revelarnos lo real. La fantasía, cuando no nos acerca a la realidad, nos sirve de bien poco. (CORNEJO POLAR, 2003, p.156).10
É claramente uma nova poética do relato. Inclusive a inserção posterior da língua
quéchua ao “status” de segunda língua do país. Certamente teve uma grande contribuição do
autor de Los Zorros.
Comungo da opinião de Cornejo Polar quando ele afirma que “lo que interesa aquí no
es el éxito o el fracaso de un modelo narrativo sino su novedad y su grado de enfrentamiento
10 O artigo foi recolhido em El artista y su época. Lima: Amauta, 1967, 3ª ed., p. 23.
28
con otra norma y – en el fondo – con otra noción de la literatura y del lenguaje” (CORNEJO
POLAR, 2003, 157).
No terceiro capítulo desta obra explora as múltiplas confrontações (Piedra de sangre
hirviendo) existentes em solo peruano. Alguns pontos nos parecem bastante interessantes,
porém, iremos ater-nos somente aos que acreditamos sejam pertinentes à vértebra de nossa
investigação. Diz que Ricardo Palma e outros escritores contemporâneos acreditavam que a
linguagem da literatura poderia abrigar as línguas e “sociodialetos nacionais” e ser
representativos de todos eles (CORNEJO POLAR, 2003, p.145).
Supunha-se, a partir do modelo palmista, que
la construcción un espacio lingüístico aparentemente homogéneo, en el que todas las disidencias parecían estar en paz, bajo el obvio imperio de una norma culta lo suficientemente porosa, como para apropriarse de los otros niveles del uso social de una lengua.(CORNEJO POLAR, 2003, p.45)
com um forte desejo de conciliar, mas que efetivamente não se realizava linguisticamente.
Palma tinha um projeto, como afirma Cornejo Polar, abarcador.
A título de aprofundamento, Cornejo Polar explora o tema ao redor de José María
Mariátegui e César Vallejo. Como afirma Mariátegui em seu texto “Poetas nuevos y poesía
vieja”, artigo de 1924; de nada adianta a casca/a parte visível quando esta destoa do interior:
“Para qué transgredir la gramática si los ingredientes espirituales de la poesía son los mismos
de hace veinte o cincuenta años? (...) hay que ser moderno espiritualmente” (CORNEJO
POLAR, 2003, p.148) referindo-se ao modernismo.
De igual forma César Vallejo diz que “Muchas veces un poema no dice “cinema”,
poseyendo no obstante, la emoción cinemática, de manera oscura y tácita pero efectiva y
humana. Tal es la verdadera poesía nueva” (CORNEJO POLAR, 2003, p.151).11
11 Entendemos que o essencial é invísivel aos olhos, lembrando um pouco o clássico O Pequeno Príncipe, de Saint Exupéry, com a questão de ir além do que a percepção, o olhar, as aparências podem conduzir.
29
Cornejo Polar expressa que o novo, o moderno ou o vanguardista não sejam mais que
“una cáscara que fraudulentamente oculte o un arcaísmo de fondo o un vacío espiritual”.
Cornejo Polar vê a tudo isso como ambigüidades de uma nova linguagem (CORNEJO
POLAR, 2003, p.147).
Vallejo e Mariátegui são enaltecidos como profundos conhecedores da modernidade
européia e do profundo atraso social das nações andinas. Compartilhavam esta inquietude. Há
uma profunda preocupação, também de J.M.A., evidentemente em outra época, em descobrir
uma maneira nova de inserir na linguagem o antigo. Isso nos remete à obra A utopia arcaica
de Mário Vargas Llosa, com a discussão proposta pelo autor em relação à utopia, termo que
carrega em si um tom de futuro, mais a idéia de arcaico, conduzindo o olhar a um passado.12
Beatriz Sarlo (1988, p. 59) é apontada por Cornejo Polar como alguém que, ainda que
aludindo a uma realidade distinta da andina, aponta para uma modernidade periférica.
Marshall Berman aborda o mesmo tópico em Tudo que é sólido se desmancha no ar (1988)
em um capítulo dedicado a San Petersburgo.
Parece-nos pertinente lançar luz a essa temática, para refletir sobre os anseios e
preocupações de Arguedas ao deparar-se com as transformações ocorridas em Chimbote,
como em outras regiões litorâneas peruanas, e como havia um quê de encaixe imperfeito entre
o sonho/o futuro/a perspectiva e a realidade palpável/concreta. Na obra Los Zorros também,
de maneira análoga à preocupação de Vallejo e Mariátegui em relação ao Modernismo, há o
enfoque de que a modernização imposta à cidade de Chimbote, aparentava ser uma ascensão,
entretanto baseava-se na mais pura degradação humana, urbanística, social. Tal como os
autores supra-citados, Arguedas também teve uma intensa experiência europeia e norte-
12 Este tópico será tratado mais adiante.
30
americana, em grandes cidades, como Paris e, em especial, Nova Iorque. Mas o que superava
tudo isso era a estreita ligação que manteve com indígenas em sua infância e adolescência.
Tal vivência superou todos demais contatos, a ponto de ele estar numa cidade, como por
exemplo, Nova Iorque, e encantar-se com uma menina de origem indígena, que lhe remeteu a
sua infância, ao quéchua, às canções da terra.
Não aspiramos examinar a poesia de Vallejo nem tampouco os manifestos de
Mariátegui, mas aproximar-nos da essência de suas obras; o ponto que os une. Na obra
Escribir en el Aire, Cornejo Polar discorre sobre um conto de Pablo Palacio, objetivando
entender que o autor rejeita o realismo por vê-lo repetir a realidade, sem encontrar sentido
nele, enquanto que a ficção proporciona “el vuelo imaginário”, propondo o sentido de
“desoye” o realismo, ou seja, deixar de ouvi-lo. Mais que apresentar um fato, deseja penetrá-
lo, inspirando o leitor a elevá-lo a outra dimensão. Certamente, Arguedas ocupa esse espaço,
pois preenche os vazios que simplesmente o relato não conseguiria. Mais que informar sobre a
decadência a que Chimbote chegou depois de ser explorada vilmente, a narrativa responde a
interrogações que o leitor nem sequer sabia que tinha.
Mariátegui em um artigo de 1926 “La realidad y la ficción”13 já apontava para isso:
“La ficción no es libre. Más que descubrirnos lo maravilloso, parece destinada a revelarnos lo
real. La fantasía, cuando no nos acerca a la realidad, nos sierve bien poco.” (CORNEJO
POLAR, 2003, p.155)
Há uma tendência indigenista protagonizada por Icaza que se choca com o
vanguardismo de Palacio. A linguagem aparece como caminho para vencer a mudez das
coisas e das ações dos homens, diz Cornejo Polar. Há muito por descobrir-se, além do
realismo objetivo e sua linguagem cartesiana.
13 El artista y su época (Lima: Amuta, 1967, 3ª ed., p. 23).
31
Existe um projeto que objetiva “abrir el lenguaje del arte a las solicitaciones del habla,
en especial, del habla popular y de las capas medias bajas, e inclusive a la oralidad quichua,
en un nuevo intento por religar la normatividad estética a la vida cotidiana, rompiendo así la
clausura y una lengua artística que poco tenía que ver con su uso socializado por las
mayorías.” (CORNEJO POLAR, 2003, p.158). Tal projeto desejava “oralizar a escritura”.
Porém, como afirma Cornejo Polar, só o fato de escrevê-la já a distanciava, pondera, das
grandes massas de analfabetos (CORNEJO POLAR, 2003, p.158). Há um choque entre tal
projeto literário e o espaço social. Explico: deseja-se representar a fala “de los que no saben
escribir”.
Cornejo Polar considera que seja um “intricado espacio de las relaciones entre la voz
y la letra en el seno de una sociedad tajada por el analfabetismo de buena parte de la
población y el bilinguismo asimétrico de su mapa idiomático”. Percebemos uma situação
sócio-cultural bastante conflitiva e contraditória. Evidentemente há um esforço linguístico-
estético em “construir vínculos intersociales, interculturales e interétnicos, y en última
instancia espacios de homogeneidad”, mas a literatura e a linguagem que querem, entretanto,
não podem soldar profundas rachaduras.
Em seu texto “Mestizaje e Hibridez: Los riesgos de las metáforas. Apuntes”, de 1998,
reconhece que utilizar termos oriundos de outras áreas do conhecimento é algo que pode levar
a desvios de entendimento, como, por exemplo, hibridez e mestiçagem. Cita Fernández
Retamar, já que ele já havia alertado para os perigos de utilização de conceitos provenientes
de outros âmbitos culturais.
O autor se refere a García Canclini, pois este, ainda que tenha utilizado o termo
hibridez, que sugere, a princípio, algo infrutífero, estéril, provou que, em termos culturais e
literários, é bastante fecundo. Cornejo Polar retoma o termo transculturação, cunhado por
Angel Rama, e o iguala ao conceito de mestizaje e mixturación. O que leva Cornejo Polar a
32
posicionar-se contrariamente é o que tange à tranquilidade, à harmonia entre as culturas.
Acredita não ser possível tal equilíbrio harmônico. O autor tende a preferir o termo utilizado
por García Canclini, já que, segundo Cornejo Polar, com o conceito, por ser relacionado à
História, “se puede entrar y salir de la modernidad” se pode entrar e sair da hibridez. Afirma
que os conceitos utilizados no campo literário advindos de outros campos semânticos
possuem tantos conflitos quanto aqueles que se referem exclusivamente à literatura. Cornejo
Polar aponta a “difícil convivencia de texto y discursos en español y portugués... con la
incontenible diseminación de textos críticos en inglés” (CORNEJO POLAR, 1998, p.9).
Posiciona-se contrário ao “excesivo desnível de la producción crítica en inglés”. Acredita que
a utilização excessiva de uma língua estrangeira em relação aos estudos da “literatura
hispanoamericana está suscitando además – aunque tal vez nadie lo quiera – una extraña
jerarquía en la que los textos de esta condición resultan gobernando el campo general de los
estudios hispanoamericanos.”(CORNEJO POLAR, 1998, p.10).
Antonio Cornejo Polar, tal como Neil Larsen, também critica a Rama, acreditando que
o conceito deste supõe uma síntese harmônica, o que não acredita ser possível. O fato de
ficarem à margem discursos que não entraram no “sistema de la literatura ilustrada” também
contribui para que o crítico não acredite que o termo seja o mais apropriado. Heterogeneidade
literária talvez pudesse dar conta de tantas diferenças.
Oyata Martin14 afirma que o romance oferece aspectos transculturadores (mestiçagem
feliz; meta para o Perú, mas está mais para ideologia) e heterogênicos (Cornejo Polar). Há
momentos em que não funciona a comunicação: a luta domina sobre a integração, de acordo
com seu discurso Yo no soy un aculturado. Hibridiza os dois universos culturais; o conflito
domina.
14 Congresso Puc/Lima: La mano invisible de Arguedas: Hacia una comprensión sociológica del proyecto de una novela andina, 2011.
33
Fermin del Pino Díaz15 diz que a nação está formada em sua maioria por índios,
remetendo a Mariátegui e o problema da terra; observa que o Peru é um país dual, com uma
face hispano e indígena, onde as diferenças devem ser negociadas. Perguntou-se sobre qual
seria a consequência de um encontro cultural, aludindo claramente ao título do congresso
ocorrido em Lima este ano: Dinámica de los encuentros culturales. O encontro de culturas é
uma dinámica, algo que não se pode prever de todo, tendo-se uma idéia, mas não certezas. O
movimiento das raposas míticas deslocando-se de um mundo a outro possibilita imaginar a
ideia de encontro.
Parece-nos vital, para que prossigamos rumo à análise da obra arguediana Los Zorros,
aproximar nossa ótica ao eixo de nossa investigação: Cidade. Faremos isso baseando nosso
olhar a partir de Ángel Rama, com a obra A cidade letrada, essencialmente, e de José Luís
Romero, com A cidade e as ideias.
2.4 LUZES NA CIDADE
Para tratar do centro de nossa dissertação, o tema da cidade, optamos por Ángel Rama
e José Luís Romero, já que ambos, em diferentes épocas e espaços, pensaram o ambiente
urbano de forma bastante profunda.
2.4.1 A Cidade de Rama
Rama, em seus agradecimentos iniciais relativos à obra em questão, explicita que foi
muito perseguido por confundirem suas obras e/ou atitudes e atividades como comunistas.
Defendeu-se argumentando sobre a Biblioteca de Ayacucho, da qual foi diretor; sobre o
semanário Marcha, “destruído em 1974 pelos militares uruguaios, depois de 35 anos de
pregação intelectual” (RAMA, 1984, p.20). Foi exilado nos EUA, onde tentou “refazer a
15 Conferencia magistral: Joaquín Costa e Arguedas, aliados “naturales”: la academia al servicio de la sociedad, Centro de Ciencias Humanas y Sociales, Espanha. 2011, Congresso Puc/Lima, 2011.
34
família espiritual, essa dos peregrinos de que falou Martí, descrevendo-os a mais admirável
tradição de liberdade do país”.16 (AR, p.21)
Sua obra é resultado do estudo que durante muito tempo vinha realizando sobre as
culturas da América Latina no séc. XIX. Após participar do 8º Simpósio Internacional sobre
Urbanização nas Américas, em setembro de 1982, na Stanford University, vinculou seus
estudos anteriores a tudo que encontrou nesse evento. Tal obra terá como eixo, como ele
próprio afirma, “a letra servida do Poder e advoga pela ampla democratização das funções
intelectuais” (AR, p.21).
Há que aclarar quais são os modelos sucessivos de cidades definidas por Rama: a
Ordenada, a Letrada, a Escriturária, a Modernizada, a Politizada e a Revolucionária. No
capítulo dedicado à Cidade Ordenada, Rama afirma que a racionalidade e a ordem
imperavam ao conceber-se a cidade, seja no século XVI, com, por exemplo, a remodelação de
Tenochtitlan, após sua destruição pelo espanhol Hernán Cortés, ou, no séc. XX, com a
construção de um sonho, Brasília, “em que a cidade passava a ser um sonho de uma ordem”
(AR, p.23) Ángel Rama contrapõe a cidade orgânica medieval dos conquistadores, do Velho
Mundo, à cidade barroca do Novo Continente, a qual tem um molde objetivando um futuro e
que deve obedecer “às exigências colonizadoras, administrativas, militares, comerciais,
religiosas” (AR, p.23).
Rama identifica como cegueira antropológica a aplicação do princípio de “tábula
rasa”17 à essa cidade ordenada. Explico: entende-se por cegueira o fato de serem ignorados
todos os valores existentes na Nova Terra, como se tal existência “inexistisse’, não tivesse
vida antes dos colonizadores.
16 A partir de agora, usaremos a sigla AR para referir-nos à obra de Ángel Rama A cidade letrada. 17 Essa expressão latina significa literalmente “tábua raspada”, tomando o sentido de folha de papel em branco. Seria, metaforicamente, uma consciência desprovida de qualquer conhecimento inato, nascidas sem conhecimento algum. Todo processo de conhecimento seria a partir da experiência, portanto, com os descobridores.
35
Na América, nesse Novo Continente, o sonho dos peninsulares ocorreria de maneira
racional, efetiva, negando “ingentes culturas – ainda que tivessem de sobreviver e infiltrar-se
de maneira dissimulada na cultura imposta”. (AR, p.24) De certa forma, toda esta discussão
nos remete a Fernando Ortiz, com a obra Contrapunteo cubano entre el tabaco y el azúcar, à
outra obra de Rama, Transculturação Narrativa, e a Cornejo Polar com Escribir en el aire, e
seu conceito de heterogeneidade.
Distintamente do que se poderia pensar, os nomes Nova Espanha, Nova Galícia e
Nova Granada não condiziam com os substantivos a que se referiam. Ainda que o adjetivo
nova nos faça imaginar algo pré-existente com uma roupagem diferente, mais atualizado, não
acompanhavam a imagem desses lugares na Europa. Ou seja, na verdade, eram novos lugares,
porque num novo continente, mas que não mantinham nenhum laço com o local europeu
sugerido. O autor afirma que nesse Novo Mundo surge a cidade ideal, que terá como norte
uma razão ordenadora, que a pensa enquanto hierarquia social.
A palavra ordem é o termo chave dessa perspectiva de cidade: disciplina,
enquadramento e adaptação forçada são vocábulos que se referem bem à cidade ordenada, a
essa cidade idealizada. Existe um “projeto racional prévio” à existência da cidade real. Ou
seja, antes de sua existência no mundo concreto deve ser concebida nas ideias. Parte-se do
princípio, afirma Rama, de que há um poder para pensar esse projeto, e, por conseguinte,
realizá-lo. Esse poder nada tem de divino, mas coloca uma roupagem de ideologização, para
substituir os dogmas religiosos. Tal poder está concentrado em três grandes instituições: a
Igreja, o Exército e a Administração. Rama define o termo ordem: “Colocação das coisas no
lugar que lhes corresponde. Conserto, boa disposição das coisas entre si. Regra ou modo que
se observa para fazer as coisas” (AR, p. 27). Era uma transposição de uma ordem social
peninsular a uma realidade física distinta. Em relação à fundação das cidades do Novo
Continente, tal transposição deveria desembocar num futuro, o que não existe, “que é apenas
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um sonho da razão, é a perspectiva genética do projeto” (AR, p.27). Rama salienta que tal
transposição foi reforçada pelas linguagens matemáticas, entendidas como respostas seguras e
válidas para qualquer situação.
A necessidade de pensar a cidade antes de sua constituição objetiva, acima de tudo,
traduzir uma hierarquia social, com unidade, planificação e ordem religiosa, afirma o autor:
“A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para impedir assim toda futura
desordem, o que alude à peculiar virtude dos signos de permanecerem...”(AR, p.29). É o
sonho de uma ordem” (AR, p.32). Nesse contexto, houve a necessidade, por parte do poder,
do surgimento de um scrip (alguém que pudesse redigir) uma escritura, que tinha como
missão dar fé a partir da palavra escrita, como única válida na América Latina, como ideia de
permanência, rigidez, firmeza, confiabilidade. Obviamente, para que houvesse uma escritura,
dever-se-ia escolher a língua do poder e alguém que tivesse acesso a ela, no sentido de
dominá-la, usá-la. Eis um discurso considerado ordenado, livre de movimentos, metamorfoses
ou acontecimentos.
Rama afirma que “atrás de seu aparente registro neutro do real, insere o marco
ideológico que valoriza e organiza essa realidade, autorizando todo tipo de operações
intelectuais a partir das suas proporções” (AR, p.30). Não há uma representação da coisa
existente, mas do sonho ao redor do objeto. Há um nível físico da cidade e um nível
simbólico. A representação real é aquela que sonha uma possibilidade, um futuro, um más
allá. Explicamos, utilizando-nos de palavras de Rama:
Antes de ser uma realidade de ruas, casas e praças, que só podem existir e ainda gradualmente, no transcurso do tempo histórico, as cidades emergiam já completas por um parto da inteligência nas normas que as teorizavam, nos atos fundacionais que as estatuíam, nos planos que as desenhavam idealmente. (AR, p.32)
O projeto que se desenhou dispensava relação com a realidade, era quase independente
da mesma. A preocupação existente no primeiro século era menos de construir cidades e mais
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de fincar um poder já existente em solo europeu. Deveria existir uma preservação do “caráter
sistemático da autoridade, que está baseado na crença de que os reis o eram pela graça de
Deus.” (KONETZKE, 1972, p. 119).
O aparecimento das cidades nesse contexto nos remete ao dualismo entre campo e
cidade, civilização e barbárie. Impossível se faz não remeter-nos ao clássico Facundo (1845),
de Domingos Faustino Sarmiento, que trata dessa questão em solo argentino.18
O enfoque não era, como anteriormente, a partir do cultivo do solo, da agricultura,
surgir um mercado e uma consequente relação com o exterior. Aqui, constrói-se a urbe e
busca-se viabilizar uma visão agrícola, ainda que, porventura, esse solo e/ou região não seja a
mais adequada para tal atividade. A lógica toma outros rumos. Com afirma Rama,
o ideal fixado desde as origens é o de ser urbano, por insignificantes que sejam os assentamentos de que se ocupem, ao mesmo tempo em que se lhe encomenda à cidade a construção de seu contorno agrícola, explorando a massa escrava para uma rápida obtenção de riquezas (AR, p.35)
São cidades irreais pois não condizem com as necessidades do meio em que se
inserem, somente extraindo o que já havia no local antes de sua existência (seu aparecimento),
como zonas de cultivo, mercadores indígenas. Rama cita a obra Os Sertões (1902), de
Euclides da Cunha, como um alerta ao princípio modernizador do conceito de cidade. A partir
do que expõe na obra, a guerra sangrenta ocorrida no sertão de Canudos, aquilo que se
supunha grandioso mostrou sua faceta monstruosa. Foram momentos de conquista
desenfreada pelos quais passou o solo americano. A esse momento deu-se o nome de
evangelização e educação. Floreou-se uma etapa cruel de nossa civilização: “Tratava-se de
um mesmo esforço de transculturação a partir da lição européia” (AR, p.37). As instituições,
18 Domingos Faustino Sarmiento tratará, no século XIX, em sua obra, sobre a cidade opondo-se ao campo, como centro receptor da cultura européia, opondo-se a essa visão a barbárie da não–civilização, daquilo que não se entende por urbe. As cidades deveriam conquistar o imenso território ao redor, domesticando, detendo suas garras, submetendo às suas normas.
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tais como sedes de Vice-Reis, Arcebispados, audiências, antes da independência e após,
universidades, sede de governadores foram “instrumentos obrigatórios para estabelecer a
ordem e para conservá-la” (AR, p.38).
Ordem sugere hierarquia disciplinada, que leva à ideia de estratificação. São vários
níveis: capitais do vice-reinado, seguidas pelas cidades-portos. Seguidos por capitais de
Audiência, tendo as cidades, povoados e vilarejos seguindo mais abaixo. Cada cidade possuía
uma pirâmide de subordinação, exercendo grande poder sobre o interior e impondo-lhe
normas e regras.
A partir da concepção largamente explorada há pouco sobre a cidade ordenada,
objetivando a hierarquização e concentração de poder, as cidades dispuseram de um grupo
social imbuído do objetivo de exercer poder quase similar ao da classe sacerdotal, afirma
Rama: os intelectuais. Tal grupo outrora fizera parte da esfera eclesiástica. Nesse momento,
no entanto, preocupava-se com os filhos da terra. Explico: dentre os filhos dos grandes
nobres/nomes nascidos nessa terra, havia uma juventude rica e a nação carecia de um grupo
que se encarregasse desse número, que só aumentava.
As cidades recebiam várias denominações, de acordo com seu principal objetivo ou
incumbência: cidade bastião, cidade porto, cidade pioneira das fronteiras civilizadoras, cidade
sede administrativa, cidade letrada, Sendo consideradas as cidades visíveis. Porém, de forma
paralela, quase invisível, há a cidade denominada de Letrada, que, tal como as outras visíveis,
é amuralhada e também agressiva. A ordem desta cidade tinha como patamar os signos,
exercidos por “religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores, múltiplos
servidores: os intelectuais” (AR, p.43). Eram os que manejavam a escrita.19Os não–letrados
vivem à margem desses códigos, desse mundo posto como mágico, com ligações sacerdotais,
19 Vale lembrar de Fabiano, personagem central da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, completamente refém dos desmandos de quem dominava as letras, a linguagem escrita e a maneira culta de expor-se oralmente.
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como se essa classe de letrados possuísse o dom de conectar-se com o Espírito. O grupo
letrado a que nos referimos circula no alto da pirâmide anteriormente exposta.
Ángel Rama explica quais foram os motivos que ajudaram a fortalecer a cidade
letrada. Primeiramente compor grande administração colonial, encaminhando a Monarquia, e
como segunda grande tarefa evangelizar uma grande população indígena (enquadrar na
aceitação dos valores europeus). Rama coloca o termo evangelização como sinônimo de
transculturação. Outras funções desse grupo de letrados seriam: levar as multidões à
idealização, encaminhando à transmissão de sua mensagem persuasiva, com grande rigor
(mão de ferro), numa verdadeira militância propagandística (AR, 1984, p.45) e uma outra
seria formar uma elite dirigente, a serviço do projeto imperial, sem a necessidade de trabalhar,
cabe dizer. Todas as funções sinalizadas até aqui seriam indispensáveis ao Projeto
Colonizador, afirma Rama. O exercício da letra poderia traduzir-se em “uma escritura de
compra-venda, como uma ode religiosa ou patriótica”. (AR, 1984, p.45)
O mais relevante no tocante à cidade letrada é o fato de sua institucionalização “a
partir de suas funções especificas procurando tornar-se um poder autônomo, dentro das
instituições do poder a que pertenciam: Audiências, Capítulos, Seminários, Colégios,
Universidades” (AR, 1984, p.47).
Rama aponta aqui a questão da função do intelectual dentro da sociedade, como mero
reprodutor de ideias ligadas ao poder, “perdendo-se de vista sua peculiar função de
produtores, enquanto consciências que elaboram mensagens e, sobretudo, sua especificidade
como desenhistas de modelos culturais, e destinados à constituição de ideologias publicas”
(AR, 1984, p.41). O autor os denomina como servidores de poderes (AR, 1984, p.42), os
quais “servem a um poder, como também são donos de um poder.” (AR, 1984, p.48) Ángel
Rama demonstra temer que os intelectuais se distanciem de sua verdadeira função dentro da
sociedade: o de fazer refletir. Teme que o poder os embriague. (AR, p.48). Os intelectuais
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ocuparam o setor funcionário que é definido como parasita.20Acredita que o grupo de letrados
seja eminentemente urbano, ou seja, que a cidade seja seu habitat natural. Pergunta-se sobre a
que “se deveu a supremacia da cidade letrada”. Uma possível resposta é que o grupo serviu
para difundir a ideologia do poder, manejando com mestria os instrumentos de comunicação
social.
Alguns intelectuais no século XVII, por exemplo, Sor Juana de La Cruz, por meio de
seus textos, apontavam a tarefa social e política que correspondia aos intelectuais, exaltando a
figura do Vice-Rei. A mensagem artística era utilizada politicamente. Os donos da escritura,
esta cidade letrada, eram os únicos a dominar as letras numa sociedade analfabeta. Rama
afirma que a escritura, em termos de importância, assumiu o lugar da religião, ou seja, foi
considerada uma religião secundária, pois foi “equipada para ocupar o lugar das religiões
quando estas começaram seu declínio no século XIX”. (AR, 1984, p.31) As palavras se unem
à pintura, à escultura, à música, às cifras, a todo um conjunto de símbolos para “arregimentar“
as mentes e envolvê-las numa ideologia. Como afirma o autor, é um “sistema independente,
abstrato e racionalizado” (AR, 1984, p.50); “é um grande sistema simbólico”. É uma rede
produzida pela inteligência raciocinante que “institui a ordem” (AR, 1984, p.51).
O autor considera que não há necessariamente uma sintonia ou proporcionalidade
entre a cidade real e a cidade letrada ou simbólica. Isto é, os movimentos democráticos e anti-
hierárquicos podem dificultar a ação racionalizadora das elites intelectuais. São duas
entidades diferentes, com naturezas e funções distintas, ainda que uma não exista sem a outra.
A cidade letrada está para as significações enquanto a cidade real está, diz Rama, para o
campo dos significantes. São duas cidades superpostas: a física e a simbólica. A primeira, que
apresenta multiplicidade e fragmentação, e a segunda, com sua ordem e interpretação da
20 Em Los de abajo, do mexicano Mariano Azuela, os integrantes deste grupo recebem o vocábulo moscas e o espanhol Peréz Galdóz os chama de peixes.
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primeira. Há o labirinto de ruas que pertence à primeira cidade e o labirinto de signos “que só
a inteligência raciocinante pode decifrar”. (AR, 1984, p.53)
A partir da distância entre a cidade letrada e aquela que se sustentava na oralidade,
nasceu a cidade escriturária, reservada a uma estrita minoria. A Bíblia, por exemplo, era lida,
até o século XVIII, somente pela classe sacerdotal. Aquilo que era firmado foi sendo, afirma o
autor, sacralizado, ganhando um peso acima do normal, ainda que aquilo que fosse expresso
por escrito, na realidade, não fosse cumprido. Ganhou terreno um desencontro entre estas
duas forças: a simbólica e a física, a concreta, a que era exterior às letras, sendo que a
primeira tinha primazia sobre a segunda, tamanha sua relação com o Poder.
Leis, códigos, editais ganharam força após as independências, levando ao destaque
advogados, escreventes, burocratas administrativos, escrivãos. A partir de suas mãos, vidas e
fazendas se curvaram, afirma Rama, numa grande reafirmação do poder. A partir de
documentos que redigiam o direito de propriedade, (contratos e testamentos): os títulos de
propriedade. Todos eles exerciam essa faculdade escriturária, para que obtivessem ou
conservassem bens. Os advogados agiam em relação às disputas das mesmas propriedades,
sendo considerados detentores da retórica e da oratória. Novamente nos vemos diante do
Poder Simbólico (conceito de Pierre Bourdieu). Outros componentes foram encorpar o grupo
de escriturários: os médicos, os quais eram, diz Rama, mais treinados para a escrita que em
relação à anatomia. Lembremos o sociólogo Gilberto Freire, sociólogo brasileiro, com seu
livro Ordem21 e Progresso (1959, p.20), que investigou como a correção no escrever, a pureza
do falar e a elegância do dizer não necessitam condizer com o que realmente ocorria na
21 Ideia positivista, de origem francesa, na qual predominava a ciência e o método empírico sobre os devaneios da religião. O avanço tecnológico europeu, no início do século XIX, fez acreditar em seu completo domínio da natureza.
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realidade no que tange à arte da medicina. Era um verdadeiro “endeusamento da escrita” em
detrimento da fala, da linguagem oral.
Houve em relação à sociedade latino-americana uma bifurcação entre a língua pública
e a privada, entre a fala cortesã e a popular. A primeira servia para a oratória religiosa, as
cerimônias civis e a segunda para a informalidade, ao alvoroço. A liberdade da língua popular
foi observada como corrupção, ignorância, barbarismo (AR, 1984, p.56). Ou seja: podemos
pensar que as línguas aqui encontradas antes da colonização não tiveram espaço nessa
sociedade discriminatória.
A evolução de tais línguas deu-se de forma completamente distinta: enquanto a língua
oficial
se caracterizou por sua rigidez, dificuldade para evoluir e pela generalizada unidade de seu funcionamento, a outra, a popular, com sua verificável liberdade, evoluía constantemente, aceitando todo tipo de contribuições e distorções, e foi extremamente regional, “funcionando em áreas geográficas delimitadas”. (AR, 1984, p.57).
A língua oficial encontrava-se em situação minoritária, rodeada “lingüística e
socialmente” por inimigos, “aos que pertencia a imensa maioria da população” (AR, 1984,
p.57). Rama diz que esta língua estava no cerne de dois anéis: o urbano e o rural. Havia o
primeiro, o qual era mais próximo e estava constituído pela plebe (crioulos, ibéricos
desclassificados, estrangeiros, libertos, mulatos, mestiços e toda sorte de cruzamentos
étnicos), tidos como gente inferior. Foi nesse meio que nasceu o espanhol americano. A
língua do campo dizia respeito às fazendas, aos campos, pequenas aldeias e/ou quilombos; era
relacionada aos indígenas e /ou africanos. Rama afirma que “a propriedade e a língua
delimitavam a classe dirigente”. (AR, 1984, p.58)
Deu-se, nesse contexto, a força da norma peninsular, a da Corte. Ou seja, do centro de
todo poder. A carta era o gênero literário mais em voga, mais intenso, considerado como
cordão umbilical, ligação entre a metrópole /Europa e as colônias (América). Tal gênero era
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seguido pelas crônicas. Voltamos à ideia da cidade letrada, à grande distância entre a confusa
realidade social e a organizada realidade simbólica, com suas leis e ordenanças. Damos como
exemplo o pronome “vós”, o qual se ensina às crianças mas é inexistente nas relações sociais,
nas falas correntes e na escrita. Muitos intelectuais, com seus romances de costumes ou
regionalistas, sentem a necessidade de, ao escreverem, expor um glossário lexical ao leitor,
que tanto pode ser o peninsular como aquele pertencente às de outras áreas da América no
sentido de mediar o significado de termos oriundos da camada dita inferior, numa espécie de
tradução, uma metalinguagem explicativa. Podemos afirmar, apoiados no texto de Ángel
Rama, que há um verdadeiro império da escritura, onde na cidade letrada e na escriturária há a
defesa da norma linguística e cultural, onde as normas baseiam-se na escritura, para fixar o
universo aceitável.
Reiterando a concepção de que “a cidade letrada quer ser fixa e atemporal como os
signos, em oposição constante à cidade real que só existe na história e se adequa às
transformações da sociedade” (AR, 1984, p.65), Rama expõe um questionamento relativo aos
momentos de mudanças referentes às independências e às revoluções emancipadoras do sec.
XIX e XX que antecederam e como essa cidade letrada se posicionou diante de tais conflitos.
Como o grupo de letrados sobreviveu e se manteve ainda que o processo de mudança pudesse
ser caótico e irracional. Evidencia-se, diz Rama, o grande grau de autonomia alcançado pelo
grupo de letrados dentro do poder e sua versatilidade frente às adversidades. Diante da elite
militar, a cidade letrada rapidamente adaptou-se, com a criação de leis, regulamentos e
constituições, tarefa central da cidade letrada em seu novo serviço. Era a função escriturária
que novamente entrava em vigor, fazendo mais uma vez com que realidade (vida social) e
realidade simbólica (corpus legal) mantivessem profundo desencontro. Novas instituições
foram criadas, como por exemplo, os Congressos, ampliando, desta maneira, o alcance desses
letrados, integrantes da cidade letrada. Paralelo ao desejo de liberdade daquele momento,
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desejou-se ter acesso à Educação, à língua que se podia e devia escrever. A revolução social
levou à revolução simbólica, da cultura.
Com o romance Periquillo Sarniento (1816)22, o autor mexicano Joaquín Fernández de
Lizardi recria a linguagem peculiar, as gírias estudantis, a fala dos ladrões, os dialetos dos
índios da chamada Nova Espanha; encontram-se nesta obra lendas, superstições, tabus e a fala
popular da fusão de raças. Rama entende que nesta escritura “irrompe a fala da rua com um
repertorio léxico que até esse momento não havia chegado à escritura pública” (AR, 1984,
p.68). Considera-se tal obra como “um cartel de desafio à cidade letrada” (AR, 1984, p.69), já
que se inclina para um novo público, recém-incorporado ao circuito das letras. Nesse
momento de grandes transformações, inclusive de independências políticas, desejou-se uma
harmonia mais ampla: independência linguística-literária, no que se referia à língua pública.
Outro tópico seria a Cidade Escriturária. Há em Simón Rodriguez, diz Rama, o desejo
de uma reforma ortográfica, para adequar a língua oriunda de Espanha à terra local, seja por
conta de seu uso constante, seja pela pronúncia. Claramente faz-se um questionamento contra
a cidade letrada. Simón Rodríguez raciocinou que as repúblicas não se fazem com doutores,
com literatos, com escritores mas com cidadãos, tarefa duplamente urgente numa sociedade
que a Colônia não havia treinado para esses fins: “Nada importa tanto como ter Povo: formá-
lo deve ser a única ocupação dos que se identificam com a causa social” (RODRIGUEZ,
1975, p. 267); desejou perceber no nativo um valor maior que o europeu.
Havia o desejo de concentração do Poder de maneira anti-democrática:
Não esperem dos colégios, o que não podem dar... estão fazendo letrados... não esperem cidadãos. Persuadam-se que, com seus livros e seus compassos sob o braço, sairão os estudantes a receber, com vivas, a qualquer um que acreditem
22 Publicada durante a guerra da independência mexicana, 1816, considerada primeira novela latino-americana. O romance é sobre o personagem Pedro Sarniento, com suas venturas e desventuras, sua vida e morte. Compõe-se de quatro tomos, sendo que o quarto foi censurado por criticar a escravidão. Nessa época, era proibido ler obras de ficção, pois acreditava-se que fomentavam um uso ocioso do pensamento e repercutiam numa crítica social. De acordo com Rama, a obra descreve usos e costumes da Nova Espanha.
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dispostos a dar-lhes os empregos em que tenham posto os olhos... eles ou seus pais. (RODRIGUEZ, 1975, p.267)
Esperava Rodriguez uma educação social destinada a todo o povo, objetivando que
este usufruísse do direito à propriedade e às letras. Baseando-se em Rousseau, numa
concepção igualitária e democrática, ansiava que não somente o grupo dirigente colonial
usufruísse desses privilégios. Rama compara Rodriguez a Andrés Bello, no tocante às
propostas de escritura e reformas ortográficas, mas acredita que o primeiro possui uma visão
mais abrangente, já que, mais que desejar um progresso da educação, busca estabelecer uma
“arte de pensar”, que coordenasse a universalidade do pensador moderno e a particularidade
do homem que pensava na América Latina, mediante a língua espanhola-americana de sua
infância (AR, p.73). Afirma que todas as reformas ortográficas sonhadas fracassaram pela
fragilidade do projeto e mais, pelo fato de novos cidadãos não estarem sendo formados, e
sociedades democráticas e igualitárias não estarem sendo construídas.
Acreditava Rodríguez que o objeto maior educação social seria incentivar o que
chamou de lógica viva.
Ler é o último ato no trabalho do ensino. A ordem deve ser... calcular-pensar-falar-escrever e ler. Não... ler-escrever, contar e deixar a lógica (como se faz em todas partes) para os poucos que a sorte leva aos colégios, daí saem empanturrados de silogismos, a vomitar, no tratamento comum, paralogismos e sofismas ás dezenas. Se houvessem aprendido a raciocinar quando crianças, tomando proposições familiares para premissas, não seriam, ou seriam menos embrulhadoras. (RODRIGUEZ, 1975, p.243).
Houve em Rodríguez uma proposição à arte de pensar, não a de escrever. A escritura
estaria, a partir deste prisma, subordinada ao pensamento. Ele opôs-se à cidade letrada, como
também à escrituraria, pelo muito que foi exposto até aqui.23O fato dele ansiar por uma língua
23 Recordemos a obra de Aldoux Huxley, Admirável Mundo Novo, em que o poder instituído realiza muitos experimentos para afastar o ser humano do saber, da cultura; à medida que este, quando bebê, se aproximasse de um livro, levaria um terrível choque acompanhado de um som estrondoso. Isso, diversas vezes, faria com que aquela pessoa tivesse aversão àqueles objetos, num processo de condiconamento.
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americana cortando, de certa forma, os laços com o espanhol europeu, de se dispor a ouvir “o
manejo da língua por parte do povo analfabeto” (AR, p.74), não pode levar-nos a acreditar
que comungava de vícios de pronúncia como um abandono do espanhol correto. Não, não foi
assim que ocorreu. Ele, tal como Bello, condenou esses desvios; exalta o projeto de Simón
Rodríguez, já que dentro de sua época, foi algo excepcional e inovador. Reconhecia na língua,
tal como Ferdinand de Saussaure24 “uma tradição oral independente da escritura e fixada de
maneira muito distinta.” Saussure, tal como Rousseau, em sua obra Ensaio sobre a origem
das línguas, valoriza imensamente a fala, em detrimento da escritura.
Encaminharemos nosso pensamento agora à Cidade Modernizada. A modernização,
que surge ao redor de 1870, com suas gazetas populares e revistas, ameaça a cidade letrada,
mas o grupo letrado ampliou seu raio de ação, com novos questionamentos em relação ao
poder.
Rama cita José Pedro Varela e José Martí (1891) como duas vozes que se
posicionaram contra os intelectuais, chamados por Martí de letrados artificiais, como se tal
grupo se identificasse com o poder vigente, já que estariam usufruindo de privilégios. Havia
um anseio por combater a cidade letrada e que houvesse uma diminuição de seus privilégios
considerados abusivos.
No contexto ora exposto, surgem as leis de educação comum, a partir de 1876, com o
próprio Varela. Escolas técnicas, paralelamente às universidades, absorvem novos grupos
sociais, contrabalançando a hegemonia de médicos e advogados, segundo Rama. Há um
crescente aumento demográfico e de exportação, o que favoreceu a tal mudança educacional.
Romero diz “Quase todas as capitais latino-americanas duplicaram ou triplicaram a população
nos cinqüenta não posteriores a 1880”. (2009, p.252)
24 Curso de Linguística General, Buenos Aires, Losada, 1979, p.73.
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Toda essa explanação se faz necessária para que se consiga entender como ocorreu o
processo diacrônico de formação das cidades. Nesse crescimento ora supra-citado, três setores
absorveram os intelectuais: a educação, o jornalismo e a diplomacia, já que a política e as
instituições públicas já os vinham absorvendo. O jornalismo isentou-se da concentração do
poder, mantendo mais autonomia em relação a ele.
Nesse momento, a visão idealizada em relação aos intelectuais foi de alavanca para
ascensão social. Explico: os jovens de classe média e/ou baixa viam nesse caminho uma
forma de alcançarem patamares elevados socialmente, de serem respeitados publicamente e
de penetrarem nos centros de poder.
No contexto ora delineado, surgem caminhos menos convencionais de utilização das
letras: criação para músicas populares, artigos que surgem de pequenas publicações, tradução
dos folhetins. Em meio a esse espaço surgirão as vozes críticas. Surgem os mitos do rebelde e
do santo, figuras estas que denotam resistência à opressão dos poderes. Aparecem as figuras
do jornalista e do advogado e cada um dos quais, dentro de seu campo de atuação, pode
denunciar as arbitrariedades dos poderosos. Rama, no entanto, enfatiza que tais figuras, mitos
letrados e urbanos, não se desenvolveram na América Latina (AR, p.81). Na verdade, foi
exatamente o contrário o que ocorreu: “o peso enorme das instituições latino-americanas que
configuram o poder e a escassíssima capacidade dos individuos para enfrentá-las e vencê-las”
(AR, p.82).
Nesse ponto, Rama disserta brevemente sobre a questão dos mitos: “são condensações
de suas energias desejantes acerca do mundo, as quais na sociedade norte-americana se
abastecem com amplidão nas forças individuais, enquanto nas latino-americanas descansam
numa percepção aguda do poder.” (AR, p.82). Ou seja: em nossa sociedade latino-americana,
pensa-se mais em termos coletivos, em detrimento de manifestações mais individualizadas.
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Em fins do século XIX, no seio da cidade letrada, um pensamento crítico configura-se
a partir da dissidência. Altas produções dos intelectuais e sentimentos de importância e
frustração em relação ao poder espanhol na colônia impulsionaram, ou melhor, foram as
possíveis causas de tal pensamento crítico no seio da cidade letrada.
Por todo o exposto, faz-se notório o motivo de determinada tendência literária não
haver encontrado em nosso meio possibilidades de frutificar: não aderimos ao “romantismo
idealista e individual alemão, mas ao romantismo social francês”(AR, p.83). Ainda que o
pensamento crítico existisse naquele momento, continuava coexistindo com a concentração de
poder tradicional.
Os novos leitores que nasceram nesse meio direcionaram-se para os jornais e revistas e
não para os livros, contrariamente ao que pensaram os educadores da época. O projeto de
Sarmiento enveredou no fortalecimento da escritura numa preocupação com a educação
sistemática. A universidade era a “jóia mais preciosa da cidade letrada”25 pois era através dela
que se chegava ao Poder. Era, portanto um meio de ascensão social (AR, p.84), sendo o centro
dessa cidade modernizada, atraindo olhares de que acreditava que por ela alcançariam
patamares mais elevados, revestida de poder quase que sacrossanto (AR, p.84). Estratégia de
ascensão social, numa espécie de ponte, de mediação. Estaria deste modo cumprindo o papel,
que foi no passado da Igreja, em um período agnóstico.
Dentro do prisma que se desenhou, a cidade letrada não somente se fortaleceu como
incorporou novos elementos: sociólogos, economistas, educadores. No final do século XIX,
surgem as academias de Língua, mais como sentido de conter os duvidosos caminhos que a
língua estava formando. Explico: por conta de imigrações e inovações, a cidade letrada sentiu-
se ameaçada em seu posto de comando. Portanto, as academias em certa medida,
“controlavam” os avanços, como outrora havia ocorrido com o Império Romano. “Estamos,
25 Grifo nosso.
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pois, nas vésperas de ficar separados, como ficaram as filhas do Império Romano”, alertou,
em 1899, Rufino José Cuervo.
Salienta Rama que os escritores preferiam locar-se nos grandes centros urbanos, em
especial nas capitais, ainda que, por força da temática do momento, utilizassem a “natureza”
em suas escrituras. A modernização ocorrida gerou uma captação de tradições orais que
estavam esvaindo com a civilização urbana fortalecendo-se. Diz Rama que a letra urbana irá
recolher tradições que não haviam sido registradas e comunicações orais. É o momento de o
intelectual recolher literaturas orais em processo de desaparecimento. São canções e narrações
rurais que, em meio ao fervor da cidade e da educação, vão perdendo-se. “Nesse sentido, a
escritura dos letrados é uma sepultura onde é imobilizada, fixada e detida para sempre a
produção oral” (AR, p.90).
Rama acredita que os ingredientes populares fortalecem a concepção nacional e não,
contrariamente a outros, que toda essa faceta empobreça ou ameace a nação, pois, a princípio,
parece algo que agrida o sistema, que o desestabilize. São materiais populares que colaboram
com a formatação (AR, p.92).
A literatura é um discurso que forma, constitui e define a nação. Ela incorpora os mais
distintos elementos em sua composição, para mais além das elites cultas. Todas as
contribuições populares e regionalistas auxiliam a entender e perceber a nacionalidade de um
povo. Se a literatura prioriza a escritura e nega a oralidade, está desvinculando-se de sua
máxima, que seria compor a faceta de um povo, em todos os seus matizes. A modernização
produz desculturações.
A cidade real era o principal e constante opositor da cidade das letras, a quem esta
devia ser submetida. A modernização e surgimento das multidões ofereciam constante perigo
à cidade das letras. Esta cidade real era quem punha em xeque a cidade letrada, especialmente
nas cidades atlânticas. Houve um desbordamento intenso em relação às cidades litorâneas que
50
receberam grande fluxo de migrações rurais internas e muitas das vezes externas também.
Esse foi o caso da Cidade de Chimbote, que atraiu estrangeiros e cholos; é uma cidade-porto,
a qual recebeu intenso fluxo de imigrantes, com um crescimento vertiginoso. Pensamos em
Baudelaire, em relação à cidade de Paris e sua transformação física (entre 1850 e 1870), ao
dizer “que a forma de uma cidade mudava mais rapidamente que o coração de um mortal”
(AR, p.97).
A cidade física transformava-se de tal forma que os cidadãos que pertenciam àquele
local não conseguiam mais perceber seu passado naquele lugar e viam-se arremessados a um
futuro incerto; já os novos cidadãos não conseguiam identificar-se com aquele lugar. “Houve,
portanto, uma generalizada experiência de desenraizamento”. Esses imigrantes não
mantinham laços afetivos com aquele cenário; não tinham uma história em comum. Era um
universo alheio” (AR, p.97).
Todo o supra-citado mostra uma realidade do início do século XX, quando das
migrações de europeus para a América, mas de forma muito clara no romance Los Zorros isso
também se evidencia. Extremamente previsíveis os conflitos que surgiram desse contexto
caótico. Tudo contribuía para uma forte instabilidade.26 Havia uma sensação, de acordo com o
autor, de estranhamento em relação à experiência cotidiana. A escritura funciona, nesse
contexto, como uma fuga à realidade estranha. “Se com o passado dos campos constrói as
raízes nacionais, com o passado urbano constrói as raízes identificadoras dos cidadãos.” (AR,
p.98). A cidade letrada é nada mais que “planos desenhados no papel, imagens gravadas em
aço, discursos de palavras enlaçadas”. É como se fosse uma realidade imaginária.
26 O início da obra La nada cotidiana, da cubana Zoe Valdés, nos auxilia a imaginar todo o traçado que desenhamos: a incerteza dos movimentos, a falta de vínculo com a terra firme, as ondas que são mais fortes que o desejo de firmar-se.
51
A obra de Ricardo Palma, Tradições peruanas, por exemplo, conta como era a cidade
antes de tantas transformações ocorridas nesse período modernizado. São tradições expressas
na escritura, para que não pereçam. É um momento de profundas mudanças, de destruições e
reconstruções.
Há uma ideia de cidade futura paralelamente à cidade passada; a imagem de divisor de
águas se evidencia. Um momento posterior a tudo isso é denominado por Rama como Cidade
Politizada. Com a revolução mexicana, em 1911, efetivamente, começa o século XX na
América Latina, após tantas transformações da cidade modernizada. Esta revolução põe em
risco inúmeras “sacudidas político-sociais em busca de uma nova ordem” (AR, p.102). A
crise mundial de 1929 e, de acordo com sua perspectiva, a mais catastrófica de 1973,
deflagram “o avançado da incorporação latino-americana à economia-mundo. Por outro, a
debilidade de sua integração dependente, a aumentar a distância entre centro e periferia na
economia do capitalismo” (AR, p.102).
Inúmeros debates políticos pairavam sobre essa nova cidade: novos partidos, recentes
doutrinas sociais (anarquismo, socialismo, comunismo); expansão do jornalismo, república
que se impõe, desaparecimento da escravidão. Os intelectuais dividiram-se entre encerrar-se
em sua vocação literária e eximir-se da vida política, e outros chegaram até mesmo à
presidência como, por exemplo, Rómulo Gallegos. Muitos cumpriram o que se chamou de
função ideologizante, em relação à nova geração, à juventude. Eram condutores espirituais da
sociedade, “mediante uma superpolítica educativa que se desenhou contra a política
cotidiana” (AR, p.106).
José Martí, no final do século XIX, abandona suas atividades literárias e jornalísticas
para se entregar-se às lutas políticas e revolucionárias. Os literatos substituem os sacerdotes
na condução espiritual, como ideólogos, da sociedade. Rodó traz de forma emblemática o
projeto de sua época: cura de almas; havia o desejo de sacralizar o intelectual em tempo
52
conturbado de uma sociedade materialista. À medida que os intelectuais ocuparam um forte
espaço por meio da educação, a Igreja abocanhava a massa inculta, esquecida, preterida pelos
elementos do poder dentro da modernização incessante.27 Trataremos a seguir, brevemente, da
forma como José Luís Romero observa o tema cidade em sua obra La ciudad y las ideas.
2.4.2 A Cidade de Romero
José Luis Romero (Buenos Aires, 1909 e Tóquio, 1977) investiga na obra A cidade e
as ideias todas as nuances do que se considera uma metrópole, uma urbe, uma cidade.
Observa as relações entre o desenvolvimento das cidades e certas formas de vida que existem
em seu interior.28 Eis aqui o motivo de meu interesse por José Luís Romero: o enfoque que
dará à cidade e seu desmoronamento.
O crítico literário Noé Jitrik enaltece o livro de Romero por este apresentar um recorte
latino-americano, distinto do que era proposto até então, já que a América Latina era vista
como algo distante, diferente de Europa, idéia eurocêntrica. Ou seja: a cidade européia, no
tocante ao fenômeno urbano, se difere profundamente da cidade latino-americana. As cidades
na obra de Romero surgiram em contraste com o campo.
Sua obra A cidade e as idéias29 foi publicada pela Editora Siglo Veintiuno Argentina
em 1976, meses depois do golpe militar que iniciou na Argentina a última ditadura militar.
Afirma que a repercussão da obra não foi a mais calorosa, pois os universitários que poderiam
desejar lê-la “estavam mortos, exilados ou presos em suas casas” (ROMERO, 2009, p.25), já
que era uma época de profunda repressão militar.30Seu estudo teve como eixo central a cultura
ocidental, desde o Império Romano em desagregação, até o século XX. Acreditava que
27 Podemos recordar a Guerra dos Canudos, com o Padre Antônio Conselheiro.
28 Em 1928, Romero é um dos mais reconhecidos críticos literários argentinos. Esteve exilado na Europa e no México, entre 1974 e 1987. 29 Ángel Rama e Leopoldo Zea utilizaram a obra junto a seus alunos. 30 De acordo com seu filho Luís Alberto Romero, que escreve o prefácio da edição de 2009, o editor do livro, o jornalista Jacob Timerman, desapareceu alguns meses depois da publicação da obra, vítima desse momento repressivo.
53
estudando o núcleo europeu central teria um melhor entendimento do argentino e do latino-
americano. Autodefinia-se como medievalista, passando a entender-se como historiador das
burguesias e do mundo urbano.
Num segundo momento de sua trajetória, Romero enfoca o mundo feudal, seus
alicerces e posterior desabamento, surgindo o mundo burguês. Procura entender o processo de
construção, crise e revolução de tais mundos; quer entender as novas ou renascidas cidades
amuralhadas. A terceira etapa de seus estudos foca a desagregação do mundo burguês e de seu
eixo capitalista. Romero observa como o término da Primeira Guerra Mundial pôs em crise o
mundo burguês e de muitos de seus valores, surgindo o socialismo como uma possível
alternativa naquele momento.
O autor postulou uma teoria: a vida histórica. Seu filho afirma que tal teoria poderia
ser classificada como empírica por nutrir-se da experiência do historiador. Foi considerado
historiador das crises desde a da República Romana até a crise do mundo burguês. Desejava,
afirma Luis Alberto Romero, perseguir em cada uma delas o instante da emergência do novo
por entre os resquícios do mundo constituido, o momento de tensão entre o criado
(ROMERO, 2009, p.29). A grande ideia que José Luis Romero perseguia eram as cidades e o
mundo urbano, como já se falou. Sua experiência era grande fonte de conhecimento e
reflexão, tal como os filmes, obras literárias e viagens, catalogadas e analisadas, inclusive a
partir de um saber “escolástico”, a partir de dicionários e guias (“empreendimento
heurístico”). A obra parte da “unidade derivada do fato colonial para a diversidade das
respostas”. (ROMERO, 2009, p.39).
A afirmação de que “José Luis Romero costumava definir-se como um cidadão
comprometido com um projeto para a sociedade” corrobora o que pensamos que seja o
posicionamento de José Luis Arguedas em relação à obra Los Zorros. Era um socialista
54
porque estava convencido de que o socialismo implicava a realização plena dos valores da
cultura ocidental – a liberdade, a igualdade, o humanismo. (ROMERO, 2009, p.35)
2.5 REVISANDO ALGUMAS IDEIAS
Alguns estudos buscaram nos conceitos de Ángel Rama e Fernando Ortiz respostas
para algumas indagações que os enlaçaram. O trabalho de Maurício de Bragança31, por
exemplo, refletiu sobre a questão da identidade e da diversidade que, desde o período da
colonização, acompanha a trajetória do continente. Bragança pensa que o projeto que se
imaginava para a América Latina nasceu do outro lado do oceano, na Europa. O dilema,
afirma, entre o regional e o universal, “se coloca então como um dos mais inquietantes
desafios, calcados em dualidades que contrapõem paradoxos” (Maurício de Bragança, 2002).
O europeu representa o outro, o americano, como algo diverso, maravilhoso.
Afirma Fernando Ainsa que: “Esta actitud explica la transculturación americana de
los mitos enraizados en la “nostalgia de las orígenes”- como o Paraíso terrenal, el cristiano
primitivo. Há uma dialética constante entre forças universalistas e nacionalistas.
Como declarou Machado de Assis: “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma
literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua
região”. Mas, também acredita que, ainda que se deva buscar a “cor local”, como projeto de
construção de Nação, não se pode que o “escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo,
que o torne homem do seu tempo e do seu país...”. Reflete sobre o séc. XIX, época de
formação dos estados nacionais na América, e como os pensadores e intelectuais latino-
americanos, ainda que pensando numa realidade nacional, acabam tecendo seus discursos em
sintonia. Estamos num momento de descolonização. Durante o séc. XX, se sonhou um
31 “Entre a transculturação e o hibridismo: Uma questão de identidade para a América Latina”, Salvador, 2002.
55
Homem Novo. De acordo com Bragança, os intelectuais teceram um futuro utópico, uma
cultura “inventada” para o continente.
As discussões nacionais, como Nuestra América, de José Martí (1888) estão
impregnadas por questões continentais. Novamente questões locais mescladas com as
universais. Bragança deseja analisar tais questões em um momento específico: a década de 60,
com seus, afirma, “acontecimentos emblemáticos” (Revolução Cubana, diálogo com países
africanos recém saídos de colonizações...). Surgem expressões pós-modernas (Globalização,
desterritorialização, Não–lugar) num grande jogo de construção/desconstrução de uma
identidade. Nesse contexto, Nestor García Canclini surge com o conceito de Culturas
Híbridas (nova maneira de pensar a América).
A América Latina, apesar de tantas diferenças e alteridades, diz Bragança, alcança a
unidade a partir da ideia de subdesenvolvimento, de Terceiro Mundo. É algo que coloca o
continente em pé de igualdade com outras realidades mundiais (como as africanas, por
exemplo).
A noção de transculturação, levada para o campo literário pelo crítico Ángel Rama,
seria um processo em que as vozes dos povos pré-ibéricos e africanos não seriam silenciadas,
como fazia supor o conceito de aculturação. Mas, sim, seriam enlaçadas às vozes dos
colonizadores e migrantes. É um grande entremear de culturas, afirma. Maurício Bragança
cita a Borges e a Cortázar, que fizeram da margem uma forma de atingir o universal. Nesse
período houve o Boom da literatura latino-americana no mercado internacional.
David Sobrevilla, da Universidade de Lima, no artigo “Transculturación y
Heterogeneidad: Avatares de dos categorías literarias en América Latina”, de 2001,
identificou que, no processo de transculturação, ocorre uma “plasticidade cultural”, onde
tradição e novidades são integradas. Salientou que, em 1944, Mariano Picón Salas já havia
acolhido o termo ramaniano em sua obra De la conquista a la independencia, no capítulo 4
56
(“De lo europeo a lo mestizo. Las primeras formas de transculturación”). Explora, de forma
breve, o conteúdo da obra de Rama Transculturação narrativa na América Latina (1982),
tendo a José María Arguedas e sua obra Los ríos profundos como principal eixo. Afirma que a
obra de Rama causou diversas críticas. E é às negativas que ele se referirá em seu artigo. Cita
um artigo de 1990, de Neil Larsen, em que este encontra no termo transculturação uma forma
de o Estado conter as forças periféricas.
Em 1995, Friedhelm Schmidt, numa crítica ao conceito ramiano, afirma que Rama
concebia a literatura latino-americana como una sola cultura homogenea, como se ela tivesse
somente um sistema literário e fosse igual em todos os países do continente. Schmidt mostra-
se favorável ao termo cornejiano, pois o crítico percebe que cada país possui vários sistemas
literários.
Lívia Reis (2009)32 discorre sobre como o conceito de transculturação narrativa sofreu
uma série de críticas negativas. Afirma que a reflexão de Rama parte do conflito entre
vanguarda e regionalismo. Diz que para ele, “a introdução de novas formas literárias nas
cidades significou o cancelamento do movimento narrativo regionalista, que predominava na
maioria das áreas do continente”. (REIS, 2009, p.80). O regionalismo, diante das novidades,
ora o aceitou de forma absoluta, o assumiu houve uma rigidez cultural, negando quaisquer
influências, ora integrou tradição e vanguarda, como “plasticidade cultural”, termo usado por
Rama. Raul Bueno (1996), Alberto Moreiras (2001), Friedhelm Smidt (1996), John Beverly
(1999), Walter Mignolo (2000), Mary Louise Pratt (1992) foram os críticos citados por Lívia
Reis, em relação a não estar de acordo com a visão de Rama no tocante à questão da
transculturação narrativa. Lívia Reis conclui que acredita serem extremamente saudável tais
discussões e todo o debate levantado em torno de Ángel Rama.
32 Pesquisadora brasileira, da Universidade Federal Fluminense, em sua obra Conversa ao Sul, lançada em 2009, no capítulo “Transculturação, releituras e aproximações”.
57
Raquel da Silva Araújo (2007) explica os motivos pelos quais a cidade de Chimbote
atraiu a atenção do antropólogo e etnólogo: na década de 60, a serviço da Universidade
Agrária La Molina, desejava estudar a migração andina, uma modernização desenfreada.
Raquel da Silva tratará do conceito transculturação, enlaçando a obra ao termo. Seu foco final
serão os enfrentamentos vividos por Arguedas, tanto em sua vida pessoal, como profissional e
enquanto cidadão peruano, dividido entre duas culturas. E cita, a proposito, sua orientadora
Lívia Reis, para quem
o processo de transculturação prevê a transformação de culturas que coexistam em um mesmo ambiente sem que uma sobrepuje a outra, isto é, sem que haja aculturação ou desculturação. É um processo traumático, complexo, dialético, onde não há harmonia, e sim perdas, ganhos, seleções, descobertas... (ARAUJO, 2009, p.20)
Marcos Riason Natali, em seu texto José Maria Arguedas aquém da literatura, de
2005, põe em dúvida se Arguedas foi um transculturador narrativo, como acreditava Ángel
Rama. A partir da análise de Los Ríos Profundos, um conto seu institulado “La agonía de
Rasu-Ñiti” e sua obra póstuma “El Zorro de arriba y El zorro de abajo”, Riason Natali
levanta a questão de Arguedas haver trilhado o caminho inverso ao de Gabriel García
Márquez, Juan Rulfo e Guimarães Rosa, na visão de Rama: acreditar que culturas diversas
possam confluir para um mesmo espaço de forma harmoniosa. Há a afirmação de que o
quéchua e o espanhol não possam, de forma harmônica, coexistir. Recupera o conceito de
transculturação narrativa de Rama afirmando que o crítico uruguaio acreditava na “capacidade
elástica que a literatura teria de incorporar diferentes línguas, visões de mundo e objetos.”
(NATALI, 2005, p. 25). O autor concorda que em boa parte da produção literária de Arguedas
se verifiquem indícios de “soluções transculturais” bem sucedidas, tal como ocorrem em seu
maior sucesso, Los Ríos Profundos. Mas, a partir do conto da Agonía e Los Zorros, o autor
acredita que soluções triunfalistas não são mais perceptíveis. Inclusive, faz uma conexão entre
a trajetória do protagonista do conto com a trajetória de Arguedas e defende que a marcha
58
para a morte de primeira e o suicídio anunciado do segundo os colocam diante de uma
realidade: a inconciliação inevitável.
Alexandre Vieira, em seu artigo “José María Arguedas: O discurso do hibridismo
cultural e da quebra da identidade cultural”, de 2006, trata sobre a questão mítica, a qual
opera uma síntese ente nacional e universal. Tem como fundamento teórico Derrida, que
falará que a lógica binária treva/luz, colonizado / colonizador não existia no começo; isso é
uma criação do discurso, afirma. Vieira tratará sobre a desconstrução da identidade nacional e
o hibridismo cultural. Aponta que a mestiçagem e a antropofagia cultural conduzem para a
quebra de identidade nacional, realizando uma análise da obra de José María Arguedas, a
partir desse prisma. Deseja diluir a questão da mestiçagem, por exemplo, já que se vislumbra
no próprio terreno o mito, antes que este se transforme em matéria prima do fazer literário
(VIEIRA, 2006, p.64). Traça um panorama bastante profundo a respeito de Arguedas,
analisando especialmente duas obras suas: Los ríos profundos e El zorro de arriba y El zorro
de abajo. Acredita que sejam obras de mensagens mestiças. Vieira faz menção à Teologia da
Liberação, conectando a obra Los Zorros com a Bíblia em vários aspectos. Um dos
personagens, Esteban de la Cruz, apresenta, inclusive, semelhanças com Isaías. Indica que
Arguedas, nessa obra, propõe uma união de etnias, culturas e classes sociais.
Ana Lúcia Branco, autora de Discurso transculturador: Uma travessia inconclusa. A
respeito da transculturação em Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, trata em seu texto
do narrador-protagonista Riobaldo e sua missão transculturadora. Tal como Guimarães Rosa,
numa entrevista concedida a Gunter Lorenz, deixa transparecer que como escrita objetiva,
afirma a autora “mediar conflitos, promover trocas culturais, para, desta forma, contribuir no
processo de modernização literária e cultural da América Latina”. Apresenta Ángel Rama
como um grande estudioso das culturas do continente latino-americano, delineando “a
59
formação do romance na América Latina, as relações entre literatura, cultura e classe sociais e
o complexo jogo entre vanguarda e regionalismo”. (BRANCO, sem data, p. 17)
Nelson Osorio Tejeda em seu texto Estudios Latinoamericanos y nueva dependencia
cultural, de 2007, discorre sobre o fato de nossa dependência ser também em relação à
hegemonia eurocêntrica, a ponto de que até mesmo os críticos que estudam nossa literatura
serem maiormente de origem estrangeira. Cita a Cornejo Polar para reafirmar sua posição de
que o crítico peruano, anos antes, havia declarado pensamento semelhante. Faz menção à
Globalização que acredita ser “unilateralmente imposta”. Percebe como uma necessidade
emergencial:
latinoamericanizar los estudios literarios latinoamericanos, esto es por la necesidad de establecer locus, un lugar de enunciación, un “punto de hablada”, como diría Ortega y Gasset, para construir nuestra perspectiva semántica sobre la literatura. (OSORIO TEJEDA, 2007, p.252)
Acredita que nossos escritores estão em pé de igualdade com os melhores escritores
mundiais, como acreditava também Mario Benedetti, na década de 70. O que não ocorre em
relação à crítica literária, que ainda não encontrou seu espaço. Ainda que se tenham passado
quase três décadas, Osorio acredita que juntamente com a crítica literária, que deva encontrar
seu caminho, urge um projeto que
responda a nuestras necesidades de autoconocimiento e identificación, un proyecto de reflexión teórica que permita superar la mera práctica para convertirse en praxis creadora de una perspectiva propia sobre la realidad literaria de Nuestra América y el mundo (OSORIO TEJEDA, 2007, p.254).
Mais que existir uma crítica literária na América Latina, acredita ser necessária uma
crítica literária da América Latina. Certamente, ao olharmos para trás, verificamos nomes
como de Ángel Rama, Cornejo Polar, Antônio Cândido e, talvez menos conhecido, Saúl
Sosnowski. Mas, Osorio afirma que um projeto que se debruce sobre a América Latina e faça
um panorama dela não seja algo tão consistente. Um posicionamento diante de nosso
continente, sobre nosso espaço no mundo, acredita o autor, é um projeto de extrema urgência.
Devemos debruçar-nos sobre nossa realidade, buscando nosso lugar no mundo. Clama que
60
não usemos projetos, teorias e métodos alheios, de grandes centros metropolitanos. Que não
nos acomodemos em papel de “usuarios pasivos de ideas, métodos y propuestas que tenemos
el encargo de “aplicar” a nuestro mundo” (OSORIO TEJEDA, 2007, p.255). Osorio sugere
que passemos de objetos de estudo a sujeitos do conhecimento.
Como afirma Bella Jozef, em seu artigo O papel da cultura na integração latino-
americana, a América Latina é um crisol de culturas: “Sobre povos e culturas autóctones se
impõem padrões ibéricos comuns que favorecerão a mestiçagem ou processos unificados”
(JOZEF, 1996). A unidade da América Latina está sustentada por múltiplos fatores, ainda que
se reconheçam inúmeras diferenças territoriais e entre as culturas aborígenes. O próprio
conceito América Latina delimita dominado e dominante, retomando um tempo de conquista,
distinguindo-se de anglo-saxões, como afirmou Eduardo Coutinho. Discute como o termo
latino-americano, com o passar do tempo, foi transformando-se a ponto de relacionar-se
também a grupos de origem holandesa e francesa, mas sob a perspectiva econômica e política,
semelhante, ainda que etno-linguística e culturalmente sejam distintos. Tal fato também
ocorre com comunidades, afirma o intelectual, com grupos que tenham passado por diferentes
graus de aculturação e transculturação nos EUA.
O intelectual peruano José Carlos Mariátegui tentou substituir o termo por Indo-
América, o qual não foi realmente aceito, já que não privilegiava a figura do dominador e seu
poder. O desejo de buscar uma identidade opunha o termo latino a anglo-americano, tal como
americano se opunha a europeu. Na década de 1960, houve o desejo de utilização do termo
Latino-América e não Hispano-América para que dessa forma o Brasil pudesse ser incluído,
numa grande busca por questões comuns em termos históricos, literários e culturais. O termo
passa a incluir também países de origem francesa e colônias holandesas e inglesas.
Percebemos que o termo vem a agregar não mais sob a “égide” linguística e/ou cultural, mas
61
política e econômica. O termo ibero-americano está mais próximo do que se busca como
identidade que o termo hispano-americano.
Há uma busca por obras culturais comuns como, por exemplo, no cinema e na música,
bem como o estabelecimento de um mercado econômico comum. Há um grande desejo de
aproximação de acordo, afirma Eduardo Coutinho. Faz-se necessário encontrar caminhos
comuns, que sejam maiores que os olhares locais. A visão amadureceu no sentido de buscar o
homem latino-americano, chegando ao homem universal,
O conceito de América Latina, por muito tempo, permaneceu concretizado melhor fora de seu território que nele. No entanto, dois acontecimentos modificaram essa situação. Em 1959, a revolução cubana e na década de 60 as ditaduras que surgiram e se mantiveram em diversos países de América Latina. (RESENDE, p.158)
Considera-se a Ángel Rama um dos primeiros intelectuais a buscar construir o
conceito de América Latina, não a partir de utopias, mas partindo da situação histórica real.
Seu encontro com o intelectual brasileiro Antônio Cândido, na década de 60, contribuiu para
acabar com a linha divisória do Tratado de Tordesilhas, ainda que admitisse as diferenças
entre o mundo lusitano e a herança espanhola. Sua obra de análise mais profunda é Los ríos
profundos, de José María Arguedas. Rama a interpreta como uma metáfora de América
Latina. Admira (RAMA, 1987, p. 59) a Arguedas, dentre outros aspectos, por utilizar-se do
espanhol, do quechua, do aymara, com grande maestria, obtendo algo que supera os limites
dessas línguas.
Há uma geração que vai não mais caminhar por possibilidades europeias, mas buscar
um jogo dialético entre uma busca no passado e uma projeção para o futuro do continente.
Pode-se afirmar que o novo romance hispano-americano teve como acontecimentos anteriores
a 2ª Guerra Mundial, o mundo dividido entre grandes super-potências, a Revolução Cubana, a
Guerra Civil Espanhola. O escritor se fez mais consciente a partir de todo esse contexto,
havendo um grupo de autores que, juntos, seguem uma forma semelhante: de repensar a
realidade, utilizando-se de técnicas como, por exemplo, a mistura de mitos com a realidade.
62
Existe a percepção de que outros países vivenciam a mesma trajetória; há uma tomada de
consciência. O escritor passa a viver de sua produção, transformando seu ofício em profissão.
O que os une é o anseio por desenhar o homem universal; intensa busca por uma língua que
seja mais abrangente que o castelhano, que possa utilizar-se do sabor dos dialetos; que se
possa realmente exibir o espanhol americano; há a necessidade de permitir a expressão
daquele que estava calado. É a América como uma grande composição de culturas autóctones
somadas à cultura européia, com seus conceitos jurídicos, econômicos e políticos.
Simón Bolívar afirma, lembra Bella Josef, que somos algo entre europeus e indígenas.
De acordo com ela, cada traço cultural “deixado pelos conquistadores, criando traços novos
de poderosa originalidade” (JOZEF, 1996, p. 16).
Podemos afirmar que, de acordo com Blanca López de Mariscal, o narrador de Los
zorros é uma mistura de autor testemunha e autor ficcionalizado. Explico: Mariscal define o
primeiro como aquele que constrói seu texto, “la experiencia que es la base del conocimiento
a partir del espacio narrado”, pois Arguedas, antes de construir sua obra, como escritor que
era, foi à cidade Chimbote como antropólogo e etnólogo, para constatar a dura realidade que a
Modernidade proporciona à dita cidade. Somente após esse encontro que ocasionou inúmeras
fotos, que constam de outra edição (Edição Losada), é que Arguedas, sensibilizado pelo muito
que encontrou, sentiu-se fascinado a tal ponto que decidiu narrar tais dores, realizando uma
mescla de experiências com ficção.33 Inclusive, vale ressaltar, que, Moncada, talvez seu
personagem alter-ego, nasceu de seu encontro com uma pessoa que realmente conheceu
quando trabalhava como antropólogo.
Identidades culturais se constroem a partir das interações no texto, de acordo com
Daniel Mato, intelectual venezoelano. Deve-se, pois, esquecer os maniqueísmos; há que
conectar o eu ao outro, para que o primeiro se reconheça como distinto do segundo. Ou não.
33 Esse foi um dos motivos que me levou a compor o anexo 2 desta Dissertação com inúmeras fotos, a partir de duas viagens que fiz ao Peru, em 2010 e 2011.
63
Numa grande dialética. À medida que as identidades se constroem, as alteridades são melhor
assimiladas.
Ao analisar, em seu texto sobre o próprio e o alheio, Emilia Bermúdez, a partir da
produção intelectual de Canclini, Jesús Barbero e Daniel Mato, levanta a discussão de que se
deva romper a idéia de uma identidade nacional homogênea. Nossa visão acolhe com apreço o
posicionamento de tais autores, especialmente ao direcionarmos nosso olhar no crisol de
nossa América, afirma Bella Jozef. Não é o caso de rejeitar o outro, o estrangeiro, nem de por-
se à disposição como se nada fosse alienação de sua identidade, diz Emília Bermúdez, mas de
ser numa contínua interação com o outro.
Por sua vez, a obra A utopia arcaica (2003), de Mario Vargas Llosa, foi escrita com o
objetivo de estudar a obra de J.M.A. e criticar a vertente social, indigenista e revolucionária
deste autor. O autor acredita que Arguedas deveria ter permanecido no caminho do lirismo e
da memória privada (2003, p.9). Considerou como sua obra mestra Los ríos profundos, ainda
que nunca lhe tenham fascinado os escritores peruanos, mesmo César Vallejo ou Inca
Garcilaso de la Vega, considerados ícones literários peruanos. Suas predileções giram ao
redor dos franceses Flaubert e Sartre. Seu posicionamento é contrário ao que acompanha
todas as obras da editora chimbotana Río-Santa: leamos lo nuestro.
O Peru é dividido em dois mundos, duas línguas, duas culturas, duas tradições
históricas e Arguedas, ironicamente, foi pescador pescado, como o louco Moncada, de Los
Zorros, afirmou sobre si. Explico: de acordo com a visão de Vargas Llosa, J.M.A. foi
privilegiado por conhecer ambas as realidades intimamente, tanto em suas misérias como em
suas grandezas, conseguindo assim uma visão muito mais ampla que a maior parte dos
escritores peruanos.34 No entanto, também conheceu a falta de local, como desterritorializado,
34 Ainda que Mario Vargas Llosa e José María Arguedas pertençam a correntes filosóficas distintas, consideramos que a inclusão de seu nome seja, em alguns momentos, importantes para nossa linha de pensamento.
64
não pertencendo a nenhum dos espaços ou realidades. Afirma que “en su caso y en su obra
repercute de manera constante la problemática histórica y cultural de los Andes.” (VARGAS
LLOSA, 2008, p.19). Claramente a visão de Arguedas é local, ainda que tenha viajado por
inúmeros locais e a de Vargas Llosa é eurocêntrica. Considera a obra Los Zorros como o
verdadeiro testamento de Arguedas, mais até que as cartas que deixou, textos de um criador
afetado por problemas de seu país e pelos infortúnios pessoais que o acompanham desde a
infância. De acordo com a análise de uma carta de Arguedas a Hugo Blanco35 era “un peán a
la revolución de los indios, dirigido por un revolucionário a otro revolucionario.” (VARGAS
LLOSA, 2008, p.20). Arguedas compõe uma geração literária em que o social impera sobre o
literário, afirma o autor de A utopia arcaica, em que é “inconcebible que un escritor desligar
su trabajo de una actitud - o, al menos, de cierta mímica - revolucionaria.” (VARGAS
LLOSA, 2008, p.22).
Rodrigo Montoya36entende que Arguedas não foi um militante do direito dos
camponeses, mas, sim, possuía um olfato, uma intuição política. Percebe que o olhar de
Vargas Llosa em direção a Arguedas pode ser entendido em três momentos. O primero
momento seria quando admirava Arguedas, ainda que possamos ter dúvida, numa relação,
como afirma,“entrañable” (1964-1970). O segundo momento compreenderia a obra La utopía
arcaica (1996), quando afirma que J.M.A. foi um grande escritor primitivo; rechaça a obra
Todas las sangres, 27 anos depois da morte de Arguedas, percebendo-a como reacionária,
dizendo que seriam “trampas sentimentales”. Como terceiro momento, Montoya afirma que
Vargas Llosa (dezembro 2010, Estocolmo, Entrega do Premio Nobel), dedica um espaço em
seu discurso para referir-se a Arguedas, numa clara admiração pelo autor antes por ele
renegado: “No tiene una identidad porque las tiene todas”, referindo-se, claramente, ao Peru.
Montoya, num harmonioso jogo de palavras afirma que a utopia arcaica arguediana foi sendo
35 Líder cuzquenho revolucionário, preso naquele momento, acusado pela morte de um policial, organizador de um sindicato camponês. 36 José María Aguedas: Antropología, Literatura y Política, Congresso Lima, 2011.
65
tecida a partir de músicas, bailes e cantos em quéchua pelo “demônio feliz”, referindo-se a
Arguedas e suas obras.
Vargas Llosa, nesta obra, estaria, segundo Montoya, encaminhando a perspectiva de
que J.M.A. havia proposto que o futuro da nação fosse pautado no passado. O termo utopia37
referindo-se a um sonho possível, alcançável. O Peru é dividido me dois mundos, duas
línguas, duas culturas, duas tradições históricas e Arguedas, ironicamente, foi pescador
pescado, como o louco Moncada, Los Zorros, afirmou sobre si.
37 Thomas More, autor de Utopia (1516), cria em sua obra um reino imaginário cuja sociedade funcionava de maneira perfeita e justa. O termo passou então a designar sociedades impossíveis, porque perfeitas. Considerado litertário enquanto pensador, More, no entanto, era rígido em relação à autoridade religiosa, não admititndo quaisquer reformas e/ou críticas à Igreja Católica, pondo-se contra reformas protestantes, comandadas pelo filósofo Erasmo de Roterdã.
66
3 LANÇANDO LUZ A JOSÉ MARÍA ARGUEDAS
Será um ser vivo apenas Em si mesmo, em dois partidos
Serão dois que se elegeram E nos julgamos em um unidos
Para responder as perguntas
Tenho o sentido real Não vês, pelos meus cantos, como
Sou uno e duplo afinal Goethe38
3.1 TRAJETÓRIA ENTRE DUAS CULTURAS
Faremos neste tópico uma pequena síntese da biografia de Arguedas, a partir da
exposição ocorrida no Centro Cultural PUC/Lima, em junho de 2011, em homenagem, em
consonância com outras instituições, ao centenário de nascimento de José María Arguedas.
O autor de Los Zorros nasce em Andahuaylas, em 18 de janeiro de 1911. Sua mãe
morre, após haver contraído, em 1914, uma enfermidade, quando tinha apenas 3 anos. A
morte de sua mãe foi algo profundamente marcante por toda sua vida. Estudou em um colégio
sacerdotal, como interno. A partir desse ponto de vista, o colégio, Arguedas terá a visão de
como a Igreja mantêm controle sobre os indígenas. Seu primerio contato com uma obra
literária foi um poema “(Al) Amor” de González Prada; o leu, o aprendeu de memória e
passou a recitá-lo na fazenda onde vivia. Com dez anos era apenas, como chama, “alfabeto”.
Segundo Rodrigo Montoya (congresso), seus signos biológicos não conscidiam com seu amor
pelos andinos, quando se analisa o biótipo de arguedas.
Em 1921, a madrasta de Arguedas se muda de San Juan de Lucanas a Puquio para
viver com seu pai (advogado que viaja de um local a outro, considerado um viajero). Os
irmãos se dispersaram por diferentes espaços, cada um passou a viver em um local distinto,
separado de seus irmãos, já que seu pai exercia a função de advogado ambulante. Arguedas e
38 Johann Wolfgang von Goethe, escritor alemão do século XVIII e inícios do século XIX, autor do romance Os sofrimentos do Jovem Werther.
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seu irmão ficam em San Juan de Lucanas, junto ao filho de sua madrasta, porém fogem do
local, por causa de maus tratos, para uma fazenda. Tempos mais tarde, Arguedas olha aquele
passado triste e não-desejado e considera que “una bien amada desventura hizo que mi niñez y
parte de mi adolescencia transcurriera entre los indios de Lucanas, ellos son la gente que más
amo”. Observa a solidariedade dos “comuneros” e passa a considerar aquele modelo de
sociedade exemplar, a qual passa a compor seus textos até sua obra póstuma. Seu pai tinha
uma rotina de viagem, deixando a Arguedas e seus irmãos com a madrasta. Por ser um
advogado, seu pai tinha por missão percorrer as cidades da região, fazendas, lugares bastante
afastados: “mi padre tenía espíritu de vagabundo; no podía estar en un pueblo más de uno o
dos años”. De “notario”, em 1906, seu pai passa a ser juiz, em 1912, em San Miguel. Como
conseqüência, Arguedas e seu irmão percorrem um grande número de povoados da serra e da
costa peruanas.
Quando adolescente, junto a seu pai, percorre a serra e se intera de rebeliões
camponesas e de abusos de “gamonales”. Concomitante a isso, contrõem-se estradas; há uma
explosão do ensino na serra, objetivando uma massificação, o que desencadeará processos de
migração em direção à costa. A investigação de Arguedas, no futuro, girará a esse redor. Em
1923, a sorte muda: o pai os recolhe na reserva indígena e os leva a San Juan de Lucanas, para
depois seguir para Puquio. Sua adolescência é um transitar por várias cidades. Salienta-se que
a cidade de Cusco, onde seu pai nasceu, será para ele uma união harmônica entre a herança
pré-hispânica e a hispânica. Pela vida afora, J.M.A. levará todas as recordações, de todos os
lugares por onde passou na infância e suas particularidades. Isso o fará um conhecedor
profundo de sua terra. Muito cedo a língua e a cosmovisão andinas penetraram em seu ser,
ainda que não tivesse consciência disso, da maneira como ficou impregnado pelas canções em
quéchua quando pequeno, transformaram-se em melodias internas que irão compor sua obra
literária.
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Arguedas, por alguns anos, vive com sua avó. Quando tinha seis anos passa a viver
novamente com o pai, já que este contrai novo matrimônio. Com sete anos, sem a presença do
pai, que como já se falou, por conta de maus tratos de sua madrasta e de seu “meio irmão”, se
refugia entre os índios que trabalham em sua casa, recebendo então sabedoria, cultura e
proteção.39Muito cedo a língua e a cosmovisão andinas penetraram em seu ser, ainda que não
tivesse consciência disso, da maneira como ficou impregnado pelas canções em quéchua que
o fizeram arruelas quando pequeno, transformaram-se em melodias internas que irão compor
sua obra literária.
Na verdade, por tudo que já li e escutei, posso avaliar que Arguedas passou por
grandes momentos de solidão e angústia, nesses tenros anos. Sua madrasta já possuía filhos de
um primeiro casamento. Seu meio-irmão o tratava com acentuado desamor, como, por
exemplo, quando Arguedas, ao cuidar do cavalo de seu irmão, se distrai e, sem que quisesse,
provoca a perda de um poncho de vicunha que estava sobre um cavalo. Em decorrência desta
suposta irresponsabilidade, sofre nas mãos de seu hermanito. Tinha na ocasião nove anos. O
filho mais velho de sua madrasta, por suas características e perfil, é recriado nos primeiros
contos de Arguedas como um personagem cruel, a partir da percepção de uma criança.
Declara que sua infância “pasó quemada entre el fuego y el amor”.
Entre 1925 e 1931, Arguedas aposta em uma mestiçagem harmônica.40 Um fato
ocorrido com Arguedas em 1937 propiciou o nascimento da obra O sexto, como também de
seu casamento. Explico: fica preso numa prisão chamada “Sexto” 41, já que havia participado
de um protesto que ocorreu em los claustros da universidade. Perde seu emprego na Casa de
Correios. Sua amiga Alicia o visita regularmente e se apaixonam. Sua futura esposa vivia em
39 Lembremos do início do filme mexicano Como agua para chocolate: Tita, personagem principal, em meio à cozinha com Nasha. 40 Grande parte das informações contidas nesta parte tiveram por base a exposição ocorrida no Centro Cultural da Puc/Lima, no meses de junho e julho de 2011. 41 Livro de canções quéchuas de memórias.
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Puerto Supe; Arguedas passa então a frequentar todos os verões tal local. Casam-se em 1939.
No ano de 1942, J.M.A. passa por uma forte crise depressiva. Em 1953, assume o lugar como
antropólogo, iniciando sua carreira de profissional extramente competente e comprometida e
espera não desmerecer; se percebe comprometido com essa missão. Acreditou, em
determinada época de sua vida, a partir de comunidades livres do Valle del Mantaro, em
Huancayo, que povos distantes da dominação desenvolviam uma mestiçagem que
possibilitaria uma modernização “endógena”, sem imposições. Acreditava no futuro da
cultura andina, de sua alma; os processos de transformação social ocorridas nessa região o
faziam acreditar nisso.
Em 1954 viaja com frequência para esse vale. Realizou uma pesquisa sobre o processo
de modernização de Huancayo, a partir de sua feira. Foi diretor do Instituto de Planejamento e
Urbanismo de São Marcos. Todo o exposto nos parece de extrema pertinência por nos fazer
refletir como houve uma linha muito clara que conduziu a vida, o perfil e os valores de
Arguedas. Ele nunca se desviou de sua essência em nenhuma das funções que exerceu.
Em 1955, manteve amizades com pessoas ligadas ao quechua, ao folclore, à música,
em especial com Andrés Alencastre Gutiérrez42, de quem publicou um poema “Taki parwa -
Canción en flor” (1952) que Arguedas considerou “la contribuición más importante a la
literatura quechua desde el siglo XVIII” (Exposição Centro Cultural Puc/Lima, 2011). Nessa
época iniciou a redação de Los Ríos Profundos.
Em 1960, Arguedas sofre um grave acidente automobilístico. Em 1961, viaja a
Santiago e conhece sua psicioterapeuta Lola Hoffeman que irá acompanhá-lo até sua morte.
Por esse motivo, tem que ir com freqüência a Santiago.
Foi professor de quéchua na Universidad Agraria La Molina, a partir de 1962.
42 Este poeta foi seu padrinho de casamento em 1939, com Wilma Ponce Martinez, con quem teve uma filha.
70
Em 1964, conhece Sybila Arredondo, quando esta trabalhava na editora da
Universidade de Chile. Na ocasião Arguedas atuava como etnólogo, antropólogo43 e
professor. Nessa época, década de 60, a América vivia momentos cruciais: início de um novo
momento em solo cubano, já que a revolução havia vencido a tirania de Fulgêncio Batista e
eclosão de movimentos revolucionários em vários países hispanos-americanos, como também
no Brasil.44
Arguedas representa a realidade de sua época, porém de forma bastante distante do
realismo literário na sua forma clássica. Explico: utiliza-se de formas variadas de composição
para compor essa mesma realidade; utiliza diários pessoais mesclados à narrativa de
personagens marginais, de Chimbote, cidade pesqueira ao norte de Lima. Ainda utiliza
questões míticas relacionadas ao mito de Huarochirí. Tem como tema principal a
modernização da cidade de Chimbote, realizada de forma descontrolada, desorganizada,
transformando a cidade em uma grande barriada. São vidas que são arrastadas em nome do
progresso. Adorno não poderia deixar de ser citado com sua obra Dialética do
Esclarecimento, ainda que reconheçamos que Adorno e Arguedas pertençam a caminhos
filosóficos, políticos e literários divergentes.
Na parte de Los Zorros que se intitula Epílogo, Arguedas escreve uma carta a Gonzalo
Losada e expressa o desejo que Alejandro Ortiz continue como contratado em seu lugar na
universidade, para que se dedique aos mitos e narrações quechuas:
Nuestra Universidad puede emprender y ampliar esta urgente y casi agónica tarea. Lo puede hacer si contrata, primero, con ni sueldo que ha de quedar disponible y está en el presupuesto, a Alejandro Ortiz Recamiere, mi exdiscípulo y alumno distinguido de Lévi-Strauss durante cuatro años y lo nombra después. Él se ha preparado lo más seriamente que es posible para este trabajo y puede formar con el Dr. Alfredo Torero, un equipo del más alto nivel. (ZZ, p.253)
43 Recopiliava materiais antropológicos: canções, festas tradicionais, contos. 44 Trataremos desse aspecto com mais profundidade no capítulo 4.
71
Rescaniere, em sua ponência (Congresso PUC/Lima, conferencia inaugural, dia 20
junho 2011) afirma em relação a Arguedas que seu olhar era vagabundo, mais livre, sem
norte; sua visão não o havia traído. Os críticos não lhe perdoavam por não estar refletindo a
realidade com fidelidade. Sua visão era mais ampla que tudo aquilo. Ele descubría os rostos
esquecidos. Trabalhou à margem, distante do furor acadêmico, por isso foi tão diminuído. Há
livros que falam, que se preocupam, do preço da batata doce, porém se esquecem do drama
de quem os vende. Parece una vida sem enigma, como se a vida fosse um saco de batatas,
para pesar-se, carregar-se. É muito simples falar que a sociedade andina era pré-capitalista. A
receita é muito limitada. Há que penetrar além da receita, do visível. Em sua fala, recordou a
mesa-redonda sobre Todas las sangres, de 1965.
Diemo Landgraf45 afirma que Arguedas não era compreendido, por isso se isola,
inclusive salientando que vários contemporâneos tentam destruir a herança arguediana, como,
por exemplo, Mario Vargas Llosa, com a obra La utopía arcaica, entendendo o diferencial de
Arguedas como algo não positivo. Landgrad define o autor de Los Zorros como fabricante de
pátrias, considerando toda sua trajetória literária, pessoal, antropológica e etnológica. J.M.A.,
em determinada época de sua vida, declara: “Yo no escogí una profesión, nací con una”.46
A crítica literária Bella Jozef localiza J.M.A. relacionando o autor ao desenvolvimento
sobre o indigenismo, ora ao protesto social como no conto Agua (1935). Porém, um fio
condutor perpassa toda sua obra, de acordo com Bella Jozef, há nela “a beleza sombria e
violenta dos Andes com profundo lirismo” (201). Para evitar a imagem estereotipada do índio,
Arguedas pesquisou profundamente o folclore quéchua, traduzindo dessa língua para o
espanhol a obra Dioses y hombres de Huarochirí (1966).
45 La hibridez ambivalente: La narrativa de Arguedas y los (des) encuentros interpretativos, Acadia University, Canadá, 21 de junho, Congresso 2011. 46 Frase exposta na exposição, organizada pelo Centro Cultural da PUC/Lima, em homenagem ao centenário de Arguedas.
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3.2 UM POUCO DE AGUA
Dentre muitas obras de Arguedas, fixaremos nosso olhar agora no conto Agua, que fez
parte do início dos projetos literários do autor. Ainda que nosso eixo principal seja a análise
da obra Los Zorros, nos parece relevante e, porque não afirmar, vital para nossa investigação
considerar que esta obra é uma continuação dos “gritos” de Arguedas no conto Agua, de 1935,
que tem como pilares o embate entre indígenas e “criollos”, a migração como também a
violência simbólica.
O eixo condutor do conto Agua (ARGUEDAS, 1977, p.52) baseia-se na disputa entre
dois segmentos do povoado em torno da água e do poder. Há os mistis e os comuneros, sendo
que os primeiros, em menor número, mandam e desmandam em relação aos segundos.
Ocorre, no centro do local, a Plaza San Juan, uma disputa com feridos. A ótica condutora da
narrativa é a de Ernesto, menino que nutre pelos comuneros uma profunda admiração.
Gonzalo Portocarrero47 diz que nesse conto este personagem foi acolhido pelos indígenas tal
como ocorre com a biografía de Arguedas. O narrador, através deste conto, convida os
indígenas que finquem seus pés diante dos tiranos.
Os Comuneros se opõem aos donos do poder (mistis, principales), seja por sua
expressão, seja por seu comportamento: “En las caras sucias y flacas de comuneros se
encendió la alegría, sus ojos amarillos chispearon de contento” (A., p.60)48. Há uma distância
(comportamento) em relação ao poder. Cumprimentam-se formalmente, dando-se as mãos; a
outro personagem, é o abraço que irá uni-los, com afeto e informalidade.
O personagem que conduz a narrativa é alguém que vê as disputas de poder e o
tratamento dispensado aos indígenas e posiciona-se a favor dos últimos: “Sentí que mi cariño
por los comuneros se adentraba más en mi vida, me parecía que yo también era tinki, que
47 Pontificia Universidad Católica del Perú, 24 de junho – Presentación de libro La amistad de Arguedas y Duviols en 16 cartas / Apresentação: La ficcionalización en José María Arguedas: Dos estudios de casos/ Tradición oral quechua y traducción en José María Arguedas. 48 Utilizaremos uma sigla para referir-se ao conto água: A.
73
tenía corazón de comunero, que había vivido siempre en la puna, sobre las pampas de ischu.”
(A., p.66). Há uma clara dicotomia entre Don Vilkas e os “comuneros” (los tinkis). O
vocábulo misti refere-se a qualquer pessoa das classes dominantes, explica Arguedas ao pé de
página. A essa idéia se une o vocábulo molestoso. “Más todavía que el atok (zorro)”. (A.,
p.63) Aqui, como aquele que rouba, porém menos que Don Braulio, um misti, o mais
importante deles. Esse personagem faria sua vida ser baseada a partir desses comuneros:
“Pues les saca (plata), se roba el agua.” (A., p.63). Novamente uma bifurcação ocorre entre
mistis e comuneros. Enquanto os primeiros são simbolicamente relacionados ao tigre, os
segundos, o serão aos cães.
O narrador do conto assemelha-se muito ao que conhecemos da biografia de
Arguedas, em relação à sua infância; este momento de ambos evidencia um bem-querer aos
índios, às suas canções, a sua língua, a sua percepção da natureza, de seus mitos, em
contraposição ao poder que poucos detêm sobre muitos, os quais não são indígenas.
Arguedas, quando menino, tal como Ernesto49 apega-se aos índios; é quem conduz o fio
narrativo. “Nos encaminamos con Bernaco hacia el corredor de la cárcel.” (A., p.70). O
personagem Ernesto é considerado por alguns críticos como uma espécie de alter-ego do
autor.
A transculturação50 ocorre de forma forte com o tecer de músicas, cantos, danças e
visões míticas de questões geográficas. Os bailes ao redor de “las fiestas grandes del año”: a
colheita do milho, “el escarbe de batatas”. (A., p.59). Há momentos em que Arguedas
apresenta a língua quéchua muito bem enlaçada a seu texto, à narrativa e presenteia o leitor
com as respectivas traduções ao lado do vocábulo ou ao pé da página: “Pobre llak’ta
(pueblo)”.
49 Um de seus muitos Ernestos; consulte as obras arguedianas Los ríos Profundos e Yawar Fiesta. 50 Vide Capítulo 2.
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Observa-se que o narrador afirma que o poder está em mãos estrangeiras: “casi
gringos nomás son todos”. (A., p.66) “... los principales abusan de los jornaleros “temblando
con terciana le meten en los cañaverales, a los algodonales. Después le tiran dos, tres soles a
la cara, como gran cosa.” (A., p.67). O povo, através dos personagens Pantacha e Don
Pascual, se dá conta de que está em maior número, como também que, segundo sua
ótica/prisma em relação ao Poder: “en nuestro pueblo, dos, tres mistis nomás hay, nosotros,
tantos, tantos. Ellos igual a comuneros gentes son, con ojos, bocas, barriga...”. (A., p.72).
Os adjetivos sucias, flacas e amarillos encaminham a uma idéia de pobreza, de
problemas, de desnutrição, de abandono. Há uma gradação em relação à nessicidade de se
fazer ouvir: chamar, relinchar, gritar. O fio narrativo conduz a voz, seja humana ou animal,
num processo de clamor, de chamamento, de evocação, de expressão dolorosa, sentida, em
direção ao outro.
A visão mítica da natureza, tal qual em sua última obra, está presente no conto Agua,
para justificar a presença, por exemplo, das montanhas. Nesse conto já surge a presença da
raposa que mais tarde iria compor sua última obra Los Zorros. O principal local da cidade
onde todas as ações ocorrem é a Plaza de San Juan: “Nunca en la plaza de San Juan un
comunera había hablado contra los principales” (A., p.68). Novamente o ato de roubar é
relacionado aos “principales”. A localização espacial dos comuneros é o alto: “altas
llanuras” (A., p.62).
Os diálogos giram ao redor dos desmandos dos mistis. “Don Bráulio abusa de
comuneros. Comunidad vamos hacernos respetar” (A., p.71). O conflito se arma, já que se
evidencia um prenúncio de embate, contra Braulio Félix, considerado como “el principal del
pueblo” (A., p.72); é ele que detém a água (“era como dueño de San Juan”). Braulio tal qual
tayta Inti, o sol, “quería, seguro, la muerte de la tierra” (A., p.73). “Su rabia hacía arder al
mundo y hacía llorar a los hombres.”(A., p.73)
75
A natureza nasce para todos - eis aqui o fio condutor da narrativa. Logo, uma pergunta
perpassa toda a escritura: Por que alguém se acha no direito de ser “dueño para água” (A.,
p.76)? Ernesto, no embate que ocorreu entre principales y comuneros, tenta intervir em prol
dos segundos, já que se acreditava homem, tal como os indígenas: “Hombre me creía,
verdadero hombre” ( A., p.78). Em sua fuga, Ernesto sente-se tal qual os indígenas que tanto
admirava e decide ir cuesta abajo (novamente algo que aproxima esta narrativa de Los
Zorros) para conviver, a partir de então, com os comuneros. Escolhe, enfim, seu destino.
3.3 OS DIÁRIOS E RELATOS ARGUEDIANOS ILUMINAM
CHIMBOTE
Ainda que nosso foco principal seja olhar a cidade de Chimbote, não nos parece
possível ignorar que diários foram entremeados aos relatos literários, formando-se, assim,
uma rede de possibilidades de leituras, de camadas superpostas de significações. Sendo assim,
nos possibilita lançar um novo enfoque sobre os diários, ainda que de maneira fortuita, ligeira,
breve. No ano do centenário de nascimento de Arguedas, propomos uma pausa para pensar a
questão da autobiografia, relacionada à sua obra póstuma publicada em 1971.
Sobre o autor de Agua (1935), Yawar Fiesta (1941) e Los ríos profundos (1958),
afirma Hernández,
Las circunstancias de su muerte y lo peculiar de su novela hicieron que la crítica se interesara en ella más como un testimonio de la vida del autor y de las circunstancias que le tocó vivir en un país convulsionado por la violencia, la pobreza, el olvido de las clases pobres y, sobre todo, de los indígenas que tanto preocuparon a Arguedas. (HERNÁNDEZ, 1971, p.68)
Los Zorros é um romance que apresenta ao leitor inúmeras dúvidas e angústias difíceis
de solucionar. A obra em questão é ordenanda, na verdade, em parte, pela viúva do autor,
Sybila, o poeta Emilio Adolfo Westphalen e o editor argentino Gonzalo Losada. Christian
Hernández afirma que tal ordenamento modifica completamente o significado total da obra.
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Afinal, a obra sem tal organização seria lida da mesma forma? O leitor teria o mesmo impacto
da escritura? Afirma que é inevitável não relacionar o suicídio de Arguedas, tentado em outras
oportunidades, à obra em questão, inclusive porque este tema compõe grande parte da obra.
Ou seja: o narrador, de forma recorrente, aponta para sua morte. Acredita Hernández que o
maior desafio seria recordar as orientações deixadas por Arguedas, no tocante à organização
da obra Los Zorros, as quais, acredito, não foram seguidas, e aclarar se os diários pertencem
ao gênero autobiográfico.
José María Arguedas é identificado com alguém pertencente ao mundo de “arriba”
(serra). Nasceu dentro da cultura espanhola, do branco, buscou os indígenas, vivenciando sua
língua, forma de ver o mundo e, ao retornar ao seu mundo primeiro, aos oito anos, não era
mais o de outrora. Carregava irremediavelmente em suas veias o Inca, e sua dimensão mítica
(o mundo quéchua). Seu interesse por geografia e pela etnologia advêm de seu mergulho
cultura indígena.
Se em um primeiro momento, o narrador coloca-se com um enfoque de estranhamento
diante da miséria, da linguagem agressiva, no decorrer da narrativa demonstra simpatia, quase
carinho, por cada ser errante, por suas misérias e dores. Arguedas, a partir de uma
investigação antropológica para entender o fenômeno social que estava ocorrendo no Peru, em
meados dos anos 60, passou a freqüentar a cidade de Chimbote, grande posto pesqueiro,
epicentro deste fenômeno.
A obra El zorro de arriba y el zorro de abajo é uma composição de diários do autor
com narrativas sobre Chimbote, um enlaçamento de suas memórias, de discurso confessional,
de posicionamentos críticos sobre intelectuais contemporâneos. Martin Oyata 51 afirma que
havia quatro décadas ninguém falava de cultura andina. Afirma que não há literatura indígena.
O experimentalismo arguediano dá espaço aos índios, através da valoração social da cultura
51 Congresso Internacional em conmemoración del centenario del nacimiento del escritor (Arguedas: La Dinámica de los Encuentros Culturales) 2011/PUC – Lima.
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indígena/andina, propiciando, desta forma, uma expansão social. A questão cubana referente
ao surgimento do Homem Novo, que na narrativa Los Zorros, estaria representado pela figura
de Don Diego, no capítulo III; de alguma forma, diz Oyata, há que representá-lo. Olha-se esta
obra como um movimento do fazer literário a uma cultura oral. Termina sua fala propondo
uma reflexão: A Literatura tem que ser escrita? Se a resposta for afirmativa, conclui que então
não temos literatura quéchua; depende da perspectiva. Há um projeto: um capital simbólico
para a língua quechua.
Os diários que compõem a obra Los Zorros vão de maio de 1968 a 27 de novembro de
1969, num total de 18 meses: o primeiro Diário, Capítulo I,52 Capítulo II, Segundo Diário.
Decididamente os diários referem-se ao próprio Arguedas. Refere-se a seu último romance
que escreveu, Todas las sangres (vide Mesa-Redonda 1965). Deter-nos-emos brevemente, por
inviabilidade de tempo e espaço, na questão dos diários, que é um gênero privado, mas,
evidentemente, a partir de diversos trechos escritos por Arguedas, demonstra-se a expectativa
de num futuro sejam publicados, podendo compartilhar então seus delírios com um leitor.
A partir de um texto de sua última esposa53, veremos a presença de Chimbote em
epístolas de Arguedas (e sua importância, mesmo antes de sua vital essência em Los Zorros).
Chimbote nasceu em seu peito desde 1966, sendo que outro porto, menor que Chimbote,
Puerto de Supe, nas décadas de 40 e 50, quando veraneava com sua primeira esposa e sua
cunhada.
O primeiro diário data de 1968. Lembra-se o narrador de uma tentativa de suicídio
ocorrida dois anos antes. Centraliza sua intenção de suicídio na impossibilidade de escrever,
devido a uma crise, enfermidade psíquica, contraída na infância. O fato de não conseguir ler
também o feria. Arguedas afirma não querer ficar inerte diante de acontecimentos, sendo tão
só uma testemunha como ele diz ser; sente a escrita como algo que resulta um ato difícil
52 Arguedas define este capítulo como estrambótico, extravagante, estranho. 53 Sybila Arredondo, já que Alicia Bustamante foi sua primeira esposa.
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(¡cuánto me cuesta encontrar los términos necesarios! (ZZ, p.8).54O ano de 1944 foi marcante
para ele, já que foi o início de sua derrocada, de sua trajetória rumo à morte, de sua
impossibilidade diante da escrita e da leitura. Arguedas demonstra não conseguir aceitar o
fato de não poder escrever: “No podré seguir escribiendo más?”. Luta conta a enfermidade, a
morte, escrevendo, inclusive por recomendações médicas. Vida e morte se confundem como o
beija-flor e a mosca Hauyronqo, em tamanho, brilho, ações, mas também nos informa sobre a
crença de campesinos quéchuas sobre o inseto. Para ele, há relevância em sua crença “como
un ánima que goza en el fondo de la bolsita afelpada que es flor de los cadáveres ” (ZZ, p.19).
Não lhe importa onde está, nem o momento atual, nem ao menos pessoas ligadas ao
seu presente, com exceção de alguns escritores a quem se refere insistentemente. Fica seu
desespero por sentir-se inapto para realizar sua vocação: escrever e ler. Explica que tem medo
de sentir dor. Assusta-se como encontrará a morte, recusando assim veneno que lhe possa
provocar dor, como também armas de fogo: “porque quien está como yo, mejor es que muera”
(ZZ, p.8). Explica o motivo de estar escrevendo tais páginas: a esperança de recuperar a
sanidade. Reconhece que está planejando seu suicídio, a fim de que tudo seja bem sucedido.
“Es maravillosamente inquietante esta preocupación mía, y de muchos, por arreglar el
suicidio de modo que ocurra de la mejor forma posible” (ZZ.p.8). Acredita que a vida é quem
comanda seu ato de organização suicida, ainda que esteja revestida com uma capa de
generosidade e piedade. Afirma que irá mesclar tal tema com o de um romance que será
batizado pelo nome de sua última obra El zorro de arriba y el zorro de abajo.
Nesse momento refere-se a um leitor. Ou seja: aquilo que é de âmbito privado, de foro
íntimo, o diário, será transportado a terreno público: um romance; haverá o enlace de dois
gêneros. O autor expõe seus sentimentos e suas percepções, mas sabe que tudo pode vir a ser
lido. Pode haver um leitor num futuro próximo. Arguedas afirma ainda que mais um elemento
54 A partir de agora, usarei a sigla ZZ para simbolizar a obra Los Zorros.
79
será somado a tal composição: histórias sobre o povo peruano e sobre seu país. Concluímos
que a obra Los Zorros é uma soma de forças: histórias sofridas relacionadas à impotência
diante da vida, ficção envolvendo um mito incaico e sua gente. Textos orais e escritos
envolvendo seu país e sua gente. Arguedas praticamente não enfoca humanos em sua
trajetória à morte. Pelo menos não no diário. Parece buscar companhia, nesses momentos
derradeiros, em chanchos e cachorros, na antureza, evocando cascatas e montanhas. Cada
elemento o encaminha para reflexões sobre a cultura, ou melhor dizendo, questões culturais,
já que não se encerra apenas em um prisma.
Em seus diários, cita apenas uma vez sua esposa: “incluso el rostro anguloso y
enérgico de mi mujer” (ZZ, p.9); não a nomeia, diferentemente do que havia feito com seu
irmão: “Mi hermano Aristides tiene un sobre que contiene las reflexiones que explican
porqué no podía liquidarme tal y cual día” (ZZ, p.7). Aparentemente é uma tolice que nos
fixemos nesses detalhes. Porém, a nosso ver, cada elemento elucida, homeopaticamente, o
autor, o narrador, a época, a obra, a cidade de Chimbote.
Compara homens a vermes quando enaltece demoradamente a presença de cascatas e,
pela primeira vez, preocupa-se em sinalizar a língua da natureza (presença de água): quechua.
Nesse momento, Arguedas aponta para um grave problema que há em seu entorno:
governantes assassinos. As metáforas inundam a escritura, revelando-nos camadas do Peru, de
Chimbote, da América, do mundo, de si próprio. A humanidade parece desapontá-lo tanto que
somente animais relacionados à podridão, ao subsolo, podem ser comparados ao perfil
humano, seja pela proximidade com elementos sujos, ou pela característica de viver sem luz,
sem ar, aparentemente sem vida, como é o caso dos vermes. Tanto em seus diários, como na
própria narrativa sobre Chimbote (veremos isso em profundidade nos capítulos 4 e 5), o ser
humano é pintado de forma feia, grotesca, sem adereços que o façam aceitável. Mas, claro,
em varios momentos, J.M.A. refere-se a alguém com emoção, como, por exemplo, numa carta
80
a amigos, em um de seus diários: “¡Querido hermano Pachequito, Teniente en Piñal del Rio y
tú, Chiqui, de la Casa de las Américas!” (observe o adjetivo querido e a pontuação que foi
empregada). A presença de cascatas faz-se muito forte na escritura deste diário, é um
vocábulo recorrente: “Ni soporto vivir sin pelear, sin hacer algo para dar a los otros lo que
uno aprendió a hacer y hacer algo para debilitar a los perversos egoístas que han convertido a
millones de cristianos en condicionadas buyes de trabajo” (ZZ, p.9). Arguedas precisa de
frescor, de algum elemento que lhe acalme as ansiedades, as decepções.
Novamente, uma pergunta paira em nosso texto: De que maneira a cidade de
Chimbote se relaciona com seus diários, seu posicionamento frente ao ser humano, à
natureza? Ora posiciona-se diante de problemas com uma impossibilidade de agir em prol de
projetos, ora percebe que houve uma conversão do homem em coisa, uma coisificação do
humano. Em determinado momento, seu olhar volta-se para Juan Rulfo e tudo o que ele
conseguiu, de acordo com a perspectiva do eu discursivo, com sua obra prima Pedro Páramo,
ainda que em momento algum seja a obra nomeada, somente sugerida. Claramente somos
tragados pela narrativa de uma cidade morta, de seres que, como fantasmas, não se dão conta
de que o limite entre a vida e a morte é extremamente tênue. O vocábulo morte não aparece,
mas se insinua sorrateiramente.
Preocupa-se em exaltar a figura de um índio que havia conhecido em sua infância,
referindo-se a ele com forte respeito: Don Felipe Mywa. Arguedas o percebia com grande
admiração e honra por ter tido contato com ele; o concebia como sábio. Em suas palavras há a
clara visão de que se via como um igual comparando-se ao índio ( de igual a igual, de hombre
a hombre), não havendo diferenças de gênero, raça, poder, classe social, religião, econômicas,
de nenhuma natureza. O autor dos diários se põe a discorrer sobre diferenças entre as pessoas,
refletindo sobre o que aproxima e distancia o humano de seu igual:
me sentí igual a ese gran indio al que había mirado en la infancia como a un sabio (…) y me sentí pleno, contentísimo de que habláramos los dos como iguales. En
81
cambio, a don Alejo Carpentier lo veía como a muy “superior”, algo así como esos poblanos a mí, que me doctoreaba (ZZ, p.11)
Compara a Juan Rulfo con Alejo Carpentier, pois acredita que se relacionam de forma
distinta diante da inteligência: o primeiro desde o interior para o exterior, sentindo
profundamente a essência das situações e o outro, em contrapartida, como um raio, de fora
para dentro. Considera que Carpentier seja bem diferente dele e de Rulfo; mostra indignação
com a postura européia de Alejo Carpentier, como alguém que vê sua cultura de maneira
distanciada: “lo sentía como a un europeo muy ilustre que hablaba castellano (...) Olí en usted
a quien considera nuestras cosas indígenas como excelente elemento o material de trabajo.”
(ZZ, p.12). O autor de Los Zorros demonstra forte indignação em relação à capa de
exibicionismo que alguns grupos e/ou autores exibem para adquirir reconhecimento, avanços
econômicos, como, cita em seu diário, um ballet chileno. O termo “ballet” está claramente
escrito em outra língua e sinaliza algo não pertencente à cultura do país. A essência, afirma, se
perde “estas cosas que son fabricaciones de los gringos” para ganar plata” (ZZ, p.13). Há uma
discrepância entre o que é feito pelo povo e o que tem por objetivo adornar, esquematizar. Há
que ser um “espectáculo agradable y nacional!” (ZZ, p.13).
Afirma que alguns povos andinos peruanos ainda se mantenham isentos de influencias
externas: “Pero lo intocado por la vanidad y el lucro está, como el sol, en algunas fiestas de
los pueblos andinos del Perú” (ZZ, p.13).55 Afirma que não é “un sectario indígena”, por sua
postura favorável ao mais voltado à essência do povo, sem afetações nem grandes
representações.56 Não lhe parece correto, tal como, de acordo com sua visão, Cortázar
distanciar-se espacialmente de Argentina, de América, para olhar, desde outro mundo, a
Europa, “mejor se entiende la esencia de lo nacional desde las altas esferas de lo 55 Recordo-me de indígenas das Islas Flutuantes de Puno (Lago Titicaca), quando, numa viagem recente que fiz ao Peru, salientaram que havia habitantes de outras ilhas próximas que não admitiam aproximação semelhante com o estrangeiro, o visitante, o turista. 56 Sua postura nos remete à obra A utopia arcaica, em que Vargas Llosa, discute, dentre tantos tópicos, a postura equivocada de Arguedas, segundo sua perspectiva, no tocante ao passado, ao quéchua, às tradições, aos indígenas.
82
supranacional” (ZZ, p.13). Acredita que por haver estado longo tempo, em sua infância, entre
os índios, possa entender melhor a essência peruana. Em seu autodiscurso há a reflexão de
que escritores são denominados autores profissionais, explica que tal termo refere-se aqueles
que estão voltados para o dinheiro; exclui a si, a Juan Rulfo e a García Márquez. Escritor
provinciano seria a denominação que poderia classificá-los em oposição ao termo utilizado
anteriormente. Identifica-se como escritor provinciano, para mais adiante incluir a todos,
inclusive a Julio Cortázar.
Sua enfermidade lhe está possibilitando audácia ao expressar-se, além que seu habitual
o faria agir. Vive a Literatura com ardor e paixão, afirma mesmo como uma necessidade
“porque yo si no escribo y publico, me pego un tiro” (ZZ, p.14). Não há como suprir a
necessidade de produzir. Tenta encontrar sentido de viver, em situações simples como um
determinado povoado pequeno ou animais. Sua alma andina grita em cada linha de seus
diários. A questão da memória se faz presente em seu autodiscurso com frequencia: “Yo
recuerdo muchas cosas, pero dicen que más peligrosas son aquellas de las que no nos
acordamos” (ZZ, p.16).
Um ambiente fúnebre, da morte, invade seu discurso, com a presença de uma flor, que
remete juntamente a outros vocábulos a este campo semântico: a cor amarela, o termo veneno,
cadáveres, crepúsculo, como o fim do dia, de seu ciclo, término de uma existência e,
finalmente, o vocábulo cemitério, que será exaustivamente fixado em nosso trabalho, quando
foquemos A Procissão dos Mortos, no capítulo 5, de nossa Dissertação.
Seu diário apresenta vários interlocutores, dentre eles Cortázar e Guimarães Rosa. Em
alguns momentos, suas palavras não fluem sem que ele as traduza, como se seu interlocutor
fosse um estrangeiro, aquele que desconhece determinado vocábulo. Exemplo disso ocorre
quando se refere a um elemento vegetal, a savajina, o qual coloca entre aspas e logo adiante o
explica em detalhes.
83
Todos procuram dinheiro fora das letras: ele, como etnólogo, Guimarães Rosa, como
médico, Rulfo, como funcionário. Afirma que o amor, o prazer e a necessidade (que não a
econômica) os unem. Não aceita prazos fixos, como afirma que o fazia, por exemplo, Carlos
Fuentes.
A maneira como seu discurso se encaminha dá a entender que sejam delírios,
consequência do veneno que afirma estar em seu corpo (ficção e realidade se confundem),
evidenciando-se por uma não-compreensão dos próprios atos (afirma não saber o motivo de
invocar a João, levantando hipóteses para tal atitude), apontando para um claro desequilíbrio
decorrente de seu mal físico. Mais uma vez o desequilíbrio se mostra já que sua escrita
mistura tempos, sem que assim o perceba. Explico: mistura o dia 18 com o 17 (sua escrita do
dia 18 está inserida ao que parece como 17). Está perdendo seus parâmetros.
Inesperadamente, parece responder a um questionamento de seu interlocutor João: “No, João:
no vi nada cuando Fidela me tocó el vientre y sus dedos.” (ZZ, p.22).
Tudo que estivemos refletindo até agora nos encaminha para a questão do
Autodiscurso, no tocante aos diários de Los Zorros. O eu do autodiscurso se perde e outro
emerge, o qual se define por suas poucas ações: “La patrona de a casa en que yo servía le
obsequió.” (ZZ, p. 21). “yo les escuchaba desde la gran batea de amasar pan que me servía de
cama”; “yo era el becerro de la señora, tan sucio como la mestiza, y era blanco”.
Em seu segundo diário, Arguedas expressa uma dor relacionada ao passado no tocante
aos Andes, a um momento marcado de sangue, em seus abismos. Utiliza o termo indo-
hispánico. Tal palavra refere-se à união entre as culturas indígena e hispânica. Fala de um
momento anterior à chegada dos espanhóis, em que os homens haviam surgido de um mundo
antigo peruano, e ao referir-se à contribuição de quem chegou depois, utiliza o termo
demonio. Relacionado a este substantivo, além de haver surgido, cresceu, ou seja, encontrou
uma situação favorável para seu florescimento (mais adiante é substituído por diablos). Surge
84
a noção de bárbaro, no sentido de animalesco, bruto, selvagem: “arrancándose las tripas del
uno y el otro.”(ZZ, p.79).
A utilização do verbo na primeira pessoa do plural o localiza em concordância a um
grupo. Arguedas une divagações ao romance, quando afirma que neste está refletido o embate
entre as duas forças: do peruano e do estrangeiro, do invasor. Demonstra contentamento ao
dizer que tal luta, na narrativa, tem como vitorioso o grupo relacionado aos índios, à terra, à
Pachamama, acreditando ser também sua vitória: “ Allí, en esa novela, vence el yawar mayu
andino y vence bien. Es mi propia victoria”. (ZZ, p.79) Naquele momento específico,
fevereiro de 1969, acreditava ser um vencedor a partir da vitória que sentia ocorrer em sua
narrativa; seus personagens lhe trazem uma vitória que não consegue com sua própria vida.
Percebe-se a presença do mito entremeado à realidade do povo.
Seus diários remetem a um espaço e tempo que comportam divergências, antíteses,
contrários. Falará de sua estranheza no tocante às transformações experimentadas pela
humanidade na década de 60. Diz desconhecer o que ocorre no âmago de Chimbote e no
mundo. Declara ter ódios, ilusiones, impotência e um vazio. Suas emoções misturam-se às dos
indígenas, de Chimbote, do mundo. Soma-se aos índios (serranos): “Creo tener, como todos
los serranos encarnizados...” (ZZ, p.80). Sua inquietude em relação às cidades se evidencia:
“Yo siempre he vivido feliz, extrañadísimo y asustado en las ciudades” (ZZ, p.80).
Constantemente há um saudosismo, uma carência, um vazio no tocante às questões naturais
que são raridade em cidades grandes, como, por exemplo, quando cita a cidade de Nova
Iorque. Tem-se a nítida impressão de que sente um profundo desejo de resgatar o que viveu na
época que compartilhou sua vida (quando criança) com os indígenas e tudo que passou a ser
sua essência. Sua alma é nativa, é andina, é das alturas. Mostra-se boquiaberto, náufrago, sem
norte, tanto em relação ao que ocorre em Chimbote, como também ao mundo. Há uma total
85
incompreensão no tocante aos fatos que o cercam: “... no entiendo a fondo lo que está pasando
en Chimbote y en el mundo”. (ZZ, p.82)
Sua narrativa se compõe de recordações, de sentimentos, de desejos. Afirma ter tido
dificuldades em escrever o capítulo II. Porém quando o iniciou foi de um rompante; salienta
então que não conhecia a cidade de Chimbote. É como se o narrador tivesse lapsos de
memória, se apercebesse de que, abruptamente, trocou o foco, antes que o leitor tivesse tempo
hábil para situar-se. Suas idéias são confusas; seus interlocutores modificam-se
inesperadamente. Dirige-se a leitores de seus diários, tal como aos mortos também, sem
distinção, sem barreira divisória: “Tengo testigos, aunque los mejores, dos, se han muerto
igual que tú, negro, Dr. Julio Gastiaburú.” (ZZ, p.83). Em um único parágrafo, reúne os mais
diversos assuntos ainda que não os una, os conecte. A impressão que se tem é que um caos
imerge de seu interior, invadindo consequentemente a narrativa. Seus personagens lhe trazem
uma vitória que não consegue com sua propria vida: “allí, en esa novela, vence el yawar mayu
andino, y vence bien. Es mi propia victoria” (ZZ, p.79).
Assume o quéchua como a língua que o domina e que ele domina, juntamente com
seus irmãos indígenas: “el yawar inayu, el río sangriento, que os llamos de quechua” (ZZ,
p.83). Esta língua é uma forma de conquista, uma ponte. Seu encontro com uma menina
oriunda do alto foi o único momento marcante em sua viagem aos EUA naquele momento
(13/02/69). Mas não define quando ocorreu sua viagem à Nova Iorque. Afirma não conhecer
bem as cidades mas ironicamente está escrevendo sobre uma. Mas, em algum momento, se
pergunta qual será a cidade. Duvidará que Chimbote seja uma cidade? Esqueceu-se
verdadeiramente? Quer atrair a atenção de seu leitor? Seu contato, na infância, com a cultura
indígena, com a língua quechua, o marcaram de tal forma que, seguramente, diz , isso o
seguirá até sua velhice. Sua vida é indissociável de suas vidas: “Una infancia con milenios
encima, milenios de historia de gente entremezclada hasta la acidez y la dinamita. Ahora se
86
trata de otra cosa.” (ZZ, p.81). “Creo no conocer bien las ciudades y estoy escribiendo sobre
una .Pero, ¿qué ciudad? “¡Chimbote, Chimbote, Chimbote!”(ZZ, p.81). Por que repetirá o
nome da cidade por três vezes? Podemos atrever-nos a observar o número três. Lançar nossa
memória à Bíblia e a João que negou Jesus por três vezes. Entremeia Chimbote às suas
divagações, ao seu desejo de suicidar-se.
Relaciona vários animais que fazem parte do imaginário, da vida dos índios,
centralizando a atenção em alguns como um flamingo, um pato, o pariwana. Detém-se
explicando seus hábitos de viver em grupos, descrevendo-os. Suas cores são as mesmas que
compõem a bandeira peruana (branco e vermelho) e têm como principal característica
iluminar cada canto remoto, cada situação. Tal iluminação fazia florescer a música.
Sua fixação pelos piolhos é grande. Há uma insistência em usar esse animal mesclado
às inúmeras situações levantadas. Piolho é um animal que suga o sangue desde sua raiz, do
alto de um corpo, de uma cabeça. Levantemos a hipótese de que estaria o autor considerando
que sugam o sangue desde sua raiz, autoridades famintas, estrangeiros. Ao utilizar falcões e
sapos nos passa uma idéia de cadeia alimentar, de seres relacionados à altura e outros à parte
abaixo. Em termos de tamanho e hábitos alimentares também diferem bastante: o maior é
carnívoro, insaciável; o menor, mescla vegetais e pequenos animais. A todo instante uma série
de metáforas proliferam em seu texto, seja em seus diários seja na narrativa literária. É notória
sua crítica e insatisfação em relação ao poder vigente em seu país: “... estoy luchando en un
país de halcones y sapos desde que tenía cinco años...” (ZZ, p.81). Lembremos de sua
biografia, quando viveu entre os indígenas por quase cinco anos, em sua infância (vide
capítulo 3). Refere-se à “gente entremezclada hasta la acidez y la dinamita” (ZZ, p.81). Os
termos acidez e dinamita remetem a idéias de fragmentação, de algo que perde suas
propriedades, de morte, de fogo. Tais concepções nos encaminham a um patamar negativo,
tanto quanto inúmeros outros vocábulos. A seguir diz que as autoridades são famintas. De
87
quê? Quais são seus alimentos? Por que tal fome voraz? A quem se refere nessa época, como
criança, em que não tinha muita consciência sobre o que se passava com ele?
Remete o leitor a obras anteriores, como à obra El sexto (1961), quando decide contar
os problemas por que já passou em seu próprio país e em várias cidades por onde já havia
transitado. Utiliza bastante o Pretérito Perfecto, o que nos faz ter a certeza que uma ação do
passado ainda atinge o presente, ligando-se a ele. Arguedas faz referência também à Todas las
sangres e à Los ríos profundos, através dos seguintes fragmentos: “el cuyo fondo corre agua
cargada de sangre...”(ZZ, p.79) e “sobre la ruína los invasores han puesto una cruz alta con
sudario” (ZZ, p.89). Este diário se estende repleto de alucinações, recordações, metáforas (a
partir de animais), repleto de pessoas que o marcaram. No passado, acreditava, quando estava
em Paris, entender um pouco as cidades; no presente, no entanto, “algo sé de como arden las
ciudades, algo conozco de su verdadera pulpa.” (ZZ, p.82). Está em processo de descoberta,
mas também de grande incompreensão. Diz não saber ao certo como continuar o romance; seu
mal físico e psicológico o impossibilita de escrever a contento. Concentra-se em contar sobre
suas viagens. O termo viagem concentra sua atenção nesse momento: o transladar-se,
deslocar-se de um local a outro, avaliando situações de encontros, perspectivas, anseios.
Afirma que seu objetivo não é o de descrever Chimbote, já que não a entende: “Y no
vuelvo más al puerto hasta terminar el trabajo o reventar. Y no es que pretenda describir
precisamente Chimbote. No, ustedes lo saben mejor que yo. Esa es la ciudad que menos
entiendo y más me entusiasma; si ustedes la vieran!” (ZZ, p.82).
É a segunda vez que usa o termo estrambótico para referir-se ao primeiro diário.
Mostra insegurança em relação à existência do livro que estava compondo naquele momento,
Los Zorros. Considera sua narrativa inicial sobre Chimbote como ingênua, talvez comparada
com a visão que tem no presente. Acreditamos que sua perspectiva tenha sofrido profundas
mudanças desde a primeira redação: “las ingenuas líneas que escribí en Chimbote - no es un
88
diario; sólo escribía algo cuando estaba decidido a quitarme la vida de puro inútil y
deteriorado...” (82). O autor dá a impressão de que escrever sobre Chimbote o distancia de seu
desejo de morte, inicialmente. Pela primeira vez menciona a Doutora Hoffmann, sua
psicanalista.
Arguedas nos apresenta duas culturas: uma, a andina, de origem quechua, e a outra,
urbana, de origem européia. Chimbote, cidade real, ganha um vestuário literário, a partir de
suas investigações. Há uma contraposição entre serra e costa, onde a primeira aparenta ser o
espaço do sagrado, das tradições mágicas, enquanto a costa o espaço do científico, do
moderno, do capitalismo. Afirma compor o mundo de cima, tal como a raposa do alto (el
zorro de arriba) e não compreender o mundo de baixo:
Yo soy “de la lana”, como me decías; de “la altura”, que en el Perú quiere decir indio, serrano, y ahora pretendo escribir sobre los que tú llamabas “del pelo”, zambos criollos, costeños civilizados, ciudadanos de la ciudad; los zambos y azambados de todo grado, en largo trabajo de la ciudad. En esa categoría de azambados no considerabas tú a los indios y serranos “incaicos”, recién “amamarrachados” por la ciudad. Según tú, los de “la lana”, los “oriundos”, los del mundo de arriba, que dicen los zorros- a qué habré metido estos zorrro tan difíciles en la novela? - , olemos pero entendemos a “los del pelo” (…). (ZZ, p.83)
Sentimos como necessário observar que as epístolas (cartas) escritas por J.M.A. em
diferentes momentos de sua vida, seja por questões pessoais e/ou profissionais, nos
encaminham para a existência de um ser humano marcado pelo desejo de buscar respostas
para inúmeras questões que rodeavam a sua última cidade de interesse: Chimbote. Portanto, a
partir desta perspectiva, acreditamos ser interessante para a construção de nosso pensamento
apontar algumas cartas escritas por ou para Arguedas.
Numa carta de J. M. A. aos Padres Enrique Camacho e Guillermo Mc Intire, há uma
grande conexão entre tudo que é dito com a Bíblia, como, por exemplo, quando o autor refere-
se aos “hombres de buena voluntad”; usa um discurso de cunho religioso. É interessante notar
que tal carta data do ano em que Arguedas decide pôr fim a sua vida. Refere-se à cidade de
89
Chimbote, afirmando não saber definí-la bem: “Es y no es, como en toda novela” (ZZ, p.87),
na procura de uma possível relação entre a superpotência USA e o Peru e o Terceiro Mundo.57
Aproximar-se dos sacerdotes lhe dá serenidade “colmado de inquietudes”, já que
busca soluções de maneira ansiosa. Seriam apenas inquietudes pessoais? Acreditamos que
não, que a cidade de Chimbote lhe proporcione interrogações a respeito da modernidade mal
conduzida; se enche de apreensões. Seu romance Los Zorros está em curso e sente
“desasosiego”, como afirma ele.
Afirma ainda que esta obra é distinta das anteriores, já que as demais assemelhavam-
se a um manancial que flui, “como un manantial hace brotar agua. Esta sigue un curso
diferente!(ZZ, p.87). A partir de “un detenido análisis de las cosas”, Arguedas não considera
que a obra Los Zorros possa prosseguir.
Numa carta de 23 defevereiro de 1962, a Pierre Duviols (PINILLA, 2011, p.69)
Arguedas afirma sobre sua enfermidade: “Não tenho nada agônico, como me asseguraram os
médicos. Todo meu problema é psíquico, de raízes antigas, agravado por circunstâncias
familiares quase irresolúveis. Sua psicanalista Lola Hoffman foi recomentada por John
Murra” (DUVIOLS, 2011, p.69).
No ensaio intitulado “El jilguero de Huascarán”, (COLCHADO LUCIO, sem data,
p.86),58 Arguedas afirma que os leitores ouvirão falar algo sobre “el Perú nuevo, mestizo, no
índio” (p.212). Mostra uma grande preocupação com o “gigante de la canción ancashina”
(211). O autor o define como “emigrante andino, que busca la capital y la conquista” (212).
Segundo María Mercedes Borkosky, que propõe o conceito de autodiscurso, o qual
englobaria os gêneros autobiografia, cartas, memórias, diários, relatos de viagem, o enlace
que os uniria seria “su estatuto narrativo y la representación del sujeto de la enunciación”.
57
Voltemos nosso olhar para o capítulo 3, onde tratamos dessa temática de forma mais particular e profunda.
58 Baseado em Ernesto Sánchez Fajardo, nascido em Corongo em 1928 e morto em Lima em 1988, o qual se transformou em um ícone de cancioneiro popular.
90
O termo autobiografia, diz Borbosky, reúne três etimologias diferentes. “auto’, cuya
significación abarca lo propio del enunciador, todo lo que le pertenece o incluye su ámbito de
vida, “bio”, que tiene un significado más estricto y delimitado, vida; y “grafia” que nos remite
al acto de escribir”.(BORBOSKY, 2005, p.19) Semanticamente, seria escrever sobre a própria
vida, um relato retrospectivo, que uma pessoa faz de sua própria existência, afirma Philippe
Lejeune (1996, p.14), enfocando maiormente sua vida individual, em particular sobre a
história de sua personalidade.
A autora faz uma distinção muito clara entre autobiografia e autoficção, onde autor,
protagonista e narrador seriam um só nesta última. Em Arguedas esta fronteira inexiste:
autobiografia, diário, ficção, ensaio se misturam de tal forma que impossibilitam ao leitor
distinguir tais gêneros na obra e classificá-los. Por este motivo, acreditamos ser mais coerente
utilizar-nos do conceito de autodiscurso, proposto por María Mercedes Borbosky, já que tal
termo é mais amplo.
Borbosky afirma que “tener la propia vida como objeto de su enunciado marca una
tendencia muy clara en el propósito de quien escribe: organizar su experiencia y su pasado
como discurso” (BORBOSKY, 2005, p.15). Seria uma atitude introspectiva, que não tem
como objetivo, afirma a autora, representar verdades demonstráveis, mas funciona como uma
grande busca de um EU, de uma identidade. Existem, há muito, debates sobre a subjetividade
da imagem que o ser que se debruça sobre o seu passado realiza e a verdade dessa
representação. Mas essa discussão não cabe em nosso trabalho, pois nos desviaria de nosso
maior propósito. A autora compartilha a ideia de Pozuelo Yvancos (1993, p.194) de que “la
escritura autobiográfica está más cercana a la poiesis que a la mimesis, a la creación más que
a la referencialidad” (BORBORSKY, 2005, p.16). Afirma que para que haja uma
autobiografia é necessário amadurecimento para lançar um olhar sobre si mesmo, por isso o
diário seria o gênero mais comum entre os jovens. Isso não se adequa a José María Arguedas,
91
com os diários que compõem a obra literária, Los Zorros. Como assinala Gusdorf (1991, p.
12) “el hombre de la autobiografía se impone como tarea el sacar a luz las partes más
recónditas de su ser.”
Há um pensamento de que a prática católica da confissão inspirou este gênero
textual/esta escritura, tão presente em figuras religiosas, tais como Confesiones de San
Agustín ou Autobiografía en San Ignacio de Loyola. Esta última obra teria como motivação
evidenciar a exemplaridade que o autobiógrafo atribui a sua vida, esclarece a autora
(BORBOSKY, 2005, p.19). Seria o diário um processo de autocrítica, com posterior
aproximação maior a Deus, semelhante a um ‘caminho’ de purificação no tocante às ações
cotidianas.
A autora também sinaliza que os relatos de viagem (PRATTS, 2005, p.20)
“constituyen un camino de construcción identitaria, en tanto el viaje significa un traslado en el
tiempo en el espacio que pone en funcionamiento los procesos de alteridadd: el encuentro con
el otro es siempre el punto de partida de la comparación y la contrastación del yo”. (PRATTS,
2005, p.21). O viajante, buscando ao outro, chega a um Eu, de forma indireta, objetivando
estabelecer um contraste e consegue definir-se a partir do outro. O “diarista” está em
permanente diálogo consigo mesmo, fazendo um balanço constante de sua vida cotidiana. É
um Eu que se interroga sem cessar, afirma a autora. O autobiógrafo e o autor de memórias, a
partir da distância em relação a um passado distante, observam quem foram e o que são no
momento. Mas, ainda que haja diferenças entre eles, algo os une: o desejo de representar-se
independente do tempo e do espaço; realizar um autoretrato. (BORBOSKY, 2005, p.21)
Mercedes Borbosky discorre sobre os variados autodiscursos: cartas, relatos de
viagem, autobiografia e suas peculiaridades. As cartas, afirma, possuem um caráter dialógico,
representando o presente e o passado próximo, excluindo o passado já vivido, distante, tema
que seria frequente nas memórias e autobiografias. A autora forma dois grupos: um formado
92
pela autobiografia e as memórias e o outro pelos relatos de viagem, diários e cartas. Esclarece
que o primeiro grupo se relaciona a um passado distante e implica à memória uma tarefa de
reconstrução da identidade e o segundo grupo remete a um passado recente e se apresenta
como um discurso espontâneo (BORBOSKY, 2005, p.20): “Una autobiografía es un texto
referencial como el histórico que está sujeto a verificación y que tiene la capacidad de
representar fragmentos de la realidad” (BORBOSKY, 2005, p.21).
3.4 LOS ZORROS: PANORÂMICA DE DOIS MUNDOS
Pensando o título da obra El zorro de arriba y El zorro de abajo, somos projetados a
um universo mítico existente como uma das realidades que emergem da narrativa de J.M.A. O
mito se entremeia com a narrativa de Chimbote; são duas camadas distintas que se
entrelaçam: a camada mítica à narrativa, a alguns personagens sem nomes (desqualificados).
Ao tratar sobre o universo mítico, não podemos nos privar de falar de Pierre Duviols e
José María Arguedas na realização do projeto de publicação do texto “Los dioses y hombres
de Huarochirí” do quéchua para o espanhol em 1966. Do contato profissional transformou-se
em amizade que teve como ponto inicial o amor de ambos por dois espaços: o Peru e a
França. Trocaram cartas entre os anos de 1958 e 1969.
Duviols se interessa enormemente pela história do antigo Peru e isso o fez aproximar-
se do amante desse assunto: J.M.A. A partir, difunde em seu país, a França, obras e projetos
literários de Arguedas.
Nosso interesse em tal amizade baseia-se em nosso desejo de verificar determinados
temas que possam estar presentes no gênero cartas; como o interesse, por exemplo, de
Arguedas por Chimbote, pelas questões dos indígenas, pelo migrante, seu amor pela cultura
andina, questões sociais e intelectuais que o cercavam.
93
De acordo com Pinilla (2011, p.14), na introdução da obra Itinerarios Epistolares59,
Arguedas recobre os personagens mais atrativos de sua narrativa com a admiração pela
cultura andina, de tal forma, que seus amigos mais íntimos também compartilham tamanha
paixão, como Pierre Duviols, Carlos Cueto e John Murra.
Talvez a maior contribuição de Arguedas tenha sido seu interesse e suas ações a
salvaguardar e a difundir a literatura oral quéchua. (PINILLA, 2011, P.15).
John Murra60 propôs a Arguedas a tradução do manuscrito de Ávila Dioses y hombres
de Huarochirí. Arguedas, no prefácio do manuscrito, disse sobre este texto que
la obra quéchua más importante de cuantas existen, un documento excepcional, sin equivalente, tanto por su contenido como por su forma...el único texto quechua popular conocido por los siglos XVI y XVII y el único que ofrece un cuadro completo, coherente, de la mitología de los ritos y de la sociedad en la provincia del Perú antiguo. (ARGUEDAS, 1966, p.13, apud PINILLA, 2011, p.17)
A primeira publicação de 1938 de Arguedas nesse sentido foi a obra Canto Quéchua,
de 1938. Duviols enaltece o empenho de J.M.A. como etnólogo, no sentido de resgatar
importantes materiais de cultura oral em vias de extinção, a partir de um projeto chamado
“Etnologia de urgencia” (PINILLA, 2011, p.25).
Há a presença de patos negros e de seu canto, o qual se transforma em música. Tais
animais são de altura, ou seja, pato de altura se refere, numa primeira perspectiva, “que andan
en los lagos de altura, helados, donde se empoza la nieve derretida” (ZZ, p.49).
No final do Cap. I, o narrador invade a narrativa com a presença de duas raposas
dialogando. “Éste es nuestro segundo encuentro”. O primeiro diálogo havia sido no final do
primeiro diário; porém os animais afirmam que havia sido “hace dos mil quinientos años… en
el cerro Latausaco, de Huarochirí…” (ZZ, p.49).
59 Esta obra, apresentada por Alejandro Órtiz e María Carmen Pinilla, foi publicada em 2011, como forma de homenagem ao centenário de nascimento de Arguedas. 60 John Murra, antropólogo e historiador, mantinha interesse por encontrar e renovar documentos sobre o Peru pré-hispânico.
94
Há um deus (Pariacaca) e seu filho (Huatyacuri) e um outro deus, Tamtañamca (“dios
incierto, vanido y enfermo” (ZZ, p.49); ocorre uma disputa entre os dois. Pariacaca possui
outro filho Tutaykine (Gran jefe o Herida de la Noche). Uma das raposas, ao contar sobre um
tempo longíquo, tentando delimitar espaços (arriba/abajo), refere-se a Arguedas “El individuo
que pretendió quitarse la vida y escribe este libro era de arriba. Tiene aún ima sapra
sacudiéndose bajo su pecho.¿De dónde , de qué es ahora?”.
Entremeado ao autodiscurso, surge a ficção. Nela, funcionam como elos de ligação
duas raposas. Arguedas se utiliza de heróis do mito de Huarochirí: uma das raposas se
materializa como Don Diego, no capítulo III, coligidos por Francisco de Ávila, ao redor de
1598 e traduzidos por ele mesmo, em 1966, para indicar animais lendários que nomeiam a
narrativa El zorro de arriba y el zorro de abajo. Esses animais possuem um quê de migrantes,
já que viajam entre a costa e a serra, da selva; representam os deuses do mundo do alto e o
mundo do baixo, princípios ao mesmo tempo da geografia humana, costa e serra andinas, e da
estrutura mítica, de acordo com Julio Ortega. Há determinado capítulo em que um dos zorros
dialoga com um personagem: é o mito conectando-se à realidade ou como elementos de
ficção? Na narrativa, as raposas são míticas, aparecendo como outra atmosfera, em outro
plano.
De acordo com Crisanto Perez 61 as raposas se referem a um espaço literal: embaixo e
de cima, numa conotação geográfica. No entanto, há outra dimensão, outra possibilidade de
leitura: o mito tem que ver com a exploração feminina. Partindo de outra perspectiva a raposa
de cima evoca o autor; o patamar de baixo é a perversão. É uma clara cosmovisão andina,
com a epifania das raposas milenárias. Chimbote simboliza a desagregação dos valores
andinos, com forte presença dos valores ocidentais, do capitalismo. Outra forma de ler a
61 El zorro de arriba y El zorro de abajo: hacia una poética definitiva, Universidad de Piura, El mundo de los zorros, Puc/Lima, 2011.
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estrutura do romance é entender que há um jogo entre as figuras da vida e da morte. Podemos
entender também que a dicotomia diário/romance corresponde arriba/abajo.
Partindo do pressuposto de que toda identidade se tece de modo “alteritário”, que se
constrói na relação com o outro, tentarei traçar alguns comentários sobre algumas
metamorfoses sofridas por Chimbote, a cidade-personagem escolhida por José María
Arguedas, cenário de profundas transformações em meio a uma modernidade que batia às
portas do Peru, ao final da década de 60, como é retratado em Los Zorros. A obra surgiu nessa
época, mais precisamente em 69, porém somente foi publicada dois anos depois do suicídio
de Arguedas. Estamos em uma época de quebra de valores, de posturas62.
Na última carta de Arguedas a Duviols, de 21/11/1969, o autor de Los Zorros declara a
respeito da obra:
Voltei em más condições: o romance se frustou quando o escrevia com o grande custo e entusiasmo. Não é oportuno nem por acaso poderia explicar-te o motivo de caráter meramente psíquico que congelou o livro. E agora estou na universidade sem saber bem o que fazer com o romance preso na garganta, me sinto sem animo para quase nada e muito menos para dar aulas.” (PINILLA, 2011, p.75).
Dando continuidade ao contexto onde Arguedas se inseria, seguiremos agora outras
idéias a respeito do viria a ser a América, a partir de alguns estudos realizados.
A partir das muitas reflexões propostas por Bella Jozef sobre o lugar da América
Latina, nos colocamos a pensar sobre a intensa busca de José María Arguedas, etnólogo,
historiador, antropólogo, por traduzir em sua obra Los Zorros a realidade de um país
considerado periférico: o Peru. Começa a sua obra, não a partir de uma visão eurocentrista,
mas a partir de uma linguagem local. Os processos de territorialização e apropriação do
espaço se constituem como eixo central da narrativa.
Martin Lienhard (1990), 63 em Cultura andina y forma novelesca, se debruça sobre a
última obra de Arguedas buscando tecer considerações sobre o Peru do final da década de 60.
62 Vide capítulo referente à Lloqlla sobre a temática da década de 60. 63 Nascido em meados da década de 1940, em plenos anos de uma guerra, que foi um marco horrendo na história da Humanidade.
96
Afirma considerar essa obra como de difícil classificação, inclusive acreditando ser ela o
“último producto narrativo del indigenismo teorizado pelo Mariátegui” (LIENHARD, 1990,
p.9). Los Zorros possui um espaço onde o povo tem um papel ativo, diferentemente de obras
anteriores; rompe com formas narrativas e linguísticas convencionais, instaurando um novo
momento. Significa mais que romper com essas questões, mas avançar na cultura, seguindo
andina e penetrando na quéchua; é uma grande gradação.
Não se pode separar a literatura de questões históricas, já que estas invadem a
narrativa, possibilitando uma leitura do contexto espacial, temporal, social e histórico. Pode-
se perceber uma dicotomia clara entre cultura imperialista e cultura andina que, por longo
tempo, vem ocorrendo. Lienhard afirma haver vivido, compartilhado, interagido, por alguns
anos, com os peruanos andinos e que, por tal proximidade, haver penetrado em suas palavras
da primeira edição a ponto de vários leitores notarem grande carga emocional. Há um traço da
oralidade viva de matriz andina e popular, diz o autor, que faz com que esta obra tenha um
diferencial frente a outras. Grande parte dos críticos literários, diz Lienhard, não
compreendem que José María Arguedas se posiciona como porta voz das vanguardas andinas
nas cidades peruanas e costenhas (LIENHARD, 1990, p.14). Acredita que, mais que pensar
um passado, Arguedas tem como meta refletir sobre o presente e buscar respostas para o
futuro (LIENHARD, 1990, p.14). A obra Los Zorros surge como uma outra possibilidade,
como “literatura alternativa”, como nomeia Lienhard, para confrontar com o que ele chama
“literatura europeizada dominante”. A transculturação ocorre na narrativa, afirma o autor, a
partir de “la irrupción de factores indígenas”.
Arguedas, em seu discurso ao receber o prêmio Inca Garcilaso de La Vega (1968),
mostra claramente que acolheu o termo transculturação e nega ser produto de aculturação64,
64 Vide tópico referente à transculturação.
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já que tal vocábulo, para ele, seria perda de sua própria cultura em favor da cultura do
colonizador:
O cerco podia e devia ser destruído: o manancial das duas nações podia e devia ser unido. E o caminho não tinha por que ser, nem era possível que fosse unicamente aquele que se exigia com autoritarismo de vencedores espoliadores, ou seja, que a nação vencida renuncie à sua alma, mesmo que só aparentemente, de modo formal, e adote a dos vencedores, quer dizer, se aculture. Eu não sou aculturado: sou um peruano que orgulhosamente, como um demônio feliz, fala língua cristã e de índio, espanhol e quíchua. (ARGUEDAS, 1971, p.13)
A partir de algumas cartas entre Arguedas e Duviols, afirma-se que o embrião do
romance Los Zorros aparentemente nasceu em 1962, com o nome de Jonás, mas não focando
na cidade de Chimbote, mas sim no Porto Supe, local que sofre problemática semelhante à
cidade de Chimbote.
Arguedas começa a segunda parte de sua obra não mais numerando as partes, não
havendo mais capítulos; tudo vem como se num grande turbilhão.
Há, nessa parte, uma seqüência que se intitula como “¿último diário?”, de Santiago de
Chile, agosto de 69. Diferentemente do que poderíamos supor, não há aqui espaço para
divagações e/ou acontecimentos pessoais, como seria de esperar em um diário. Há uma
explosão estonteante de finais repentinos. Explico: o narrador retoma alguns personagens e
indica seu possível final dentro de sua narrativa. Ao finalizar essa parte, retoma o que entende
por diário e o entrega ao leitor para que este “deguste” cada palavra, cada sensação.
A parte da narrativa intitulada como epílogo, não é, a princípio, aquilo que se supõe: o
fim da narrativa trata-se, sim, de cartas a determinadas pessoas fundamentais em seu final: ao
editor Gonzalo Losada, de Buenos Aires, ao Reitor da Universidade Agrária, como também
aos estudantes.
Los Zorros não possui fronteiras muito delimitadas entre as formas discursivas. O
diário do autor cede lugar ao diálogo entre os animais sem que se perceba. Não há divisão
entre as partes, como se tudo fizesse parte de um só mundo. Tal fato também ocorre ao falar-
98
se da cidade de Chimbote. Uma esfera conduz à outra, sem que se necessite sinalizar qual está
em foco naquele momento, pois, ao que parece, todas têm o mesmo peso. O mundo de arriba
representa, numa primeira instância, as montanhas, a vegetação; o de abajo é representado
pela presença do mar, dos pescadores, das fábricas.
As vozes esquecidas ganham espaço em toda a narrativa. Todos falam, inclusive um
personagem denominado Mudo. Até aquele que é desprezado possui direito à expressão,
ainda que seja com seu parco vocabulário. Como afirma Beatriz Sarlo “nossa marginalidade
quanto ao “primeiro mundo”, daí o caráter tributário de muitos processos cujos centros de
iniciativa se encontram em outro lugar”, “vivemos entre luzes e sombras, paisagem
perpetuada por contrastes: centro e periferia, cidade e campo” (SARLO, 2000, p. 48). Em Los
Zorros, Arguedas nos conduz para a costa, onde predominam os “criollos” e para a serra,
onde predominam os descendentes indígenas, de arriba e de abajo, indicando possibilidades
de trânsitos entre os dois extremos.
Chimbote simboliza a devastação e a desagregação da sociedade peruana. Há um
desejo de fazê-la uma cidade ordenada, utilizando-nos do termo criado por Ángel Rama, em
A cidade letrada (1985).65 De um lado há patrones, pescadores, comerciantes, prostitutas,
asambleas del sindicato, serranos brutos, sem refinamento, zambos, piones, chino
desgraciado, negro desgraciado, obrero eventual . Do outro, padres, curas, bispo: “gran barrio
de fábricas “27 de octubre”. O ambiente aparenta completo abandono; é pura degradação.
Como afirma Alexandre Vieira, Chimbote é uma espécie de Babilônia mítica, pois
reúne várias “linguagens e vivências”, circulando trocas econômicas e sócio-culturais. É uma
cidade cosmopolita com vários níveis sociais, completamente fragmentada, e todos os níveis
de leitura,
A narrativa arguediana se constrói a partir de ruínas, da feiúra da linguagem, da dessacralização, fazendo recordar o Naturalismo. A partir das entranhas expostas,
65 Vide tal tópico.
99
dos vermes que saltam da escritura, da prostituição tão fortemente expressa, a degradação do ser humano, resumido a uma besta. Reinam em sua escritura prostitutas, pescadores, infidelidades; é um mundo marginal dentro da cidade que nasce numa modernidade forçada, desenfreada, brutal, assustadora. (VIEIRA, 2006, p. 14)
Na exposição do Centro Cultural de Puc/Lima 66havia reprodução de algumas palavras
proferidas por Arguedas, as quais me parecem apropriadas para encerrar este capítulo:
…creo que el quechua alcanzará a ser el segundo idioma oficial del Perú y se impondrá la ideología que sostiene que la marcha hacia adelante del ser humano no depende del enfrentamiento devorador del individualismo, sino, por el contrario, de la fraternidad comunal que estimula la creación de un bien para sí mismo y para los demás, principios que hacen el individuo una estrella cuya luz ilumina toda la sociedad y hace resplandecer y crecer hasta el infinito la potencia espiritual de cada ser humano; y este principio no lo aprendemos en la universidad, sino durante la infancia, enamorada, perseguida, al mismo tiempo feliz y amante de una comunidad de indios. (José María Arguedas, 1911-2011).
Gonzalo Portocarrero (Puc)67considera a obra Los Zorros um fracasso, pois os
personagens principais morrem ou não têm um final, sendo um romance que radicaliza, um
texto difícil, que não é muito lido, talvez por isso tenha sido rechaçado por tanto tempo. O
romance suscita um sentimento de comunidade. Propõe que se compreenda melhor o espírito
arguediano, já que é inclassificável. Encerra sua ponência com uma interrogação: Como
classificá- lo?
4 CHIMBOTE: A CIDADE QUE TRANSBORDA
Como me es imposible prever el instante de mi fin, como a mi edad los días concedidos al hombre no son más que días de gracia , o mejor dicho de pena, voy a explicarme: el 4 de setiembre próximo, habré cumplido
66 Onde estive em junho de 2011, com o propósito de apresentar uma comunicação no congresso sobre Arguedas. 67 Pontificia Universidad Católica del Perú, 24 de junho de 2011– Presentación de libro La amistad de Arguedas y Duviols en 16 cartas / Apresentação: La ficcionalización en José María Arguedas: Dos estudios de casos/ Tradición oral quechua y traducción en José María Arguedas.
100
mis setenta y ocho años, y tiempo es ya de que abandone un mundo que me abandona él también.68
Na obra Los Zorros, a cidade de Chimbote é levada à decadência física, moral,
cultural, política por essa mesma modernidade, que não foi bem conduzida. Suas doenças:
venda de corpos, violência simbólica, exclusão, deslocamento de migrantes. Há uma profusão
de invasões; inclusive, o que a principio parece separado (a narrativa mítica, o diário de
Arguedas, a narrativa ao redor de Chimbote) mais adiante, à medida que o leitor acostuma o
olhar, se mesclam os elementos e eles tornam-se como uma nova construção, já que um
elemento salta para fora de seu pseudo-território inicial. A noção de território, de região
desfaz-se. O que nos é delineado como barbárie, passa a ser construído como civilização,
como cultura, como essência. Toda a ocidentalização das indústrias transforma-se de tal
forma que a cultura autóctone, que não é sinalizada no primeiro momento, surge e se infiltra
de maneira suave, envolvente, não conseguindo mais descolar dos outros elementos. Há uma
fusão estonteante de realidade e ficção. Chimbote, de acordo com Rodrigo Montoya69, é a
confluência de todos os sangues marginais, silenciados, à margem.
Veremos, a seguir, de forma mais serena, alguns pontos referentes ao tema da
migração, do deslocamento, do sangue novo que se desloca no espaço também novo.
4.1 MIGRANTE, ERRANTE, PEREGRINO: TODOS EM BUSCA DA IDENTIDADE
68 René Chateaubriand: Memorias de Ultratumba, 1871, p. 18. 69 Congresso Lima/Puc, 2011 (Arguedas: La dinâmica de los encuentros culturales).
101
Dentre muitas abordagens possíveis para o tema da migração, optamos por focar em
alguns problemas que envolvem o fenômeno migratório: a prostituição, o subemprego, as
precárias condições de vida do trabalhador costeiro, a profunda instabilidade que caracteriza
essa força de trabalho. Os migrantes, que são movidos pela necessidade de vender sua força
de trabalho, entram numa máquina, onde vivem histórias de violência, de dominação e
opressão. O fenômeno da migração não é temática nova, mas passou a centro de atenções em
vários países, especialmente em relação aos EUA e Europa, principais destinos de
deslocamentos, como um dos efeitos da globalização. Essa discussão se faz necessária em
nossa investigação já que em Arguedas, na obra Los Zorros, ilumina a migração dos serranos
à costa, como também de estrangeiros (chineses, italianos, iugoslavos) para a explosão que
ocorreu na indústria pesqueira na cidade de Chimbote.
O fluxo migratório compõe-se de refugiados, de imigrantes legais e ilegais,
especialmente em relação aos países mais desenvolvidos, os quais são mais atrativos para
aqueles que abandonam sua terra natal, provisoria ou definitamente.
De acordo com Marcello Simão Branco a imigração ilegal “é uma das consequências
perversas do sistema econômico urgente que estimula a desigualdade mundial, caracterizada
por duas dezenas de nações prósperas em contraste com centenas de pobres ou no máximo
emergentes, para usar o atual jargão econômico” (2007, p. 35). Outra faceta que compõe a
realidade do intitulado migrante é o fato de que é elemento essencial para a prosperidade dos
países desenvolvidos e/ou emergentes. Os países desenvolvidos utilizam a mão de obra do
imigrante para continuar em sua posição de destaque e manter seus níveis de produtividade e
bem estar social. Esta discussão é bastante antiga, tanto quanto a historia do próprio homem.
Mas repensá-la, refletir sobre seus matizes, é essencial para entender um pouco o que se passa
na cidade de Chimbote dos finais da década de 60.
102
Simão Branco acredita que o fator propulsor seja a carência econômica.
Evidentemente, outros fatores propiciam esses deslocamentos, tais como guerras civis e
perseguições políticas, étnicas e/ou religiosas.
Queremos pensar o migrante não de forma ampla, porém localizá-lo no âmbito
peruano, especificamente na década de 1960, mais especificamente na cidade de Chimbote,
quando explode um “boom” da indústria pesqueira. Em relação aos motivos, focaremos
especialmente os econômicos, ainda que se possam vislumbrar outras razões para migrações
na obra Los Zorros. Podemos perceber na obra póstuma de J.M.A. que os migrantes surgem
como sinônimos de trabalhadores; aqueles que vendem sua mercadoria mais vital: a força de
trabalho. Nesse momento, não nos interessa ver como migrantes os estrangeiros que saíram de
sua terra levando seu capital, expandindo a lógica capitalista, buscando trabalhadores
disponíveis, já que nosso foco não é este.
Há uma perda de terra e uma tentativa, por vezes, vitoriosa, de sucesso no novo
ambiente. Há necessidade de que também deixem suas línguas, seus costumes, seus valores,
seu eixo central, sua cultura. Faz-se necessário então pensar, a partir de Fernando Ortiz, Ángel
Rama, Cornejo Polar, respectivamente, os temas aculturação, transculturação e
heterogeneidade70. Com todo esse processo se vêem tragados e perdem sua vida
independente, seu vôo livre71, sua água, fonte de vida.72
Lucero de Vivanco 73 afirma que na representação de Chimbote todos são migrantes,
por causa da bonança do porto, ocorrendo distintos graus de aculturação. Migrante: situação
de crise permanente, sempre em movimento, sem terra, sem paradeiro, numa constante busca.
Entende o migrante como uma condição dialógica, enlaçando passado, presente e futuro.
70 Relembrar capítulo sobre tais conceitos. 71 Vide Pico Largo, no Capítulo 5.
72 Vide conto Agua.
73 Imaginario bíblico en la narrativa de José María Arguedas, Universidad Alberto Hurtado, Chile, Congresso, Puc/Lima, 2011.
103
Os trabalhadores que se deslocam no espaço em busca de trabalho são, por muitas
vezes, retirados de sua terra pela falta de titularidade de propriedade e/ou pela força. Ao
perder o acesso à terra, que era sua fonte de sobrevivência, se vêem forçados a sobreviver
através do salário, afirma Izabel de Carvalho (p.15, 1980). Em sua condição de migrantes são
expostos à habitação precária, aos maltratos, às doenças decorrentes de uma urbanização não
organizada (vide Rama) e/ou trabalhos sem condições mínimas. Muitas das vezes não
possuem quaisquer condições trabalhistas e sociais. A migração que focamos em nossa
investigação é a rural, a qual tem como meta o centro urbano, onde circula o capital. Temos
aqui um trabalhador sem qualificação, que foi absorvido pro baixa remuneração e condições
precárias (como se vê no Cap.III, através do diálogo entre Don Ángel e Don Diego). A
concorrência entre os trabalhadores pelos empregos diminui mais ainda os salários pagos
oferecidos.
Certamente, o crescimento desordenado de uma cidade, não tendo como alvo o
cidadão, o elemento humano que a compõe, desequilibra o mesmo; mais ainda quando o
cidadão abandona sua terra, suas crenças e sua economia em prol de uma vida que
desconhece, que guarda elementos surpresa. O sujeito migrante surge como alguém
descentrado, pois deixa um ponto de equilíbrio e, ao chegar à outra terra, não consegue um
novo. Há uma noção de não-pertencimento. José María Arguedas ilumina a migração dos
serranos e sua grande dificuldade em adaptar-se ao mundo do trabalho costeiro. São vistos
como inferiores, sendo marginalizados por seus hábitos e linguagens.
A questão da migração tem sido objeto de preocupação, gerando diversos estudos. O
livro Migrante: Êxodo forçado (1980) surgiu como proposta de discussão ao redor da
Campanha da Fraternidade de 1980, as migrações, no Brasil, cujo lema era Para onde vais?.
Escrito por muitas mãos, espelhando uma diversidade de opiniões e ângulos de abordagem
104
acerca de migrações. A discussão ia muito além de entender o vocábulo como deslocamento
geográfico de indivíduos, mas sim a marginalização econômica, social e política.
Trinta anos depois, a discusssão permanaece. Em, El trabajador migrante andino,
Luis Nava Guibert74 (p.17-24), por exemplo, aborda a questão do deslocamento migratório em
decorrência da necessidade de trabalhar. É o que ele chama de flujo migratorio laboral. Por
causa da Globalização, uma série de variáveis sociais, políticas e econômicas ocorre. Pelo
processo de internacionalização do processo produtivo e de oportunidades econômicas, as
migrações giram ao redor desse centro. Guibert enfoca justamente a circulação de
trabalhadores no eixo Bolívia, Colômbia, Equador e Peru, na Comunidade Andina de
Naciones (CAN), mais particulamente em relação à realidade peruana. Afirma-se que o fluxo
migratório de peruanos atinja mais a faixa etária compreendida entre os 15 e os 34 anos de
idade.75 Identifica-se que grande parte de peruanos em circulação pela Comunidad Andina de
Naciones esteja empregada em setores de serviços e construção. O grupo conhecido como
CAN adotou o que passou a ser conhecido por Decisión 545, de junho de 2003, com o
propósito de regular de “manera progresiva y gradual el movimiento, derechos, libertades y
obligaciones” (GUIBERT, 2010, p.14) dos trabalhadores migrantes andinos neste espaço
comum. O autor identifica como escassa a circulação de migrantes entre os países
pertencentes à CAN por desconhecimento dos direitos e deveres que amparem ao trabalhador.
A principal contribuição da obra de Guibert é justamente apresentar tal quadro
jurídico, de direitos e deveres fundamentais, relacionados ao empregador e ao empregado, por
meio de uma relação de troca de prestação de serviços por uma remuneração. O autor salienta
que incluiu a Venezuela, ainda que este país tenha se afastado da Comunidade Andina de
Naciones, em abril de 2006, pois acredita que tal distanciamento será breve. A Comunidad
74 O autor é Doutor em Direito pela Universidad de San Martin de Porres e Especialista em Direito do Trabalho. 75 O Professor Rômulo Monte Alto, da UFMG, neste ano de 2011, está com um estudo voltado para as migrações de peruanos para o Estado de Minas Gerais, suas principais motivações, como também uma investigação sobre todo o processo.
105
Andina de Naciones teve como antecessor o Pacto Andino, ou Grupo Andino ou Acuerdo de
Cartagena, que data de 26 de maio de 1969, quando o Chile, então integrante do grupo, se
retirou do mesmo. Na verdade, a CAN é um mecanismo de integração subregional que deu
continuidade ao propósito do Acordo de Cartagena, que seria alcançar a integração e a
cooperação econômica e social de seus habitantes, afirma Guibert (2010, p.17).
Quanto à Decisión 545, surge em junho de 2003, objetivando dar uma norma comum
que circule por países que componham este grupo. Esclarece-se que essa decisão está
direcionada ao setor privado, excluindo-se o público, como também atividades consideradas
contrárias à moral, à ordem pública, à saúde das pessoas e aos interesses essenciais da
segurança nacional (GUIBERT, 2010, p.17). Esse documento identifica definições básicas
para que uma interpretação homogênea ocorra entre os quatro países membros (Peru, Bolívia,
Equador e Colômbia), como o que vem a ser País Membro, Situação Migratória Regular,
dentre outros termos e/ou expressões.
Algo bastante esclarecedor sobre a situação do trabalhador migrante é o fato de a
Decisión 545 destacar
el principio de igualdad de trato o de oportunidades, se le consideran los mismos derechos y beneficios que cualquier trabajador connacional. En ningún caso se le sujetará al trabajador migrante andino a discriminación por razones de nacionalidad, raza, sexo, credo o otros. (GUIBERT, 2010, p.19)
A Decisión 545 trata de direito à sindicalização, tanto quanto estar vinculado ao
Seguro Social em Saúde e/ou ao Sistema de Previdência ou de Pensões, como também o livre
acesso às instâncias administrativas e judiciais para exercer seus direitos.
Em solo peruano, houve a criação de duas resoluções que viriam a ser um
complemento para a aplicação da regulação do trabalho migratório na comunidade andina, as
quais, de forma sintética, determinam que o Ministério do Trabalho e Promoção do Emprego
se encarregue de fazer cumprir a Decisión 545, efetivamente supervisionando a situação
trabalhista dos migrantes andinos, suas condições de trabalho e o cumprimento das normas
106
trabalhistas por parte dos empregadores. Determina-se também que haja documentação
referente à situação desse trabalhador (GUIBERT, 2010, p.21). O conteúdo da outra resolução
ministerial peruana indica que um contrato de trabalho seja realizado, com um conteúdo
específico e indispensável, como, por exemplo, que constem a remuneração, o posto de
trabalho ocupado pelo trabalhador, a jornada de trabalho, dentre outros pontos.
Junto a esse contrato, deve seguir a cópia do documento de identidade do migrante
andino, onde apareça a nacionalidade. Aclara-se que tal documento é completamente gratuito.
Tudo isso feito, deve-se registrar o contrato no Ministério do Trabalho e Promoção do
Emprego para que, numa eventual inspeção do país de origem do migrante, sua situação
trabalhista esteja clara e de acordo com o que se espera. Reafirma-se que esse trabalhador
migrante andino deve ser considerado sob as mesmas normas e beneficiando-se dos mesmos
direitos que um trabalhador de nacionalidade peruana, não podendo haver nenhuma diferença
de tratamento, por ser de nacionalidade colombiana, boliviana ou equatoriana, até mesmo
venezuelana. Dito isso, não se pode qualificá-lo como trabalhador estrangeiro, pois seriam
considerados, afirma Guibert, por outra perspectiva, com porcentagem limitativa em relação à
remuneração e ao número de trabalhadores.
Até aqui tratamos, sem muita profundidade, de algumas considerações sobre o CAN e
a Decisión 545. Agora, de igual maneira, falaremos sobre dois outros documentos: Decisiones
583, de 2003, e 584, de 2004, relativas à Segurança Social e à Saúde, respectivamente, do
migrante e seus beneficiários ou dependentes. O primeiro documento visa assegurar o
tratamento igualitário dispensado a peruanos e a migrantes de nacionalidades referentes aos
países que compõem a Comunidad Andina de Naciones. Em relação à Decisión 584, visa-se
que haja procedimentos de inspeção, vigilância e controle das condições de segurança e saúde
no trabalho; procedimentos para reabilitação, inserção de trabalhadores com incapacidade
temporária ou permanente em decorrência de acidentes e/ou enfermidades trabalhistas. Saindo
107
das leis e voltando ao romance, há uma personagem na narrativa de Los Zorros, chamada
Orfa, considerada ramera cajamarquina. A questão da errância, da migração, do trânsito entre
espaços, está explícita, através desta personagem: “Gracias, cruces santas, errantes, como yo,
botadas” (ZZ, p.68). Orfa, que como dissemos é oriunda de Cajamarca, nos remete ao texto
de Cornejo Polar (Escribir en el aire), quando o autor fala sobre a cidade onde um profundo
momento de heterogeneidade explodiu, em 1532, entre Atahuallpa e Pizarro, no episódio
conhecido por um rompimento do indígena com o grande símbolo escrito do Ocidente: a
Bíblia.76.
Os indígenas de todos os povos das montanhas andinas descem procurando trabalho
em Chimbote: “Así nos entremezclamos los que en el Perú estamos muy a buenas con peces y
pescados” (ZZ, p.89). Há uma clara redução de trabalhadores nas fábricas de Chimbote. Não
interessava a permanência de operários fixos, pois seus direitos sociais eram custosos, senão
os temporários. Insistentemente a dúvida surge: Por que descem os indígenas das alturas a
Chimbote? Há uma máfia que continua atiçando essa história como pólvora, por entre as
montanhas. Houve uma publicidade equivocada, diz um personagem não nomeado, de
Chimbote: suas terras seriam gratuitas para povoações, que haveria abundância de trabalhos
em fábricas e lanchas “bolicheras”, mercados, comércio em geral. Por tudo isso houve a
avalanche, a ocorrência de número demasiado, de migrações do alto para a costa, com grandes
fazendeiros dizimando os indígenas.
A partir da fala de inúmeros personagens, o leitor monta um quebra-cabeça: o que é
cidade, sua localização, sua geografia, suas instituições, questões religiosas, problemáticas,
população, sua parte econômica. Arguedas possibilita que surjam as vozes daqueles que
desceram da serra, que migraram, que estão ajustando-se, que tentam entender o mecanismo
do novo mundo.
76 Este episódio foi tratado com certa profundidade no capítulo II desta dissertação, item 2.3, Cornejo Polar: Fervilham as diferenças.
108
Há uma tentativa e extrema necessidade dos personagens em expressar-se em
espanhol, em seu processo de adaptação ao novo espaço. Poderíamos dizer que migração é
viver entre dois mundos: "Yo soy de toda la costa, arenales, ríos, pueblos, Lima. Ahora soy de
arriba y abajo, entiendo de montañas y costa, porque hablo con un hermano que tengo desde
antiguo en la sierra. De la selva no entiendo nada." (ZZ, p.119). "Cuando baja a la costa ya
también, recuerda su crianza, cerros, fiestas con borracherita, pito y caja, violín: llora silencio,
ratito namás en el trabajo homilde."(ZZ, p.150); “más obreos largamos de las fábricas más
llegan de la sierra” (ZZ, p.87) “¿por qué siguen viniendo serranos a Chimbote?” (ZZ, p.89);
“los serranos de las alturas siguen viniendo a Chimbote, porque hace sólo unos o diez años
aquí se rogaba para tomar peones...” (ZZ, p.91); "así como los serranos se desgalgaron de las
haciendas y de sus comunidades pueblos en que estaban ... se desgalgaron hasta aquí , al
puerto ...Se vinieron en bandada los aficionados a industriales..."(ZZ, p.98).
Toda essa discussão sobre a língua quéchua, o migrante que abandona sua terra e sua
gente, nos faz recordar o filme peruano La Teta Asustada, de Claudia Llosa.77 Fausta padece
de uma enfermidade que se transmite pelo leite materno, de mulheres maltratadas durante a
época de terrorismo no Peru. Considerada sem alma, se isola dos homens, de toques, das
palavras, de si mesma. Durante toda a narrativa, percebemos o desabrochar de um ser, que
encontra na viagem (quer enterrar sua mãe nas terras indígenas; sai da cidade às montanhas,
num sentido inverso ao que ocorre em Los Zorros), na música em quéchua, no outro, que lhe
mostra verdeiramente quem é ela (no encontro com a alteridade a identidade se constrói). Os
primeiros minutos do filme são de tela escura e o som de uma canção/um lamento entoado em
quechua por sua mãe, contando o que lhe havia passado quando foi violada pelos homens,
produzindo, a partir daí, um ser triste: Fausta, sem possibilidade de ponte em relação aos
outros.
77 Filme indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009 e ganhador do Urso de Ouro no mesmo ano.
109
Fausta, como já foi expresso, sai de sua comunidade para empregar-se como
doméstica na casa de uma compositora musical, que se encontra naquele momento sem
inspiração para produzir. A partir de seu contato com Fausta, a branca, de cabelos loiros, se
apropria de sua música, para novamente ganhar espaço no mundo em que deseja ter um lugar
cativo. Sua patroa tenta negociar trocas com Fausta: à medida que tenta roubar sua
musicalidade, sua tradição, sua magia, a presenteia com pérolas, artifícios de seu mundo. A
personagem resiste bastante, mas a necessidade de dar um leito de morte à sua mãe a
impulsiona a aceitar o acordo. Há um comércio torpe, pois a patroa sabia de suas necessidades
e poderia favorecer-lhe sem necessitar que esse acordo desnecessário subjugasse um ser.
Temos, através da personagem, uma metáfora clara do conquistado frente ao conquistador. O
final da narrativa porém reserva um quadro muito maior que a simples transculturação,
lembrando Órtiz; remete sim a um quadro heterogêneo, remetendo claramente a Cornejo
Polar, a seu conceito de Heterogeneidade; são dois mundos que batem em pulsações distintas,
com ritmos muito diferentes. La teta asustada é a história de um povo que precisa de espaço
para SER, para situar-se, para entoar seu canto.
Vamos encaminhar nosso olhar agora à outra temática, a qual estabelece uma
continuidade quase imperceptível em relação a tudo que foi tratado até aqui: a violência
velada.
4.2 A VOZ DA CONSTITUIÇÃO
Vejo como necessário observar o documento máximo do país, a Constituição do Peru,
para que, desta forma, possamos aproximar-nos aos direitos que regem o povo, as pessoas e,
por conseguinte, refletir sobre todo o panorama iluminado por Arguedas em relação à
representação da cidade de Chimbote, considerando a relação entre o legal e o real. No cap. II,
110
afirma-se que “la defensa de la persona humana y el respeto de su dignidad son el fin supremo
de la sociedad y del Estado.” (ARROYO, 2005, p.17). No entanto, deparamo-nos com a
perspectiva de que Chimbote possa vir a acolher integralmente o que expresso está na
constituição vigente, mas o que encontramos verdadeiramente é o avesso do que deveria ter
correspondência com a realidade!
Igualdade diante da lei, sem discriminação por motivo de origem, raça, sexo, idioma,
religião, opinião, condição econômica ou de qualquer outra índole (ARROYO, 2009, p.17).
Aproximando nossa lente de aumento no tocante às relações humanas, laboriais e afetivas,
encontramos alguns casos expressos ou cifrados em Los Zorros, de que trataremos mais
adiante.
Quanto ao direito à propriedade: Tal direcionamento deveria efetivamente
corresponder à realidade. Mas, tal como Ángel Rama em A cidade e as letras expressa, há um
profundo vácuo entre o que se delineou, desenhou, imaginou, sonhou e o que a cidade
consegue ser ou ter (direito da pessoa e da sociedade). O Artigo 2 determina que toda pessoa
tenha direito à propriedade, à sua identidade étnica e cultural, já que o Estado reconhece e
protege a pluralidade étnica e cultural da nação; à paz e à tranquilidade, tal como gozar de um
ambiente equilibrado e adequado ao desenvolvimento de sua vida; direito à liberdade, sendo
proibidas a escravidão e a servidão .
O capítulo da Constituição Peruana de 1993, em relação aos direitos sociais e
econômicos, declara que o Estado deve proteger a criança; de igual forma a sua mãe, o
adolescente e os anciões em situação de abandono. A família também deve ser protegida.
Neste mesmo capítulo, dentre outros direitos, afirma-se que o Estado deve fomentar a
educação bilíngüe e intercultural, preservando manifestações culturais e lingüísticas do país, a
fim de promover a integração nacional. Em relação ao trabalho, é um dever e um direito,
sendo a base do bem-estar e o meio de realização da pessoa. Afirma também a Constituição
111
peruana que o trabalhador tem direito a (artigos 22 ao 28 do capítulo II) ter sua dignidade de
trabalhador reconhecida, não podendo nenhuma relação de trabalho limitar o exercício de seus
direitos constituicionais. Ainda em relação ao direito do trabalhador, expresso está na
Constituição que “el trabajador tiene derecho a una remuneración equitativa y suficiente, que
procure para él y su família, el bienestar material y espiritual.” (ARROYO, 2005, p. 29). O
pagamento ao trabalhador de seus benefícios sociais deve ter prioridade sobre qualquer outra
obrigação do empregador. A jornada máxima de trabalho é de oito diárias ou quarenta e oito
horas semanais.
Acreditamos ser vital para nossa análise que todos estes pontos constitucionais sejam
aclarados, com um foco de luz bem firme, para que, deste modo, possamos observar a cidade
de Chimbote, de forma mais neutra, isentos de sensações e sentimentos. Apenas mais alguns
pontos, ainda sobre o trabalhador: Seu direito à sindicalização e a garantia à liberdade sindical
estão asseguradas. No capítulo III, que trata sobre os direitos políticos e dos deveres,
expressa-se quem é considerado cidadão peruano : “Son ciudadanos los peruanos mayores de
dieciocho años.” (ARROYO, 2009, p.31)
No capítulo I, do Título II, “Do Estado e a Nação”, a Constituição diz que “La
República del Perú es democrática, social, independente y soberana” (ARROYO, 2009,
p.35). Uma das atribuições do Estado, dentre muitas, é garantir a plena vigência dos direitos
humanos; proteger o povo de ameaças contra sua dignidade e promover o bem-estar geral que
se fundamenta na justiça e no desenvolvimento integral e equilibrado da Nação (p.35).
Ninguém deve obediência a um governo usurpador (ARROYO, 2009, p. 36).
Em relação às línguas oficiais declara: “son idiomas oficiales el castellano y, en las
zonas donde predominen, también lo son el quechua, el aimara y las demás lenguas
aborígenes, segun la ley” (ARROYO, 2009, p.36). A Igreja Católica é reconhecida como
elemento importante na formação histórica, cultural e moral do Perú, ainda que o Estado
112
respeite “otras confesiones y puede establecer formas de colaboración con ellas” (ARROYO,
2009, p.37)
Quem são os peruanos? A Constituição diz que são os nascidos em território nacional,
tanto quanto os nascidos no exterior de pai e mãe peruanos. (ARROYO, 2009, p.37).
No tocante ao ambiente e aos recursos naturais, tema que nos concerne, já que nossa
obra trata sobre o mar e a pesca, afirma a Constituição que os recursos naturais, renováveis ou
não, são patrimônio da Nação. O Estado é soberano em seu aproveitamento, determinando a
política nacional do ambiente e promovendo o uso sustentável de seus recursos naturais,
sendo também obrigado a promover a conservação da diversidade biológca e das áreas
naturais protegidas. (Cap. II, p. 41).
Em relação à questão da propriedade, estipula que “dentro de cincuenta kilómetros de
las fronteras los extranjeros no pueden adquirir ni poseer, por título alguno, minas, tierras,
bosques, aguas, combustibles ni fuentes de energía, directa ni indirectamente ni en sociedad,
bajo pena de perder, en beneficio del Estado, el derecho así adquirido” (Constituição,1993,
p.43).
No Capítulo VI, que trata do regime agrário e das comunidades do campo e nativas,
declara que o Estado apoia o desenvolvimento agrário, garantindo o direito de propriedade
sobre a terra e que as terras abandonadas passam ao domínio do Estado. Afirma que as
Comunidades do Campo e as Nativas possuem existência legal e são pessoas jurídicas.
Afirma-se também que o Estado “respeta la identidad cultural de las Comunidades
Campesinas y Nativas.” (ARROYO, 2009, p.51).
Evidente está que detivemos nosso olhar, ao examinar a Constituição Peruana de 1993,
em pontos relevantes em relação à obra Los Zorros: definição de cidadão, quem são os
peruanos, o tema das línguas oficiais, a questão agrária. Consideramos extremamente
pertinente pensar nos direitos que porventura sejam desconsiderados, que se distanciem da
113
realidade e colocados como desnecessários, irrelevantes ou postos, propositalmente, distantes
do cidadão.
Veremos a seguir os conceitos de Violência Simbólica e Estado de Exceção e como
podem conduzir às suspensões dos direitos constitucionais do cidadão.
4.3 ESPAÇOS DE VIOLÊNCIA SIM (BÓLICA)
Giorgio Agamben, pensador italiano, autor de Homo Sacer: O poder soberano e a Vida
Nua (2004) e Estado de Exceção (2004), sugere que o Estado de Exceção não estaria mais
relacionando-se a momentos de emergência, mas sim, sendo utilizado como um mecanismo
que as autoridades passam a adotar para gerir, gerenciar, manipular e administrar a sociedade.
Agamben aborda que medidas que inicialmente seriam provisórias, ou seja,
“reservadas a situações limitadas no tempo e no espaço, tornam-se regra” (AGAMBEN,
2004, p.76). Seriam medidas excepcionais, emergenciais, especiais que, a principio, teriam
seu tempo de vida muito bem marcado. Porém, as autoridades ampliam seu tempo a seu bel
prazer. O Estado tem o poder no Estado de Exceção, de direcionar idas e vindas, controlar
comunicações, ou seja, limitar direitos de reunião, manifestações, podendo, inclusive, efetuar
prisões sem motivos aparentes.
Todo Contrato Social tem como objetivo manter a ordem social; seria um acordo entre
os membros da sociedade, pelo qual reconhecem a autoridade igualmente sobre todos, de um
conjunto de regras, de um regime político ou de um governante. Origem legítima dos governos,
das obrigações políticas dos governados ou súditos. Os nomes de Rousseau e sua obra O
contrato social (1762) estão intimamente relacionados ao que se está abordando. No contrato
social, os bens são protegidos e a pessoa, unindo-se às outras, obedece a si mesma,
conservando a liberdade.
114
Entendemos que Estado de Exceção é uma situação oposto ao Estado de Direito,
decretada pelas autoridades em situações de emergência nacional, como agressão efetiva por
forças estrangeiras, grave ameaça à ordem constitucional democrática ou calamidade pública.
Caracteriza-se pela suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais. Seria uma
situação temporária de restrição de direitos e concentração de poderes que, durante sua
vigência, aproxima um Estado sob regime democrático do totalitarismo. Em situações de
exceção, o Poder executivo pode, desde que dentro dos limites constitucionais, tomar atitudes
que limitem a liberdade dos cidadãos, como a obrigação de residência em localidade
determinada, a busca e apreensão em domicílio, suspensão de liberdade de reunião e associação
e a censura de correspondência. São medidas excepcionais que se tornam normais. Algo que
deveria ser provisório passa a permanente; de exceção, à regra. O Estado passa a controlar não
somente o prisioneiro, os criminosos, mas o cidadão comum. Estado de exceção sugere
situações extraordinárias surgidas num momento de emergência. O governo passa a apropriar-
se desse parâmetro para, com suas garras, usufruir de direitos que não lhe seriam possíveis. Os
cidadãos são submetidos a todo tipo de degradação, ao abuso decorrente da situação de
exceção. O Estado passa de protetor a terrorista, rompendo o contrato social que havia sido
estabelecido. A ascensão de sistemas totalitários na Europa encaminha grandiosa civilização a
atitudes de barbárie impensáveis. Vidas são desmontadas e arrastadas após ruptura radical do
contrato social. Os Estados de Exceção fazem surgir a desordem do mundo. São alterações
radicais da vida cotidiana, instaurando o horror.
O que é terrível é que as fronteiras passam a inexistir. O que deveria ser considerado
grandiosidade, organização, desenvolvimento, avanço, assume a faceta de devastador,
presença de mal, opressão. O contrato social “preconizado” por Rousseau se rompe. No
contexto peruano, mais precisamente, o resultado desta pseudo-modernização é a
transformação de um balneário na década de 1950 em um charco, um pântano de águas negras
115
e céu de igual cor, gente violenta, assustada, hostil. Chimbote, de oásis, local aprazível, se
torna um ambiente de odores fortes e ar pesado. Constrói-se uma forma lógica da organização
de massacres.
A obra apresenta a relação entre cultura e regressão bárbara, violência extrema e uma
aparência de normalidade e rotina na vida da cidade. Há forte ruptura radical do contrato
social, especialmente no trecho em que revira-se o cemitério com seus habitantes, para, de
forma completamente insensível, desumana, caótica mesmo, retirá-los de sua residência e
transportá-los para um novo local, sem o respeito que se deveria ter pelos mesmos.
Consideramos que, de certa forma, em Los Zorros, ocorre algo semelhante ao descompasso
presente em um Estado de Exceção.
A temática da “exceção” foi tratada, sob diferentes enfoques e em variados contextos,
no decorrer do século XX. Walter Benjamin, em Teses sobre o conceito de História, pensa em
um Estado de Exceção Permanente quando se trata dos oprimidos e vencidos da História. O
progresso transforma-se em sinônimo de catástrofe, que vai deixando ruínas em sua trajetória;
os cidadãos são submetidos a todo tipo de degradação, ao abuso decorrente da situação de
exceção e o Estado passa de protetor a terrorista.
Pensar em Chimbote e em sua organização precária, insuficiente, faz-nos recordar,
ainda, o escritor alemão W. G. Sebald, com sua obra Austerlitz78 (2008). O autor nessa obra,
como em Os imigrantes (2009), nos conduz a magníficas construções e esplendorosas
bibliotecas (centro de todo o conhecimento humano). Todavia, a partir de Adorno, com a obra
Dialética do Iluminismo, nos colocamos a refletir como todo um engrandecimento pode levar
ao nada, ao vazio, ao abismo. Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido disseca como a
78 Obra que tem como principal personagem um professor que explora uma estação ferroviária, coletando material para pesquisas, quando é tomado por uma onda retrospectiva, que o faz relembrar a arquitetura da era capitalista. De posse de sua máquina fotográfica, percorre o continente europeu, numa imersão em memórias individuais e coletivas.
116
educação, faceta desta cidade letrada, pode oprimir, se não se favorece que cada um possa
expressar-se, e, desta forma, conduzir ao silêncio.
Pierre Bourdieu (1930-2002), 79 prestou serviço militar na Argélia e ministrou aulas
nesse país, o que lhe possibilitou aproximar-se de uma realidade que desconhecia.
Desenvolve, assim, uma trajetória voltada para explicação sociológica da dominação social e
cultural. A partir de análise de tribos africanas, em sua obra O poder simbólico, num grande
trabalho etnológico,80 Bourdieu observa as que vivem à margem da sociedade moderna, num
grande processo de aculturação (vide capítulo II) e investiga dentre outras questões, o
conceito de região.
Quem estabelece a fronteira, o limite? Quem o legitima? Quem consagra o que é
sagrado? Observamos na obra em questão que o poder legitimado é aquele que possui nome
estrangeiro, que manipula o capital. Afirma o teórico que a “confusão dos debates em torno da
noção de região e, mais geralmente, de “etnia” ou de “etnicidade.” resulta em para, de que a
preocupação de submeter à crítica lógica, os categoremas do senso comum, emblemas ou
estigmas” (BOURDIEU, 1992, p.112). Há um jogo de imposição, de uma visão de mundo
social. Manipula-se o que se deseja que seja visto e se faz acreditar ao outro nessa construção.
Impõe-se a definição legítima das divisões, afirma Pierre Bourdieu, que são as manifestações
sociais destinadas a manipular as imagens mentais. De acordo com Bourdieu, a fronteira, esse
produto de um ato jurídico de delimitação, produz a diferença cultural do mesmo modo como
é produto desta.
Concebeu ainda o conceito de violência simbólica, onde a produção simbólica irá
legitimar as forças, dominando, refletindo gostos de classe e estilos de vida, gerando uma
79 Importante sociólogo francês, que contribuiu para o pensamento sociológico do século XX, desenvolvendo inúmeros trabalhos sobre a temática da dominação, influenciando, com seu legado, várias áreas do conhecimento, tais como História, Literatura, Educação, Antropologia, Sociologia. 80 Tal como José María Arguedas, que seguiu sua vida como etnólogo e antropólogo por haver vivido uma realidade próxima à cultura quéchua, Bourdieu, a partir de sua experiência argelina, faz-se sociólogo e etnólogo.
117
distinção social. A violência simbólica ocorre através da coerção, da intimidação, de palavras
ofensivas. Ultrapassar limites, para Pierre Bourdieu, significava sair da “cidade dos sábios” e
entrar no mundo que gira incessantemente ao redor, a serviço de questões sociais.
De acordo com Maria Drosila Vasconcelos,81 Pierre Bourdieu tenta “desvendar o
mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como “naturais” as representações ou as
idéias sociais dominantes. A dominação, segundo a crítica literária, ocorre pela “aceitação das
regras, das nações, da incapacidade de conhecer as regras de direito ou morais, as práticas
linguísticas.” (VASCONCELOS, p.4).
O Poder Simbólico é o conhecimento firmado no reconhecimento, interferindo no
poder concreto, real, físico, sendo o poder que “consegue impor significações e impô-las
como legítimas”, afirma o professor José Carlos Correia82.
Pierre Bourdieu, ao analisar a idéia de região, reflete sobre o reconhecimento de uma
autoridade, considerando que “ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e
em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrátrio, sanciona-as,
santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à
natureza das coisas “naturais”. (BOURDIEU, 1992, p. 114)
Na obra que está no centro de nossa investigação, Los Zorros, há uma
delimitação/separação evidente entre o patrão e os pescadores: “ - Yo soy hijo de puta, patrón.
Tú sabes” (ZZ, p.25). Inúmeros vocábulos se referem a alguém que domina o capital; é o
poder legitimado: “cuando ordenan de New York a Lima y de Lima a Chimbote.” “Poquitos
mandan en todo el universo, cielo y tierra, agua y mar”. A exploração trabalhista é
evidenciada nas relações entre os trabalhadores relacionados ao sindicato. É o estrangeiro que
detém o poder: "El polaco capetán de mina ha querido hacer imposición de fuerza" (ZZ,
81 Da Université Lille 3, França. 82 Da Universidade da Beira Interior, em Portugal.
118
p.149). A opressão é um tênue fio que perpassa toda a narrativa e envolve a todos os
personagens de alguma forma.
Roland Barthes83 afirma que “el poder no es sólo lo que oprime, lo que es opresor,
sino lo que es oprimido: donde quiera que yo me sienta oprimido se hace presente una parte
cualquiera del poder”. Em relação à atuação do intelectual na sociedade, o Estado o considera
inútil mas perigoso: “todo régimen fuerte quiere controlar sus huelgas. Su peligro es de orden
simbólico; es tratado como una enfermedad vigiada, un “apéndice” que incomoda, mas que es
conservado para fijar en un espacio controlado, las fantasías y las exuberancias del lenguaje.”
Em Los Zorros, há uma crítica clara à modernização, como se pode ver no fragmento
seguinte: “pero el tipo de ambiciones, anhelos, y empuje del hombre precipitadamente
modernizado…” (ZZ, p.174). O barro, dos médanos, contrapõe-se ao casco urbano (centro
urbano), aos hotéis, por exemplo.
Jean Jacques Rousseau, em sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, diz como concebe “duas espécies de desigualdade: a natural
ou física, e a moral ou política, porque esta depende “de convenção, e que é estabelecida, ou
pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens.” A desigualdade natural, segundo
sua visão, seria aquela “estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da
saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma” (ROUSSEAU, 2004,
p.29).
Pensando a Modernização, poderíamos levantar uma série de pontos positivos. Porém,
na obra analisada, a cidade de Chimbote é levada à decadência física, moral, cultural, política
por essa mesma modernização, que não foi bem conduzida com suas doenças, venda de
corpos, violência simbólica, exclusão, deslocamento de migrantes. A figura da prostituta,
como aquela que se vende, que põe o seu corpo à disposição de quem tenha bens materiais
83 Firmou-se como um dos pensadores mais originais da geração que sucedeu a Sartre e a Camus.
119
e/ou favores a oferecer-lhe, exibe bem esse mecanismo: “casi todas permanecían con las
piernas abiertas, mostrando el sexo, la “zorra” 84 afeitada o no” (ZZ, p.40). Ao evidenciar que
não seriam todas, Arguedas lança uma luz tênue e pequena, mas firme possibilidade de
caminhos, de picaduras 85.
Chimbote, cidade-personagem, aparece como alguém que é sugado, explorado,
devastado, possuído. A violência desponta no tratamento entre os pescadores, no prostíbulo,
nas diversas relações: “...el aire lleno de la fuerza, de la podredumbre que llegaba del humo,
de los basurales, de la bocaza agonizante de los alcatraces chimbotanos.” (ZZ, p.33). A figura
de um alcatraz, ave de rapina, desponta como grande devorador de vidas.
Arguedas desfia inúmeros personagens, os quais, de distintas formas, estão
relacionados ao mundo do dinheiro, da coerção. A cidade de Chimbote gira em torno do
dinheiro, do consumo, da troca, do desenvolvimento desenfreado, da decadência, da
enfermidade individual e local. As ruas estão doentes, com chagas expostas, com indivíduos
depreciados por outros e/ou si próprios, como vermes ambulantes. A figura de animais
rastejantes relacionados à morte, à devastação (vermes) e a animais carnívoros, os quais
destroçam suas presas (abutres) estão presentes, de forma alegórica ou não, por toda a obra. A
violência de forma velada ou evidenciada, em diversos níveis de leitura, grita, sussura,
oprime, toca, cala.
J.M.A. descreve a degradação de Chimbote, com riqueza de detalhes:
El olor de los desperdicios, de la sangre, de las pequeñas pisoteadas en la bolichera y lanzadas sobre el mar a mnguerazos y el olor del agua que borbotaba de las fábricas a la playa hacía brotar de la arena gusanos gelatinosos; esa fetidez avanzaba a ras del suelo y elevándose. (ZZ, p.40)
As relações são de forte conflito, ora entre quem manda e quem tem de obedecer, ora
por diferenças étnicas. Há uma clara linha divisória neste mundo chimbotano: de um lado
84 Órgão sexual feminino. 85 Lembrando o termo usado pelo professor Rômulo na abertura do Colóquio “A herança de Arguedas aos 40 anos de sua ausência”, ocorrido na UFMG, em 2010. O termo poderia ser lido como caminhos na superfície ou uma abertura que atravessa algo.
120
“negros, zambos, injertos, borrachos, cholos insolentes o asustados, chinos flacos, viejos” e de
outro “pequeñas tropas de jóvenes españoles e italianos curiosos, caminaban en el “corral.”
(ZZ, p.40).
5 VOZES DA BARRIADA: UTOPIA DE INTEGRAÇÃO VERSUS
IDENTIDADES CONFLITIVAS NA CIDADE ARGUEDIANA
Soy el cantor de América autóctono y salvaje; mi lira tiene un alma, mi canto un ideal
121
Blasón-José Santos Chocano86
Neste capítulo, inspirados pelas reflexões de Arguedas sobre uma nação que surge
oprimida pela dominação e exploração e, talvez mais ainda, pelo desprezo social, lançaremos
um olhar mais atento e observador sobre a cidade de Chimbote que tanto nos instiga, nos
clama, gritando suas problemáticas. Temos a pretensão de enveredar brevemente pela cidade
de Chimbote a fim de entender parcialmente o que ocorre na representação desta urbe na obra
Los Zorros. Pensando na Geografia Física (clima e relevo), na Humana (sociedade e relações
de trabalho, como também a economia) e a Geografia Política (Estado e estrutura do Poder),
faremos a radiografia da cidade de Chimbote.
5.1 DESCORTINANDO O VÉU DA CIDADE87
A cidade compõe-se de vinte e sete barriadas, com uma população beirando a cento e
cinquenta mil habitantes e grande falta de infra-estrutura de absorver quantitativo de
migrantes e seus familiares. Cada uma possui uma Associação de Moradores. Existe uma
Praça de Armas, a fundacional. La Esperanza Baja, de acordo com alguém do povo, já foi
urbanizada. Até o nome do bairro é sugestivo, indica a falta de perspectiva diante da situação
que se vive. Esperanza Baja está em ritmo de progresso, com luz elétrica (de motor).
Barriada El Progreso, Barrio Progreso, La Esperanza Baja. A cidade foi erguida sem o
devido planejamento “todo recién hecho, todo sobre tierra”; “Barrio “21 de abril”, sin luz y
sin agua” (ZZ, p.58). Há um bairro específico para os operários da Fundición, considerado
ironicamente ou não como elegante, já que possuía luz elétrica.
86 Exposição na Casa de Literatura, Centro Histórico de Lima, Junho de 2011. 87 Gusmán Aranda investiga a história da cidade e como se deu seu desenvolvimento. Vide tópico respectivo no final deste capítulo.
122
Chimbote contrapõe-se à cidade de Cajamarca, descrita como aristocrática; apresenta
um ambiente pobre, destituído de possibilidades para uma grande parcela da população. A
linha do trem é uma linha divisória entre o mercado e a rua. Os trens eram bastantes velhos,
“descoloridos y carcomidos”; a locomotiva, metáfora de modernização, aqui é apresentada em
seu avesso: conduz à morte. Esse veículo passa e o mercado, que é móvel, transitório, deve
ser retirado; o “ferrocarril” divide “en dos la calle y el mercado” (ZZ, p.58).
A baía de Chimbote, que possui ilhas brancas, naquele momento, final da década de
60, atraía navios altos. Tudo era mudança, novidade, até mesmo a instalação de torre
transmissora de TV. Toda essa transformação ocorrida em Chimbote, em torno de 10 anos,
atraiu olhares de pessoas longíquas. Esclarece-se que o tempo decorrido, entre cinco e dez
anos, refere-se a tantas transformações ocorridas na cidade. A fumaça, tão perceptível, e o pó
das fábricas são sinalizados a todo instante, por esse narrador que se posiciona como que
estupefato diante do quadro, tal qual Pico Largo88, ao deparar-se com seu sonho diluído,
desfeito.
Chimbote, decidamente, é a grande protagonista desta narrativa. Não há personagem
que não se refira a ela, como algo novamente relevante, central para a obra. De forma oblíqua,
o narrador lança luzes, não de forma evidente, mas de maneira cifrada, para que a observamos
desde sua história, seu passado, suas transformações, seu físico/geografia, suas crenças. A
presença de água é marcada pelo “río Santa”, próximo e caudaloso. A dificuldade de obter
água é grande; um poço abastace a barriada.
Uma das plantas existentes na região é a totora, a qual também compõe o eco-sistema
da Ilha Uros, no Lago Titicaca, em Puno89. Ora pode ser o fundamento da ilha, trançada, ora
das habitações; compõe também as roupas (agora especialmente para os turistas), servindo
também de alimento e formando parte das embarcações (vide foto nos Anexos). Uma delas
88 Vide o conto Del mar a la ciudad, de Óscar Colchado. 89 Quando lá estive, um dos serranos contou como essa planta possui um sem-número de possibilidades para a subsistência da gente que habita aquelas ilhas. Vide Anexo 4.
123
chama-se Sansión I. Esclarece-se que a anchoveta (vide glossário) é reconhecidamente um
bem bastante valioso para a economia peruana. Naquele momento específico, esse produto
teve aceitação surpeendente no mercado interno e no externo. Todo o movimento incessante,
frenético ao redor das fábricas de farinha, o comércio, a poluição, o entrar e sair de operários
e pescadores, gera um verdadeiro “frisson”, movimento de entrada e saída do cais. O narrador
aponta para, de maneira desconcertante, enlaçar novos personagens ao movimento. O leitor é
tragado pela narrativa dilacerante, detalhista. É uma cidade que não descansa, distintamente
de outras cidades litorâneas, que evocam tranqüilidade. Ela é uma antítese de si mesma, de há
de 40 anos quando era balneário.90
O Capitalismo traduz o ar que se respira na cidade de Chimbote: muita produção,
numa corrida desenfreada pelo dinheiro; pouco tempo para qualquer outra atividade, inclusive
as básicas, como, por exemplo, comer. As condições de moradia são miseráveis, sem
estrutura, situação muito bem expressa com o seguinte fragmento da obra: “con el agua
guardada en un cilindro gasolinero, se lavó los ojos” ou com este: “los tres hijos dormían en el
suelo sobre sacos vacíos de harina de pescado” (ZZ, p.48).
O panorama da situação, de acordo com um dos personagens, é de extremo
desequilíbrio: "somos siete blancos contra tres rojos". Ou seja: paira sobre o trabalhador uma
grande desigualdade de forças; a maior está com os que possuem os meios de produção, a
língua do dominante, o poder. De acordo com outro personagem: "El trabajo vencerá algún
día al capital con el educación" (ZZ, p. 113). Um terceiro afirma que há que liberar-se,
libertar-se, quebrar o jugo, a opressão: "Que salga del pulmón el aire guardado; como de un
cuerpo alumbrado que salga, como la liendre de la pancita del piojo, como el huevo de sapo
que ha de ser aqollo negro con rabo de cometa..." (ZZ, p.109).
Evidencia-se um total desprezo em relação à determinada profissão (pescador):
90 Vide anexo 4.
124
Si el novio se hubiera presentado, honradamente, como pescador, lo hubieran echado a patadas o quizás sólo a fuerza de maldiciones. Ya aceptado, porque gastaba como verdadero mecánico de primera, se casó, a pesar de que hablaba el castellano a lo serrano rudo" (ZZ, p.96); "que eran y son la más bestia mezcla de mierda y patriotismo... (ZZ, p.98).
Ou determinado origem:
Señor, los cholos son mierda, los negros zambos - chinos son mierda, yo también soy mierda; el yugoslavo no es mierda el español no es mierda(...) Maxe secretario no sé si es mierda (...) El obispo yanki no eram mierda, no era mierda yo Teódulo Yauri no era mierda, no era mierda lo hice basura , ccanucita, caballero, yo lo hice mierda de perro. El Perú costa, cómo me jode, cómo me jode el Perú sierra, cómo me aburre , cómo me aprieta el Perú selva, chas, chas, chas cómo me pudre, mucho me aprieta... (ZZ, p.111)
Há muitas metáforas, como, por exemplo, em relação à fumaça das fábricas, como se
fosse una liberação de tudo que impede o caminho, o desenvolvimento pessoal: "Del pecho de
todos nosotros. Es rosado, se eleva contra todo, como si tuviera sangrecita en su incierta
forma." (ZZ, p.114).
Ainda que haja os três poderes na obra, o econômico (comércio, indústria) e o
religioso (clero, bispo, padre) são mais notórios que o político. Companhias estrangeiras
possuem grande influência, mas também causam a doença, tal com a Peste Bubônica. Ocorre
mistura de poderes (civis e eclesiásticos) “en nombre del Padre, del Hijo, del Monicipio y del
Subprefecto, pues.” (ZZ, p. 107).
Há um sindicato de pescadores de Chimbote, que concentra o poder de representar
uma classe profissional e lutar por seus direitos, perante a sociedade. Ocorre uma rivalidade
entre dois representantes dos pescadores: Eberto Solano e Teódulo Yauri, pela presidência do
sindicato. Há, também, mais de uma companhia de pesca. Pensamos que haja, por
conseguinte, rivalidade, competição. Tudo isso expresso, nos deparamos com um ambiente,
dentre outros motivos, repleto de relações de conflito.
125
Quem são os líderes das “barriadas”? Invasores de terra para moradia, homens unidos
aos serranos recém chegados ao porto que conquistam espaço: “Tantas aguadas pestilentes y
zancudientas, como médanos y tierras sembradas” e desertos, mais próximos à cidade, ao
“casco urbano”.
É um grande jogo de poder e busca de ascensão social. Braschi, patrão de lanchas, que
quis ser prefeito, é equiparado a Caim, por suas traições e iras.
A cidade letrada em Chimbote está nas mãos do clero, presença onipotente na cidade.
Há forte presença da religião: as cruzes (Esteban de la Cruz), a Bíblia, padres, bruxos, a
procissão ao cemitério, alusão ao nome de Jesus (Jesusa). Presença de padres comunistas:
Maxe e Padre Cardozo (norte-americano). Muitas referências a persoangens da Biblia:
Sansão, Lucifer, David, Esaías. Os poderosos, em especial, Braschi, manipulam os serranos
de tal forma que os fazem dependentes de seus costumes, do dinheiro:
como no saben tener tanta plata, también les haremos gastar en borracheras y después em putas"/ "empezaron a fiar a los pescadores con matrícula; les fiaron desde lechugas y camotes hasta detergentes..."(ZZ, p.103)/ "murieron de hambre patos, gallinas, perros, y algunos niños también"/ "Adiestramos a unos cuantos criollos y serranos, hasta indios..." (ZZ, p.104) / "cochino, ocioso, traicionero. (ZZ, p.149)
A língua separa, aparta, dificulta a comunicação; todos os habitantes são bilíngües mal
sucedidos. O quéchua consegue, de acordo com Arguedas, mais que o espanhol, representar a
natureza. Seu espanhol é transculturado: cheio de músicas, símbolos, contos. Os personagens
são portadores de uma carga linguística distinta daquela que se tem como padrão.
A reza realiza-se em quéchua, não em espanhol, por uma prostituta, Paula Melchora,
que, acreditamos, seja índigena, já que são eles a dominar essa língua. Os líderes da Igreja em
Chimbote são todos estrangeiros norte-americanos. Não somente a Igreja Católica tem voz na
narrativa, mas a do evangélico também: “dijo un yerbatero, vendedor de medicinas,
evangélico” (ZZ, p.60), ainda que a presença da Católia seja forte: “En nombre del padre y del
hijo y del Espíritu Santo” (ZZ, p.56). O clero utiliza o latim para realizar sermões, bendições;
126
é uma língua desconhecida dos serranos; não articulavam bem a língua espanhola, ficando a
sintaxe comprometida (vide p.64). O castelhano, o inglés, o quechua e o latim coexistem no
mesmo ambiente: "cansaba boscando palabra castellano para contar bien... tanto pujando, pa
apriender castellano, poco no más hey cosechado... Me hermano menor, ahistá, lindo habla
castellano... ahora, no quiere hablar quichua."
A cidade avança de maneira desordenada, existindo “más moscas que comida” (ZZ,
p.88) ou no trecho "en los mercados que empezaron a aparecer sin regla ni orden..." (ZZ,
p.93). Em relação à atividade econômica, a distribuição da renda é bastante desigual:
On centavo para ti, on centavi para mí, ochinta para patrón lancha, vente para piscador; mellón, melloncito para gringo peruano extranguero. ¡Baila no más, continta! Yo, jodido, obriro eventual, juábrica”. Ocho semanas, después patada culo, ¡fuera! (ZZ, p.48)
Claramente nos remete à situação do migrante que não possui os direitos trabalhistas,
como, por exemplo, ao pescador o horário de alimentar-se: “se detenían a devorar
anticuchos...”. O termo devorar pode relacionar-se ao ato de comer como animal, sem regras
ou pode indicar extrema pressa, necessidade de não perder tempo, nem mesmo com o próprio
corpo e suas necessidades primárias. A visão que se tem de Chimbote é que facilmente
manipula-se a população: “Pero dice, don Ángel, que aquí, en Chimbote, a todos se les borra
la cara, se les asancocha la moral, se les mete en molde” (ZZ, p.87).
Historicamente, Chimbote foi um porto algodoneiro91. A exploração do mar da cidade,
com seu “ouro” que é a anchoveta, ocorre de maneira desenfreada, descomunal: “ciento
cincuenta toneladas anchoveta.” (ZZ, p.78). Em Chimbote, há cerca de 50 fábricas de harina
de pescado; existem dois tipos dessa farinha: a “standart” (a sardinha, por exemplo) e a mais
91 O escritor Jaime Gusmán Aranda, em seu livro trata da história de Chimbote (vide tópico final deste capítulo). Optamos por não unir as parte para permitir sentir a representação literária de Chimbote pela pespectiva de Arguedas. A cidade real será tratada, então, por Gusmán Aranda.
127
cara, somente a partir de anchovetas. Tal como Paracas, com as Islas Ballestas, Chimbote, em
sua baía, possui ilhas “guaneras”.92
As fábricas estão localizadas no mar do “27 de octubre”, diante da limpeza do céu e a
pestilência do ar, sendo este o elemento mais em evidência. Estes elementos modernizadores
funcionavam sem descanso, pela madrugada adentro: “Las llamas de la fábrica y el humo de
las varias chimeneas...Era casi la medianoche.” (ZZ, p.85). A modernização ocorreu de
maneira dura: era o nascer da pobreza: “Bazalar medía la extensión de las barriadas que había
visto aparecer, crecer a palo y sangre…” (ZZ, p.67). A idéia do que as fábricas despejavam
nos ares: “El fluxo de los colectivos y triciclos que pasaban y volvían bajo los remolinos de
humo”. (ZZ, p.77). O que envolve Chimbote é o “menospreciado cerro de arena.” (ZZ,
pág.77).
5.2 DIFERENTES VOZES NO CENTRO DE CIDADE
O narrador nos oferece detalhes mórbidos através da descrição do ambiente e dos
personagens. São verdadeiros anti-heróis, já que são tão somente criaturas desvalidas.
Recordamo-nos de personagens que ganharam espaço na literatura brasileira, tais como:
Macabéia (A hora da estrela, de Clarice Lispector) e Fabiano (Vidas Secas, de Graciliano
Ramos), por serem vozes que inundam o espaço, com suas angústias, suas dores, suas
perspectivas.
No Capítulo I da obra, surgem vocábulos que identificam o outro de forma bastante
agressiva: “hijo de puta, maricón, mudo, malnacidos, di uno u otro lado, mierda” (ZZ, p.34).
Há a consciência de saber-se explorado, usado, infiltrado, possuído, diminuído: “Buscaba a su
mujer legítima que era machucada ya por uno, ya por otro. Ella es puta. Billetes, relojes,
92 O termo refere-se ao produto guano, fezes dos pássaros, que, no mercado exterior, possui grande valor, já que é um poderoso fertilizante.
128
encendedores finos, hasta revólveres sirvieron de moneda esa madrugada”. Vocábulos
ofensivos, que degradam, proliferam no texto. A noção de barbárie é muito forte. É inevitável
não mencionar o clássico argentino Facundo, de Sarmiento, que aponta para as margens,
contrapondo-as ao centro. Aponta-se a selvageria da massa, o ser humano é animalizado; há
uma clara depreciação diante da alteridade: “Ni las moscas de las más sucias chicherías de los
barrios de las ciudades andinas hacían tanto negro baile”. (ZZ, p.29) Quando os vocábulos
caracterizam os personagens, há também uma depreciação do mesmo: “Hambrientos por el
hueco, hambrientos93 por el pincho, así también para el negocio. Nunca por nunca llenan su
gusto”. (ZZ, p.28).
As enfermidades são associadas à presença do estrangeiro, através da expressão
quéchua “onquray onquray”, que quer dizer enfermidade de enfermidade. Os adjetivos
referentes a eles são “fascineros”, “engañadores de muchachas”.
Inundam a escritura inúmeras reflexões sobre aparência e essência; uma grande busca
pelo vital, o verdadeiro, o que realmente importa: "El evangélico no chupa, no miente, es
limpio-dijo. Pero... su aliento, quiero decir, su vida, tomado en su completo, es desabrido."
(ZZ, p.150). O que aparenta é aquilo que realmente existe?
Grande parte das profissões é oriunda da miséria. Personagens são prostitutas,
pescadores, mineradores, sindicalistas, piões, operários, comerciantes, mineradores,
mecânicos. A cidade é composta por todas as origens: serranos, “criollos”, imigrantes, clero,
os poderosos. Há muitas pessoas vagando pelas ruas. Chimbote reúne todas as raças, todos os
credos, todas as línguas. As moscas fazem parte do cenário. A povoação da cidade era
incalculável: “miles de gente” (ZZ, p.58).
O leitor tem de conectar os personagens e entender suas relações. Há tantos que seria
impraticável optar por fazer o perfil de cada um. Suas trajetórias, anseios, objetivos se
93 O grifo é nosso.
129
confundem ao mesmo tempo que se assemelham. Optamos por Moncada, Don Diego, Crispin
Antolín, Tinoco, porque, em certa medida, suas vozes ecoaram mais fortemente em relação à
questão da cidade de Chimbote no momento de nossa escritura, na realização de nossa
investigação. Certamente, outros personagens irão compor trabalhos futuros.
Vamos dar destaque ao intelectual travestido de mendigo, que tem consciência de sua
loucura; não necessita que o qualifiquem. Muitos o chamam louco, ele também utiliza o
mesmo qualificativo em relação a si. Por que acreditará que seja um? O que o distanciará da
linha do equilíbrio? Tentaremos traçar seu perfil e entender sua loucura frente à cidade.
5.2.1 Moncada: A rua expõe sua versão dos fatos
Vale ressaltar que Arguedas foi à cidade de Chimbote e fotografou o local com seus
diversos habitantes. Apreciou tanto um deles que o incluiu em sua narrativa: Moncada94
(nasceu no real e entrou para a narrativa ficcional). O capítulo II tem justamente como centro
Moncada e suas insanidades, como também um episódio, vital para nossa observação, que é a
procissão dos mortos. O principal local por onde prega é a Praça do Mercado Modelo, o
principal do porto. Identifica-se como negro, antes como mulato, depois como “negro
cochino”, numa gradação crescente: “ - Claro que soy negro cochino! Yo hociqueo el suelo, la
arena barrosienta, caliente que está en la mar del “27 de octubre”, fábricas. Hociqueo el aire
pestoso, el limpio cielo también. (…)Yo era el gallo cansao, amigos. Kikiriki! Ya resucité.”
(ZZ, P.60). A figura do galo aparece como um dos muitos animais presentes naquele lugar,
mas seu sentido vai deslocando-se, adquirindo outras nuances, até chegar à grande
metamorfose. O galo é Moncada; o louco é o galo da situação, do local, daquele contexto.
Novamente há uma referência à passagem bíblica em outro fragmento: gallo de la pasión.
94 De acordo com alguns habitantes de Chimbote, a figura de Moncada dividia as opiniões: alguns o viam como louco, enquanto outros diziam que somente atacava o Estado, as autoridades. Um dos moradores da cidade entrevistado diz que numa sociedade que lê bastante, não há espaço para manipulação. Essa conclusão nasceu da discussão ao redor da figura de Moncada.
130
Moncada é a presença do intelectual na narrativa, entretanto, às avessas, numa grande
dessacralização do conceito. Surgem na narrativa suas múltiplas representações, várias
verdades, numa luta quixotesca. Vários são personagens desta obra que possuem voz; um
deles é Moncada. Ele discursa, num grande monólogo. Este zambo (descendente de negro e
índia, ou vice-versa) carrega permanentemente uma cruz. Admite ser ladrão, mas não de
questões materiais, se não de “la amistad, el corazón de Dios...”. A todo instante, seu discurso
se remete a Deus: “Dios vino descalzo como él” (ZZ, p.55). “En nombre del Padre y del Hijo
y del Espíritu Santo…” (ZZ, p.56). Considerado toureiro de Deus: “Yo soy lunar de Dios en
la tierra, ante la humanidad” (ZZ, p.53).
O louco das ruas tinha como profissão ser pescador, também, como a maioria da
população. O narrador o coloca como insano esporádico; quando usufrui de sua sanidade
exerce sua atividade pesqueira. O narrador afirma que seus dias de desvario não eram
constantes. Moncada oscila entre a sanidade e a loucura; ora comporta-se invisível dentro de
qualquer grupo ou situação, ora “abraça” um personagem e vive aquele ato: “Dio media
vuelta, militarmente, bajó su cruz, como si fuera una escopeta, la apuntó hacia el mausoleo”
ao referir-se a um estrangeiro já morto, um japonês: “Forastero! Te mato a ti, mato a todos!”.
(ZZ, p.64). Oscila entre vários personagens: ora é presidente, ora comerciante, ora pescador,
ora mulher grávida. A teatralização e o mascaramento são incessantes; vive distintos papéis,
pois a liberdade das ruas e praças o faz transitar por diferentes possibilidades: presidente da
república, pescador descalzo, comerciante turco ou “mujer preñada ya próximo a parir” (ZZ,
p.56); nada o cerceia. Em sua boca tudo é sugestivo, simbólico, possui outra faceta, é irônico.
Sugere que há uma especificidade do espanhol falado por eles, não se assemelha ao que é
falado em outro local.
A rua é seu cenário; sua platéia é formada pelos transeuntes. Seu pagamento é a
atenção que lhe dedicam. A cruz é sua companheira inseparável: compõe seu corpo, como
131
continuação dele, como acessório de um ser, de forma indissolúvel. Esse objeto é símbolo da
religião cristã, podendo ser sinônimo para sofrimento, aflição, infortúnio; antigo instumento
de suplício, onde eram pregados os condenados à morte. A todo momento a questão religiosa,
cristã, católica, se faz presente através do elemento cruz, de expressões que remetem a frases
proferidas por Jesus. A figura de Jesus aparece relacionada ao louco, a partir de Moncada, em
seus discursos, nascimento, nas vestes, em sua simplicidade. O narrador insiste em referências
à cruz e ao sudário. Numa perspectiva contextualizada, pode-se pensar sobre a figura do
próprio autor numa reflexão em torno de seu próximo fim, como término de um ciclo
individual e/ou histórico/social. Moncada fala de forma muito dura de si mesmo,
menosprezando-se, talvez por ser um filho renegado pelo genitor.95Lucero de Vivanco/
Chile96 afirma que Moncada é a representação apocalíptica de Chimbote: a modernidade e sua
loucura.
A imagem do estrangeiro invade o discurso do louco Moncada e o faz demonstrar
grande ressentimento em relação a sua presença em solo peruano. As autoridades são atacadas
pela voz de Moncada, já que poderia expressar-se por ser considerado louco. Expressões em
inglês são adotadas na representação de Moncada, pela marionete. Claramente, apontam à
submissão do povo: “Los extranjeros son como fascinerosos engãnadores de muchachas. Le
ofrecen de todo y después que la han aprovechado, palo y escupe. Pero ahora, las criaturas de
las muchachas ya están como para retrucar el palo. ¡Qué vayan los extranjeros.” (ZZ, p.56-
57). O estrangeiro, em suma, é atacado por ele: “Nosotros no semos sino sirventes de
extranjeros...” (ZZ, p.56). A ironia brilha em seu discurso: “Yo comulgo con usted – dijo- ,
Monseñor Ilustrísima Obispo Yanki de Chimbote, caballero, corazón o Conchino sangre
95 Pode-se, claro, elaborar diferentes leituras a partir da afirmação anterior. 96 Imaginario bíblico en la narrativa de José María Arguedas, Universidad Alberto Hurtado, Chile, Congresso, PUC/Lima, 2011.
132
inocente, negro y blanco” (ZZ, p.60). ‘...de fraile norteamericano gentil, caballero que no
pronuncia el castellano como es debido.” (ZZ, p.59).
No epílogo da obra, de maneira bastante sutil, Arguedas cita o mito de Huatyacurí (“El
héroe dios con traza de mendigo”) e nos leva a crer que Moncada representaria esse deus na
narrativa de Los Zorros. É alguém extremamente crítico, onisciente, onipresente, que
acompanha de perto cada situação.
Moncada, enquanto toureiro, não se deixa intimidar por aqueles que possuem o poder
instituído; tem ele próprio autoridade diante do povo (seu público é a gente simples que
freqüenta o mercado); é mulato, zambo, não é europeu. Tudo é uma grande representação;
uma dentro da outra, numa estratégia narrativa. Ele representa a ele mesmo, a partir de uma
marionete, afastando-se de si, a partir de comentários existentes sobre ele. O que é ficção
torna-se realidade. A realidade passa a ser representada. Fala de generais e presidentes.
Demonstra pena de si, através do sufixo de diminutivo e do termo “hijo”, aproximando-o de
suas dores.
Fernanda Adrianzén 97 diz que Moncada realiza representações bíblicas. Sua cruz é
uma vara mágica; é um Jesus Cristo do Terceiro Mundo. Seus espaços são a feira e o
mercado, espaços onde há maior nível maior de tolerância em relação à fala tão espontânea e
provocativa. Seu espetáculo é callejero. Cada capítulo é quase cinematográfico. A autora
analisou os espetáculos de Moncada, tendo como embasamento teórico Michel Foucault, pela
questão da loucura: “El loco recuerda a cada uno la verdad”. Moncada é mostrado de forma
grotesca, inclusive devido à presença da urina e da ingestão de vísceras de um galo, em plena
rua.
Quando fala sobre a Peste bubônica, parece usar uma imagem metafórica para a
introdução do Capitalismo no país. Tal enfermidade, a Peste, poderia significar o crescimento
97 El discurso del loco Moncada como representación del conflicto social reflejado en El zorro de arriba y El zorro de abajo, PUC/ Perú, 2011.
133
acelerado de Chimbote, uma rapidez da modernidade incompleta. Fernanda Adrizen interpreta
uma das encenações de Moncada, quando este utiliza fantoches, levando à idéia dos
indivíduos como títeres. Uma terceira performance analisa pela autora é quando ocorre a
ressurreição de um Gallo, remetendo o leitor à Santa Ceia. Aclara-se que o animal morre por
ter sido atingido por uma locomotiva, símbolo do progresso. A última performance de
Moncada, explorada por Fernanda Adrianzén, é quando o Louco se disfarça de mulher
grávida, fazendo uma clara referencia aos novos chimbotanos; não pertencem a ninguém. A
palavra e a performance atingem seu objetivo
Possui visão ácida, crítica, sobre o arenal, quando um personagem o presenteia com
um limão, “grande e reluciente, pa’la sed del arenal” (ZZ, p.61). Nada é dispensável em suas
palavras e atitudes. Tudo possui um grande significado no tocante aos que estão no poder e
aos que não o compõem. Tudo leva à violência sexual. Moncada observa as ações do poder
instituído como uma mácula, que fere a dignidade: “Dios, intranquilidad, Braschi arriba,
abajo, a la entrepierna...” (ZZ, p.57). Fala de si em terceira pessoa, distanciando-se de si.
Assume ser um “mono”. Utiliza jogos de palavras ‘El pescador pescado va al barrio La
Esperanza Baja. El loco ya está en el bolsillo”.
O verbo “hociquear”98está relacionado a si, diz Moncada. Antes que o digam, diz ele.
Há opiniões divergentes sobre ele: “loco de mierda”, “loco santo”, “el negrito pobre”. Em
certa medida, representa a cidade revolucionária, politizada, sem receio de gritar as dores suas
e de sua terra. É uma voz isolada que grita aos quatro ventos, diante de uma platéia.
5.2.2 A marcha dos mortos
98 Levantar a terra com o focinho; tropeçar; dificuldade insuperável.
134
Esse momento da narrativa é de especial atenção: o transporte dos mortos do cemitério
onde estavam instalados a outro, em local quase inacessível, próximo a um lixão (basural del
puerto). Vamos nos deter nesse episódio pois nos parece de extrema relevância em relação a
um dos tópicos de nossa pesquisa que é a desterritorialiação, a migração, o não-lugar. A
procissão das cruzes atravesa várias páginas da obra. Os pobres, afirma o narrador, foram
convencidos pelos poderes instituídos, “la municipalidad, la Beneficiencia, la policía, los
párracos habían ordenado y persuadido” (ZZ, p.62). É uma gradação do poder instituído. A
gratuidade foi oferecida como moeda de troca. O momento da morte, do enterro e todo o
ritual que cerca esse momento, em diferentes civilizações e/ou culturas, é de suma
importância. “serían enterrados los pobres, gratuitamente, sin costo parroquial, municipal ni la
Beneficiencia” (ZZ, p.63). A proposta que lhes foi feita parecia referir-se ao futuro, aos
mortos novos, não aos que já estavam com sua situação definida, que já haviam sido
sepultados. No entanto, era isso que estava ocorrendo: “Las asociaciones de Pobladores de
cada barriada habían sido notificadas. Nadie les había dicho que se llevaran sus muertos ya
sepultados en el médano del cementerio recién amurrallado, solemnizado con el arco y la cruz
de mármol.”(ZZ, p.63). Sem contorno físico definido; sem direito à propriedade e à voz; o
cortejo fúnebre é silencioso.
No momento da procissão, Moncada, que a estava acompanhando, refere-se a um
imigrante japonês, da época algodoneira de Chimbote, e, dramatizando, aponta uma arma em
direção ao seu mausoléu, referindo-se a ele como forasteiro. “Te mato a ti, mato a todos” (ZZ,
p.64). A partir de uma situação do cotidiano, o narrador e Moncada penetram em outra
camada; por outra perspectiva. “El gallo ha muerto, los cuyes han muerto; la locomotiva mata
con inocencia, amigos. Así los yanquis de Talara Tumbes Limited, Cerro de Pasco
Corporation. No; no son responsables”. (ZZ, p.59)
135
O narrador se admira frente à construção de fachadas do cemitério e seu novo muro.
Põe-se a descrevê-lo, em detalhes. Há um setor dedicado aos pobres, miseráveis e aos mais
abastados: “No había nichos allí, sólo cruces clavadas en desorden, con una leyenda o simples
iniciales y una fecha en el madero horizontal.”(ZZ, p.62). O poder instituído convence aos
pobres a transferir seu cemitério a outro espaço físico; ficaria próximo ao “lixão” (basural del
puerto). De acordo com o narrador não teriam custo algum para ter esse novo espaço para
enterrarem seus mortos. Informações preciosas não foram passadas: que ainda não havia
muros na parte alta del cerro e que os moradores deveriam eles próprios levar seus mortos já
enterrados.
A repetição ocorre de forma constante ao referir-se à ação relativa ao traslado de
corpos de um cemitério para o outro: “Arrancaban las cruces de la arena…” (ZZ, p.62); “..las
cruces que los pobres estaban arrancando en ese momente en la cima del médano” (ZZ, p.63);
“Los pobres estaban arrancando las cruces de sus muertos…” (ZZ, p.63). Esse novo espaço
possuía aparentemente uma fachada com arco e era amuralhado, porém bastante afastado,
próximo ao deserto. Deixa-se claro que há por parte dos líderes das “barriadas” invasões de
terras para habitação. Tais líderes uniram-se a “los serranos recién llegados al puerto” para
assim conquistar “aguadas pestilentas y zancudientas, como médano y tierras sembradas” e
desertos, áreas mais próximas ao “casco urbano”.
A procissão, liderada por Gregorio Balazar, Chachero Balazar, “cholo tadavía
aturdido” (ZZ, p.67), pertencente à delegacia da Associação de Moradores da Barriada San
Pedro, juntamente com Mansilla, atrai a atenção de um padre estrangeiro e de pessoas no
trânsito, na estrada. Através dessas pessoas, o leitor fica ciente de que há invasões, porém
sempre organizadas. Esse cortejo fúnebre, que se desloca em direção ao cemitério, é
comparado pelo narrador a um “gusano negro” (ZZ, p.66). Há grande contraste entre a
situação dos que estão em procissão e daqueles que pertencem ao casco urbano: asfalto novo,
136
recém posto para estes. Balazar foi uma testemunha do nascimento e crescimento das
“barriadas”- “crecer a palo y sangre”. O narrador nos apresenta a situação do Cholo Balazar:
ainda não se adequou, ainda não está adaptado ao seu momento na cidade. Sua situação de
migrante está ainda em processo. “Aquí hemos llegado, en nombre del Padre, del Hijo, del
Monicipio y del Subprefecto, pues. A enterrar los cruces que estamos trayendo, fúnebres. En
cualquier partecita.”(ZZ, p.69). Em seu discurso, Don Gregorio Balazar ironiza a respeito do
abandono das autoridades frente aos menos favorecidos. “conocido chanchero” (ZZ, p.69).
“No quieren que esteamos en el cementerio moderno, norteamericano?”.
O arenal é, de acordo com a definição do narrador, um local não habitado. Porém, foi
para esse espaço físico que a procissão se dirigiu: “Llevando sus cruces la gente entró a la
parte deshabitada del arenal” (ZZ, p.69). A areia é “barrosienta”. O cemitério também é um
local de diferenças, com “nichos, árboles, ramos de flores de ciprés”, em fila. Contrapõe-se ao
outros, “cruces en desorden”, cemiterio inacabado. O narrador se preocupa em detalhar as
diferenças de tratamento. A distância entre os cemitérios era grande; o caminho era
considerado pesado. O que separa o cemitério dos pobres do “casco” da cidade eram o
médano e a barriada. O narrador, depois de inúmeras páginas dedicadas à procissão dos
mortos transportados de um cemitério a outro, diz novamente que “no estaba bien trazado el
nuevo cementerio de pobres. (ZZ, p.69)
Há que enterrar os mortos em qualquer lugar, a partir de um ponto pré-estabelecido no
novo cemitério, mas em um final, ou seja, ele não tinha um enquadramento. Bazalar afirma
haver dois cemitérios: um é moderno e norte-americano; o outro é dos pobres, na “hondonada
del montaña”. Separados tanto na vida como na morte. Há, por parte de Mansilla, uma
percepção de como a cidade de Chimbote observa seus mortos: “El muerto nada valía en
Chimbote” (...) ahora vale.”(ZZ, p.66). Ouvem-se vozes dos excluídos: “ Ahora que se’han
ido los pobres pavimentarán quizá el camino al cementerio- dijo un chofer”(ZZ, p.66).
137
A sensação de ruínas norteia a visão do narrador em contraste como, por exemplo, “es
alfalto nuevo, recién tendido, del casco urbano!”(ZZ, p.67). A procissão das cruzes atravessa
várias páginas da obra. As orações, em quéchua, clamando por água, se alastram, invadem a
narrativa: “Dios, agua, milagro...” (ZZ, p. 68). Os poderes da Igreja e do Estado se misturam
para determinar o que devem os habitantes de Chimbote fazer com seus mortos e aonde levá-
los. A transculturação aqui tenta encontrar espaço, mas há um estreitamento de possibilidades:
“Nadie es nadie, aquí- exclamó el dueño del bar”(ZZ, p.71).
Tinoco, um dos pesonagens centrais da narrativa, apresenta atitudes violentas, como,
por exemplo, no episódio em que ameaçou ao motorista de táxi: “El chofer sintió la punta del
cuchillo en la nuca.”(ZZ, p.76). Identifica-se como membro da máfia relacionada à pesca de
anchovetas: “cholo” que serve à indústria, aos norte-americanos e ao clero, acusa-lhe
Florinda, irmã de Asto. “Tú eres matón de Braschi, ¿ no?- le dijo ella- M’hermano sabe, te va
a matar, con Zavala, con Maxe, con…” (ZZ, p.72).
Hilário Caullama, dono da lancha, de origem aymara, das montanhas, vindo do Lago
Titicaca, põe-se a refletir a respeito de alcatraz cocho velho que voava do porto a seu barco
Moby Dick: “llora para dentro”.
A cidade é composta por todas as origens: serranos, criollos, imigrantes, clero, donos
de fábricas. Há um desejo de que os pobres estejam distantes: “- Ahora que si han ido los
pobres pavimentarán quizá el camino al cemeterio- dijo un chofer.” (ZZ, p.66)
Inúmeros pequenos diálogos entrecruzam a narrativa; são anônimos que tecem
comentários, levantam hipóteses a respeito de tal ou qual situação, numa imensa Polifonia. O
leitor, diante de tantas vozes, tecerá sua verdade, poderá criar sua perspectiva.
Grande parte das mulheres citadas na narrativa é composta por prostitutas, ainda que
possuam família (filhos e /ou esposos). Os maridos têm conhecimento da vida dupla de suas
138
mulheres: em casa e no bordel. Gerania, prostituta. É uma maneira de adequar-se econômica e
socialmente à situação de abandono, de exploração, de submissão99.
5.2.3 Antolín: O som da montanha migra em sua guitarra
Crispín, esposo de Florinda, cunhado de Asto, considera a Tinoco como um traidor:
“Has mariconeado en la hondonada, no has cumplido orden de la mafia.” (ZZ, p.73). Toca o
huayno, instrumento quéchua. Refere-se às montanhas e cascatas, matas e rios grandes. A
música embala as falas e os sentimentos dos serranos. A música de Crispin retrata e traduz
“montañas y las cascadas chicas de agua, las arañas que se cuelgan desde las matas de espino
a los remansos de los ríos grandes.” (ZZ, p.74). O Ciego Antolín Crispin tocava uma
“tristísima guitarra” (ZZ, p.61). Paralelo a todo esse movimento enlouquecedor, ensurdecedor,
estonteante, Crispín Antolín, no outro extremo da cidade, na Esperanza Baja, com sua
guitarra entoa todo esse misto. Ele também desceu das montañas “Ciego flaco, jovencito,
había bajado, cierto, nieves, cumbres, precipios, desde su pueblo, trás de la Cordillera Blanca,
hasta la línea del tren que corre, por el endemoniado cañon del rio Santa (ZZ, p.78).
“Jovencito” refere-se, pode-se dizer, quase a um menino. Migrante, o que pode tê-lo
feito enfrentar tantas dificuldades? Tocava em todas as partes, desde os mercados até os
muelles. Tinha a sensiblidade de ouvir a luz da ilha. Através de sua música, cruzava
extremos: “Así, su guitarra templaba la corriente que va de los médanos y pántanos
encrespados de barriadas al mar pestilente...” (ZZ, p.78). Florinda, sua esposa, contrariamente
a ele, não conseguia unir os extremos, tampouco cantar. O violão de Crispin une pontos
divergentes, como um grande ato transculturador.
99 Vide capítulo referente ao tema da migração.
139
Acompanharemos de perto outros personagens, Don Diego e Don Ángel, que parecem
ocupar dois espaços antagônicos: do humano e do mítico; da racionalidade e do instinto; ou
ainda, do céu e da terra, ou do mundo visível e do invisível; do ser e do ter.
5.2.4 Don Diego e Don Ángel: Os zorros observam a cidade
No capítulo III da narrativa, Don Diego, um dos personagens que compõe a escritura,
mantém uma longa conversação com um visitante “misterioso”. Tal interlocução versa sobre
a influência estrangeira no tocante ao vestuário, ao desenvolvimento cibernético, à vida
cotidiana da cidade: sendo consideradas modernidades; do Capitalismo, da cidade que
rapidamente se transforma. Logo, mais adiante, seguem em direção à indústria e suas relações
de trabalho: jornadas, dispensas, salários, categorias. O olhar de Don Diego abarca tudo o que
ocorre ao seu redor como se fosse onipresente, mas admite que não entende seu
funcionamento100. Os diálogos entre esses personagens são longas reflexões, mais que
narrações e/ou descrições.
O que se fala a respeito de Chimbote é que seus cidadãos são manipulados e
manipuláveis: “Pero dicen, Don Ángel, que aquí, en Chimbote, a todos se les borra la cara, se
les asancocha la moral, se les mete en molde” (ZZ, p.87). Don Diego e Don Ángel discutem a
migração intensa em direção ao porto, suas diferentes origens, o pouco que os relaciona. É
uma imensa massa sem identificação como uma avalanche, composta de inúmeros elementos,
de distintos materiais: “la avalancha de agua, de tierra, raíces de árboles, perros muertos, de
piedras, que bajan bataneando debajo de la corriente” (ZZ, p.87).
Há uma redução de operários; entretanto, em maior número chegam do alto: “Y las
barriadas crecen y crecen y aparecen plazas de mercado em las barriadas con más moscas que
100 Impossível não recordar capítulo relativo aos diários de Arguedas, quando há a idéia de atordoamento diante da realidade que envolve a figura do autor.
140
comida” (ZZ, p.88). Cresce a miséria, a cidade avança desordenada: “¡Felices, felices, felices
los alcatraces con la muerte que les ronda y la avalancha lloqlla con la vida que les ronda”
Quem são os alcatrazes? Somente eles conseguem a felicidade diante do lixo, dos
mortos, da destruição. A sociedade chimbotana, de acordo com sua perspectiva, é perversa,
pestilenta. A pestilência refere-se à questão da baía, do mar, do descaso das indústrias.
Entretanto, na boca do louco Moncada, parece referir-se também às autoridades, ao poder.
5.3 LLOQLLA: ENTRE REFLEXÕES E CERTEZAS
Detivemo-nos tratando da Procissão dos Mortos (no cap. II). Agora parece-nos vital
para a estrutura de nossa investigação, fixar o olhar no cap. III, no diálogo entre dois
personagens, Don Diego e Don Ángel, os quais se mostram através da perspectiva em relação
ao trabalho, da cidade, da migração. Entremeiam-se observações sobre anônimos em sua
adequação ao novo contexto e o que se observa sobre a cidade de Chimbote, também como se
ela estivesse num processo de acomodação, nesse momento de transformações econômicas,
culturais, sociais: “Chimbote es obra de las armazones cibernéticas, de su patronazo…porque
su patronazo está en la vigilancia y coordinación de las fuerzas grandes, ¿no? Lloqlla que
quiere llévarse todo, porque está recién desgalgándose.” (ZZ, p.88). Lloqlla parece remeter a
figura de um fenômeno destituído de preocupação com aqueles que arrasta, que traga em seu
movimento de crescimento, de proporções inimagináveis. Tal vocábulo pode ser lido como
uma metáfora para indicar o quão diferentes são as origens dos migrantes que chegam a
Chimbote para desenvolver trabalhos, temporários ou não. Tal termo refere-se a uma
avalanche que se compõe de inúmeros elementos que do alto chegam, aos montes. Uma
possiblidade de leitura é que lloqlla relaciona-se aos migrantes, em seu deslocamento
incessante, numeroso, veloz, doloroso, caótico, sem identificação de seus
elementos/indivíduos, ao chegar à costa, ao porto, ao mundo novo.
141
Para entender o diálogo entre tais personagens Don Diego e Don Ángel, nos parece
fundamental entender o contexto em que se inseria a obra em fins da década de 60.
A “Era de Ouro” 101 proporcionou aos países industriais, com seu desenvolvimento
econômico e tecnológico, um grande avanço, a ponto de dominarem três quartos da produção
mundial, com a dominação dos EUA e do dólar. O alto padrão de vida foi conseguido a partir
da exploração do Terceiro Mundo, de acordo com a perspectiva de Herbert Marcuse (VALLE,
1981, p. 29).
Tal progresso transformou-se num novo sistema de dominação, tendo os Estados
Unidos como representante desse Capitalismo, tornando-se o maior elemento do
Imperialismo. A automação aumenta o número de trabalhadores não envolvidos no processo
de produção, proporcionando uma divisão entre aqueles de fora do processo e aqueles regidos
por sindicatos. Esse novo momento político-econômico entende-se por Neo-Colonialismo. Ou
seja: “uma nova partilha do mundo entre as grandes potências sem conflito mundial”
(VALLE, p.47, 2003).
Os EUA conseguem impor-se diante do mundo também por sua grande intervenção
em assuntos exteriores, como exemplo, a Guerra do Vietnã. Lá o país norte-americano testará
novas armas e táticas anti-guerrilha, o que garantirá êxito em situações de conflito na Ásia,
África e América Latina, como, por exemplo, contra as guerrilhas. Em relação a esse espaço
geográfico, o país Imperialista apóia golpes militares contra as guerrilhas e/ou movimentos
revolucionários.
Marcuse considera o Neo-Colonialismo como “um dos maiores crimes do Primeiro
Mundo” (MARCUSE, 1999, p.116), servindo aos interesses do capital internacional, numa
tentativa de impedir o avanço do comunismo. O ano de 1968 foi emblemático por marcar o
início da crise do sistema monetário internacional que teve como causa as grandes despesas
101 Fenômeno mundial que tem início no pós Guerra e tem seu declínio com o colapso do sistema financeiro internacional de Bretton Woods em 1971 e com a crise da OPEP de 1973.
142
militares dos EUA, inclusive por causa da intervenção na Guerra do Vietnã. A “Era de Ouro”
fica ameaçada por ter este país como centro econômico e político. Decorrentes dessa crise,
explodem a inflação e o desemprego. Surgem novas formas de oposição como movimentos
estudantis e dos “hippies”, mas sem, contudo, uma organização que unisse forças tão diversas.
Há um profundo desejo dessas e outras tendências opositoras por romper o sistema vigente.
Quais seriam as forças, naquele momento da década de 60, que pudessem romper o
sistema instaurado? Marcuse (1997, p.129) acredita que:
Se Marx viu no proletariado a classe revolucionária, isto ocorreu ainda e talvez principalmente porque o proletariado estava liberto das necessidades repressivas da sociedade capitalista, porque nele podiam se desenvolver as novas necessidades de liberdade, que não podiam ser sufocadas por aquelas velhas e dominantes. Hoje, na maior parte dos países capitalistas altamente desenvolvidos, essa autonomia não é mais possível. Os trabalhadores não mais representam a classe que leva em si a negação das necessidades existentes. (MARCUSE, 1969, p.24-25).
Há uma Nova Esquerda nos EUA composta por movimentos negros e por grupo de
intelectuais e, posteriormente, aos movimentos de hippies, feministas e homossexuais.
Marcuse, líder de um grupo de imigrados, pertence à Nova Esquerda. Percebe-se claramente
uma profunda contradição no cerne do capitalismo.
Surge uma organização (SNCC - Student Nonviolent Coordination Committee), que
tenciona resistir passivamente e ser rebelde sem violência física, respeitando os limites
democráticos (2003, p.49). Seu maior líder é Martin Luther King, que luta contra a
segregação na universidade. A partir de 1964, o movimento negro intensifica sua atuação e,
sob a liderança de Malcolm X, transforma-se de perfil pacífico a violento, no tocante à
questão da legítima defesa. Duas questões vitais impulsionaram tal mudança: a insuficiência
das leis dos direitos civis de 1964 e do direito de voto de 1965. A questão da violência passa a
ser um divisor de águas em relação à defesa da revolução. Os diferentes grupos que citamos
anteriormente vislumbram uma aliança com movimentos revolucionários do Terceiro Mundo.
A idéia de massa, de impessoalidade, uma total destituição de caracterização, se faz
evidente. Por isso, talvez, o termo “lloqlla” seja utilizado com tanta precisão, referindo-se a
143
um fenômeno da natureza que, independente da vontade humana, desfaz diferenças e compõe
algo impossível de controlar-se, como rolo compressor que a tudo arrasta, massacra, destrói.
(ZZ, p.87)
Quando o narrador refere-se a “las barriadas crecen y crecen, y aparecen plazas de
mercados en las barriadas con más moscas que comida” (ZZ, p.88) nos dá uma forte imagem
do crescimento descomunal, do movimento acelerado do Neo-Colonialismo, que
proporcionou o avanço de algumas potências, de um grande império, mas “arrastou” inúmeras
nações. Remete-se aos “hippies” e a seu desejo de mudança, “este alevitado hippies de
confianza, un pituco a medias descuajado”. (ZZ, p.88)
As manobras, neste capítulo, feitas por Don Diego, como alguém que sente atração por
insetos, aos quais morde, come, massacra com as mãos, nos faz acreditar que há toda uma
relação, metafórica, com o seu discurso sobre migração e poder nos anos 60, movimentos
revolucionários e de manifestação contra o imperialismo que cresce e abocanha o menor, o
pequeno. A transmutação do personagem Don Diego é notória, a olhos vistos; seu corpo se
transforma de tal forma que recordamos que realidades paralelas coexistem em Los Zorros: há
o universo mítico, das raposas; há também o espaço ficcional, literário, da cidade de
Chimbote. Neste capítulo há um claro entrelaçar dos dois universos, através deste
personagem, o qual detém a palavra, observa a cidade chimboteana com um olhar bastante
crítico e atento; analisa a migração dos serranos (indígenas) e se utiliza da língua quéchua
para determinar as suas relações, os seus motivos. De forma repetitiva, pergunta-se o que
estaria por trás do deslocamento dos indígenas em direção a Chimbote. Metáforas se
substituem continuamente em relação à cidade de Chimbote, ao ser humano. Reflexões,
argumentações, hipóteses: eis a que nos levam as perspectivas de dois personagens que,
claramente, se opõem.
144
Aclara-se que, mais que índios, mestiços migram da serra para a costa. Perguntamo-
nos: O que os leva a migrar em tão grande número num movimento acelerado? Há uma clara
referência, ainda que cifrada, ao personagem Antolin Crispin, o qual cego, músico, migrou
para tocar no Mercado Central. Ocorre uma insistência por evocar a tristeza de sua inserção
nesse novo mundo: “El paiteño tocaba un triste, un tristísimo triste, ciego de los dos ojos...”.
(ZZ, p.88).
O estrangeiro Meiggs, de acordo com o personagem Don Diego, traçou a cidade de
Chimbote, o que nos remete a Rama, com a cidade simbólica nascendo antes da cidade real,
como uma realidade paralela. Não há interesse da indústria em manter um número grande de
funcionários. Ao contrário, há uma drástica redução de trabalhadores, inclusive uma
acentuada preferência pelos temporários em detrimento da mão de obra fixa, com seus
direitos sociais obrigatórios. Don Diego acredita que o futuro será bem pior para aqueles que
desejam empregar-se nas indústrias pesqueiras, desfazendo-se os laços de compromisso da
indústria para com os trabalhadores. A indústria “engorda” a partir do trabalho operário, para
mais tarde dispensá-los. Ao mesmo tempo, a América Latina está sendo tragada pelo
imperialismo, o Neo-colonialismo.
Braschi parece simbolizar o grande império norte-americano e sua enorme fome por
crescer a partir de inúmeros “animais” / países que estão a sua mercê, sob sua dependência. O
fragmento a seguir nos traz esta percepção: “Braschi es grande, el más grande capitán de
industria que ha dado el Pacífico en estas dos décadas y, como usted sabe, tiene quejada de
mono, de monazo fuerte.” (ZZ, p.90). Insiste-se em referir-se a Braschi como águia, que voa e
aprende rápido.
Uma das hipóteses levantadas para o deslocamento dos indígenas para Chimbote é
que, dez anos antes, houve uma verdadeira propaganda da indústria para atrair peões para a
atividade pesqueira, que estava em plena aceleração. Tal história, ainda que o tempo tenha
145
transcorrido, permanecia como uma lenda urbana. Faz-se menção aos grandes fazendeiros, os
quais, com mão firme, os pressionaram. De um lado, havia a impossibilidade de cultivar a
terra e fazer dela sua subsistência; do outro lado, grande publicidade em relação ao milagre da
cidade e suas supostas faculdades: terras boas para casas próprias e gratuitas, trabalho fácil
nas fábricas e lanchas “bolicheras”, nos mercados, nos restaurantes, em todo o comércio, em
geral. Por que não se deslocar com grande esperança de encontrar aquilo de que se necessita e
com que se sonha?
Ainda em relação aos grandes fazendeiros, além de expulsá-los da terra, (aos
indígenas), por vezes ainda os matavam. Chimbote surge então como possibilidade de fuga,
de êxito, de salvação, de redenção. Matar indígenas é possibilidade de ascensão. O poder de
vida e morte confere “status” aos soldados. Eleminar o quéchua também é algo desejável, já
que desta forma, diz Don Ángel, evitam-se segredos entre os serranos; tudo fica muito claro,
sem mistérios, nem surpresas.
Os pescadores foram atraídos por bebidas e prostitutas, sendo “possuídos” com
facilidade, como evidencia o trecho da obra que segue: “Las borracheras y putas, etc, etc, que
les metíamos por las narices, por la lengua, por todos, los orificios donde el gusto entra, pero
a cambio de gastos y endiablamientos, los manteníamos con la bolsa al ajuste.” (ZZ, p.91). O
atrativo que se espalhou sobre Chimbote surtiu efeito.
Don Ángel se identifica com o explorador. Utiliza com freqüência o verbo na 1º
pessoa do plural, assumindo tranqüilamente a ação de premeditar, calcular, determinar,
induzir: “les metíamos por las narices” (ZZ, p.91). Acredita que os primeiros sejam dotados
de maior aficção por vícios. Em relação aos serranos estariam à mercê de sua própria
impossibilidade de administrar sua relação com o dinheiro, a moeda corrente. Sendo assim,
facilmente seriam presas de cálculos de seus supostos benfeitores.
146
A partir da fala de Don Ángel, há a clara percepção de que o autor nos remete a um
mundo de luz e sombra. Explico: o nome deste personagem direciona nosso olhar ao que
simboliza, um representante divino. Porém, seguramente seu contrário é o que realmente
parece significar: interesse, ambição, desonestidade, prepotência.
Comparam-se “criollos” a “serranos”. Voltemos nosso olhar ao capítulo, quando
acreditamos que, esclarecendo o significado de vocábulos recorrentes, estaríamos ampliando e
aprofundando a questão da cidade, as relações de poder, de que maneira os diversos tipos
humanos se constituem e integram a urbe:
A los pobrecitos serranos les haremoso enseñar a nadar, a pescar. Les pagaremos unos cientos y hasta miles de soles y, carajete. Como no saben tener tanta plata, también les haremos gastar en borracheras y después en putas y también les hacer sus casitas propias que tanto adoran estos pobrecitos. (ZZ, p.92)
De maneira muito particular, o narrador nos conduz a olhar os alcatrazes e pensar na
violação de direitos, na extrema exploração dos países pobres por alguns países ditos
“superiores”, os quais detêm forte poder sobre os demais. Toda esta discussão nos direciona
para um processo de animalização. Sua fome por usar e abandonar no momento seguinte
ocorre de maneira desenfreada. Ocorreu de maneira similar, diagnostica o personagem de Don
Ángel, com a baía de Chimbote, em relação a sua abundância pesqueira. É o preço que se
paga por um desenvolvimento mal direcionado, irresponsável, inconsequente.
Chimbote, no capítulo três, é claramente a imagem do Peru. No diálogo que se trava
durante todo o capítulo, os dois personagens mapeiam a miséria, a história, a desolação da
cidade. Ainda que seja algo efêmero, determina sutilmente Don Ángel, já que toda essa
metamorfose social, econômica, fincou seus pilares sobre o trabalhador, o índio, o destituído
de uma cara e uma voz. A que preço alçar o posto de superar as demais nações em relação à
pesca? Arguedas, de forma bastante habilidosa, permite que cada personagem fale sua
verdade, sua versão dos fatos ocorridos ou ainda por ocorrer. O grito da cidade ecoou por
147
terras distantes, chegando à Europa. O personagem Chaucato surgiu a partir dessas migrações
estrangeiras.
O movimento de ocupação da cidade emergente ocorre, diz Don Ángel, primeiramente
com migrantes longíquas, como espanhóis e iuguslavos, com Chaucato e Hilario Caullama,
surgindo nesse momento, após essa leva, “criollos” de toda a costa. Por último apareceram os
indígenas com sua experiência pesqueira, como também comercial e forte agressividade,
portanto punhais e “chavetas”. A partir da perspectiva de Don Ángel, tal contribuição era
concebida com bons olhos, de maneira positiva. No entanto, lastima o personagem, migram
também indígenas, como uma “lloqlla”. Através do vocábulo pero, faz-se uma verdadeira
depreciação dessa fase migratória, como se nada contribuíssem na construção dessa cidade
que surgia: “ese gran huaco llegó hecho ya aquí.” (ZZ, p.93).
Don Hilario Caullama, de origem indígena, aymara, oriundo da serra (das montanhas),
foi introduzido no mundo da leitura, da língua espanhola, já quando adulto. Don Ángel lança
luz sobre a adequação desses migrantes, em particular a Caullama, que, ao chegar à cidade de
Chimbote, já se distinguia de outros indígenas por seu poder de adequação é grande, tanto
porque já se utilizava da língua espanhola, como também possuía poder no tocante à pesca.
Esclarece-se que os serranos não possuíam a destreza de nadar. Ou seja: tal ação para muitos
era caminho para a morte. Grande número, sem formação ou habilidades especificas
especializadas, oferecia sua força de trabalho à pesca ou ao lixo (“la basura”) a lavar pratos,
na limpeza ou aproveitando sua força física no carregamento de mercadorias. Sua fragilidade
era tamanha:
Pero otros hambrientos bajaron directamente aquí para trabajar en lo que fuera; en la basura o en la pesca. Se dejaron amarrar por docenas, desnudos en los fierros del muelle y allí, atorándose, chapoteando, carajeándose unos a otros, aprendieron a nadar, o se mietieron a lavar platos, a barrer, a cargar bultos en los mercados que empezaron a aparecer sin regla ni orden. (ZZ, p.93)
148
Aqueles que possuem o poder de mandar são comparados a “zancudos”: aqueles que
sugam o sangue, que se nutrem a partir da energia vital dos que atacam. Chimbote, naquele
momento, é composta por pântanos, desertos, montanhas e litoral; compõe-se de casco
urbano e médanos, no primeiro o espaço das casas é reduzido.
A partir do contexto, traçado, ocorreu o surgimento de ruas e praças, de repartição de
lotes, surgimento de bairros. Houve um choque entre esses que estavam invadindo no
momento em que ousaram aproximar-se de terras da Corporación del Santa, pertencentes ao
governo. Ocorreu um embate físico entre o poder militar, representado por guardas civis,
capitães e tenentes e as mulheres.
Os pescadores ganhavam um valor bastante bom para suas atividades. Sendo assim,
cantinas e bordéis foram criados para extrair-lhes dinheiro. Há um grande cálculo para
propiciar que os pescadores gastem todo o valor adquirido. A prostituição e os vícios (bebida
e fumo) faziam parte de um plano arquitetado com esta finalidade. A violência, então, surge
como parte disso para envolver os pescadores, a partir de sua inocência e falta de
conhecimento dos mecanismos pensados pelos dirigentes e poderosos. Criou-se uma categoria
intitulada “provocadores” para propiciar situações de confronto e utilização de objetos
cortantes e agressivos, como chaves de fenda. O corral destinou-se para captar dores dos mais
desprovidos monetariamente; para os mais abastados surgiu o prostíbulo Salão Rosado.
Considera-se como um grande lobo “pendejo”, talvez por sua grande astúcia e
habilidade em organizar situações para “prender” presas tidas como frágeis, sem força física,
inocentes. Pescadores foram adestrados, como Don Ángel dignostica. Construiu-se um ser
para compor a cidade, com malícia, vícios, enfim dependente: ganha muito, porém, ao mesmo
espaço, aplica o valor do seu suor, de sua mão-de obra, em situações desnessárias, supérfluas,
sem que sequer se dê conta; quanto maior o vício, a coragem por portar e utilizar objetos de
confronto, como chavetas, mais se admirava a suposta macheza do pescador. Diante dos
149
outros, da comunidade, de seu meio social, era admirado, saudado, como um galo. A pobreza,
o vício, a dependência, a violência parecem elementos fundamentais para que a cidade possa
funcionar, progredir, existir.
No diálogo entre os dois personagens, a figura de Deus e de Lúcifer aparecem como
uma busca de qual deles poderia haver criando a baía de Chimbote. Insistentemente se pensa
num tempo anterior ao que se vive e no agora, avaliando-se as transformações decorridas. O
ser humano carrega um pedaço que seria a tripa, parte do sistema digestivo, da voracidade, do
desejo de comer, de tragar. O antes e o agora se alternam em análises e percepções. A cidade
de Lima, em contraposição à de Chimbote, surge como uma faceta ainda mais perniciosa: “en
Lima es peor.” (ZZ, p. 95). Chimbote guardava semelhança com Lima, por conta de sua
efervescência, com exceção da faceta aristocrática da cidade limenha. Mas, no fragmento
citado, o narrador afirma que a cidade de Lima retrataria pior quadro em relação à situação
chimbotana.
Os alcatrazes voltam à interlocução, como uma grande imagem dos serranos, dos
migrantes, dos andarilhos. Don Ángel e Don Diego, como os zorros, trocam reflexões acerca
do ser humano que compõe Chimbote. A partir de elementos da natureza, pensam seu
passado, suas origens, suas posturas. O agora deste animal é ser “cocho”, o que não era no
ontem, no antes. O ser ativo de outrora que “tragaba la basura perniciosa” (ZZ, p.95), hoje
suporta, num claro posicionamento passivo, sem atitudes de enfrentamento: “Los pescadores
los compadecen, como a incas convertidos en mendigos sin esperanza.” (ZZ, p. 95). A grande
máquina da corrupção, do capitalismo, da violência: tudo conectado, atado a outra peça, para
que no final saia como se imaginou. Explico: a desvalorização da pesca, para que, desta
maneira, o produto que vale tanto nesse momento saia a um ínfimo valor.
Há um exemplo claro quando Don Ángel afirma que Brash, ao receber as dezenas de
quilos de atum, tocava a um ou outro peixe, com uma substância com odor fétido, para assim
150
contaminar com o cheiro, e conseguir que o preço que seria o ideal caísse para quase nada.
Vejam o fragmento que segue:
El mismo Braschi se ponía las manos una sustancia secreta y alzaba uno o dos atunes de cada lanchada, los alzaba por las agallas, llamaba al patrón de la lancha y le decía: “Huele, putamadre, huele.” “Sí, don Eduardo - contestaba cabizbajo, ardiendo de mierda, el pescador -. Sí, patrón, está oliscado. No sé como. Es fresco.” “Fresco podrido, puta.” Tres soles por docena.” Y lo que costaba treinta lo compraba por tres. (ZZ, p.97)
Os dois personagens deste capítulo, em nossa perspectiva os verdadeiros zorros da
narrativa, como figuras oniscientes, tinham conhecimento de tudo o que ocorria em Chimbote,
como se pudessem observar do alto ou num telão. Sabiam dos diálogos trocados, das
expressões faciais, das artimanhas. Arguedas, através destes personagens, indica o mundo real
e a representação a que se submetem as pessoas para que sejam aceitas e/ou o que se espera
deles.
Ainda que se tenha uma vida econômica bem estruturada e favorável, como o
personagem Guerreiro, este não dominava a língua oficial do poder, o espanhol. Por isso, era
socialmente considerado de menor importância, tendo de humilhar-se diante de quem o
dominasse: “Guerrero entregó al suegro su ganancia de sus días, como patrón de lancha; siete
mil soles bien documentados; más que un ministro de Estado. Como era cholo analfabeto que
sólo sabía firmar entregó esa plata de rodillas.” Este caso, como tantos outros da narrativa,
indica que, para que a cidade letrada se faça forte, o outro deva assimilar a língua do poder e
abster-se de sua cultura, adequando-se ao que se espera dele. Guerrero teve de “ocultar” o que
era, sua profissão e sua língua, para que sua vida pudesse ser normal naquele contexto.
Este caso não era bem visto pela máfia, pelo esquema que adestrava os pescadores.
Como iria dar lucro ao esquema, se possuía família constituída e nenhum vício aparente?
El cholo tiene casas, negocios. Fracaso para la “máfia”, mal ejemplo, buen aviso. Había que afinar la maquinaría. Pero la “mafia” hizo gastar a los pescadores en su debido tiempo. Cebó sus apetitos de machos brutos. Con buenos trucos los hizo derrochar todo lo que ganaban; los mantuvo en conserva de delicuencia, y esa mancha no se lava fácil. (ZZ, 1971).
151
De forma evidenciada, percebemos que o serrano, o cholo, o indígena compunham
uma engrenagem que somente os via como coisas, não como pessoas, como cidadãos.
O dirigente sindical Teódulo Yauri conseguia desempenhar dois papéis aparentemente
antagônicos: ora era “máfia y contramarfia”. Ou seja: em um momento objetivava defender os
direitos dos trabalhadores; em outro, aliava-se aos poderesos e manipulava a lei e a ordem,
como talvez lhe conviesse, “según casos y conveniencias” (ZZ, p.96); ou atuava a favor da
máfia ou contra os interesses da indústria. A força física e a simbólica, através de paus e ou
palavrões e gritos, impulsionavam os trabalhadores a participar de assembléias caso não
optassem por isso; era um grande convencimento forçado. A recompensa para quem atuava
como “convencedor” era composta por artigos de vestuários, alimento ou mais dinhero por
tonelada de pesca. Don Diego se espanta com a postura e comportamento de Teódulo Yauri,
por ser ele oriundo da serra, mas ter se vendido de forma sórdida. Pergunta-se: ¿Pór qué cayó
a la basura un hombre tan decidido, tan cholo?” (ZZ, p.97). Era tido como bom orador, como
também dirigente eficaz em relação aos pescadores.
Há uma insistência por utilizar-se o termo comunismo no discurso de Don Ángel. Este
apega-se a cada pequeno valor como se fosse muito. Ou melhor: seja muito ou pouco, um
milionário, como inclui, sente de igual forma; é o acúmulo de capital, contrastando com o que
se entende por comunismo.
A sofisticação das indústrias as encaminhou para um novo comportamento como
substituir gradativamente o humano pelas máquinas, diminuindo inclusive o valor pago pelas
anchovetas. Consequentemente, um número grande de trabalhadores foi dispensado,
originando uma massa sem trabalho, sem ofício, pelo mundo.
Conclui Don Diego que, após dedicar-se à industria, Téodulo passou a compor o grupo
dos não mais desejados, dos dispensáveis, não existindo mais espaço para os que migraram,
para os que foram atraídos para alimentar a fome das fábricas. O pronome nosotros aparece
152
entre aspas, levantando como hipótese que Don Ángel não estivesse de forma tão tranquila,
compondo o setor da camada do poder, tanto quanto os outros. Supõe-se que não esteja
realmente inserido neste grupo.
Braschi, de acordo com Don Ángel, devora ou traga, com seu testemunho, quem havia
pensado em pegar-lhe. Surge em seu discurso o personagem Solano, o primeiro secretário
geral comunista que o sindicato teve. Neste cenário de reflexões e memórias, surge um
visitante o qual parece ter com Don Diego algum tipo de relacionamento e conivência. Este
também apresenta um comportamanto estranho. Solano “es correcto, moral hasta las tripas” e
entende profundamente sobre detalhes da atividade pesqueira. Por que chamar a atenção para
a correção de seu caráter? Solano distingue-se sobremaneira do contexto onde se insere?
O personagem identificou nas relações entre pescadores e patrões de lancha grandes
armadilhas e “incorreções”, descobriu o sistema e seus mecanismos. O fragmento a seguir
demonstra esse esquema industrial:
Le demostró que el actual contrato de armadores y patrones de lancha, supercombinación jurídica y sabia que convierte el pescador en locatario sin locación y en obrero sin patrón, que separa al armador de la industria, aunque industrial y armador son la misma persona, más unida que la Trindad; y la entrega del Fondo de Beneficio del Pescador al control de una comisión gobierno-sindicato es una trampa cínica, que, en fin, todo ese abanico legal estaba sostenido por las sucias pezuñas de la fuerza.(ZZ, p.99)
Braschi ameaça de forma contundente a Solano (ao secretário) com frases fortes e
indica possibilidades de violência física, mas este conseguiu, de forma sólida e tranqüila,
desvencilhar-se. Teódulo, por ser presidente do sindicato, conseguiu um grandíssimo
desconto para a assistência social. Tal vitória, porém, somente o beneficiou, já que,
aproveitando-se de que somente ele poderia assinar tal documento, tinha acesso. Sua intenção
inicial seria oferecer assistência médica e dentária aos pescadores, já que estes não dispunham
de direitos como os empregados e os operários. Mas um esquema de mentiras, de desvios de
dinheiro, desponta. Solano havia descoberto todas as “armações” de Teódulo Yauri.
Entretanto, a partir da verdade descoberta, somente o pescador foi perdedor, já que as
153
pressões foram mais cruéis que antes, com significativo aumento do dólar. E seu ganho
diminui, havendo a desvalorização do sol em relação ao dólar, em 30%. Don Ángel identifica-
se com os donos de fábricas: “descubrieron que las fábricas robábamos unos milloncitos.”
(ZZ, p.100).
Novamente as reflexões de Marcuse nos parecem centrais na discussão do que ocorre
em Chimbote naquele momento: muito para poucos, pouco para milhões: “No hay escape; en
el Perú y el mundo mandamos unos cuantos” (ZZ, p.100), em relação à questão do
capitalismo faminto.
Em um determinado dia, ocorreu uma festa, aparentemente sacra, que tinha como
centro São Pedro, patrono dos pescadores. Houve uma procissão de prostitutas; desejou-se
que tal evento fosse similar ao que ocorre entre povos do Lago Titicaca para bailarinas da
Virgem da Candelaria. Foi um verdadeiro ato profano. O comércio da prostituição fez-se
presente no que deveria ser um ritual religioso, já que com esse propósito foi iniciado. Mas
supomos que mais uma vez cada ato/atividade fosse calculado minuciosamente para
“adestrar” os pescadores.
Acreditamos que o espaço que dedicamos ao Capítulo III deva, por enquanto, até o
próximo trabalho investigativo, terminar. Dedicaremos agora um tempo rápido e panorâmico
às demais partes da obra.
5.4 CHAUCATO: DIVISÃO POR DOIS
A segunda parte não é dividida por capítulo. A impressão de um tempo acelerado é
evidente (ZZ, p.183-241). Chaucato é o centro desta parte. É interessante como o narrador o
descreve como dividido pela metade: “la media gordura y la media vejez”. O termo repetido,
media, denota um ser composto por duas partes claramente perceptíveis. Tal personagem é
recorrente em Los Zorros: indígena, o qual conseguiu êxito rápido no novo mundo, a costa,
154
após ter migrado da serra. Suas posses, seu poder, divergiam grandemente de seus patrícios,
de seus irmãos étnicos; enquanto alguns dormiam sobre sacos ou em terra batida, Chaucato
possuía uma casa com cômodos, com móveis a compor o ambiente, até mesmo com objetos
que, para a época, denotam “status”, como a TV e a geladeira.
Chaucato é um mediador entre o poder institucionalizado e a população. Domina a
fala em grande parte do primeiro capítulo da obra: “Empezó a dar ordenes a la tripulación,
tranquilo en aparencia, pero con el hígado amargo.” (ZZ, p.29). Sensações antagônicas o
acompanham. Como no Mito da Caverna de Platão: há a escuridão e a luz. Ao mesmo tempo
que sua aparência conduz à paz, em seu interior (em suas partes não aparentes, não visíveis)
esconde sensações que talvez não possa externalizar.
Há determinado trecho em que ele e seu grupo, num momento de pescaria, se
encontram diante de uma montanha e isso lhe traz à memória narrativas míticas que envolvem
aquela parte da natureza. Estar diante da montanha lhe indicava sucesso, já, naquele ponto
exato, haveria êxito no tocante a seu investimento: a pesca. Por outro lado, lhe indicava um
passado, uma herança mítica. Há um embate claramente entre o que se espera dele, enquanto
detentor de um poder que parece proporcionar-lhe satisfação e o que carrega, em seu íntimo,
suas memórias, a cultura do povo onde nasceu.
O capítulo intitulado ¿Último Diário? se apresenta de forma bastante singular, já que o
título dado se compõe de uma pergunta, a qual parece ser feita não somente ao leitor, como
também ao próprio narrador/escritor. É uma pergunta que merece ser respondida, porém o
narrador o faz de maneira acelerada, como se o tempo não lhe permitisse mais delongas. Entre
inúmeras questões abordadas, o narrador admite que a luta travada realizava-se de maneira
desigual, argumentando que os aliados do adversário eram mais fortes e seguros. Tudo isso
nos remete à trajetória do próprio Arguedas, comprometido com questões políticas e culturais
referentes aos indígenas; às insatisfações com relação à aceitação de suas obras e as críticas,
155
muitas delas negativas e discriminatórias; às dores infantis, não resolvidas, que o perseguiram
por toda a vida.
A principal temática abordada gira ao redor do que poderia ter acontecido a seus
personagens mais queridos: Don Esteban de la Cruz102, Moncada, Chaucato, Orfa, Braschi,
Tinoco, Maxwelll. Ainda que os zorros fossem fortes, não poderiam, de acordo com o
narrador, narrar a luta dos líderes esquerdistas nem dos líderes do sindicato dos pescadores.
Dentre tantos personagens, se elege Moncada como o único que poderia vislumbrar o todo,
como se somente ele pudesse ter o discernimento para realizar uma síntese/conclusão a
respeito de tudo que via e vivia.
O narrador cita o nome de Gustavo, relacionando-no à Teologia da Libertação. Diz
tudo que pretendia mas não houve oportunide para que chegassem a existir. Avalia sua obra e
o que desejou realizar, mas que, por inúmeros fatores, não foi possível. Acredita nas questões
cíclicas, algo que termina e outro momento que se inicia, demonstra acreditar num porvir.
Cita com muito carinho a César Vallejo, como princípio e fim. Afirma que sua vida foi
derecionada a sua pátria, a sua terra: o Peru.
Utiliza a palavra “hervores” para referir-se à cidade de Chimbote, “hierve con las
fuerzas de tantas sustancias diferentes que se revuelven para transformarse al cabo de una
lucha sangrienta de siglos que ha empezado a romper, de veras, los hierros y tinieblas con que
los tenían separados, sofrenándose.” (ZZ, p.240). A questão da heterogeneidade e não
simplesmente da transculturação parece evidenciada em toda a obra, em particular no
fragmento supra-citado.
Este último diário parece ser a grande despedida de sua obra, que, consciente está,
deixa inconclusa; seus personagens surgem, pela última vez, com seus possíveis finais.
Indefinido parece ser este último diário, já que não sabe bem se seu fim será da forma como
102 Por uma questão de espaço e de temática, lançamos luz sobre alguns personagens e preterimos outros. Em trabalhos futuros, certamente, dedicaremos a eles o espaço devido.
156
planeja. Faz um balanço sobre sua entrega a tudo que traçou como objetivo. Chimbote e Lima
não saem de seu discurso; estão praticamente em pé de igualdade, como se a primeira cidade
fosse espelho da segunda.
A parte intitulada Epílogo compõe-se de cartas com claro tom de despedida, de último
contato; destinam-se ao reitor, aos alunos, ao editor de Losada.
5.5 A PRESENÇA DE CHIMBOTE PÓS-ARGUEDAS
Voltar os olhos para a produção local: Desde Chimbote para el Perú: Eis um grande
desafio proposto pelo chimboteano Jaime Gusmán Aranda, pois, a partir deste prisma, nos
deteremos para observar algumas produções que focaram a cidade de Chimbote e seus dramas,
suas histórias, sua problemática, sua constituição. Escolhemos três autores para ilustrar
literariamente a Cidade de Chimbote na atualidade: Óscar Colchado Lucio, Jaime Gusmán
Aranda e GuillermoThorndike.103
A obra de Arguedas repercutiu de tal forma que seu nome é um dos ícones da
literatura peruana. Portanto, necessariamente os escritores supra-citados leram a obra
arguediana e, de alguma maneira, produzem ou problematizam que suas escrituras dialoguem
com J.M.A.
5.5.1 Gusmán Aranda: Río Santa Editores invade o Peru
Jaime Gusmán Aranda104 (1951), diretor de Río Santa Editores, cujo lema é Desde
Chimbote para el mundo, escritor, crítico literário, reside em Chimbote desde que nasceu.
Autor de La santa cede: Del Copacabana a Tres cabezas, a qual foi lançada no famoso
103 Na primeira viagem feita ao Peru, ocorrida no ano de 2010, tive a honra de encontrar-me pela segunda vez com o escritor Oscar, já que nosso primeiro contato foi no congresso pelos 40 anos da ausência de Arguedas, na UFMG; através desse escritor, conheci seu editor em Chimbote, que me guiou por locais abordados na obra Los Zorros; a partir da aquisição de inúmeras obras literárias e críticas, e da orientação do professor Rômulo Monte Alto, comecei a enveredar pelas escrituras de Thorndike.
104 Escritor e editor, Gusmán Aranda é considerado grande difusor cultural.
157
prostíbulo da cidade de Chimbote. Foi meu guia, com supervisão de Óscar Colchado, em minha
primeira visita a Chimbote, no ano de 2010, por locais centrais da obra Los Zorros: o Barrio
Lucero, o cais do porto, o Mercado Central, os cemitérios.
Através de crônicas, no livro Chimbote. Entre el fuego y el amor, (GARCÍA, 2006,
p.84) Gusmán Aranda aborda, de uma maneira repleta de cores, ruídos e cheiros, como era a
cidade de Chimbote. Há uma descrição minuciosa do início da década de 60 em “Prohibido
bañarse...”, relacionando os detalhes ao odor destestável dessa cidade que vivia ao redor da
atividade pesqueira. O que outrora havia sido um lugar aprazível apresentava, naquele
momento, um cenário de morte e contaminação: “Prohibido bañarse/Aguas contaminadas”
(GARCÍA, 2006, p.87). O autor, de forma bastante habilidosa, penetra o passado e relembra
fatos relacionados a Chimbote de um século antes, quando houve o nascimento da urbe.
Contam-se as origens da cidade. Pedro Alva García conta que, desde seus primórdios,
Chimbote já surgiu com problemas de administração. Explico: os empreendedores que
deveriam zelar por sua formação, edificação, organização, por acordo feito com o Estado,
abdicaram de seu dever e decidiram priorizar seus próprios interesses econômicos.
Recordemos, mais uma vez, A Cidade Letrada de Ángel Rama (vide capítulo 2).
Em 15 de janeiro de 1972, Enrique Meiggs “presentó al Gobierno el plano definitivo
de la población de Chimbote, con 60 manzanas de 10.000m cada una, ofreciendo una
manzana más para edificios públicos.” Dois meses antes, o plano de execução da estrada de
ferro Chimbote-Huáraz-Recuay foi assinado. Como afirma Alva García, “fue creado por
Enrique Meiggs como centro destinado a gran desarrollo portuario e industrial” (p.89) Esse
perfil de suas origens atraiu grande número de imigrantes chineses, chilenos, europeus e
japoneses. O propósito da criação da cidade era para desenvolvimento portuário e industrial,
afirma o autor.
158
Em 1942 foi criada a Corporación Peruana del Santa objetivando estudar e executar
projetos de investimento em Chimbote, como exploração e exportação de minas, criação de
hotéis, linhas férreas, dentre outras medidas. Mas, ao longo de dez anos, percebeu-se que seria
melhor reorganizar esses planos iniciais e fixar-se no término da Central Hidroelétrica del
Cañon del Pato, como também no estabelecimento de uma indústria siderúrgica em Chimbote.
Em 1956, houve a necessidade de criação da SOGESA (Sociedad de Gestión de la Planta
Siderúrgica de Chimbote y de la Central Hidroelétrica del Cañon del Pato S.A.). A partir
dessa iniciativa, grandes fluxos de pescadores espanhóis e da costa norte do Peru deslocaram-
se para Chimbote. “Se descubrió que se podía elaborar harina de pescado no sólo de los
desperdicios que generaban las plantas conserveras, sino también de la anchoveta y del pez
machete...” (GARCÍA, 2006, p.90)
A década de 50 se caracterizou pela proliferação das fábricas “harineras”. Houve um
verdadeiro boom da pesca em Chimbote. A cidade tornou-se então, no final da década de 50, e
início da década de 60, “un puerto pesquero de primer nivel no sólo en Perú, sino en el
mundo. Creció su población en forma vertiginosa y lógicamente ocurrió lo propio con las
áreas habitadas o barriadas que se localizaron principalmente en zonas cercanas a las
fábricas”.
Por tudo isso, houve a transformação de lindos balneários em locais impróprios para o
banho. O povo teve de escolher outro destino para suas férias. “Chimbote se había convertido
en “un puerto llamado absurdo”, al decir de Miguelito Rodríguez Paz. A cidade de Chimbote
é apresentada numa corrida à Modernização. As “bolicheras” que navegam transportando
“harina de pez”, com seus operários que invadem a costa, transformando a cidade de
Chimbote num grande porto pesqueiro, e também transformam vidas: “cosas que son
fabricaciones de los “gringos” para ganar plata” (ZZ, p. 13).
159
O autor expressa interrogações sobre os motivos que teriam contribuído para que
Arguedas pusesse fim à vida, após não entender as transformações ocorridas em Chimbote.
No ensaio intitulado “El jilguero de Huascarán”,105 a partir de sua voz, Arguedas
afirma que os leitores ouvirão algo sobre “El Perú nuevo, mestizo, no índio” (COLCHADO
LUCIO, 2007, p.212). Mostra uma grande preocupação ao “gigante de la canción ancashina”
(211). O autor o define como “emigrante andino, que busca la capital y la conquista”
(COLCHADO LUCIO, 2007, p.212).
5.5.2 Thorndike e seu Banchero
GuillermoThorndike106, autor limenho (1940), trata na obra Banchero a respeito de um
assassinato ocorrido em Chimbote. A partir de sua veia jornalística, Thorndike traça em
Banchero107 uma radiografia da cidade de Chimbote. Afirma Juan José Vega que esta obra
não é jornalística, ainda que a considere uma crônica, mas histórica, “de tiempo próximo
como se dice en Europa” (THORNDIKE, 1995, p.17). Porém o libro sobre Banchero y la
epopeya de la pesca tem como protagonista o porto de Chimbote.108O autor, afirma Juan José
Vega (1995), no prólogo de Banchero, publicou um jornal quechua: “Cronicawan”,
considerado o único da história do país. Este autor possui uma obra, La revolución imposible,
que, de alguma forma, contempla nossas dúvidas em relação à heterogeneidade: “nuestra
enredada sociedad y la dificultad de solucionar sus problemas a causa de múltiples
contradicciones entre nosotros, heterogéneos peruanos” (THORNDIKE, 1995, p.21) “aunque
sea “gringo” (como muchos le dicen amistosamente) es un criollo “bien de adentro”, en
nuestro poliédrico Perú” (THORNDIKE, 1995, p.22)
105 Baseado em Ernesto Sánchez Fajardo, nascido em Corongo em 1928 e morto em Lima em 1988, o qual se transformou em um ícone de cancioneiro popular. 106 Autor de El año de la barbarie (1969), El caso Banchero (1973), dentre outras obras. Além de escritor, Thorndike atua como jornalista. 107 Grande magnata da pesca peruana, de família imigrante, de acordo com a obra. 108 Uma quarta edição graças a Río Santa Editores, selo chimbotano que dirige com incrível perseverança o poeta Jaime Guzmán Aranda - habría de superar en resonancia lo anterior” (p.18).
160
Diferentemente de Arguedas, que utiliza em Los Zorros frases, versos, palavras em
quéchua, Guillermo Thorndike, em Banchero e outras obras, afirma José Vega, “usa
impecablemente las jergas populares, cuando se hace necesario (...). Pero, curiosamente,
nunca es vulgar, aun cuando pueda ser muy precoz lo que describe de los bajos fondos
sociales” (THORNDIKE, 1995, p.23).
5.5.3 Óscar Colchado: O homem da Isla Blanca
Óscar Colchado Lucio109 (1947), autor de Cholito y el rio hablador, Camino del
Zorro, é diretor da Revista Alborada, obra dedicada à expressão literaria peruana.110 No mês de
agosto deste ano lançou uma obra na Feira Internacional de Livros que tem a cidade de
Chimbote como vértebra: Hombres de mar. Tal obra, segundo palavras do autor, continua o
ciclo dos zorros de Arguedas.
O autor, tal como J.M.A., em relação a Chimbote, percorre vários locais do Peru, com
gravador e máquina fotográfica, para registrar o que vê para assim, posteriormente, utilizar
este material na composição de sua obra: notícias a respeito do assassinato de Banchero e a
verdade a respeito do crime.
O conto de Óscar Colchado, escritor de Ancash, Del mar a la ciudad, tem o pelicano
Pico Largo como principal personagem. É uma fábula, em que, por meio deste animal, lança
luz a Chimbote, à Isla Blanca, aos contrastes da urbe. Certos vocábulos são utilizados para
descrever esta cidade: desconcertante, contradição entre “míseros ranchos de estera” e
“opulentos edificios y modernísimas viviendas”. (COLCHADO LUCIO, 2007, p.75) Há, por
parte do personagem, uma transformação de sua percepção no tocante à cidade: de inocente à
109 Algumas de suas obras foram levadas ao teatro e à televisão. Fundou em Chimbote o grupo literário Isla Blanca. 110 Sua filha, Patrícia Colchado, ainda que viva en Alemanha, participa ativamente da vida literária de Chimbote.
161
cruel realidade. Estamos com uma realidade pesqueira, tal como em Los Zorros. Aqui, ao
invés de raposas, temos a visão de uma ave.
A todo instante, Pico Largo identifica contrastes, a partir de sua intensa contemplação
acompanhada de reflexão, em relação a esta cidade que é cruel na divisão de “beneficios”,
como, por exemplo, no binômio claridade e treva. O respeito ao ambiente, à natureza, ao
outro talvez tivesse conduzido de forma mais consciente as atitudes tomadas de maneira tão
irresponsável e inconsequente: “las ingentes cantidades de desecho que arrojaban las fábricas
pesqueras al mar” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.75). A Isla Blanca oferecia um ambiente de
paz, de pureza através da expressão “extensión blanquecina de la isla”, em contraste com
“penetrante y desagradable olor” da cidade.111
O autor do conto, de forma cifrada, aponta o que ocasionou a penúria em contraste
com a abundância de outrora: o desague de sujeira, a poluição constante, em águas repletas de
alimentos. Os animais e, por conseqüência, os homens passam a sofrer com os descaminhos
da modernização. A fome passa a imperar: “Unas semanas más, y dejaron de salir. Los
muelles quedaron olvidados y las fábricas huérfanas de los blancos pañuelos de sus
chimeneas, sin poder decir adiós a los días de abundancia” (COLCHADO LUCIO, 2007,
p.75). A cidade, a partir desta perspectiva, passou não mais a atrair o desejo de Pico Lago; ao
contrário, este passou a olhá-la com grande temor, ao monstro, como a define. O desejo de
retorno a um passado feliz fez-se impossível, já que o que se fazia necessário naquele
momento era sobreviver “Quiso volverse a su isla. Recordó su peña favorita, y hasta morirse
allí” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.77).
Segundo o referido autor, outro termo passou a designar a cidade antes tão sonhada:
cementerio. A sensação de sofrimento passa a vigorar ao pensar em Chimbote “había perdido
ya la cuenta del rosario de sus días en la ciudad” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.78).
111 Pensamos, mais uma vez, em binômios tais como civilização e barbarie, campo e cidade, lembrando-nos de Sarmiento.
162
6 CONCLUSÃO
Un gran pueblo, oprimido por el desprecio social, la dominación política y la explotación económica (...) se había convertido en una nación acorralada (...) Pero los muros aislantes y opresores no apagan la luz de la razón humana.
José María Arguedas
As palavras acima, como a batuta de um maestro, deram o tom e regeram o discurso
que foi desenvolvido nesta dissertação. Celebrar o Peru, a Machu Pichu, com seus cem anos,
da descoberta da cidade cuzquenha, ao terremoto que destruiu mas que fez com que os
habitantes conseguissem renascer das cinzas, às eleições de Ollanta Homala, ao Cristo que
recebe em Chorrillos, ainda que não seja um símbolo genuinamente peruano, mas sim
importado (Alan García de costas ao povo e seus desejos). Tantos caminhos e descaminhos
resultaram de nossa proposta temática: repensar a Cidade!
A problematização da temática relacionada ao eixo central é ampla. Por tudo isso, nos
restringimos às questões que, a nosso ver, representariam melhor a condução do debate.
No capítulo dois, percorremos de maneira ligeira, mas objetiva, o conceito de
Transculturação e como ele não basta para verificar as ocorrências em solo peruano dos
encontros culturais no pequeno cosmos que é a representação da cidade de Chimbote.
Lançamos, pois, nossa investigação rumo ao conceito proposto por Antonio Cornejo Polar.
Sentimos, com isso, uma profunda identificação de nossa angústia com o pensamento do
teórico. Nossa proposta, nessa parte da dissertação, também foi “ouvir” outras vozes,
ponderando ou não os conceitos propostos por Ortiz e Cornejo Polar, como também
posicionando-nos a respeito de qual seria o melhor caminho para definir a cara da América, do
Peru, do Terceiro Mundo, das vozes marginais.
Pensar sobre o espaço que o migrante possui no mundo que deixou para trás e as
incertezas de um novo momento foi uma das nossas investidas no capítulo quatro. Quisemos
163
também unir às reflexões feitas o som dos direitos e deveres, tidos como em consonância com a
realidade: a Constituição Peruana. Percebemos como o mundo paralelo da escrita encontra-se
distante “anos luz” da realidade chimbotana, arguediana, do cidadão comum, das vozes
esquecidas, do trabalhador. Pensando a questão da violência física, direcionamos nosso olhar
para a violência velada, disfarçada, negociada. Direitos usurpados, fantasiados, como uma
continuação do “sonho de Alice”. Demos espaço a estas reflexões para encaminhar nosso
pensamento, finalmente, para o capítulo cinco.
O capítulo dedicado à análise propriamente dita, ainda que tenhamos “flertado” com o
fim incessantemente, traz o ambiente do porto, do comércio pesqueiro, de corpos, das
transações lingüísticas, das renúncias culturais, dos discursos “callejeros”. Distintas vozes
entram em cena para enredar as ações, a época, os desacertos, as dores, as incertezas, a morte, a
cara de Chimbote do final da década de 60 e de José María Arguedas.
“Todas las voces, todas, todas las manos, todas, toda la sangre puede ser canción al
viento”: Mercedes Sosa une seu canto ao canto do andino, enlaçando as vozes numa grande e
distinta sinfonía arguediana, chimbotana, latino-americana.
Arguedas acreditava tanto no futuro que pediu que o outro continuasse seu olhar, seu
movimento de continuidade ao que havia sido iniciado. Deve-se agir em prol do porvir, sem
esquecer-se do que deixou suas marcas. A realidade é uma escritura constante; é um
movimento contínuo. Dessa forma, o conceito de fronteira, ao contrário de possuir uma carga
que remete para uma idéia de limite fixo e, portanto, totalizante, é problematizado, e passa a
caracterizar-se antes como local de fluidez e de hibridização. J.M.A. nos legou uma obra na
qual as idéias em confronto com as realidades complexas do continente são trabalhadas em
profundidade por um etnólogo e antropólogo, que desejava intervir num processo histórico-
cultural de que discordava, que o incomodava.
164
O autor de Los Zorros expressou tal esperança de forma clara ao matar-se na
universidade num horário que não fosse “atrapalhar” o funcionamento acadêmico. Sua atitude
de desejar que um discípulo seu continuasse com suas investigações e ações evidencia a
esperança diante do drama da urbe, massacrante, suja, caótica.
A contribuição de Arguedas para o mundo poderia ser detalhado, da seguinte forma: a
língua quéchua, de eminentemente oral, passou a integrar o registro escrito, através de
dicionários, recopilações; como também, podemos concluir, que Arguedas foi testemunha de
uma modernização, do novo que saltava aos olhos; era gente de toda a espécie, uma realidade
complexa e, portanto, difícil de narrar.
Todo o quadro delineado acima parece encaminhar para a desolação, à percepção para
que não haja saída, possibilidade de subverter tal realidade. Porém, ao contrário disso,
acreditamos que ainda que haja aparentemente uma impossibilidade de soluções, atalhos,
olhar, observar, pensar, expressar-se, dizer, posicionar-se, querer, recusar, conhecer, trocar,
apurar, são algumas pistas de ações possíveis diante do exposto. A educação, leitura, reflexão,
expressão: tudo isso nos faz crer que é possível reverter os cálculos, as simulações, as
máscaras.
Tal como o Rio de Janeiro, que se pode afirmar que é um pólo turístico, econômico,
cultural, de inúmeras belezas naturais, Chimbote, representada na obra do escritor peruano
José Maria Arguedas, também possui movimentação econômica devido a seu pólo pesqueiro
(maior porto pesqueiro do mundo), e a apresentar grandes belezas naturais (montanha, mar...)
Chimbote apresentada através da perspectiva do escritor Óscar Colchado Lucio, uma
beleza que atrai olhares estrangeiros (externos): “Chimbote fue entonces una enorme boca
abierta hacia el corazón del cielo” (COLCHADO LUCIO, 2007, p.75) Del mar a la ciudad.
Se não nomeássemos a cidade peruana, tranquilamente poderíamos identificá-la como Rio de
165
Janeiro. A realidade representada por Arguedas e por Óscar Colchado Lucio conduz o nosso
olhar a nossa própria cidade.
Pensar o outro, a alteridade, nos faz enxergar melhor a nossa identidade. É a partir das
diferenças que vemos no outro o que nos permite delinear melhor o que há em nós mesmos e
encontrar possíveis respostas.
Há uma diversidade de possibilidades de respostas, desde as mais óbvias (a decadência
e desestrutura da cidade chimbotana seria uma metáfora da vida que se esvaía do criador de
Los Zorros). Concluímos que a obra é uma soma de forças: histórias sofridas relacionadas à
impotência diante da vida, ficção envolvendo um mito incaico e sua gente, com textos orais e
escritos envolvendo seu país e sua gente. Pode-se dizer, provisoriamente, que construir a idéia
de cidadania é mais do que ultrapassar os limites de uma identidade, num confronto constante
com a alteridade.
Perguntamos mais que respondemos; confundimos, talvez, ao invés de apontar saídas
para os conflitos que foram expostos. Que novos trabalhos investigativos nos tragam soluções
mais plausíves e coerentes que aquelas que estão presentes nessa pesquisa.
A transformação rodeia Chimbote. A modernização se instaurou, não como
possibilidade de bem estar, avanço, desenvolvimento econômico, social, cultural,112 mas
como degradação, como sinônimo de morte. Um dos personagens afirma: “Esa es la gran
“zorra” ahora, mar de Chimbote. Era un espejo, ahora es la puta más generosa “zorra” que
huele a podrido.” (ZZ, p.41)
112 Lembrando Adorno com a Dialética do Esclarecimento.
166
Crisanto Perez 113 afirma que os diários arguedianos são antecipações da morte.
Deixou o romance inconcluso; são personagens sem finais. É o romance dos paradoxos, num
grande diálogo frustrado. A realidade jamais resulta harmônica.
A violência está na distribuição de lucro, diz um indígena: “on centavo para ti, centavo
para mí, ochinta para patrón lancha, vente para piscador.” (ZZ, p.47); na forma de habitar, nas
condições básicas de sobrevivência: “los tres hijos dormían en el suelo sobre sacos vacíos de
harina de pescado.” (ZZ, p.48). Arguedas radiografa a cidade de Chimbote, iluminando a
humilhação a que eram submetidos negros, índios, mestiços, pobres, operários, falantes do
quéchua, mulheres, prostitutas, crianças, mortos. O autor oferece um espaço para que contem
sua historia e se posicionem diante do que vêem ocorrer em Chimbote. Lucero de Vivanco114
oferece uma perspectiva bastante interessante a respeito da obra: o fato de haver um canal de
diálogo entre os universos de cima e de baixo (não importanto aqui o que se entende por cada
um desses espaços) nos permite supor/imaginar que há um toque de esperança pairando na
narrativa, dentre o espaço apocalíptico, como afirmou Vivanco.
Aproveitando-nos de palavras de Rodrigo Montoya no tocante à contribuição de
Arguedas, afirma que para uma nação existir, não importa a cara que este povo tenha. Que se
possa construir uma ponte entre todas las sangres, numa busca incessante pela forma de
condução dessa construção em permanente movimento.
Arguedas, em sua obra, utiliza uma frase que é a com que desejamos encerrar,
temporariamente, nossa investigação:
“Hablemos, alcancémonos hasta donde sea posible y como sea posible.” (ZZ, p.51)
113 El zorro de arriba y El zorro de abajo: hacia una poética definitiva, Universidad de Piura, El mundo de los zorros, congreso, PUC/Lima, 2011. 114 Congresso Lima.
167
7 POSFÁCIO
Este trabalho reflete bastante a autora: muitas idéias, grandes propósitos
acompanhados de profundas limitações de aplicações.
Gostaríamos de haver possibilitado espaço para autores clássicos como Tomás
Escajadillo, Mariátegui, John Murra, com as Cartas de Arguedas, Alejandro Órtiz Rescaniere,
a grande especialista na obra de Arguedas Carmen María Pinilla, com a obra Arguedas y el
Perú de hoy, de José Alberto Portugal Las novelas de José María Arguedas - Una incursión e
lo inarticulado; ter lido “¿He vivido en vano?”- La mesa redonda sobre todas las sangres,
ocorrida em 1965. Gostaria de haver enveredado pela obra Historia de los grandes burdeles
de Emmett Murphy, obra que lança luz sobre o conflito estabelecido entre as normas sociais e
a sexualidade organizada. Gostaríamos de haver penetrado nos meandros desse universo, para
entender melhor os benefícios de seus proprietários, as alianças existentes entre o clero ou a
monarquia, os segredos de Estado. Teria sido frutífero haver lido 1968 - O ano que não
terminou de Zuenir Ventura, para entender um pouco melhor o espaço temporal que envolveu
Los Zorros. Ingressar na obra La santa cede - Del Copacabana a Tres Cabezas, narrativa
erótica de Chimbote, de Jaime Gusmán Aranda, obra que trata da vida erótica do porto que é
Chimbote. Muito além de tratar de migrações, marginalidades, fome e violência, a obra trata
sobre “relatos de la moralidade de una urbe atrapada en su próprio lifestyle; una ciudad
turbulenta cuyos narradores y narradoras, como zorros rapaces de arriba y de abajo, olean sus
calles y sus cuerpos que le dan vida”, nas palavras de Doris Moromisato115, na apresentação
desta obra. Gostaríamos de haver penetrado na história de A revolução peruana, de José Luís
Rénique, como de vários títulos de Óscar Colchado Lucio, como por exemplo
¡VivaLuísPardo!.
115 Poetisa que integra a Camara Peruana del Libro.
168
Ao terminar esta dissertação tão imperfeitamente, sinto-me um pouco confortada, a
partir de uma confissão feita por Arguedas, em uma das cartas que trocou com Pierre Duviols,
em 1961, referindo-se a sua obra mais recente O Sexto, naquele momento, quando declara que
já não se poderia editar o romance que escreveu, e que a tinha corrigido, por cinco vezes e que
ainda estava terminando de corrigir. (PINILLA, 2011, p.60). Ou seja, o processo é longo,
incessante,sempreprovisório.
Acredito que o título da obra de Carmen María Pinilla é o que melhor traduz a maneira
como queremos encerrar nossa investigação: José María Arguedas ¡Kachkaniraqmi!¡Sigo
siendo! Ou talvez o título da obra de César Vallejo Voy a hablar de esperanza. Terminamos
com suas palavras: “Todo acto o voz genial viene del pueblo/ Y va hacia él, de frente o
transmitidos”.
Que possamos encontrar na obra de José María Arguedas, aqui analisada, tanto quanto
em todas as vozes que a ele se uniram: o sussurro, a voz, o grito, o canto de um ser/povo à
margem, oprimido, sem espaço! Que o Peru “renacerá por su potencia humana indescritible.”
116
116
Trecho de uma carta de Arguedas a Duviols em 01 d janeiro de 1962, no primeiro dia do ano, com uma grande chama de esperança em seu povo.
169
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176
9 ANEXOS
177
9.1 ANEXO I: GLOSSÁRIO
A obra Los Zorros oferece grande dificuldade para o leitor que desconhece a língua
quechua. Por tal motivo, decidimos oferecer um apoio, baseados no texto de Martin Lienhard,
o qual compõe a edição, da coleção Archivos, e em nossa própria experiência leitora e
investigativa.
Apresentamos a seguir uma pequena relação de vocábulos, em quechua e/ou em
espanhol que são utilizados com frequência durante toda a narrativa e que nos parecem vitais
para a compreensão da obra como um todo, com o intuito de solucionar dificuldades léxicas.
Anchoveta: peixe semelhante à sardinha, que através de um processo de industrialização, é transformado numa farinha que possui benefícios semelhantes aos da soja, inclusive em relação a serem utilizados na agricultura, como “adubo”.
Arenal: extensão grande de terreno coberto de areia. Barriada: bairro; favela. Basural: lixão; local destinado ao depósito de lixo. Bolichera: embarcação para a pesca da anchova e o bonito cujo nome provém da rede chamada boliche. Chanchero: proprietário ou pastor de porcos. Cholo: índio civilizado; mestiço de europeu e índia; novos peruanos. Comuneros: povos que possuem comnidades de pastos. Criollo: americanos descedentes de europeus. Gamonales: cacique local, magnata ou pessoa de muita influência nas províncias, latifundiário poderoso. Huaytonqo: inseto, espécie de besouro. Médano: montão de areia quase na superfície da água, onde o mar é pouco profundo.
178
Muelle: obra construída às margens do mar ou entre as margens de um rio ou canal navegável, destinada ao atraque de buques que devem embarcar e desembarcar mercadorias ou passageiros; embarcadeiro. Serrano: aquele que habita na serra ou nasceu nas montanhas. Totora: junco de folhas largas; serve para a fabricação de balsas, esteiras, casas. Zancudo: Refere-se a aves que possuem as patas muito largas como a cegonha e o flamingo. Zorra: órgão sexual feminino. Zambo: descendente de negro e índio ou ao contrário; pessoa com características físicas relacionadas aos negros. Zorro: raposa; astuto, esperto
179
9.2 ANEXO II: DIÁRIOS DE VIAGEM
Lembro-me da primeira vez em que estive em Lima, em 2010, exatamente na data do
Grande Corso, que é uma espécie de Desfile Cívico, constituído de uma série de atrações
(vide Anexo 4), no dia 28 de julho. Alguns aspectos atraíram minha atenção e conseguinte
reflexão. Saliento que também tive o prazer de estar no Corso de Arequipa (Puno) e na cidade
de Cuzco. Quero deter-me na primeira e na última cidades citadas, pois alguns pontos me
levaram a refletir sobre os conceitos de nação, identidade, alteridade, migração, integração,
heterogeneidade, a língua quéchua.
No corso de Lima, ficamos quase duas horas além do horário previsto, esperando que
o desfile começasse. Um silêncio quase que completo envolvia o grande número de pessoas à
espera do espetáculo. Lembrei-me de minha nação, do quanto somos barulhentos e
impacientes, quando uma situação semelhante ocorre. Observei aquelas pessoas tão
“educadas”, “dóceis”, silenciosas, a esperar algo que havia sido prometido, organizado,
independente de suas vontades.
O espetáculo chamou nossa atenção por ser composto de atrações relacionadas aos
chineses, os quais compõem grande parte da população, como também atrações e canções
relacionadas aos desenhos infantis, mas com um vazio em relação à contribuição dos
indígenas, grande parcela dos habitantes peruanos.
O escritor Óscar Colchado Lucio (vide capítulo 5), que havia se proposto a me orientar
a respeito de minha visita à Cidade de Chimbote117, deu sua opinião sobre a reação de seus
patrícios antes do início efetivo do corso: disse acreditar que os limenhos, distintamente dos 117 No congresso ocorrido em 2010, na UFMG, conheci a Óscar Colchado Lucio, como um dos palestrantes. Soube que era oriundo da Província de Ancash, onde Chimbote se localiza. Apresentei-me para lhe falar de minha investigação ao redor da cidade central da obra Los Zorros, como também de meus planos de visitar o Peru e, claro, a cidade de Chimbote. Para minha grande surpresa, o escritor se dispôs a ajudar-me no que fosse possível, inclusive pedindo que entrasse em contato com ele assim que chegasse ao país, para conversarmos sobre meu projeto de dissertação. Mais adiante daremos mais detalhes sobre o ocorrido.
180
brasileiros, são mais tristes, por terem nascido sob um céu cinzento, onde quase nunca há a
presença do sol, e cercados pelo deserto. Isso, acredita ele, contribui para a falta de
espontaniedade, expansão e alegria de seu povo.
Em Cuzco, três aspectos da festa cívica, ocorrida na Plaza de Armas e na Avenida del
Sol, nos fizeram pensar em outras questões. O primeiro foi uma grande manifestação
composta de mascarados representando ratos e portando faixas. Claramente os animais se
referiam à presença de estrangeiros e grandes empresas de extração de petróleo e gás, que
estão danificando enormemente o ecossistema e fazendo retornar o produto exportado aos
peruanos com elevados valores. Os ratos naturalmente simbolizam animais relacionados ao
lixo, a questões escusas, ao estar sorrateiramente em atividade. Outra questão de nosso
interesse nesse momento foi o claro distanciamento percebido por mim de um grande número
de indígenas no momento ápice do desfile e das comemorações pela nação. As fotos do anexo
II revelam uma ausência de entusiasmo, como se nada do que estivese ocorrendo tivesse
alguma conexão com esse grupo. O evento não atingiu, em nossa pespectiva, tal grupo.
O terceiro e último aspecto que, talvez, tenha sido o mais revelador, foi uma grande
exposição em frente à Plaza de Armas; compunha-se de desenhos e artigos de jornais que
apresentavam como eixo temático a grande degradação ocorrida durante bastante tempo em
solo peruano, referente à extração de minérios e gás por empresas estrangeiras, com o aval do
Estado, na pessoa do então presidente Alan García (vide anexo II, inúmeras fotos).
Todo o exposto nos parece estremamente pertinente a toda discussão proposta em todo
o corpo de nosso trabalho e, claro, em inúmeras passagens da obra analisada. O alijamento do
grupamento indígena, não vendo-se espelhado, alvo de profunda exclusão de sua língua, de
sua cultura. O fato de os chineses estarem tão bem representados, com sua dita grande
contribuição para o país nos leva a pensar se o outro não estaria sendo tão mais aceito,
181
valorizado, querido que o seu próprio elemento nacional. Novamente, olha-se o outro, o
estrangeiro, com admiração, em detrimento do que é da terra, do autóctone.
Não podemos deixar de incluir nossa percepção em relação à 5ª Feria Internacional
del Libro, ocorrida em Lima, em 2010 (vide foto do anexo II). A exposição de um estatuto da
terra dos indígenas, com um grande clamor de uma parcela da nação/população, encaminhou
nossa reflexão para o fragmento de Los Zorros, onde o Louco Moncada, tanto quanto Don
Diego (metamorfoseado, no capítulo III), discursam sobre a profunda exploração de todos os
bens passíves de serem “abocanhados” pelo capitalismo, por sua voracidade.
Em minha segunda viagem ao Peru, inaugurava-se um ciclo, com a saída do poder de
Alan García, e a etapa de esperança que Huma Ollanta, novo presidente peruano, implantava
no coração dos peruanos. A gente simples com quem conversei (taxistas, atendentes e
comerciantes) expressava grande expectativa e esperança nesse novo líder, que muitos
acreditavam assemelhar-se ao ex-presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva.
Evidentemente, minhas memórias como viajante poderiam continuar fluindo por
muitos espaços e momentos “deliciosos” que tive. Mas o tempo me ameaça com seu grito
imperdoável: Não há mais tempo para voltar os olhos ao passado. Tenho que voltar meus
olhos para o que virá!
182
9.3 ANEXO III: POESIA EM HOMENAGEM A CHIMBOTE
183
184
9.4 ANEXO IV: ENSAIOS FOTOGRÁFICOS DO UNIVERSO ARGUEDIANO
BLOCO I: EXPOSIÇÃO “CHIMBOTE EN BLANCO Y NEGRO”
(27/06/2010-31/07/2010)
Observando as fotos deste bloco, percebemos que houve uma preocupação em retratar
uma época considerada áurea da cidade de Chimbote, quando sua praia e seu mar eram
sinônimos de momentos aprazíveis, de veraneio em família, de beleza.
A foto 6 nos traz a imagem da modernização, através do trem, da locomotiva, da
rapidez desenfreada, do transporte de minérios, da extração de recursos naturais, sem o
cuidado devido com o meio ambiente e com os habitantes da região (vide bloco referente à
exposição de Cuzco).
A foto 7 nos revela o hotel mais antigo de Chimbote: O Chimu ( o qual é citado na
obra Los Zorros). E, finalmente, a última foto nos coloca uma tragédia ocorrida no ano de
1970: um terremoto devastador, que destruiu praticamente toda a cidade de Chimbote.118
118 De acordo com Rômulo Monte Alto, da UFMG, o terremoto que atingiu Chimbote, dia 31de maio de 1970, pode ser lido como uma espécie de castigo.
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BLOCO II: EXPOSIÇÃO FIESTAS PÁTRIAS
CUZCO – 2010
As fotos que compõem este bloco referem-se à exposição ocorrida o período das festas
cívicas, Fiestas Patrias, na Cidade de Cuzco, próximo à Praça de Armas, no ano de 2010.
Claramente, nas fotos 1 e 2 há uma oposição de posicionamento frente à natureza, à
integração do humano ao meio. A noção de territorialidade também está expressa. A extração
de minérios tal como a presença de estrangeiros em relação à economia dividem as posições
frente ao bem natural.
As fotos 3 e 4 trazem o antes e o depois da interferência humana, o desenvolvimento
sem planejamento devido. A degradação se evidencia nas fotos: antes, cheia de vigor, depois
do encontro com o outro, direcionada à morte.
A foto 5 nos remete à questão mítica, em especial ao cap. III da obra Los Zorros,
quando Don Diego e Don Ángel dialogam a respeito de como o humano se posiciona diante
do materialismo incontrolado. É a figura do Estado gerenciando as ações em prol de seus
próprios interesses.
A foto 6, apresenta dos tipos antagônicos, tanto no que concerne à tipologia física, à
fala de cada personagem, ao tamanho diante do outro; há o personagem que parece
representar o ex-presidente Alan García, cujo balão da fala apresenta letras negras, firmes,
grandes, espaçosas. Em contraste, o personagem que remete à figura de um menino, apresenta
uma única frase do personagem aparentemente frágil, pequeno, sem um vestuário adequado,
com as pernas levando à idéia de fraqueza, limita-se ao vocábulo comer, como um dos
princípios básicos de sobrevivência.
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As fotos 7, 8, 9, 10 e 11 nos remetem ao personagem Don Estevan de la Cruz (o qual
não foi, neste trabalho, devidamente refletido), com seus problemas de saúde provenientes da
profissão que exerce e do local a que se expõe (trabalha em minas).
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BLOCO III: CHIMBOTE
2010
Este bloco apresenta 31 fotos, dentre muitas outras que foram tiradas por mim no dia
que fui à Cidade de Chimbote. Fui orientada por Óscar Colchado a visitar: Fábrica Pesqueira,
no Bairro 27 de Octubre, porém as visitas ao local estavam temporariamente suspensas; o
Cerro de la Paz, que possibilita uma bela visão da cidade; à Barriada São Pedro; ao Barrio
Lucero, local onde Moncada viveu; à Carretera Panamericana, estrada por onde meu ônibus
passou de Limas a Chimbote; aos Arenales; aos cemitérios; ao porto, para observar as
bolichera, lanchas, trabalhadores; a Paróquia San José119.
As fotos de 1 a 21 trazem várias imagens de Chimbote, com suas embarcações
(bolicheras), seu mar, a Isla Blanca, o editor Jaime Gusmán Aranda120.
A foto 6 e 10 apresentam imagens de trabalhadores relacionados ao ambiente da pesca.
Degradação ambiental é o tema presente nas fotos 12 e 13.
Da foto 14 à 18 temos a expressão popular e/ou organizada no tocante à preservação
daquilo que pertence ao porto, à cidade de Chimbote, ao Peru, talvez relacionando-se à
presença estrangeira em terras nacionais. Há manifestações contra a venda dos portos.
Da foto 19 à foto 21 temos a presença de pelicanos. Isso nos remete a Pico Largo,
personagem central do conto Del mar a la ciudad, que tem Chimbote como centro tanto no
conto quanto na obra arguediana Los Zorros. Sua presença em meio ao lixo, ao lamaçal, à
poluição indica que a vida firmemente continua a florescer. 119 Foi nessa igreja que Arguedas deixou de ser ateu, de acordo com Jaime Gusmán Aranda. Através do contato com o Padre Gustavo Gutiérrez e seu discurso sobre a Teologia da Libertação, Arguedas reencontra a Deus: El Dios de Chimbote es mi Dios. O editor de Río Santa relaciona tal comentário à obra arguediana Todas las sangres, onde é retratado algo terrível, quando fazendeiros ateiam fogo em um povoado, inclusive numa igreja. O padre dessa paróquia, além de não expor a situação, ainda se alia a aos latifundiários. Arguedas via a Igreja como uma instituição extremamente submissa, a qual se arrodillaba diante do poder instituído. 120 Foi meu guia por vários locais da cidade, a pedido de Óscar Colchado Lucio.
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As fotos 22 e 23 representam alguns dos muitos locais (instituições) da cidade: um
hospital, um hotel, uma paróquia.
As fotos 24 à 27 é o local onde, segundo Jaime Gusmán Aranda, ocorreu uma
profunda transformação na vida de Arguedas, em relação à crença em Deus e nos homens.
A foto 28 representa o lema da Río-Santa Editores.
As fotos 29 a 31 traz imagens dos dois cemitérios. O arenal, como depósito de corpos
dos miseráveis o local dos mais abastados. Sem delimitação de espaço, onde tudo se
confunde, com clara idéia de abandono.
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BLOCO IV: A FACE DO PERU
2010
Este bloco compõe-se de 33 fotos. As foto 1 à 13 exibem a realização de Fiestas
Patrias em Miraflores (Lima), em Arequipa e na Cidade de Cuzco. Ocorrem manifestações de
grupos contrários à exploração de gás por empresas estrangeiras, como há a presença de
alguns sindicatos no evento. A manifestação “gritava” sua indignação contra os “ratos”
estrangeiros que querem “tragar” o gás peruano.
A foto 4 encaminha ao pensamento de amor à nação, congregando cada leitor. Estaria
o não-leitor da língua espanhola (vigente como língua oficial) incluído nesse conjunto? Algo
que atraiu nossa atenção foi a presença maciça de cores da bandeira peruana, por todos os
lados, como um lembrete do símbolo nacional. Em uma conversa informal com o Professor
Oscar Colchado, comentou-me que tanta exposição de bandeiras por todos os lados é uma
estratégia do Governo para construir uma nacionalidade. O quéchua se traduz em Centro
Cultural Quéchua e Aymara e o Centro de Arte nativo. A foto 14 indica a presença formal da
língua quéchua.
A imagem 10 nos encaminha ao pensamento: Estaria este grupo sentindo-se parte
integrante dos festejos? Levantamos a possibilidade de indígenas e/ou descendentes, que
distintamente dos outros, aparentava indiferença ao que ocorria ao redo.
As fotos de 15 a 21 apresentam imagens de migrantes, de indígenas.
A foto 23 ilustra aos várias possibilidades de utilização da planta totora.
O personagem Crispín Antolín, da obra Los Zorros, está muito bem representado no
músico da imagem 25.
Finalmente, da foto 26 a 33, a 15ª Feira Internacional do Livro, com Óscar Colchado
Lucio, objetivando que eu pudesse usufruir de palestras, exposições e inúmeros espaços
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dedicados à reflexão literária. Presenteou-me com a obra de Mario Vargas Llosa A utopia
arcaica.
A foto 30 à 33 nos remetem a Decisión 545 e ao CAN ( vide capítulo relativo à
Constituição e ao migrante). Fechamos este bloco com a foto 33, indicando a comunidade
andina, sobre a qual tratamos no capítulo.
Levantamos a hipótese de que tais festas cívicas sejam a continuidade de um projeto
de construção e constituição de uma nacionalidade. Tais festas são felizes, devem sê-lo! É
quase que um convite à felicidade nacional.
Algo que me chamou a atenção foi a falta de emoção antes e durante o Gran Corso
(18/17/10). O desfile demorou mais de uma hora para começar e as pessoas não expressavam
nenhuma reação. Pareceu-me, a princípio, grande educação. Mas, durante o evento, o povo
continuava indiferente, impassível.
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