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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ CURSO DE LETRAS
O LUGAR DO LEITOR DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
Shirlei França dos Santos Orientação Prof. Dr. Marcelo Sandmman Co-orientação Prof. Dr. Gilberto de Castro
CURITIBA 2007
i
SHIRLEI FRANÇA DOS SANTOS
O LUGAR DO LEITOR DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Estudos Literários sob a orientação do Prof.º Dr. Marcelo Sandmman e co-orientação do Prof.º Dr. Gilberto de Castro
CURITIBA
2007
ii
“Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida o livro. Os demais são extensão do seu corpo... Mas o livro é outra coisa, o livro é uma extensão da memória e da imaginação”.
Jorge Luís Borges
iii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................1
A LEITURA E O PÚBLICO INFANTO-JUVENIL.................................................4
1.1 Leitura versus pedagogia ........................................................................................4
1.2 O paradoxo do mercado..........................................................................................7
A MEDIAÇÃO ENTRE O TEXTO E O PÚBLICO LEITOR...............................10
2.1 Enroscos em busca de uma definição ..................................................................10
2.2 O universo infanto-juvenil pela ótica adulta.......................................................12
2.3 A relação leitor e escola.........................................................................................14
2.4 A relação escola – mercado...................................................................................15
GOSTO PORQUE ME IDENTIFICO: QUEM É O LEITOR INFANTO-JUVENIL?....................................................................................................................17
3.1 A questão do gosto ................................................................................................17
3.2 O leitor e os interesses na narrativa.....................................................................21
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................26
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................28
1
INTRODUÇÃO
Se pensarmos no ato de ler, inclua-se, nesta atividade, toda a gama de gêneros
discursivos, como um ato primordial na constituição do senso crítico, estético e
informativo de um sujeito, não podemos nos esquivar de pensar como e qual leitura
poderá atender a tais expectativas formativas.
A propósito disso, é notável, no entanto, certos disparates quanto aos
encaminhamentos que a escola dá à leitura; basta para isso analisar-se como o ato da
leitura vem sendo conduzido e praticado no ambiente escolar: são enquadrados num
sistema repetitivo de títulos (selecionados por ora terem sido consagrados pela fortuna
crítica produzida, ora pela historiografia brasileira ou, outras vezes, ainda, pela própria
indústria midiática) e com abordagens que nem sempre atendem ou correspondem aos
interesses dos alunos.
Sabe-se ainda que, em grande parte das vezes, esse trabalho é norteado pelas
diretrizes de interpretação e trabalho pedagógico que impõe um material quase nunca
ausente do espaço escolar: o livro didático. Nele, as relações com os textos são muitas
vezes estanques e igualmente desestimulantes, incapazes de favorecer o pensamento
crítico e a reflexão sobre o ser e o mundo, em especial, no que tange seus aspectos
mais subjetivos. Dessa forma, em contraposição a um número crescente de novos
títulos nas prateleiras, o número de jovens leitores não ascende com a devida
proporção, pois embora seja óbvio que tenha ocorrido um aumento do número de
leitores no Brasil, esse número, fato é, acompanhou apenas a linha de crescimento da
“democratização da alfabetização”, não sendo indício de um real interesse por livros
(ZILBERMAN, 1982. p. 7). Assim, finalizado o processo escolar e a conseguinte
obrigatoriedade do “ler”, poucos são os indivíduos que ainda o fazem por estímulo
próprio, e ainda nota-se que, entre esses, muitos dos livros escolhidos pouco ou nada
têm a ver com aqueles que são trabalhados na escola, ou seja, os de literatura canônica,
obras consagradas pelo mundo adulto ou que o conhecimento de outros títulos/autores
por parte dos alunos não ultrapassa as indicações trabalhadas no âmbito escolar, o que
reforçaria a premissa de que o contato desses jovens com o mundo literário se restringe
quase que única e exclusivamente com aquilo que é imposto pelo currículo escolar
2
(FARIA, 1999. p. 17-18). Nesse sentido, é evidente o paradoxo, considerando-se que
um dos papéis da escola (e do livro didático, tido como o seu principal instrumento
norteador) é aproximar os jovens estudantes do conhecimento e da arte, promovendo
com esse encontro além da formação de cidadãos mais conscientes, críticos, reflexivos
e preparados para a vida, a fruição estética.
Essas são, portanto, algumas das questões que permeiam o trabalho com a
leitura (especialmente, a de obras literárias, dado o fato de que esse não é o único
gênero discursivo contemplado na escola) entre o público infanto-juvenil. Dessa
forma, seria, então, esse trabalho pedagógico, um trabalho vazio e destituído de
sentido e valor, apesar das inúmeras reflexões a respeito entre os profissionais da área?
Por que, contudo, o constante desinteresse por parte dos alunos? O que parece é que a
literatura, como vem sendo abordada, não alcança espaço e importância na vida do
sujeito. Por que ler e para quê? Existe um sentido pragmático para fazê-lo e, se existe,
por que é tão difícil demonstrar isso ao jovem leitor? Conhece a escola o seu público,
sabe de seus interesses, características e expectativas? E não seria esse o
questionamento primeiro a ser levantado antes de qualquer trabalho com leitura? Onde
está o erro e como consertá-lo? Estes são alguns questionamentos que parecem
pertinentes de serem feitos. É possível que eles possam servir como um guia condutor
para pensar em como a leitura imposta no ambiente escolar não promove, pois, um real
estímulo à prática e interesse pela leitura (e literatura) formando, assim, verdadeiros
leitores.
Esses questionamentos, se essenciais, não são, contudo, novidade. Infelizmente,
o fato posto tem sido uma recorrência ao longo das últimas décadas: a literatura na
escola atua num papel secundário, servindo quando tanto (a leitura canônica, e mais
tarde no ingresso escolar) aos interesses imediatistas do processo do vestibular. Desse
modo, o trabalho com o texto literário, sua leitura e compreensão, tornou-se um
constante desafio para os professores. Como resgatar o interesse dos alunos? O que ler
e como ler?
Repensar como deve ser a abordagem da literatura hoje, estudando-a enquanto
um fato social; analisar a recepção e os modos de interpretação de textos literários
(leia-se paradidáticos, inclusive) usando, como base de estudo, pesquisas feitas em
3
campo com alunos da rede pública1 e apontar nos modos de leitura e de abordagem, o
papel do professor em sala de aula, como mediador desse processo – eis os principais
tópicos da abordagem aqui proposta, tendo-se em vista que as questões metodológicas,
no que tangem uma dada orientação de leitura, devem ser usadas para promover e
estimular um debate interpretativo, enriquecendo e ampliando seus significados,
agregando e não excluindo o conhecimento de mundo de cada envolvido, despertando
o prazer e um crescente interesse pela leitura. Ainda considerando-se que, ao que tudo
indica, na teoria e na prática, nenhuma metodologia de leitura ou trabalho com
literatura será efetivamente eficiente se não for pautado numa investigação das
características e num conhecimento prévio de quem é esse público leitor situado no
espaço escolar, qual é o seu perfil, quais são suas expectativas e interesses. Uma
investigação que reconheça as diferenças existentes entre os alunos, que há grupos que
se heterogenizam pela idade, gênero ou classe social, e que assim seja capaz de
diagnosticar quais assuntos/temas despertam curiosidade, instigam o interesse, o
prazer, a emoção. Ou seja, essa pesquisa tem por objetivo trazer a essa problemática
discussão a importância de um reconhecimento criterioso, no decurso do processo
escolar, da demanda de um dado público docente, tendo em vista um encaminhamento
de leituras que privilegie um repertório literário mais condizente e efetivamente
construtivo e aprazível. Dessa forma, este trabalho se propõe a conduzir uma linha de
investigação bibliográfica que não apenas levante algumas falhas no encaminhamento
de leituras (a priori, exclusivamente, de cunho literário) para o público infanto-juvenil,
mas que reconheça o eixo de identificação entre o público leitor e texto.
1 O estudo em questão refere-se ao material publicado, em 1999, da, até então, professora de pós-graduação de Educação da Unesp de Marília, SP, Maria Alice Faria. Faria, conjuntamente com outros professores envolvidos na pesquisa de campo, empreendeu um trabalho a respeito de recepção de textos literários, o primeiro passo dado em função da pesquisa sobre a pedagogia da literatura. Para a captação do material foram escolhidos 140 alunos de 7ª e 8ª séries, da rede pública de ensino de Assis, estado de São Paulo.
4
A LEITURA E O PÚBLICO INFANTO-JUVENIL
Há algum tempo tem sido foco de estudos e produções acadêmico-pedagógicas
(basta, para isso, verificar o que, desde a década de 80, e até um pouco antes disso,
têm-se publicado a respeito) questões que tratem de metodologias renovadoras, entre
crianças e adolescentes, quanto à prática da leitura. Essas reflexões têm tido como
intuito, especialmente, pensar a leitura (e a literatura) como uma ferramenta passível
de ser aplicada sem redundar numa educação “programada, repetitiva e monótona que
transforma o interlocutor no objeto passivo de sua modelagem”2. Ora, se os rumos de
uma nova educação, em todos os níveis, indicam que o escolar, enquanto sujeito
interativo no espaço social, deve ser reconhecido em sua essência, história e cultura, é
importante resgatar algumas discussões que tratem de que diretrizes sociais
promoveram tais reflexões.
1.1 Leitura versus pedagogia Como já anteriormente apontado, a quantidade de textos e pesquisas elaboradas
em torno do tema literatura infanto-juvenil, confirma: essa tem sido fruto de constantes
teorizações e mote para debates, muitas vezes, acalorados, devido à diversidade de
enfoques em torno do assunto.
Um deles parece ser, segundo Khéde, questão central: “gira em torno da
aceitação ou repúdio da literatura infanto-juvenil como um gênero marcado
historicamente” (1986, p.8). Ainda de acordo com Khéde, depois de traçado um
panorama histórico que revela a literatura infanto-juvenil como um produto da
sociedade burguesa, a “singularidade do gênero literário infanto-juvenil estaria
justamente na sua indiscutível complexidade histórica, responsável, também, pelas
inúmeras nuanças ideológicas que entrecortam os seus textos” (1986, p. 9). Também
partindo de um panorama cronológico, Zilberman reforça o quanto a natureza social da
2 Este trecho faz parte de prefácio de abertura da compilação de textos organizados por Yunes (1984) cujo muitos dos artigos, apresentados no III Congresso de Leitura, realizado em Campinas, em 1981, serviram de base para elaboração desse trabalho.
5
literatura infanto-juvenil é decorrente do período histórico que provocou o seu
aparecimento:
“Emergindo de paralelamente a um novo fenômeno – o de idealização da criança e da infância -, sua existência não pode ser compreendida sem que seja vinculada à nova posição que ocupa a burguesia na sociedade européia durante o século XVIII. Ao conquistar o poder político coerente com a sua crescente capacidade econômica, a classe burguesa também impõe seus valores e sua cultura, em cujo centro está uma ênfase especial dada à criança e às instituições ligadas a ela”. (ZILBERMAN, 1986. p.18)
Com isso, a literatura destinada aos leitores jovens tornou-se um instrumento
que aliado à pedagogia era capaz de modelar cada criança de forma que atendesse às
necessidades da engrenagem social, condicionando-a a um novo papel que deveria ser
desempenhado. A instituição propagadora e articuladora desse processo, por sua vez,
foi a escola. No cumprimento de:
“(...) uma tarefa explícita, o que evidencia porque toda a visão burguesa de transformação passa inevitavelmente pelo filtro do sistema escolar e da teoria pedagógica. Pois é a esta práxis – que, em princípio, funda-se numa formação de mentalidades, ou seja, numa imposição de ideologias – que se confia a regulagem do organismo, segundo uma mecânica que se faz por meio de avaliações contínuas e de um relevo especial dado à educação”. (ALTHUSSER3 apud ZILBERMAN, 1986. p.19)
E eis que aí surge um ponto chave abordado pelas autoras para pensar como o
discurso e a fala, elaborados numa tentativa de expressar mimeticamente o pensamento
do próprio leitor a quem se direciona, são constituídos de artificialidade, pois servem
de instrumento de propagação ideológica. Fato que, mesmo nas produções
contemporâneas, de acordo com Khéde (1986, p. 18) reflete uma relação de
autoridade, tal qual aquela que deu sua origem, com o intuito de estabelecer uma
norma familiar burguesa, mesmo que lúdica, porém pedagógica e moralista. Para
pensar nisso vale reproduzir o que diz Machado:
“(...) Quando se focaliza literatura para crianças, é costume afastar a luz do texto e fazê-la incidir sobre o receptor (...) Confunde-se estética com ética, literatura com educação e acaba não se fazendo nem uma coisa nem outra. E já é mais do que
3 De acordo com ZILBERMAN, “Louis Althusser, em seu ensaio “Aparelhos Ideológicos do Estado”, discute este papel da escola com inculcadora da ideologia dominante. Parece-nos que o problema tem uma maior abrangência, na medida em que a escola substitui a luta pela mudança na sociedade, acreditando que se possa proceder à transformação dentro e a partir da sala de aula, numa promoção do valor revolucionário da educação e do saber universal. Em outras palavras, ela torna-se o lugar por excelência da modificação, impedindo, portanto, que esta possa ocorrer no âmbito mais amplo da atividade política.” Cf . ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. In: Posições – 2. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
6
tempo de desfazer de dentro esse equívoco. Essa confusão não deve ser feita, mas não é porque não seja moderno que as histórias não tenham papel moral nem fiquem dando aulinhas. Não. Nada disso. Simplesmente, rasteiramente (...) porque literatura e educação são incompatíveis... Caminham em sentidos exatamente opostos”.4 (apud KHÉDE, 1986. p. 10)
Mesmo décadas depois, já nos anos 70 e com “modificações substantivas que
alteraram o panorama cultural” (ZILBERMAN, 1984. p. 13) brasileiro, no que cabia
aos estudos literários, fechados em centros especializados, o trato com a literatura não
melhorou e tampouco se conduziu por trilhas menos questionáveis:
“(...) o ensino de literatura estratificou-se num conservadorismo que se limitava à imposição de uma história literária centrada nos “clássicos de antologia” e nas escolas literárias, e tendo as análises estruturalistas como via comum de abordagem desses textos. Assim, a leitura literária esvaziou-se do contexto geral em que as obras são produzidas, da visão de mundo dos autores, da experiência existencial que eles nos transmitem ou colocam em debatem, o que esterilizou o aspecto mais vivo e formativo da literatura. Os críticos informais foram substituídos por especialistas que usam um jargão incompreensível para os não-especialistas, afastando ainda mais o público da literatura. Além disso, não havia interesse em pesquisar uma nova pedagogia da leitura literária, a fim de atender o público cada vez mais heterogêneo que ingressava nas escolas (...)” (FARIA, 1999. p.10)
Assim, estava estabelecida a “crise da leitura”, que apontada como um fator
preocupante, produto da mal engendrada fórmula de condução da leitura no processo
escolar, dava-se início, nos anos 80, a uma nova discussão a fim de pensar a literatura,
especificamente a dirigida a crianças e adolescentes, como um objeto estético que
despertasse prazer e interesse, que mobilizasse, e fosse capaz de alimentar uma
cumplicidade com o leitor, fazendo desse momento, o momento da leitura, também um
ato de fruição.
Esse novo processo de discussão e investigação permitiu, por sua vez, como
informa Faria (1999, p.12), que uma nova pedagogia da literatura, fosse, enfim,
pensada, discutida, estabelecida e adotada pelos PCN com o intuito de contribuir para
que a escola se constituísse num espaço que modificasse a representação dos jovens
em relação ao saber escolar:
“(...) o saber difundido na escola, em geral, é visto como um amontoado de conteúdos, com pouca relação com a realidade em que vivem, não despertando interesse, nem oferecendo referencias culturais”” (Introdução, 1998, p.124 apud FARIA, 1999. p. 12)
4 MACHADO, Ana Maria. Introdução. In: Cadernos da PUC/RJ n. 34, Rio de Janeiro, 1980, p. 2-3.
7
Assim, tornou-se ponto comum que a literatura não deve servir a uma prática de
manipulação social, engendrada no sistema escolar brasileiro, e baseada na modulação
de pessoas em detrimento de suas características socioculturais.
Contudo, ainda que delimitada uma problemática e, na teoria, tenham sido
estabelecidas uma série de medidas que devem ser revistas ou adotadas quanto à
prática da leitura, no que se refere ao caráter modelador dado à literatura ao longo da
história das instituições escolares e ao seu uso vazio de significado, esse problema
parece longe de seu fim, pois, ainda,:
“(...) os índices de leitura denunciam as deficiências do ensino e dos níveis de compreensão de textos na sociedade em geral (...) Do período colonial ao colonialismo disfarçado da contemporaneidade, o Brasil tem guardado uma persistente memória de descaso com a leitura. Respeitadas algumas ilhas de batalhas vitoriosas contra a ignorância e a incultura livresca, o país padece de resultados sempre inferiores aos índices mínimos desejados para uma sociedade leitora”. (COSTA, 2006. p. 70)
De forma que paradoxos se estabeleceram entre a função educativa e prática de
leitura e a produção de livros como bem de consumo e produto cultural.
1.2 O paradoxo do mercado Feito o sucinto panorama histórico, do outro lado, e curiosamente, um fato
chama atenção no círculo que ronda os livros: o mercado editorial brasileiro apresenta,
desde a década de 90, momentos férteis de produção5, inclusive no que se diz respeito
à publicação de novos escritores e/ou obras ou ainda de reedições de obras adotadas
por instituições de ensino (algumas há muito já utilizadas e outras, dentre essas, que se
consagraram perante à crítica literária ou que “caíram nas graças” dos educadores)
ainda que se observe uma tiragem, em média, cada vez menor por edição, pois
segundo os indicativos apresentados conjuntamente pela Câmara Brasileira do Livro e
o Sindicato Nacional dos Editores de Livros6, em 1990, foram um total de 22.479 de
5 Entenda-se aí uma gama bastante variada de gêneros: livros didáticos para ensino médio, obras específicas para profissionais e/ou de cunho científico, bíblias em versões luxuosas, e demais obras que abundam prateleiras destinadas a temas como auto-ajuda, esoterismo, misticismo e religião, entre outros. 6 Os números apontados dizem respeito ao levantamento estatístico de produção da indústria editorial brasileira elaborado pela CBL (Câmara Brasileira do Livro) em convênio com a SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros). Esses dados encontram-se disponíveis em: <http://www.cbl.org.br/pages.php?recid=58>. Acesso em: 05 nov. 2007.
8
títulos lançados, destes 239.392.000 volumes de 1º edição e 212.206.449 de
reedição, e para o ano de 2006, o lançamento de 46.026 títulos, em que 320.636.824 e
310.370.033 volumes correspondiam a primeiras edições e reedições respectivamente,
mantendo-se, assim, uma significativa alta na produção editorial mesmo levando-se
em conta que houve queda em relação aos anos de 1997 e 1998 (períodos que
apresentaram picos no número de lançamentos, chegando a uma marca que ultrapassou
50.000 títulos).
Notável é que boa parte dessa tiragem, ainda que em número reduzido de
edições por obra, como já anteriormente destacado, é dirigida ao leitor mirim. Assim, é
possível encontrar no mercado um vasto número de obras direcionadas a esse público,
que se destacam quase sempre pelo grande apelo gráfico, fazendo uso, inclusive, de
recursos audiovisuais, algumas específicas para bebês, e com uma considerável opção
de valores. Estão essas obras não só dispostas em gôndolas e estantes de livrarias,
como se era de costume encontrar, atualmente a sua comercialização ocorre também
em locais supostamente mais alternativos (como internet, bancas de revista,
supermercados e lojas de conveniência, por exemplo).
Assim, não parece descabido dizer, que podemos ser induzidos a concluir que,
ao menos, no que se diz respeito a uma parcela da população, a de classe média, mais
possivelmente, o contato com a leitura, e por que não dizer, com a “literatura” (sem
cair na questão da discussão estética), inicia-se já em casa e muito cedo. E, assim,
diante desse contexto, podemos nos perguntar a respeito da importância do fator
socioeconômico, assim como faz Faria7, pois evidente é que algumas famílias, por se
beneficiarem de um melhor poder aquisitivo, facilitam aos mais jovens o acesso aos
livros, dado o alto custo que esse bem tem para o consumidor brasileiro. Em
contrapartida, é de suma relevância tratar o que aponta Cunha (1984, p. 38) a respeito
dos não leitores brasileiros ao dividi-los em três categorias, “a”, “b” e “c”,
respectivamente: os que não dominam a leitura, ou a fazem muito mal; os que não
dispõem ou de recursos financeiros ou de tempo para a leitura e aqueles que têm
7 Faria (1999, p. 80) na tentativa identificar fatores que explicassem as falhas na formação literária dos jovens pesquisados informa: “Consideramos, inicialmente, a situação socioeconômica e cultural desses alunos, que não lhes abre muitas possibilidades de desenvolvimento crítico e intelectual (além de cultural no sentido amplo)”, mas não deixa claro se acredita que se esses jovens pertencessem a uma classe social mais elevada o quadro se revelaria outro, como contesta Cunha (1984, ,p .38).
9
igualmente tempo e dinheiro, lêem razoavelmente, porém não possuem o hábito da
leitura. Isso posto, chamamos atenção para o que explica a autora:
“É claro que as categorias a e b se confundem. Com esses grupos, a leitura tem poucas chances de sucesso, na medida em que continuam faltando para eles escolas e recursos financeiros. São eles o resultado de uma política educacional e econômica desfavorável às camadas desfavorecidas. Mas também a categoria c lê muito pouco. Pesquisas feitas (...) mostraram que o fator socioeconômico não influi significativamente no hábito da leitura. Aí a questão se complica mais uma vez. Se mesmo indivíduos de alto poder aquisitivo lêem pouco, já não podemos responsabilizar a questão sócio-econômica. Seria cômodo e tranqüilizador poder fazer isso”. (idem)
Dessa forma, revela-se que essa ponte, esse estímulo no ambiente familiar,
salvo os casos em que se demonstra improdutivo (uma vez que livro adquirido não é
necessariamente livro lido), parece se perder no período escolar, momento em que o
jovem leitor mais contato mantém com o livro (seja em número de volumes ou em
tempo dedicado a esses). Temos, então, estabelecido um paradoxo em que:
“(...) elevando-se quantitativamente o público leitor, e em especial o infantil, verifica-se ao mesmo tempo sua evasão, isto é, a diminuição paulatina de sua convivência com o livro. De modo que, se a crise existe, ela ocorre sob o signo de uma contradição – entre a multiplicação dos prováveis compradores e das ofertas literárias e a recusa da criança e do jovem em converterem-se neste leitor assíduo e conseqüente”. (ZILBERMAN, 1984. p.14)
Quanto à prática da leitura no âmbito exclusivamente escolar, Faria (1999, p.
14) explícita uma constatação feita por muitos educadores: o “desprazer e rejeição dos
alunos à leitura obrigatória impostas nas aulas de português”. Com isso, podemos
inferir que o contato contínuo, por si só, com os livros (seja ele compulsório, segundos
os moldes da escola, ou estimulado pela família) não seja capaz de aguçar no leitor
mirim o gosto e o desejo de se dedicar a arte literária? Pois afinal, ao analisarmos esses
dois ambientes, a fim de detectar como tais livros chegam até os seus receptores, tanto
num caso como no outro, confirma-se, com as palavras de Cunha o que fora
anteriormente levantado: o papel do adulto é imperativo:
“Se vamos tratar da formação do leitor infantil, não poderemos deixar de enfocar a relação do adulto com o livro (sobretudo o de literatura): é esse adulto que, detentor de um poder (no governo, na família, na escola, etc.), vai facilitar ou não o acesso dos mais jovens ao livro”. (1984, p. 39)
10
Assim, sejam esses adultos os pais e familiares ou os professores, são eles que
operam as escolhas segundo os próprios gostos, interesses ou convicções, quer de
caráter moralizante-pedagógico ou não. Dessa forma, poucas são as seleções de obras
fundamentadas naquilo que realmente quer a criança, pois são, antes de tudo, pautadas
naquilo que os adultos “acreditam” interessar ao jovem leitor e a ele ser pertinente,
postura que gera, perigosamente, o afastamento desse leitor.
A MEDIAÇÃO ENTRE O TEXTO E O PÚBLICO LEITOR
Se há, portanto, um equívoco no modo como esses adultos, no papel de
mediadores, efetuam suas escolhas, em que um determinado livro, especificado e tido
como adequado para seu respectivo leitor, não consegue, contrariamente, interessá-lo,
parece ser o caso pensarmos nas características que definem essas obras como tais.
Partiremos, então, do seguinte questionamento: o que é, portanto, literatura infanto-
juvenil? Se, por um lado, essa interrogativa parece pertinente para o entendimento de
tais discrepâncias, por outro, ao se levantá-la surgem inúmeros problemas ao se
deparar diante de uma possível delimitação desse conceito.
2.1 Enroscos em busca de uma definição Na busca de uma justificativa para a classificação de alguns textos pelo adjetivo
infanto-juvenil, “flutuante e indefinido” (COSTA, 2006. p. 151) poderia-se dizer, por
exemplo, que ela diz respeito a um gênero direcionado às crianças e adolescentes de
até, aproximadamente, quatorze anos de idade, (faixa etária, na qual, em média, é
prevista a conclusão da 8ª série do ensino fundamental) e que apresenta características
que o distingue das demais obras, em um nível temático: o universo lúdico, a fantasia,
a aventura e mistério; e num nível gráfico: ilustrações e outros detalhes de apelo
estético e visual que, acredita-se, sejam agradáveis ao público alvo.
Embora, essa caracterização não fuja, em certa medida, do que se pode observar
em livrarias e bibliotecas ao se consultar as sessões específicas para esse gênero, às
questões que tangem uma classificação não se encerram tão pacificamente:
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"A Literatura Infantil faz parte dessa literatura geral? Pergunta a que se poderiam acrescentar mais estas: Existe uma Literatura Infantil? Como caracterizá-la? Evidentemente, tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se considera como especialmente do âmbito infantil. São as crianças, na verdade, que o delimitam, com a sua preferência. Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas lêem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori". (MEIRELES, 1984. p. 20)
Nesse sentido, a colocação de Meireles8, cujos muitos textos são destinados e
usados em larga escala pela escola no trato com leitor infanto-juvenil, vai ao encontro
do que trata Costa (2006, p. 50) ao falar da literatura quanto ao seu aspecto estético:
“Literatura expressa em sua composição uma realidade complexa, heterogênea, mutável. E quem aplica o adjetivo literário a uma obra é a sociedade, pelo modo como lê e usa os textos, e “decide se certos textos são literários fora de seus contextos originais”9 ”.
Sendo assim, o texto “infanto-juvenil” elevado ao status de arte, perfeitamente,
pode tornar-se interessante aos olhos de leitores mais maduros e críticos. Do mesmo
modo, um texto tido como exclusivo para o mundo adulto pode, igualmente, agradar o
jovem público leitor. É prudente observar, no entanto, no caso desse último, as devidas
considerações inerentes a complexidade de cada enredo, considerando-se a faixa etária
de seu respectivo receptor. Afinal, e abrindo-se parênteses, como indica Faria, ao tratar
mais especificamente da relação personagem-leitor:
“Ao escolher no conjunto de personagens de uma obra aqueles que admira ou com os quais se identifica, a criança e o adolescente, formam uma imagem mental, detectado certos aspectos dessa personagem. Raramente, um leitor jovem chega a apreender todas as implicações da personagem criada pelo adulto, ela mesma suporte das projeções e idealizações de seu criador”. (1999, p. 28-29)
De qualquer forma, é inevitável admitir que ao leitor infanto-juvenil, em última
estância, e em decorrência do interesse despertado pelas associações ou semelhanças
com aquilo que lhe apraz, compete julgar, ainda que na prática só após o crivo (e
censura) adulto, o que cabe a si. No entanto, do outro lado da moeda, ficam
estabelecidos os limites entre o que é uma coisa e outra por aqueles que medeiam o 8 Julgou-se adequada a inserção da fala de uma autora, reconhecidamente canônica no âmbito literário, para tratar a respeito do que ela entende conceitualmente como gênero literário infantil, posto o fato de que muitos dos seus textos, especialmente, os de caráter poético, são largamente utilizados na escola, um bom exemplo é a incidência com que aparecem algumas das poesias contidas no volume “Ou isto ou aquilo”, em livros didáticos adotados por algumas instituições escolares. 9 Citação atribuída a Antonie Compagnon, sem indicação bibliográfica.
12
contato com o texto literário. Essas constatações parecem em certa medida explicar
como certas escolhas e intervenções do adulto não são fecundas ou propícias às
práticas de leituras daqueles que a elas estão subordinados.
2.2 O universo infanto-juvenil pela ótica adulta Durante algum tempo, como relata Zilberman (1984, p. 20-21), o livro infanto-
juvenil constitui-se como a única manifestação cultural dedicada à representação do
universo desses jovens, acabou-se, todavia, por confundir os interesses inerentes ao
mundo adulto com os dos pequenos.
No aspecto que tange especificamente à forma de criação textual, Zilberman
explica que, ao se tratar da circunstância infantil por meio de uma ficção, faz-se
emergir do texto uma criança imaginária com a qual o leitor, seja ele de qualquer
idade, pode se identificar. Assim, temos:
“(...) o leitor suposto no texto10, que exibe a concepção que a obra formula a respeito da infância e sua situação existencial e social. Difere da criança imaginada, aquela à qual o escritor pensa comunicar-se. Em vista disto, se a criança imaginada é produto da intenção do autor, irrelevante, pois, para a análise do texto, a criança imaginária resulta de sua atividade criativa e constitui na sua contribuição original seja para o sucesso literário de sua obra, seja para a compreensão da concepção de circunstância infantil exposta pelo relato”. (idem)
De forma que, como continua a autora, um laço só pode ser estabelecido no
momento em que ocorre uma “adesão afetiva”, fruto da identificação entre leitor e o
objeto. Desse modo, a abordagem dada à literatura infantil, ainda de acordo com
Zilberman,:
“(...) não pode obscurecer o reconhecimento do papel que o leitor desempenha neste processo, o que significa considerá-lo não apenas um recebedor passivo de mensagens e ensinamentos, mas, sobretudo, um indivíduo ativo, que aceita ou rechaça o texto, na medida em que o percebe vinculado ou não a seu mundo. O reconhecimento da importância do leitor (...) permite que se leve em consideração o interesse da história para a criança, o que significa simultaneamente uma ruptura com os padrões adultos que motivaram o seu aparecimento (...) De outro lado, representa igualmente a manutenção de um foco sociológico; todavia, este se particulariza na medida em que se volta à compreensão do papel desempenhado pelo consumidor do texto, e não pelo seu produtor, já que é da decrescente influência deste que emerge a autonomia artística da obra”. (ibidem)
10 Grifo da autora.
13
Como destaca Pondé (1982, p.10) na lista de preocupações que fazem parte do
trabalho dos profissionais que atuam com o livro está a conquista do público. Contudo,
qualquer forma de mediação se não bem resolvida e acertada gera não mais que um
falso vínculo, posto que artificial, em que o mediador, seja por meio da abordagem ou
da criação textual, supõe saber quais são as necessidades daquele que, do outro lado da
ponte, torna-se passivo na relação, observações que encontram complemento na fala
de Khéde:
“A literatura infanto-juvenil enfrenta inúmeros desníveis no relacionamento emissor-receptor. (...) a literatura infanto-juvenil é característica no sentido de que o seu produtor é um adulto que deseja chegar ao nível da criança e do jovem, sendo-lhe impossível, obviamente, desfazer-se de seu “status” de adulto”. (1986. p.11)
Ainda, no mesmo sentido, trata Pondé (1982, p. 9-10) do papel do adulto
enquanto responsável pela produção, divulgação assim como pela escolha do texto
infanto-juvenil. É ele quem escreve, edita, vende/compra e o aplica, esse último, no
caso mais específico da escola (e dos autores de livros didáticos), designando ao
receptor-leitor, seja ele criança ou adolescente, um papel secundário e passivo diante
das possibilidades de leituras no espaço escolar.
Diante desse contexto, o que se tem amplamente praticado, de acordo com a
autora, é mera imposição, produto de uma relação em que quem tem o poder de mando
é o adulto, uma vez que são poucos os momentos, quando esses de fato existem, em
que o leitor infanto-juvenil tem voz no para expor que tipo de produto editorial11
verdadeiramente o interessa. Desse modo, no desenrolar desse processo de acesso ao
livro, enquanto objeto de consumo e produto cultural, às crianças e adolescentes fica
destinado o papel de coadjuvantes, em que esses não passam de meros “receptores
cativos” delimitados de acordo com faixa etária e nível econômico de cada um.
Para que tal mediação seja, todavia, frutífera “é preciso investir na formação
do leitor, experimentando procedimentos individuais e de massa”. (PONDÉ, 1982. p.
10) 11 Destaca-se o emprego da expressão “produto editorial” porque é fato que à criança e ao jovem não só interessa como leitura aquilo que podemos denominar como literatura (dentro de uma acepção canônica de significado), é fato, desse modo, o interesse desse público, dentro ou fora do espaço escolar, por outras manifestações de escrita como os gibis, Hqs, almanaques e outras revistas ou publicações direcionadas para essa faixa etária específica, e que, muitas vezes, oferecem processos narrativos/discursivos mais instigantes e eficazes quanto a relação de identificação leitor-personagem-situação do que a leitura abordada, imposta e consagrada na escola e nos livros didáticos.
14
Posta, pois, a mesma situação, mas do ponto de vista mercadológico, talvez
seja uma ingenuidade achar que as editoras trabalham, em sua maioria, no sentido de
atender as reais demandas das crianças e dos adolescentes, pois, nesse sentido, não
seriam as necessidades ou interesses específicos desse público que os editores
procurariam suprir, mas as dos intermediários, pois, obviamente são os adultos, os
verdadeiros compradores.
2.3 A relação leitor e escola Fato é que, de acordo com os rumos que a educação tomou na sociedade
moderna, o ambiente escolar configura-se como um espaço privilegiado, embora não
único, na constituição e formação de cidadãos no sentido de atuarem intelectualmente
como sujeitos autônomos, críticos12. Nesse sentido, por meio de ações conscientes,
tornem-se construtores de si e de uma sociedade mais igualitária e fraterna. Dessa
forma, passou a ser valiosíssimo o papel da escola, como detentora da
responsabilidade de transmitir os conhecimentos universais reconhecidos e preservar e
divulgar a história e cultura de uma nação.
Partindo-se da premissa que essa transmissão, além de se dar pelo
estabelecimento da oralidade e das relações sociais em que o acesso ao conhecimento
é compartilhado, tem na a leitura uma fonte de absoluta importância, a escola, em
larga escala, por sua vez, tem exercido, como já posto, um trabalho infértil, ineficiente,
no que diz respeito a sua responsabilidade de estabelecer um elo entre os textos por ela
trabalhados e os escolares. Pois, se por um lado, no caso da literatura infanto-juvenil,
esta prática ocorre, ainda, impregnada de um discurso artificial e pouco interessante
para os alunos por outro, como alerta Faria (1999, p. 18), os professores não são
orientados, nem durante seu período de formação, quer seja nas faculdades de letras ou
nos cursos voltados a prática do magistério, quanto a como escolher, selecionar,
aplicar ou conduzir o trato com a literatura infanto-juvenil. Esse é um contexto que se
confirma, ainda de acordo com a autora, ao se detectar que, mesmo em faculdades
brasileiras renomadas, são escassos os trabalhos e poucos os mestres que se dedicam a
trabalhos mais específicos na área, que conduzam análises de publicações existentes
12 Ver considerações a respeito em FARIA (1999, p. 80).
15
voltadas para o público infanto-juvenil ou pesquisas voltadas à metodologia aplicada
na leitura dessas obras. O que torna esse quadro ainda mais agravante, considerando-se
sua condição de bem cultural fruto de uma criação artística, o livro literário, como tal,
é um importante instrumento de formação intelectual e afetiva, sobretudo para crianças
em plena fase de aprendizagem.
Ainda de acordo com a explanação de Faria, a conseqüência disso é que os
professores atuantes, em geral, desconhecem ou sabem muito pouco a respeito do que
existe no mercado infanto-juvenil, limitando-se na prática a recomendar e a trabalhar
apenas com aquilo que lhes chega por meio de propagandas das próprias editoras ou
com o material disponibilizado nas bibliotecas escolares de acordo com a distribuição
do governo (idem).
2.4 A relação escola – mercado Feito o alerta aponta-se a instauração de uma relação de interdependência
bastante perigosa, uma vez que foi instituída à escola a atuação como principal canal
de distribuição da literatura infanto-juvenil.
Assim, afirma Lajolo (1986, p.45), a circulação e consumo de livros
direcionados aos jovens leitores brasileiros possui um caminho demarcado, pois se
estabeleceu, com o fortalecimento da escola e sua conseqüente demanda, o mercado
editorial no Brasil que fez da 'literatura” um de seus principais produtos, uma vez que
essa é usada pelas instituições escolares como ferramenta na difusão das práticas
políticas e ideológicas estabelecidas pelo Estado:
“Escola e literatura constituem, pois, uma equação, onde a primeira, por ser instituição do estado, enleia a segunda em práticas políticas e ideológicas favorecedoras das classes dominantes que tanto servem do livro para difusão de valores que lhes são caros como servem ao livro, na medida em que patrocinam sua adoção e incentivam seu consumo através de campanhas pela leitura”. (idem)
Dessa forma, na relação escola e mercado, o papel do Estado é preponderante,
desde o início da formação de nossa literatura, pois angaria leitores passivos à sua
ideologia ao mesmo tempo que sustenta a indústria editorial. Nesse contexto, o
mercado de produção de livros se “predispõe” a atender as necessidades do cliente, de
16
acordo com aquilo que diagnostica. Para isso, focam suas estratégias de divulgação,
por meio, especialmente, de catálogos13 direcionados ao professor. Neles, não é difícil
notar a preocupação de oferecer uma descrição detalhada das obras, de forma que o
leitor alvo desse tipo de publicação possa reconhecer aquelas que melhor atendem a
sua prática docente. Com um belo e minucioso discurso de publicidade pautado
especialmente nos indicativos dispostos nos PCN, percebemos que os livros são
exatamente os mesmos que são utilizados há anos, salvo, evidentemente, aqueles que
correspondem à parcela de lançamentos do ano.
Nesse sentido, resgatando o fato de que boa parte dos professores não sabe
como abordar determinadas obras de acordo com uma metodologia mais eficiente ou
que, em outros casos, simplesmente desconhecem, enquanto leitores, o conteúdo de
algumas obras, que ainda assim são selecionadas pelo simples fato de que os catálogos
de venda assim as fazem parecerem adequadas, temos um indicativo que o ensino
torna-se vítima das estratégias de marketing mais eficientes. Note-se ainda que muitas
das obras listadas, além de indicar quais temas transversais podem ser trabalhados com
o uso delas, vêm acompanhadas das tão criticadas fichas de leitura e avaliação que
como explica Regina Mariano, representante da Editora Ática, são amplamente
adotadas por muitos professores:
“Apesar de criticadas, não podemos deixar de considerar a sua validade. Bem ou mal, elas são um referencial para o professor que não lê (grifo nosso) e que precisa avaliar a leitura dos alunos por exigência curricular. Podemos dar um depoimento prático: os professores querem ficha para adotar os livros. Algumas de nossas primeiras edições eram acompanhadas de ficha de leitura. Posteriormente, suprimimos as fichas. Mas, a pedido dos professores, resolvemos relançá-las e as vendas do livro aumentaram”. (1984, p. 51)
Depoimento, esse, que parece reiterar a relação de interdependência que se
estabeleceu entre interesses mercadológicos das editoras e a deficiência na formação
do professor, que sem esse tipo de “subsídio”, não raro, encontra dificuldades em
deslanchar o trabalho em sala de aula. 13 Nove catálogos de divulgação de livros direcionados a professores do Ensino Fundamental foram analisados: Editora FTD: Literatura Juvenil – 3º e 4º Ciclos e Ensino médio (sem indicação de data); Editora FTD: Literatura Juvenil – 1º ao 4º Ciclo (sem indicação de data); Editora Moderna: Literatura de Ficção - para leitores da 5ª a 8ª séries e leitor jovem adulto (2005); Ediouro/Agir: Projetos de Literatura Juvenil da 5ª série ao Ensino Médio (sem indicação de data); Editora Ática: Literatura Juvenil – 4ª a 8ª série (2006); Editora Saraiva: Coleção Jabuti Literatura Juvenil – 3ª a 8ª série em diante (2006); Editora Atual: Literatura Juvenil – 5ª a 8ª série em diante (2006); Editora Scipione: Literatura Juvenil – 5ª a 8ª série e Ensino Médio (2005/2006); Editora Formato: Literatura Juvenil – 5ª a 8ª série (2005).
17
GOSTO PORQUE ME IDENTIFICO: QUEM É O LEITOR INFANTO-JUVENIL?
Para se traçar um plano de trabalho de práticas de leitura adequado ao tipo (ou
tipos, como mais adequado parece ser) de perfil de um determinado público leitor, faz-
se necessário elaborar reflexões a respeito do que desperta o seu interesse a ponto de
fazê-lo mergulhar numa narrativa e assim para a prática de leituras constantes. Para
tanto, como afirma Costa (2006, p. 82), o fator identificação leitor-personagem-
situação é primordial para o que ocorra o estabelecimento do vínculo entre a criança
ou adolescente e o mundo literário, constatação que, de acordo com a autora, as
pesquisas orais e escritas assim comprovam em sua maioria.
Tentaremos, pois tratar de algumas questões que permeiam o gosto por “essa”
ou “aquela” leitura/literatura, considerando-se o pressuposto de que no ambiente
escolar encontra-se um público diversificado e que como tal deve ser considerado pelo
trabalho docente.
3.1 A questão do gosto O encanto e o prazer de ler, como apontou Costa, se estabelece no momento em
que o leitor pode se transportar para um mundo que não é o seu, mas que lhe oferece
um poderoso arsenal de sensações aprazíveis e nas quais esse leitor se reconhece e se
realiza:
“A literatura, em sua natureza representativa e mimética, transforma em linguagem essa necessidade humana de construção de singularidade, de uma identidade idealizada porque nada definida, por que sujeito aos sabores e dissabores da vida. O leitor busca com freqüência na literatura as perguntas e possíveis soluções para os acontecimentos, sentimentos e pensamentos que o acometem pelo simples fato de estar vivo. Por isso, a primeira e mais rápida das qualidades que esse leitor atribui a um texto significativo é o poder que a linguagem literária, tem de aproximar-se, minimamente, do que acredita ser sua identidade”. (COSTA, 2006. p. 82-83)
No mesmo sentido caminhou Faria em sua pesquisa ao considerar o quão era
importante estabelecer um diagnóstico tanto do perfil quanto da reação/interação do
18
aluno perante as narrativas escritas visando o jovem leitor, em especial aquelas
indicadas pelos professores:
“Naquele momento, consideramos que, primeiro, era preciso conhecer os alunos e a recepção por eles dos textos literários (...) Como os alunos sentiam/viviam esses textos e seus temas? Que marcas deixavam neles esses livros? O que restava de concreto dos livros lidos para os leitores ainda em formação? Que livros apreciavam? Quais rejeitavam? Como contribuíam esse livros para a formação dos alunos? Como compreendiam a estrutura narrativa e suas linguagens?” (FARIA, 1999. p. 12)
Diante dessas colocações, cabe então indagar se a instituição escolar, a principal
mantenedora da prática literária entre os jovens, reconhece qual é a verdadeira
demanda de seu público leitor? Sabe ela quem ele de fato é? Para essa última questão,
em especial, a resposta parece ser não, pois a escola, em sua maioria, costuma ainda
empregar métodos e escolhas calcados num sujeito uno, singular em sua essência. As
diretrizes escolares, dessa forma, regimentam práticas-padrão de leitura, numa
tendência simplificadora do trabalho, como se fosse possível, com a definição de
alguns poucos elementos, abranger toda uma gama de expectativas e interesses
deixando de fora características essenciais, tão básicas e diversificadas em si mesmas,
do público receptor que levem em conta dados como idade, gênero e condição social e
que, conseqüentemente, os diferem em sua natureza psíquica. O resultado disso tudo,
pois, é um encontro artificial e pouco estimulante entre o sujeito leitor e a prática de
leitura.
Para pensarmos um pouco mais a esse respeito, parece inevitável tocar num
ponto que, ao se pretender tratar do que supostamente seria objeto de interesse do
público infanto-juvenil, não haveria como deixar de fora: a discussão a respeito do
gosto desse público, o que segundo Perrotti, ao tratar da criança como leitora, encerra
uma dificuldade que nem sempre se consegue resolver de forma satisfatória. Pois:
“O público infantil seria realmente um parâmetro seguro a partir do qual poderíamos constituir valores indiscutíveis? O gosto infantil estaria em última estância acima de qualquer suspeita? Por outro lado, no caso de desconfiar desse critério de aferição, como deixar de considerar o gosto do público – como faz, em geral, a critica de artes - , quando se sabe, que no caso da produção para criança, há entre o produtor e o consumidor não só diferenças de “status”, de posição, mas sobretudo, diferença etária a qual configura formas distintas de experimentação da realidade”. (PERROTTI, 1986. p. 75-76)
19
O autor lembra ainda da forma como o mediador trata a relevância da opinião
do leitor mirim de forma arbitrária:
“(...) às vezes, aceitamos o valor fundamental do gosto infantil como único critério de aferição de literatura infantil. Outras vezes, quando esse gosto se volta para objetos que não nos agradam, repudiamos o direito que reconhecíamos, sem o menor pudor”. (PERROTTI, 1986. p. 77)
Ainda, tratando da arbitrariedade que envolve do jogo de poder e autoritarismo
que o adulto exerce sobre a criança, Perroti diz:
“Vale dizer, deixamos de refletir sobre o poder hegemônico que temos sobre a vida da criança e sobre o exercício, através da manipulação de dados desse poder. Em outras palavras, minha arbitrariedade, meus preconceitos são justificados por uma série de argumentos que visam realmente encobri-los. Assim, quando nos convém, a criança estaria apta a julgar. Quando não nos convém, ela não está, deve calar-se”. (idem)
Ora, como o próprio autor explica além da arbitrariedade explicitamente posta
têm-se a problemática do status que é dado à criança, temporalmente flutuante e
variado de acordo com o espaço em que, em determinados momentos, historicamente
marcados, é dada maior ou menor abertura a sua participação no contexto social
(PERROTTI, 1984. p. 76-77).
A concepção de criança como um “mini-adulto”, afirma ele, ainda muito
presente no processo educacional, em que para a criança era adequado aquilo que
também fosse ao adulto, porém em menor grau, só passou a ser contestada, entre os
séculos XVII e XIX, com a ascensão da burguesia e, posteriormente, e de forma mais
contundente com os estudos elaborados a partir de duas novas ciências: a sociologia e
a psicologia. Com isso, uma nova percepção sobre o ser criança se formulou, porém
impregnado de um discurso pautado no modelo de criança burguesa, muito
conveniente ao liberalismo burguês da época. Nela, a criança, imaculada do mundo
adulto, detinha “maior lucidez que o adulto”, o que gerou, por sua vez, a prática do
espontaneísmo na educação, fundamentado nas qualidades natas da criança, e que em
seu estado natural “poderia escapar às lutas de classes”, e desse modo, justificou-se,
de forma mascarada, diferenças sociais e econômicas como sendo diferenças de caráter
pessoal (PERROTTI, 1984. p. 78-80). Essa idéia, no entanto, diz o autor, sofreu sérias
críticas de pensadores como Gramsci além do fato de, com a Primeira Guerra Mundial,
as concepções educativas terem sofrido modificações de acordo com as condições
20
sociais e políticas, fato que segundo Perrotti (1984, p. 80) “não permite mais se pensar
a criança como um ser inatingível (...), com isso a criança pôde emergir como ser
cultural, e enquanto tal, aparecer sujeita às inflexões de seu meio”. Desse modo,
Perrotti (1984, p.81) chama atenção para o fato de que o gosto infantil é também
produto de um dado momento histórico, o que não pode ser descartado por aqueles que
se interessam pela produção cultural dedicada ao público infantil:
“Como, pois, considerar o problema do gosto infantil, uma vez que esse gosto refere-se a um público, sob certos pontos de vista, específico e, sob outros, não. Não posso negar, por exemplo, que indivíduos de idades diferentes, ainda que pertencentes à mesma classe social, têm uma percepção diferente da realidade: um menino de 10 anos sente o mundo de modo diverso de um homem de 30 anos. Mas, por outro lado, não posso negar também que o menino de 10 anos é fruto de um momento histórico determinado e que suas percepções do mundo estão impregnadas por esse momento e pela situação que ele ocupa aí, nesse tempo”. (PERROTTI, 1986. p. 77)
Desse modo alerta que, por não estarem necessariamente ou exclusivamente
ligado a fatores etários, o gosto deve ser investigado em sua essência quanto às razões
que o justificam. No entanto, o autor não conclui, sem antes chamar a atenção para o
papel do mediador, que podendo ser transferido para o daquele que atua em sala de
aula, faz uso do discurso “mas as crianças gostam!” em prol da própria causa:
“Nesse sentido, o argumento “mas as crianças gostam!” pode ser de fácil adesão pela aparência democrática de que está revestido. É assim que, face às dificuldades que as obras renovadoras quase sempre colocam para o leitor, é comum assistir-se à negação da mudança em nome da imaturidade do público, sem que essa imaturidade seja vista à luz das diversas variantes que interferem na sua configuração”. (1984, p.77)
Costa, por sua vez, ao articular uma análise a respeito do tratamento que se
pode dar, equivocado, ao gosto do leitor é categórica em sua declaração: “Tenho
solene implicância quando, para argumentar em favor de livros de literatura infantil de
qualidade duvidosa, os professores utilizam a justificativa que acreditam ser definitiva:
“Mas as crianças gostam!” (2006, p. 188)
Para sustentar a sua afirmação, Costa cita Magnani14, ao falar que é papel do
professor, como mediador e de forma a exercer sua interferência crítica,
“problematizar o conhecido, transformando-o num desafio que propicie a mobilidade”
que, segundo a autora citada, tem como intuito formar o gosto do leitor, por meio de 14 MAGNANI, Maria Rosário. Leitura, literatura e escola. [S.I.].
21
um processo de aprendizagem que transita da quantidade para a qualidade de leitura, e
vice-versa.
Metaforicamente, Costa compara esse processo de maturação do gosto do leitor
com a dieta de um glutão, rica em proteínas, carboidratos e calorias livrescas, que
passa a se alimentar de ricas fontes de nutrientes e pobres em gordura, mas para que
isso ocorra, é necessário que o seu instrutor também se alimente do mesmo tipo de
dieta. De outro modo: “professor que não lê, deforma leitores” (2006, p.188). Dessa
forma, a autora contesta qualquer “tipo de discurso em prol da leitura” que não seja de
alguém que de fato comprometa-se com a prática de leituras enriquecedoras e assim
domine com certa plenitude aquilo que trabalha em aula com seus “discípulos”,
adotando a política das facilidades (e mediocridade) com a justificativa de que o faz
pelo gosto do leitor. (2006, p. 189).
Costa cita ainda o exemplo do trabalhado de alguns professores, que após a
leitura de alguma obra, indagam quais dos alunos gostaram do texto, em que não
acredita que os alunos cheios de entusiasmo respondam: “Eu apreciei muito” ou “Eu
julguei muito bom”, mas revela que, ao contrário, se alguma criança assim
respondesse, ganharia esse trabalho um outro sentido ao se verificar que ela o fez
“após ter passado por um processo rápido de comparação e avaliação de textos
diferentes e semelhantes que já estão em seu repertório de leituras, e pudesse mostrar a
diferença”. (2006, p. 190). Assim, conclui a autora, a compreensão de um texto e sua
respectiva avaliação, de acordo com seus defeitos ou qualidades, é um passo que exige
antes de tudo a aplicação do pensamento, do conhecimento e do julgamento, fundados
em uma base educacional sólida e criticamente construída.
3.2 O leitor e os interesses na narrativa Isto posto, verificaremos, ao final, no que os entrecruzamentos das discussões
aqui postas convergem com os levantamentos fornecidos pela pesquisa de campo de
Faria .
O primeiro dado que nos chamou atenção, antes de partir para as constatações
analíticas feitas pela autora quanto ao teor estético das obras escolhidas, foi que os
jovens pareceram “esquecer”, em sua maioria, de consultar os adultos em busca de
22
indicações de leitura, pois como o relato da autora indica: “Os adultos pesaram pouco
na escolha: mãe e professora tiveram uma indicação cada, e bibliotecária, duas
indicações. Não houve uma única referência à presença do pai no trato com os livros”.
Essas informações poderiam representar um indicativo do quanto o referencial
adulto, nesse contexto, está distante do interesse dos adolescentes pesquisados. Pois,
num universo de 140 escolares, apenas 4 buscaram indicações, sendo 3 na escola e um
único caso que declarou ter buscado em casa um referencial de leitura.
Quanto aos elementos narrativos que provocaram o “interesse” dos jovens
leitores, segundo a pesquisa, o fator gênero do leitor ficou explicitamente demarcado,
justificando, basicamente, as seguintes seleções temáticas:
“(...) há uma clara diferença entre as opções masculinas e femininas. Os garotos tendem a escolher livros cujos títulos parecem prometer aventuras ou que façam referência a meninos no título (...) alguns títulos que sugerem aventura, mistério também foram escolhidos apenas por garotos”. (1999, p. 16)
Nesse caso, as escolhas vão de acordo com os pressupostos de que o leitor se
reconhece no enredo, seja por meio da personagem, que no caso, o título levava-se a
inferir que os protagonistas também eram meninos, ou por meio da temática que de
acordo com a idéia generalizante (e de senso comum?) que faz supor que os meninos
são mais imperativos e ousados, justifica as escolhas de supostos enredos relacionados
a tais tipos de comportamentos.
Já no caso do gênero feminino:
“As meninas, de acordo com suas preocupações, reveladas no questionário sobre as atividades fora da escola, parecem preferir títulos que sugiram temas sentimentais ou livros cujo conteúdo já conhecem como tal (...) entre outros, todos títulos com um convite à evasão ou aos sentimentalismos (...) A leitura de best-sellers estrangeiros também é opção feminina”. (Idem)
Aqui, ainda que dentro de uma vertente que trata de temas existenciais e
subjetivos, as escolhas relatadas pela autora se revelaram superficiais e lineares, em
grande medida, esvaziando-se por fim num mundo idealizado e de
pseudocomplexidade. A autora pôde, no entanto, observar que ainda assim entre as
obras pelas meninas selecionadas, havia poucas que tratassem especificamente das
histórias de amor, que segundo a autora é um tipo de tema muito caro “aos jovens, em
especial às meninas”, dados esses que, devido ao interesse dos adolescentes, só
23
poderia se justificar pelo fato de, na época, ainda serem poucos os títulos dispostos
pelas coleções de literatura adotadas pelas escolas que tratassem do tema. Fato que
hoje, facilmente comprovável de acordo com pesquisas em catálogos de divulgação de
obras paradidáticas, se modificou com ampliação do mercado de livros para
adolescentes e o surgimento de novas editoras (FARIA, 1999. p. 20).
Ao tratar dos critérios que nortearam as escolhas das obras, do ponto de vista do
gênero narrativo, Faria (idem) utilizou-se da classificação de narrativas segundo
Muir15: as narrativas se dividem em de ação e narrativas dramáticas e, de acordo com a
análise dos temas propriamente ditos, os mais freqüentes são os sociais e as aventuras,
que na lista das obras escolhidas pelos 140 alunos apareceram respectivamente em
primeiro e segundo lugares, seguidos pelos de acontecimentos do cotidiano e pelos de
embate entre o mundo do adolescente com o do adulto (grifo nosso). Fato esse, pois,
bastante interessante por demonstrar em certa medida, ao pensarmos na escolha pelo
viés da identificação do leitor, o interesse desse por assuntos que possam vir ao
encontro daquilo que ele, enquanto, no caso, adolescente, experimenta no dia-a-dia, as
situações de conflito, especialmente, devido a diferença etária e o exercício do
autoritarismo do adulto sobre o jovem.
No entanto, ainda que alguns dos assuntos remetam aparentemente há algum
tipo de complexidade e/ou tratamento mais verossimilhante com os conflitos pessoais
e inter-pessoais a que se referem, ao fazer um resumo geral dos aspectos
preponderantes entre os títulos escolhidos, Faria os classificou, em sua maioria, como,
comumente se denomina, narrativa trivial, a respeito da qual trata Khote:
“A narrativa trivial se caracteriza pelo automatismo, pela repetição e pelos clichês, de enredo, personagem, temário, valores e final. [Em função disso, essas narrativas] são incapazes de apreender ou mostrar a natureza contraditória e complexa da realidade. A divisão entre bem e mal é rigidamente maniqueísta: bom herói é aquele que defende a lei; mau é quem vai contra a lei. A própria lei nunca é discutida nem questionada: ela é absoluta”. (1987, p. 69-70-71 apud FARIA, 1999. p. 27)
Faria também pôde estabelecer e concluir que, ao considerar quais foram os
elementos que geraram interesse e se articulam como pontos de identificação entre
15 MUIR, E. A estrutura do romance. Trad. Maria da Glória Bordini. Porto Alegre: s/d, pp. 9-10; 22-31.
24
uma narrativa e o seu leitor, entre eles, como ela mesma afirma, o personagem é o
mais importante, por exercer um papel múltiplo na leitura:
“* é mediadora na comunicação entre adultos e crianças ou adolescentes e destes entre si;
* traz às crianças e jovens um conjunto de normas dos adultos, ou então de anti-normas, conforme o espírito do livro;
* exprime a imaginação de um imaginário criador;
* opera a transmissão social;
* propõe modelos de conduta que facilitam a adaptação social e a integração de ideologias”. (1999, p. 28)
A importância das escolhas das personagens preferidas pelos alunos é ponto
chave para se analisar como ocorre o engendramento por meio delas das concepções
morais, éticas, religiosas, ideológicas latentes nos livros escritos pelos adultos uma vez
que:
“Ao escolher no conjunto de personagens de uma obra aquelas que admira ou com as quais se identifica, a criança e o adolescente formam uma imagem mental, detectando certos aspectos dessa personagem. Raramente um leitor jovem chega a apreender todas as implicações da personagem criada pelo adulto, ela mesma suporte das projeções e idealizações de seu criador. Essas deformações em relação ao objeto estão carregadas de sentido – sentido esse que o educador deve estar preparado para detectar, a fim de poder levar o leitor a aprofundar seu conhecimento da personagem”. (FARIA, 1999. p. 28-29)
Faria (1999, p.29) destacou ainda, de acordo com Lauwe & Bellan, o papel das
personagens no conjunto selecionado, segundo a sua representação na narrativa, se de
adultos ou de jovens e crianças. Para isso, explica que o personagem, se jovem ou
criança, representa mimeticamente, quanto ao seu jeito de agir, pensar e atuar, um
jovem ou criança; já no caso da personagem adulta, esta, por sua vez induz uma
projeção do jovem leitor para a figura de um futuro adulto, dessa forma, essa
personagem atua em outros âmbitos sociais, profissionais, entre outros, transitando por
aquilo que ainda não faz parte do mundo dos mais jovens. Assim, por meio dessa, é
fácil se estabelecer uma relação maniqueísta de bons e maus adultos, a fim de
promover normas de conduta social, de acordo com o estereótipo de um mundo ideal
(segunda a autora, o mais encontrado entre os textos analisados). Daí, portanto,
esclarece Faria (idem), a necessidade e “importância da análise das personagens, pois
25
não só elas revelam as projeções dos adultos, como os próprios valores já introjetados
pelo jovem (...)”.
Assim, é imprescindível que o professor, atuando como educador e dentro de
uma perspectiva real e comprometida de contribuir com a formação crítica e reflexiva
de seus alunos, tenha em mente, não só os interesses de seus alunos, os considerando
em suas diferenças, sejam elas sociais, etárias ou de gênero, mas que também, ao
trabalhar a leitura e a literatura, atue como mediador no apontamento e na construção
de análises críticas, que os instigue a aspirar outros patamares de leitura, que promova
um sentido para elas, e o faça passo-a-passo, primeiro diagnosticando pontos de
interesse, por conseguinte, permitindo a variação de leituras, experimentando
propostas de abordagem, porém, nunca sem ter conhecimento daquilo que está sendo
tratado. Atuar com consciência daquilo que está sendo proposto e para quem está
sendo proposto indica ser uma fórmula possível de se contribuir com uma educação
que se conduza não por propostas mercadológicas ou de normas sociais de caráter
moralizante, mas pelo caminho do ser e do pensar.
26
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio das discussões neste trabalho abordadas, verificamos que há muito a
literatura, especialmente a infanto-juvenil, tem sido usada como instrumento de
conformação ideológica. E a escola, por sua vez, ainda que se tenha dado início a
inúmeras discussões de como as práticas educativas devem ser trabalhadas de forma a
favorecer o crescimento intelectual e a formação crítica a respeito das dinâmicas do
mundo, no papel de principal meio de veiculação da leitura, e com ela, evidentemente,
da literatura, na prática, pouco reconsiderou os perigos ou intenções de alguns
discursos amplamente reproduzidos em seu espaço por meio dos textos. Isso se deve,
especialmente, ao fato de que, ainda hoje, muitos dos docentes não reconhecem,
identificam ou refletem a respeito daquilo que por meio de algumas leituras estão
divulgando aos seus leitores em formação. E se isso não o fazem, é porque, na maior
parte das vezes, simplesmente, não sabem e por isso não podem fazê-lo. Fato que
decorre da deficiência na formação estudantil brasileira em todos os níveis da
educação, uma vez que, esperaríamos, ao menos daqueles com nível universitário ou
superior, uma maior atuação reflexiva e crítica diante daquilo que se trabalha em sala
de aula.
Esse fato gera alguns graves problemas, pois, a instituição escolar, ao trabalhar
didaticamente textos literários que se dispõe como veículos de “pasteurização”
ideológica e conformação moralizante, contribui para a deformação do senso crítico,
para o esvaziamento das discussões, para o afastamento da arte e para o nivelamento
do pensamento. Por outro lado, sabemos que nem tudo é matéria pedagogizante, aliás,
reconhecemos, não raro em nossa história, quais são as grandes obras, nacionais e
estrangeiras. Essas servem igualmente de instrumento para as práticas escolares. No
entanto, ainda assim, temos uma falha, aquela mesma falha já apontada na formação
da maioria de nossos educadores, que não os permite trabalhar nem de forma crítica
com o que é ruim nem de forma adequada com o que é bom. Cria-se assim um abismo
entre o leitor que se pretende formar e a obra, pois o mediador o faz ora de modo
acrítico, às vezes, inclusive, utilizando-se do discurso de que os alunos gostam como
justificativa para sua falta de comprometimento com o uso de um material de
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qualidade, ora de modo desestimulante, pouco interessante, vazio e artificial em seu
valor.
Infelizmente, os problemas não cessam aí, se a instituição escolar, por meio da
mediação do docente, não sabe com o que trabalha, também não sabe com quem
trabalha. Ela não reconhece seu público, pouco sabe a respeito de seu perfil, mas não
enquanto grupo coeso, pois estatisticamente é fácil saber: quantos meninos ou meninas
há; se pertencem à classe a, b, c ou d, se isso ou se aquilo... Mas no interior desses
grupos, que se diluem em sala, não há o diagnóstico de suas peculiaridades, de suas
características essenciais. Assim, até mesmo para os professores, ainda que não muitos
em termos de Brasil, preparados para lidar com o “instrumento”, sem reconhecer o
terreno, é difícil alcançar o aprendiz.
Dessa forma, reconhecemos que para uma abordagem adequada, ou menos
equivocada de se trabalhar a literatura em todos os seus aspectos, especialmente com o
intuito de se formar um verdadeiro leitor, autônomo e reflexivo em sua jornada com a
escrita, é necessário um longo caminho. Esse caminho começa, no caso do mediador,
na adequação de sua formação docente, no investimento em pesquisas que tratem de
como a leitura e a literatura devem ser praticadas em sala. É preciso também que esse,
como formador de leitores, seja igualmente um leitor, para que não se torne “refém”
das fichas de leitura ou das resenhas dos catálogos de divulgação das editoras. É
fundamental, pois que o professor tenha condições de por si só avaliar aquilo que
indica e trabalha com seus alunos. Quanto ao leitor, o caminho começa na base de sua
educação, ou seja, desde criança. Que a ele seja dada a oportunidade de demonstrar
seus desejos e expectativas, que seja reconhecido em sua individualidade, mas que seu
“desconhecimento” a respeito do que o cerca não vire desculpa para um trabalho
medíocre, pobre em seu valor. Um trabalho eficiente levará a opinião do jovem leitor
em consideração, mas o fará a partir de experimentações em que ele mesmo possa
reconhecer as camadas (e as “não-camadas”) de leituras que envolvem um texto. É um
trabalho paulatino, desse modo, que considera o sentido da identificação, mas que não
se esvazia enquanto prática reflexiva.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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