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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
VIVIANE DA SILVA MASSAVI
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: DESVENDANDO OLHARES
DAS RAZÕES VULNERÁVEIS.
CUIABÁ-MT
2017
VIVIANE DA SILVA MASSAVI
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: DESVENDANDO OLHARES
DAS RAZÕES VULNERÁVEIS.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de
Mato Grosso como requisito para a obtenção do título
de Mestre em Educação na Área de Concentração
Educação, Linha de Pesquisa Movimentos Sociais,
Política e Educação Popular.
Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Prudente
Coorientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos
Cuiabá-MT
2017
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pela oportunidade desta encarnação aqui na terra e a energia que
me foi destinada no nascimento, Iemanjá, energia criadora que esteve presente para a
concepção e nascimento deste trabalho: Odoya, minha mãe!
As amigas que conquistei e aqueles que ficaram para trás por inúmeros motivos, aos
meus familiares por apoiarem incondicionalmente minhas decisões de cunho pessoal e
profissional.
Agradeço também àqueles que indiretamente contribuíram para preencher meu leque
de experiências em minha passagem pela Pós-Graduação.
Ao Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) e ao Grupo de
Estudos Educação & Merleau-Ponty (GEMPO) no qual fui acolhida desde meu primeiro
contato ainda como aluna especial do mestrado.
Ao meu querido professor Luiz Augusto Passos, meu primeiro orientador e que
posteriormente assumiu minha coorientação, pela paciência e generosidade, foi como um pai
amoroso que me tomou pelas mãos e instruiu as minhas caminhadas pelas ruas e becos de
Cuiabá, obrigada por me dar a primeira oportunidade como pesquisadora, me sinto
extremamente honrada por tê-lo como amigo.
Ao meu orientador professor Celso Luiz Prudente, pela honra, dedicação e paciência
na condução dessa produção.
À minha família com todo apoio incondicional, com agradecimento especial , minha
mãe (in memoriam) minha maior fonte de inspiração, aquela que cuidou e me tratou com
carinho, não só a mim como as minhas irmãs, trabalhando arduamente para que tivéssemos
uma educação, que ela não teve oportunidade de conseguir. Minha mãe, minha inspiração e
espelho: se eu me tornar uma pequena parte da pessoa e profissional que a senhora foi, a vida
já terá valido a pena.
Ao meu amor, companheiro desta jornada aqui na terra, meu esposo Murilo Alves de
Oliveira, que suportou todos os momentos de maiores dificuldades me amparando,
aconselhando e incentivando para que eu conseguisse concluir este trabalho, minha eterna
gratidão.
Ao Barba, meu companheiro desta empreitada, obrigada pela confiança e por me
mostrar os encantos e desencantos desse estar na rua. Que Deus perdoe a cada um de nós por
permitirmos que tantos irmãos e irmãs vivam em condições tão precárias nas ruas de nosso
país, que suas vozes sejam ecoadas em cada canto de nossa cidade.
RESUMO:
O fenômeno “pessoas em situação de rua” não surgiu ou se restringiu às sociedades
capitalistas, contudo, na história percebe-se que neste sistema o problema da pobreza tem se
agravado. A condição de situação de rua transforma a vida de qualquer sujeito social, as
mudanças permeiam o seu modo de olhar o outro e a si próprio, a sociedade os tratam de uma
maneira não-humana. No desejo de contribuir de forma científica e próxima, no estudo desta
realidade, esta pesquisa de mestrado foi realizada na área da Educação, linha de pesquisa
Movimentos Sociais Políticas e Educação Popular e traz a proposta de dar voz a uma pessoa
representativa em sua experiência na rua, para descrever a partir do olhar dele, e do seu corpo
singular e também universal, o mundo que o rodeia. Compreender os mecanismos que lhe
oprime e que provoca sua invisibilidade ou sua visibilidade a partir de padrões de colonização
que buscou reificá-lo chamando-o à luta de resistência e resiliência para conquista da
autonomia e emancipação, possíveis. Mediante diálogos longos, e momentos de vivência com
esta pessoa, trago a descrição densa da vivência desta experiência de duas pessoas, Barba e
minha em torno de sua condição, valores, vida e sentidos. As pessoas em situação de rua não
escolheram este lugar sem razões fortes de o fazê-lo. Foram coagidas a buscarem um espaço
pré-definido pela sociedade como uma vida indigna de ser vivida, isto é, uma vida matável
sob a apatia e permissividade social. Nesta condição elas buscam se tornar invisíveis ao
direito e à sociedade, para livrar-se dos atos de crueldade de toda espécie. Como sobreviver a
este campo de torturas e campo de concentração, que a rua pública, se tornou? A questão a ser
compreendida é desafiadora, pois nos faz pensar como funcionam esses mecanismos em nós,
na sociedade como um todo, que favorecem a nossa quase completa indiferença a essa
população, ao ponto de não nos incomodar com o seu abandono social. Acreditando que uma
das possibilidades de resposta, seria uma forma de banalidade do mal, pois não há uma
preocupação em intervir nesta situação. Em verdade ocorre uma anuência implícita de um
desejo de abreviação da existência dessas pessoas. Reforçando a tese de que são vidas
indignas de ser vivida, negando-lhes a humanidade. Barba é um fenômeno vivo de vontade de
viver. Gerou o sentido pela relação com o outro/a. Adotou um sentido voltado à Vida, sem
excedências de quaisquer tipo. Para a realização da pesquisa optamos por um estudo de
caráter qualitativo de orientação fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty na análise
compreensiva e interpretativa desta realidade.
Palavras Chaves: População em situação de Rua; Vulnerabilidade; Fenomenologia
ABSTRACT
The phenomenon "people in a street situation" did not arise or was restricted to capitalist
societies, however, in history it is perceived that in this system the problem of poverty has
worsened. The condition of the street situation transforms the life of any social subject, the
changes permeate his or her way of looking at the other and himself, society treats him in an
almost non-human way. In the imminence of the need to contribute scientifically to the study
of this reality, this masters research in the area of Education, line of research Political Social
Movements and Popular Education brings the proposal to give voice to a person in a street
situation to describe How he sees himself and sees the world around him, in order to
understand the mechanisms that oppress him and that provokes his invisibility or his visibility
from patterns of colonization and his reification, through a dense description of the experience
of this experience . People on the street have become a life unworthy of being lived, that is, a
life that can be killed under apathy and social permissiveness, in this condition they become
invisible to the law and society enabling acts of cruelty of all kinds. How to survive this
concentration camp that the street has become? The question to be understood is challenging
because it makes us think about how these mechanisms work in us, in society as a whole, that
favor our almost complete indifference to this population, to the point of not bothering with
their social abandonment. Believing that one of the possibilities for response would be a form
of banality of evil, since there is no concern to intervene in this situation, in fact there is an
implied consent of a desire to abbreviate their existence. Reinforcing the thesis that they are
lives unworthy of being lived, denying them humanity. For the accomplishment of the
research we opted for a qualitative study of phenomenological orientation based on Merleau-
Ponty in the comprehensive analysis of this reality.
Keywords: Population in Street situation; Vulnerability; Phenomenology.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................08
CAPÍTULO I - O sistema capitalista e a intensificação da pobreza - da exclusão e o
estado de exceção.....................................................................................................................16
1.1 Táticas de sobrevivência e as trocas de saberes............................................................23
CAPÍTULO II - O fenômeno pessoas em situação de Rua no Brasil – Da abolição da
escravatura às políticas públicas sociais atuais....................................................................27
2.1– As Politicas públicas de atenção à população em situação de rua no
Brasil.........................................................................................................................................36
CAPÍTULO III - A Fenomenologia Merleau-Pontyana como caminho possível na
compreensão do outro na rua................................................................................................47
CAPÍTULO IV - O caminho é a história, a história se fez caminho – Barba e o
compartilhar de sua trajetória...............................................................................................55
4.1- O Local dos encontros.......................................................................................................57
4.2- Barba: companheiro nesta jornada de sentidos ................................................................57
4.3- Os encontros......................................................................................................................58
Para continuar existindo: A Guisa de Provocações ............................................................71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................78
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INTRODUÇÃO
O interesse em pesquisar a população em situação de rua não nasceu, em mim, com
esta dissertação, ele vem entrelaçado com minha historia de vida, compreendo que falar deste
povo é descrever também a origem social do meu viver, não que eu tenha vivido nas ruas, mas
que o que vulnerabiliza essas pessoas também tocou a mim e à minha família.
E assim sou eu, segunda filha de um casal descendente indígena, minha mãe Bororo e
meu pai Chiquitano. Minha origem foi descoberta a pouco mais de quatro anos e estou
mergulhada em pesquisas sobre sua história que também é minha. Vivo em uma união estável
há três anos, sem filhos, natural de Cáceres-MT, mas resido na cidade de Cuiabá/MT a cerca
de vinte seis anos, desde que minha mãe veio em busca de novas oportunidades, na capital.
Foi em Cáceres que realizei meus estudos em nível fundamental e o ensino médio em
Cuiabá, em escolas municipais e estaduais. Ao quatorze anos de idade iniciei meu primeiro
trabalho como balconista em uma locadora de vídeos, assim conciliava o trabalho e os estudos
em períodos alternados e auxiliava minha mãe financeiramente. Este foi um período de
amadurecimento, onde comecei a idealizar um futuro profissional e iniciar meu processo de
conhecimento e formação.
Fazer uma reflexão sobre meu percurso acadêmico e profissional é deparar com toda
inquietação que o saber sempre me causou, é lembrar que as dúvidas e questionamentos foram
sempre à força motivadora para esta proposta. Afirmo ainda, ser esta inquietação que
impulsiona as razões para esta pesquisa a que me proponho. Não são perguntas genéricas e
longínquas. Me diz respeito e estão em mim.
Em 2001, fui aprovada no vestibular na UFMT, fruto de muita luta, pois fui umas das
primeiras, em minha família, a conseguir ingressar em uma universidade. Minha formação
acadêmica se constitui no bacharelado em Serviço Social, obtido na Faculdade de Serviço
Social, pela UFMT, onde concluí no ano de 2005. Nestes cinco anos vivendo a universidade,
em todos os sentidos, aproveitei cada segundo esse encontro de tantos saberes. Devido o meu
curso ser matutino e noturno, as possibilidades de trabalho ficaram extremamente restritas.
Passei a visitar todos os murais onde me deparei com um universo quase que paralelo e pouco
“frequentado” pela maioria dos estudantes. Minha primeira opção foi a bolsa atividade na
PROVIVAS, onde me possibilitou estar “antenada” a todas as informações referentes a
estágios dentro e fora da UFMT.
Foram quatro anos de estágios, contatos maravilhosos com profissionais com diversos
conhecimentos, Secretaria de Justiça e Segurança Pública, com reeducandos usuários de
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drogas; Serviço Social do Comércio com população e entidades carentes. Secretaria
Municipal de Saúde no cadastramento do Cartão do SUS, dentre tantas outras oportunidades.
Saí da universidade com uma bagagem profissional que se implica até hoje em minha vida.
Ainda na universidade, minha vida foi regada a desafios. Militante no Centro
Acadêmico de Serviço Social e iniciei minhas primeiras leituras sobre os movimentos sociais.
E no meio desse turbilhão de informações, me aproximei e identifiquei com o Núcleo de
Estudos, Pesquisa e Organização da Mulher - NUEPOM, assim me aprofundei no tema,
expandindo meus conhecimentos, que gerou meu primeiro contato com a pesquisa cientifica
um Trabalho de conclusão de Curso, sobre o Movimento Feminista, movimento este que se
constituiu com bases firmes na luta por direitos igualitários.
Minha atuação profissional iniciou na Política de Assistência Social, no município de
Porto Estrela, situado no interior do Estado, no ano de 2006. Deparei-me atuando em um local
considerado “o pior lugar pra se viver no Estado”, segundo um noticiário nacional que listava
as cidades de piores Índices de Desenvolvimento Humano - IDH do Brasil. Ali percebi, a
diversas faces do capitalismo, ainda recém-formada, saindo com sonhos grandiosos, a pouca
distância do município com relação a capital, não era igualmente proporcional às
desigualdades de todas as formas instaladas ali. A desigualdade social, a miséria de muitos em
detrimento da riqueza de poucos; a precariedade dos serviços essenciais; os gastos com a
assistência aos mais carentes se davam fortemente por um viés eleitoreiro, partidário e
meramente de cunho assistencialista, e e prejuízo óbvios à saúde.
Foi nesse contexto, que desprotegida dos muros da universidade, iniciei minha
caminhada, já como Assistente Social. Os debates, ora acadêmicas, ora no quotidiano, criaram
vida, se tornando desafios até hoje ainda encarados. Após um ano do interior, de volta a
Cuiabá, me inseri na Secretaria de Assistência Social e Desenvolvimento Humano da Capital,
atuando em um Centro de Referência de Assistência Social-CRAS na periferia. A realidade
era outra, porém os desafios ainda maiores. Aliado a isso, havia ainda a precarização do
trabalho, a falta de condições mínimas, apesar do enorme montante de recursos destinados
para tal atividade. Após praticamente dois anos no CRAS, fui trilhar novos desafios. No ano
de 2008, fui selecionada para ser parte da equipe do Lar da Criança, abrigo destinado a
crianças que sofreram qualquer tipo de violência ou foram abandonados pela família.
No ano de 2009, após uma aprovação em concurso público, fui convocada a assumir o
Serviço Social do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas "Adolescer" -
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CAPS AD1. Nesse período, já com certa experiência, dei início a me aprofundar meus estudos
direcionando ao tratamento a dependentes químicos, especificamente adolescentes, visto que
na academia pouco se discutiu saúde mental, no meu período de graduação.
Em 2010, com a aprovação de um projeto pelo Ministério da Saúde, iniciei minha
atuação em um Consultório de Rua do SUS, onde atendíamos usuários de drogas e pessoas
em situação de rua que se encontram em extrema vulnerabilidade.
Este trabalho me possibilitou momentos de muitas reflexões, dos sentidos de se viver
na rua, no cerceamento dos direitos dessas pessoas, lá, onde nenhuma política pública alcança
estas pessoas em condição de apartheid. Essa população tem seus direitos violados
diariamente, são proibidos de ir e vir, através das chamadas “limpezas”, que nada mais é do
que práticas higienistas, presentes há décadas em nossa sociedade. São maltratados por uma
polícia despreparada, discriminatória e desumana, inclusive por serem militares, e serem
treinadas para olhar toda a diferença como ameaça à “sociedade” generalizada, que se
representa de fato, na classe dominante. Estes moradores, em condição de rua, são
criminalizados e culpabilizados por sua condição físico-psíquica, pelo seu status e segregados
pela diferença que não é a deles, mas aquela que foi nele introjetadas para justificar a
violência da sociedade e seus perigos, e montar sistemas de perseguição, prisão, torturas,
morte e desaparecimentos justificáveis pelo risco que eles implicam de estar à margem do
sistema. Margem provocada pela classe dominante, pelo capital, e que se visibiliza naquelas
pessoas, como responsáveis pela violência nas ruas, nas praças, durante a noite e dia. Ali
encontramos as ditas minorias, de todas as idades, mas principalmente de adultos jovens, que
são culpabilizados por toda violência local, essa realidade, na qual me deparo diariamente:
violência gestada e parida pelas formas „superiores‟ de cultura realizada pela chamada
inapropriadamente „elite” segundo Professor Celso Luiz Prudente.
Foram essas vivências da minha vida profissional que me levaram a perceber que os
movimentos sociais e educação popular em saúde se apresentam como espaços efetivos
capazes de despertar nas pessoas o sentimento de pertencimento ao mundo, levando-as ao
protagonismo de suas histórias de vida; por isso, a escolha em pesquisar essa população.
Por outro a metodologia usada aqui é inédita, de certa forma. Ela foi realizada durante
o Projeto RuAção (http://projetorua.gempo.com.br/sobre) que punha a dificuldade das
pesquisas realizadas ficarem entre amostragens e debates a partir da visão dominante do
capitalismo que pensava em formas de ajuste destas pessoas e „integração‟ delas na mesma
1 AD: Álcool e Drogas.
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sociedade que as marginalizava. E, por isso, não havia nenhuma atuação capaz de ao menos
avaliar o que se passava com os mecanismos de reprodução desta mesma sociedade, de uma
perversidade compreendida como natural e de minorar o sofrimento e a miséria. Não se
pensava em uma condição de justiça. Por outro, as pesquisas centravam-se não nas pessoas e
suas experiências, mas em conceitos genéricos encontradas em grandes fatias desta
população, e, portanto geravam um „morador(a) de rua” como se fosse um tipo standard
comum pelas “falhas administrativas” da economia e da política. E as questões de inserir no
trabalho como resolução central de sua absorção no sistema produtivo capitalista do qual ele
também era produto. A pesquisa tomava um diálogo entre Merleau-Ponty – pela leitura de
Fabio Di Clemente – e Paulo Freire, mediada pelo Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e
Educação.
Em 2014, no primeiro semestre, me inscrevi para seleção como aluna especial no
Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação/UFMT, na
disciplina Seminário Avançado I: Movimentos Sociais, Política e Educação Popular –
Movimentos Sociais e Educação. Com a vivência em sala de aula consegui me encontrar na
fenomenologia de Merleau-Ponty e com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, onde pude
compreender que essa seria a metodologia que poderia dar conta de responder meus anseios
relacionados à pesquisa. Toda a minha trajetória profissional atendendo a população em
situação de rua foi criando corpo quando pude olhá-la por um olhar fenomenológico no
sentido de apreendê-lo como o “outro eu de mim”. Haveria entre eu e ele(a) a possibilidade de
uma intracorporalidade capaz de trocar minhas condições também de marginalização por
minha ascendência negro-indígena e a destes mesmos moradores e moradoras,
marginalizado(as) pela formas racistas e higienistas da cultura e das economias políticas de
Plantão.
Foram estas as razões que me implicaram a realizar esta pesquisa, a relevância social e
profissional que se legitima pelos conhecimentos que poderão contribuir para um novo olhar
sob a população em situação de rua, novas percepções e perspectivas, tanto no âmbito da
formação acadêmica e técnica na área da saúde, quanto da educação.
Dar voz a uma pessoa em situação de rua a fim de descrever como ele se vê e vê o
mundo que o rodeia, a fim de se compreender os mecanismos que a oprimem e que provocam
sua invisibilidade ou sua visibilidade a partir de padrões de colonização e de sua reificação é o
objetivo deste estudo.
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Respeitar a pessoa em situação de rua como protagonista cerceado pelo processo
civilizatório de sua história, inclusive desta pesquisa, visto que ela somente está sendo
possível por um encontro libertador entre eles e a pesquisadora.
As linhas que se seguem descreve uma relação de uma infinita cumplicidade entre
aquele que vive nas ruas de Cuiabá, negro e filho da terra, mas que não são incluídos com
orgulho pela cultura dominante das elites e, que toma, em parte, o povo mato-grossense,
sendo, por isso, destinados à invisibilidade quando o assunto são políticas públicas,
acolhimento, atenção, respeito e dignidade, porém é visível a mão opressora do estado e de
uma grande parte da população.
Esta pesquisa busca sugerir inspirações que nos conduzam ao despertar para ouvir o
clamor das razões vulneráveis, compreender a origem de tanto abandono, violência, descaso
para com a população em situação de rua, hoje ampliada a todos e todas, brasileiros
empobrecidos para o quais se fazem atos de terrorismo, expropriação, bandidagem, venda e
desregulação da economia, da cultura, de todos os cuidados públicos devidos, necessários à
vida.
Talvez muitos e muitas de nós jamais fizemos essa reflexão, do contrário,
reproduzimos ideias e teorias que tentam explicar a vida e os sentidos da vida dos outros (as)
valendo-nos, e incluindo nosso ponto de vista, no sentido expresso por Clifford Geertz, de
„forasteiros; ‟ e, portanto, a partir da cultura vigente nossa, opressora e estigmatizante, bem
como de nossa apartação parcial dela em face das nossas experiências de opressão vividas,
nos mesmos, neste contexto e de nossos estudos e críticas, mas sobretudo, nosso ativismo
político. Existe um jogo de poder que encobre nossos olhos e nos fazem acreditar em
verdades irreais, mas que estão encharcadas de mentiras, pressupostos e necessidade
ideológicas de legitimar uma sociedade em que tudo o que não serve para o mercado e para o
uso e a produção são sumariamente considerados como „fora da humanidade‟.
O caminho que está foi percorrido por esta pesquisa não existia, antes; faz parte de um
trilhar no escuro, como as ruas onde as pessoas em situação de rua permanecem durante a
noite buscando abrigo, assim como e com eles e elas encontramos nesta trajetória forças para
compreender quem somos, algo forte, mas também frágil, porém com a certeza que até
mesmo nos locais mais impensáveis existem a solidariedade, a partilha e uma imensa vontade
de viver que nos sustentou como pessoas semelhantes em fragilidade e força, e por meio de
laços fraternos.
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A pesquisa buscou compreender como essa população em situação de rua sobrevive
sob a lógica capitalista e através de uma reflexão, acerca das políticas públicas atuais de
atenção a esse grupo específico, seja ela social, saúde, mas principalmente as educacionais,
abarcar quais as vivências que os sustentam em locais inóspitos recriando e criando valores
por eles mesmos. Em uma relação de troca de olhares, escuta e diálogos, procuramos
desocultar ou desmistificar, nas atitudes, gestualidades, modos de vida a presença de um
direito nu, vivido como referência e como orientação de toda a ação, o qual se voltasse à
defesa e afirmação da vida como imperativo ético categórico dos oprimidos, e que se
estenderia a todas as pessoas das nossas sociedades.
Em meio à compreensão de que toda epistemologia é uma construção cultural,
histórica e, portanto, dinâmica, esta pesquisa está se realizando com as reflexões da
fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e junto aos diversos autores por elas influenciados,
em particular para nós, Paulo Freire, Martin Buber, Jean Paul Sartre. O senso comum
encharcado de discursos de ódio e os mitos criados em torno da população em situação de rua
e teorias prontas construídas por grupos hegemônicos é a visão a ser descontruída na relação
com “o povo da rua” é o vir a ser que nos interessa.
Buscar a invisibilidade e os contornos dos silêncios, buscar compreender o desenho
pela trama do verso: ao avesso somente foi possível porque elegemos como referencial
teórico-metodológico inspirado na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. A investigação
fenomenológica busca compreender como a percepção de um povo constrói um mundo, de
modo que não procura defini-lo. As ideias não são inatas, nascem das relações
experimentadas no histórico de vida coletiva e individual. Para Merleau-Ponty (ibidem, p.
109), “É preciso que reencontremos a origem do objeto no próprio coração de nossa
experiência”.
Optamos em deixar vir à tona nossas vivências do período que estivemos na rua
atendendo a população em situação de rua e enriquecendo com o que foi construído durante a
pesquisa, portanto neste trabalho ouviremos uma pessoa que se encontra em situação de rua.
Utilizaremos da observação participante e da descrição densa segundo orientação de Geertz,
que busca explicar e interpretar expressões sociais que “são enigmáticas na sua superfície”
(GEERTZ, 2008, p.4).
Tendo como base a pesquisa realizada, foi possível a construção final deste trabalho,
apresentado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, fizemos uma abordagem histórica
sobre como o sistema capitalista intensifica a pobreza, exclusão e o estado de exceção e
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trazemos uma reflexão sobre os modos de vida evidenciando as táticas que as pessoas em
situação de rua utilizam para sobreviver às ruas.
O segundo capítulo percorremos pela história do país, buscando perceber a origem do
fenômeno população em situação de Rua no Brasil, elegemos o século XIX, passando pela
reforma sanitária no inicio do século XX. Sabemso que sempre houve em todas as
civilizações, formas de moradores e moradoras presentes, como sinais singulares de diálogo
com a cultura existente. Sempre compondo como elementos imprescindíveis de diálogo com a
cultura geral. Contudo, deixaremos essa abrangência e tomaremos no Brasil apenas o período
que se conecta com a República. Não supondo que este jejum seja ignorar a história desta
população, mas é na proximidade de nós, que alguns fenômenos se mostram apresentar certa
complexidade, no diálogo com estruturas modernas que nos dizem respeito de maneira
particular, agora, pela crise absoluta dessa vigência. Abordaremos as políticas públicas,
sociais e as ações filantrópicas destinadas à situação de rua, finalizando com uma
demonstração do quadro atual das politicas de governo na atualidade em atenção a esse grupo
vulnerável.
O terceiro capítulo traz o caminho metodológico escolhido para pesquisa. Para
realização da pesquisa, optamos por um estudo de caráter qualitativo de orientação
fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty, que pressupõe a intersubjetividade e a
recriação de significados no processo da relação com o objeto de pesquisa. Essa metodologia
representou para nós neste estudo, uma nova maneira de olhar o ser humano e sua relação
com o mundo e nos implicarmos nesta vivencia enquanto um ser encarnado nesta realidade,
como bem afirma o autor: “Nós estamos misturados com o mundo e com os outros numa
confusão inextricável” (Merleau-Ponty, 2006, p. 518).
Na experiência relatada neste estudo, a metodologia fenomenológica sob a luz dos
pressupostos de Merleau-Ponty, direcionou a ênfase na dimensão existencial do viver humano
e nos significados vivenciados pelas pessoas em situação de rua, buscando os sentidos tal
como se apresentaram na relação, em uma descrição densa desta vivencia.
A descrição densa caracteriza-se na forma como o pesquisador ou pesquisadora
descreve seus estudos, segundo GEERTZ (2008, p.4) devemos buscar compreender e
interpretar as expressões sociais que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever
seu objeto de estudo em suas mais diversas particularidades, levando em conta todos os
pequenos fatos que cercam sua vida social, não bem os fatos em si, mas a ação econômica,
social, política e simbólica destes fatos. Não se busca leis gerais, mas sim
15
significados/significações, conforme essevera, Clifford Geertz. Não as generalidades, mas
aquilo precisamente que quebra a ordem dominante de plantão.
Utilizamos também da observação participante, onde tratamos de estabelecer uma
adequada entrada no campo de pesquisa, favorecendo que reduzíssemos a estranheza entre a
pesquisadora e o nosso companheiro de pesquisa. Um dos pressupostos da observação
participante é o de que a convivência do investigador com a pessoa ou grupo estudado cria
condições privilegiadas para que o processo de observação seja conduzido e dê acesso a uma
compreensão que de outro modo não seria alcançável. Admite-se que a experiência direta do
observador com a vida cotidiana do outro, seja ele indivíduo ou grupo, é capaz de revelar na
sua significação mais profunda, ações, atitudes, episódios, etc. Tal perspectiva é assim
expressa por EZPELETA & ROCKWELL (1986): "Na observação participante, as relações
interpessoais entre pesquisador e sujeito, ali chamadas 'relações sociais', constituem as teorias;
é a relação que determina o pensamento e não o contrário." (p. 83).
O quarto capítulo, narramos nossos encontros com a pessoa em situação de rua de
nossa pesquisa, o Barba, procurando captar a essência de suas fala. As falas do Barba nos
possibilitou compreender, dialogando com Hanna Arendt e Agamben, a banalidade do mal,
como uma das razões da indiferença e ódio para com as pessoas em situação de rua.
Nas considerações finais buscamos refletir sobre os resultados do trabalho e sobre
sentidos que possibilitarão a continuidade da pesquisa e a ampliação da reflexão sobre a
temática que envolve as pessoas em situação de rua.
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CAPÍTULO I
O SISTEMA CAPITALISTA E A INTENSIFICAÇÃO DAPPOBREZA-
DA EXCLUSÃO AO ESTADO DE EXCEÇÃO
O passado do homem é o seu passado que o acompanha no seu presente, e
que age sob a forma invisível da latência, que não permanece encerrada em
um deposito morto. O passado humano é como o outro que está em nós, que
já imprimiu em nós seus traços, por caminhos „esquecidos‟ que recobrem de
poeira os traços que o indicam, que vêm ao encontro de nosso presente
vivente como se fossem resistências que experimentamos e como se
escapassem a nosso domínio ou que deveríamos ultrapassar (CAPALBO,
2004, p. 8).
Os termos utilizados, para conceituar o grupo social por nós pesquisado varia muito,
na academia e nos trabalhos que buscam compreende-lo e interpretar. Nenhum conceito é
neutro. Carregam neles marcas decisivas, por vezes fruto de determinados preconceitos, ou
formas de ver, que já predefinem, antes mesmo de ouvi-los. Os termos variam como
“população de rua”, “morador de rua”, ”pessoas em situação de rua”, “povo da rua”,
”mendigos” ou “sem teto”, compreendemos que, apesar de parecerem sinônimos, não são e
cada um carregam ideologias, conceitos e simbolismos históricos. Nesta pesquisa, um dos
personagens principais - Barba - idenficou-se por autodeclaração como "não sendo da rua",
mas sim que “estava na rua”. Compreendia que a rua não é um lugar que denote pertença.
Eles e elas estão na rua por uma série de problemas pessoais e sociais, de sorte que escolhem
a situação de rua, que inclusive traz ao ser humano a possibilidade de mudança se assim ele
quiser e puder, e também de viver condições menos conflitivas, do que a família, muitas
vezes, o bairro e o lugar de trabalho.
Assim sendo, nesta pesquisa utilizaremos dos termos “situação de rua ou pessoas em
situação de rua”, por englobar, conforme afirma Andrade,
As ruas também são ocupadas por pessoas que as utilizam para sobreviver:
são vendedores, ladrões, mendigos, artistas e outras. Dentre essas pessoas
estão às crianças e adolescentes em situação de rua que são encontradas
roubando, mendigando, usando drogas, fazendo apresentações artísticas nas
principais vias urbanas ou dormindo sob qualquer cobertura que lhes ofereça
proteção. Estar na rua e ser abordado por uma criança mal vestida que pede
dinheiro, comida ou dorme sobre papelões e coberta com o que possuem não
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é inusual. Cenas como essa se tornaram um retrato comum, normalidade
(Andrade, 2013: 185).
Giorgetti (2006) reforça que a utilização da expressão “pessoas em situação de rua”,
possui a intenção de destacar o caráter processual do fenômeno:
Delimitar as trajetórias (idas e vindas) e enfraquecer a ideia predominante (e
pejorativa) de que se trata de pessoas de rua, que não tem outra característica
senão o fato de pertencer às ruas da cidade (GIORGETTI, 2006, p.20).
Partindo da compreensão que, apesar do fenômeno pobreza, não se restringir às
sociedades capitalistas, contudo, na história percebemos que este sistema tem se mostrado
extremamente eficaz na produção de miséria e exclusão, tal como entendem Karl Max e muito
bem interpretada por Pete Alcock, entre outros. Esse quadro de intensificação e
reconfiguração da pobreza neste sistema favorece um aumento gradativo de pessoas em
situação de rua no país.
Segundo Lena Lavinas (2003)2, independente do conceito, pobreza sempre se
configura como um “problema” da pobreza seja ele moral, político ou econômico e afirma,
Na acepção mais imediata e generalizada, pobreza significa falta de renda ou
pouca renda. Uma definição mais criteriosa vai definir pobreza como um
estado de carência, de privação, que pode colocar em risco a própria
condição humana. Ser pobre é ter, portanto, sua humanidade ameaçada, seja
pela não satisfação de necessidades básicas (fisiológicas e outras), seja pela
incapacidade de mobilizar esforços e meios em prol da satisfação de tais
necessidades. (LAVINAS, 2003, p.29)
Assim como para Pereira (2008), neste trabalho, a abordagem sobre a pobreza a qual
acreditamos ser considerada mais pertinente é a que se associa ao conceito de necessidades
humanas trabalhada por Ian Gough,
(...) que defende a universalidade e a objetividade dessas necessidades para
além das diferenças culturais e históricas. O que pode variar, diz ele, são as
formas de satisfação dessas necessidades básicas, e não as necessidades em si.
Baseando-se nessa concepção, pode-se argumentar que não se utilizará um
alimento típico da Amazônia brasileira, como o açaí, como fonte de energia
nutricional para as populações do sul do Brasil; nem será necessário um
sistema de aquecimento habitacional nos países tropicais. Dessa maneira,
torna-se imperativo definir necessidades básicas como base de análise
comparativa sobre pobreza. Para Gough, “necessidades básicas são aquelas
2 http://www.uff.br/revistaeconomica/v4n1/lavinas.pdf
18
que se não forem devidamente satisfeitas implicarão sérios prejuízos à vida
material e à autonomia do ser humano”. E por sérios prejuízos devem-se
entender impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério risco a
possibilidade objetiva dos seres humanos de poder expressar sua capacidade
de participação ativa e crítica. São, portanto, danos cujos efeitos nocivos
independem da vontade de quem os padece ou da cultura em que se verificam
(PEREIRA, 2008, p.22).
Portanto, a pobreza absoluta, pode ser definida pela não satisfação de necessidades
básicas universais e objetivas. Estende-se, todavia às dimensões subjetivas, sobretudo aquelas
de possuir um espaço territorial que permita situá-lo no mundo, e também compreender-se em
um tempo de continuidade, e de elos, que conotam o sentido de vida. Ninguém sobrevive sem
relação, ninguém sobrevive sem reconhecimento dos outros semelhantes ainda que diversos
ninguém vive sem carinho, comunicação, amor, e reconhecimento de valor. Neste sentido a
pessoa é um ser político, aberto a ser mais, no sentido freireano.
Mais do que nunca, o contraste entre a pobreza e o crescimento vertiginoso das
riquezas produzidas é visivelmente assustadoras. O mundo contemporâneo observa a
proliferação de uma desigualdade social latente, em que, é preciso comparar pelo menos mais
do que uma década, para compreender essa desconstituição meteórica. Informações de 1999:
“20% da população do mundo detém 82,7 do conjunto da renda; os 20%
seguintes, 11,7% e os 60% restantes da população mundial dividem entre si
somente 5,6% da riqueza produzida pelo conjunto do planeta” (Salama &
Destremau, 1999: 22).
No período de pouco mais que uma década:
19
Essa desigualdade crescente, não é fruto da natureza de processos sociais ou
históricos. Ela é fruto de indução, e desconstituição de sentidos, valores, bens necessários,
necessidades artificiais, seguidas de muita ideologia e mecanismo de opressão, dominação e
dessubstanciação dos seres humanos, dos seres de natureza em mutação, e das formas
agressivas e letais. Desemprego maciço de amplos seguimentos da população, não é estranha,
nem nova para um sistema que se baseia na exploração do trabalho e na apropriação privada
da riqueza socialmente produzida, deixando para os trabalhadores somente a venda da força
de trabalho como possibilidade, por vezes única, de obter sua reprodução física e espiritual.
“O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto
mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se
uma mercadoria mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a
valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens”. (Marx, 2002, p.111).
Partindo do pressuposto que o trabalho assalariado se configura como a base do
sistema capitalista, para que ele funcione corretamente, é imprescindível à existência da
pobreza. Neste sentido, Pereira (2008) afirma:
É usando a pobreza como uma ameaça constante que o sistema disciplina e
obriga os indivíduos a recorrerem incondicionalmente ao mercado de
trabalho. E é através da exploração e da miséria dos mais pobres que o
capital se reproduz. Assim, os pobres não são excluídos do sistema como um
todo; não se localizam fora dele, mas na sua margem. (PEREIRA, 2008,
p.24)
Nesse contexto, após conceituar a pobreza, torna-se importante associa-la ao
fenômeno “pessoas em situação de rua”, que desde sua origem, carrega um estigma da
vadiagem e falha de caráter e tratada com repressão e violência pelo Estado.
Essas pessoas são de certa forma a cara de exclusão no país, exclusão que compõe de
assimetrias econômicas, mas também o desreconhecimento de pertencimento social. Implica
simbolicamente na destruição dos sentidos de vida, na falta de perspectivas para garantir o
fluxo da vida, bloqueio ao acesso à informação, e a consequente perda de autoestima. Sua
condição adversa, de apartheid, preconceito e carimbagem prévia de sinais de diferença e de
rejeição dos valores em conflito, com a cultura genérica, acabam por destiná-las ao limbo,
mas em especial a graves danos na saúde, ausência de acompanhamento de distúrbios,
principalmente, mentais, relacionados as mundo do tráfico de drogas, relativização de valores
de convivência, e surgimento de padrões e perspectivas de emancipação social muito restrito.
20
A sobrevivência nas ruas exige um esforço diário dessas pessoas, nem mesmo seu
mundo social é produto de escolha ou criação própria, pelo contrário, são empurrados a estar
nele.
Decorrente disso acaba por construir uma ―cultura de rua‖ através de uma
sociabilidade própria. Os moradores de rua partilham um destino particular,
único, nesse mundo: ―o de ter que sobreviver nas ruas e becos da cidade.
Assim, no contexto da rua, a sobrevivência do morador de rua se dá em
lugares os mais inusitados e estranhos, mas que os abrigam das intempéries
da natureza, dos olhares acusadores, das atitudes de desprezo e dos perigos
cotidianos. A rua, com todos os seus contrastes e perigos ocultos, protege
seus moradores, os quais através da construção de sociabilidades próprias e
buscando as mais diversas formas de abrigo, procuram também proteger suas
identidades, camuflar suas almas, esconder suas tragédias e dores. (COSTA,
2013, p. 48-49)
As pessoas em situação de rua partilham, contudo, da mesma fatalidade, com
significados muito diversos, cujo imperativo é manter-se vivo nas grandes cidades, sobretudo
durante a noite onde toda a ameaça possa por fim à vida. Não há paz para quem está nestas
condições e isto está longe de ser compreendido como um ato de liberdade ou de simples
escolha.
A condição de situação de rua transforma a vida de qualquer pessoa, que precisará
aprender formas de relações entre pares, que estão nesta condição, e poderão desenvolver
socialidade importantes, pra manter o vínculo de solidariedade, as mudanças permeiam o seu
modo de olhar o outro e a si próprio, a sociedade o tratam de uma maneira quase não-humana.
Os direitos sociais, existenciais, políticos - apesar de tê-los formalmente- são subtraídos os
elevando a um estado de exceção, ou seja, “a suspensão (total ou parcial)” (AGAMBEN,
2004, p. 39).
As possibilidades do estado de exceção são, em termos gerais, a criação de um campo
onde a legalidade seja ”confusa” e se possa flexibilizar as leis pelo bem da gestão e a
legitimação e extensão do poder do gestor para, ao seu bel prazer, ser subserviente aos fluxos
econômico. Busca-se o enfraquecimento das respostas contrárias aos mesmos, além de criar
formas de vidas submetidas a este poder e consequentemente condenação e gestão de
qualquer atitude desviante. Como disse Deleuze (1992, p.220) sobre os últimos trabalhos de
Foucault, nos quais ele pensava cada vez mais as questões contemporâneas, saímos das
sociedades disciplinares e entramos na sociedade de controle.
As pessoas em situação de rua são submetidas diariamente e em sua grande maioria
por toda vida, aos mecanismos do estado de exceção. Para Benjamin (1994, p. 226) “a
tradição dos oprimidos nos ensina que o „estado de exceção‟ em que vivemos é na verdade a
21
regra geral”. Para Cabral é na situação, contudo, de rua que os limites de uma vida
condicionada pelo estado de exceção chega ao absoluto, em uma democracia. Complementa:
[...] a vontade soberana que decreta o estado de exceção - dignificando uns e
„indignificando‟ outros – é a vontade soberana do Estado democrático
brasileiro, é a vontade soberana do Capital que diz possibilitar a todos e
todas as mesmas condições. A unificação destas duas soberanias é a
estruturação de um “estado capitalista” o qual “irá, historicamente, utilizar
duas formas de regime político: a ditadura burguesa aberta e a ditadura
burguesa oculta, a democracia”. O poder soberano do Estado e do Capital
governa a vida produtiva, os locais de morada, o estudo, o consumo e até
(em parte) o desejo, emoção, sentimentos, medos, angústias, alegrias etc.
(2014, p. 218).
O espaço da rua, como se pode visualizar facilmente em Cuiabá, em espaços como o
“Morro da Luz”, “Beco do Candieiro”, “Praça do Porto”, “Cracolândia da Rodoviária”, dentre
outros, onde podemos compreender como espaço onde o estado de exceção opera e torna-se
regra, adquire o status que Agamben (2007, p. 175) descreve como “campo”,
[...] o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a
tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma
suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de
perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que, como tal,
permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal. [...] Não
existe ordem alguma nem instrução alguma para a origem dos campos: estes
não foram instituídos, mas um certo dia vieram a ser.
Se para Agamben, o campo de concentração é o paradigma biopolítico do moderno,
não é extremo afirmar que para as pessoas que estão em situação de rua, ela funciona como
um autêntico campo de concentração.
(...) se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção
e na consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram
em um limiar de indistinção, deveremos admitir, então, que nos encontramos
virtualmente na presença de um campo toda vez que é criada tal estrutura,
independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer
que seja a sua denominação ou topografia específica. (AGAMBEN, 2000,
p.41)
Neste campo de concentração que a rua se tornou, é a criminalização da pobreza que
reina. Favorece o fortalecimento de um estereótipo do ”mendigo criminoso”, justamente
porque o estado e a sociedade trata como se fosse criminal um problema social, negando o
fato de que essas pessoas se encontram neste estado por uma sonegação e negligência
22
histórica do poder público e do poder econômico, negando-lhes direitos fundamentais. Neste
sentido, poderíamos afirmar que essas pessoas possui uma vida encarnada enquanto “vida
nua”, onde a sua fragilidade e vulnerabilidade é exposta a todos. A sua condição social o
reduz enquanto vida humana, favorecendo a episódios de todo tipo de violência pelo estado e
sociedade, esses ataques não são repreendidos com o mesmo entusiasmo quando são
direcionados aos que não estão em situação de rua.
Essa vida nua, diz ao que é colocado as pessoas em situação de rua, que esta vida sua é
a “vida indigna de ser vivida” (AGAMBEN, 2002, p. 20). Uma vida matável sob a apatia e/ou
permissidade social. As pessoas em situação de rua sentem, percebem, tem consciência de sua
vulnerabilidade à violência, consequência lógica da condição de estar desprovido de direitos.
Torna-se, a partir desta condição, não só para aquela sociedade, mas, por vezes, para si
mesmo um não-humano (CABRAL, 2014, p.223). Agamben (2002, p.91) complementa,
[...] se ao soberano, na medida em que decide sobre o estado de exceção,
compete em qualquer tempo o poder de decidir qual vida possa ser morta
sem que se cometa homicídio, na idade da biopolitica este poder tende a
emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder de decidir
sobre o ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante.
Nesta condição de “vida indigna de ser vivida”, as pessoas em situação de rua se
tornam invisíveis ao direito e à sociedade. Esse cenário social possibilita que atos de
crueldade sejam constantes para com eles, pois a rua se torna uma espécie de “terra sem lei”,
as ações concretas do estado, normalmente se restringem a políticas higienistas, a final, essas
pessoas se transformaram em uma espécie de lixo que precisa ser retirado dos espaços
urbanos, com o apoio da sociedade. Agamben conclui sobre os horrores que ocorrem nos
campos, como a rua relacionada nesta pesquisa:
A questão correta sobre os horrores cometidos nos campos não é, portanto,
aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão
atrozes para com seres humanos; mais honesto e, sobretudo mais útil seria
indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos
políticos permitiram que seres humanos fossem tão integralmente privados
de seus direitos e de suas prerrogativas, ate o ponto em que cometer contra
eles qualquer ato não mais se apresentasse como delito (a esta altura, de fato,
tudo se tinha tornado verdadeiramente possível). (AGAMBEN, 2002, p. 178)
A condição das pessoas em situação de rua, não é uma sobra natural da forma como
a sociedade busca viver e sobreviver no tempo e no espaço, com as dificuldades para recriar
23
um processo de convivência. É antes uma estratégia da destruição do todo o “solo natural” das
relações intencionadas de por grande parte da sociedade à mercê da violência dos que a
querem dominar:
Não é como parece, uma questão de trabalho produtivo, nem apenas de
reserva de mercado. Vai muito mais longe. É a forma perversa e sanguinária
dos dominadores adquirirem uma aura divina de superioridade surreal,
adquirida proporcionalmente no poder trucidar os outros como nada,
estabelecendo a diferença radical entre o Grandioso e Onipotente, contra a
fragilidade absoluta do outro. Investem-se desta forma, de prazer sádico, de
investir da força do poder maléfico, e de se colocarem acima de todos os
altares no culto à humanidade caucasiana e sem margens e limites, que se
reforçam pelos rituais sacrificiais que expressam sua crescente sede de
sangue (PASSOS, 2017, 31-46).
1.1 Táticas de sobrevivência e as trocas de saberes
Para Mattos e Ferreira (2004), o trabalho consiste,
(...) constitui uma das categorias responsáveis pela coesão da sociedade
atual, além de conferir ao indivíduo dignidade pessoal. Dessa forma, o
trabalho surge como fator primordial para a pessoa, por dois aspectos:
provém a subsistência física por meio dos rendimentos recebidos; e sustenta
a subsistência simbólica, dada a importância do trabalho (ou identidade
profissional) na constituição da identidade pessoal.
Apesar de um grande número de brasileiros atualmente encontrar-se no mercado
informal, ainda se tem o entendimento que identidade profissional se dá através do emprego
formal e registro em carteira. Neste contexto, as pessoas em situação de rua apesar de
desenvolverem atividades informais, são, sob a ótica do trabalho, frequentemente
consideradas como improdutivas, inúteis, preguiçosas, incapazes e vagabundas. Sendo assim,
as pessoas em situação de rua são culpabilizados por não possuir um emprego formal, neste
sentido completa Di Flora,
(...) a população em situação de rua é assim estigmatizada, pois escancara as
contradições básicas do modo capitalista de produção: a falácia de que todos
possuem iguais oportunidades e a evidência de que, embora a produção seja
social, a apropriação dos ganhos é sempre individual, sendo as pessoas em
situação de rua testemunhas vivas de que a exploração e a desigualdade
estão no cerne deste modo de produção. (DI FLORA, 1987, p. 47)
24
Porém, apesar de todos os estigmas e barreiras sociais, inclusive destituídos da
condição de humanos, as pessoas em situação de rua precisam buscar diariamente alternativas
de trabalho para sobreviver. Buscam sem a possibilidade de escolha, nas atividades mais
degradantes possíveis, alcançarem o status de trabalhador tão importante numa sociedade
capitalista. Distanciam-se do mercado formal, onde teriam os direitos assegurados pela
legislação trabalhista e previdenciária e lhes empurram a uma linha tênue de desumanidade,
lhes sobrando como alternativa o trabalho informal, a mendicância, além da execução de
pequenos furtos, tráfico de drogas, prostituição, etc.
Em uma breve busca em publicações que tem como objeto ou sujeito de pesquisa a
população e situação de rua, percebe-se que ainda são restritas, apesar de que nos últimos
anos obteve-se certo aumento, talvez por ampliação e criação de alguns programas de atenção
a este grupo específico. Tais pesquisas constituem-se como dados importantes que, em muitas
situações, balizam a proposição de políticas públicas para este grupo.
Segundo Kunz (2012), percebe-se que muitas políticas governamentais, e também as
pesquisas acadêmicas, lidam com estes modos de vida a partir de várias perspectivas que
abarcam: práticas/ações que tentam domesticá-los; práticas que os vitimizam; práticas que os
tomam como perigosos, criminalizando-os; e práticas que vêm se esforçando no sentido de
mergulhar nesta experiência e com ela tecer saberes da/na rua.
Nesses territórios há códigos que seus usuários entendem e respeitam
criando regras de convivência. Nesse contexto, é possível.
definir convivência a partir do pensamento de Certeau (2009, p. 49), quando
afirma que “a convivência é o gerenciamento simbólico da face pública de
cada um de nós desde que nos achamos na rua”. Aos
mais fortes torna-se comum à liderança representada muitas vezes pela
dominação. Destaco que a existência de um território na rua esta diretamente
ligada às relações de poder que se estabelecem e são também essas relações,
importantes para manutenção do território, que provocam a elaboração,
reelaboração e execução das táticas de sobrevivência instituídas por eles,
mas também instituintes, para situações específicas e mutantes.
(ANDRADE, 2014, p.186)
As táticas de sobrevivência, compreendidas a partir do espaço da rua, afirma Andrade
(2014),
Normalmente essas táticas de sobrevivência (“viração”, “mangueamento” ou
“desenrascaço” e em Cuiabá se chama ainda de “correria” ou “caçá jeito”)
exigem uma convivência grupal entre os usuários do espaço urbano, o que
possibilita a otimização do seu tempo e promove a eficácia da ação
executada por eles. Tendo como base a criação de grupos, (...) podem ser
25
compreendidos em dois: 1) os que perderam os vínculos familiares, tomando
a rua como moradia; 2) os que mantêm vínculo com a família, indo à rua
desenvolver atividades, a fim de contribuírem com a renda familiar ou de a
gerarem. São diversas as atividades desenvolvidas por esses dois grupos –
trabalho, mendicância, furto, brincadeiras, uso de drogas, etc. Assim, para
eles, a rua se torna um lugar de dinâmicas variadas. (ANDRADE, 2014, p.
183)
Em se tratando de táticas de sobrevivência das pessoas em situação de rua é preciso
não descartar as práticas ilícitas, visto que,
Considerar roubo como trabalho seria buscar o significado do trabalho
no aparente não trabalho (BLASS, 2006). Sendo assim, é possível
visualizar as atividades antes conceituadas como vagabundagem ou
banditismo enquanto trabalho, mesmo que sejam ilícitas ou que
desafiem a ordem estabelecida pelo Estado. Quando abordo as táticas
de sobrevivência desenvolvidas e executadas pelas crianças e
adolescentes em situação de rua enquanto trabalho, considero essas
duas táticas enquanto trabalhos lícitos e ilícitos, sem desprezar sua
importância para manutenção da vida (...). (ANDRADE, 2014, p.191)
Como prática comum, às pessoas em situação de rua de Cuiabá, a exemplo de nosso
companheiro de pesquisa, sobrevive realizando limpezas de quintais, fazendo pequenos
reparos, artesanato com garrafas, guardando carro na rua, carregando sacolas, etc.,
desmistificando o que se tem em um discurso comum da sociedade, que as pessoas em
situação de rua sobrevivem somente de mendicância, aliás, essa não é uma prática comum
nesta região. Os grupos que permaneceram nas regiões centrais realizam outras táticas para
sobreviver, além das já citadas, inclui a limpeza de para-brisas nos semáforos, limpeza nos
quintais dos bares, prostituição, malabares, no caso das práticas ilícitas, se utilizam
frequentemente do termo “corre” para identifica-las, são os furtos, roubos, venda de drogas,
etc.
Olhar para todo esse movimento que as pessoas em situação de rua fazem para
sobreviver, requer como anuncia Geertz, do pesquisador e da pesquisadora convivência de
campo e uma atenção cuidadosa, pois se corre o risco de cair em armadilhas de se tentar
moralizar ou romantizar as maneiras que essas pessoas encontram para sobreviver. Ao se
deparar com um mundo social onde as práticas ilícitas se tornaram um modo de vida,
independente do que se tem como valor pessoal, é preciso não desqualifica-los com o seres
humanos onde sua dignidade fora escamoteada por um sistema onde não dispõem de um
“lugar ao sol”, são seres descartáveis, mas que “teimam” em sobreviver.
26
Diferentemente do que acreditávamos a população em situação de rua não vive em um
mundo paralelo aos que não estão nesta situação, pelo contrário, estas táticas de sobrevivência
são fabricadas de forma entrelaçada a todos os processos e relações sociais que se dão na
cidade de forma geral.
Durante a nossa trajetória trabalhando ou pesquisando a população em situação de rua
de Cuiabá, pudemos perceber algumas táticas utilizadas para sobreviver nas ruas, tais como:
alimentação, a correria, as regras, a relação com a cidade, incluindo aqui as igrejas, os
comerciantes, a segurança pública, o banho, o cuidado com os pertences pessoais, o trabalho
que realizam na rua, dentre outros, que de algum modo expressam como se desenrola a vida
nas ruas.
Atrelado às táticas de sobrevivência, as práticas educativas se dão entre e com eles,
isso se dá entre os que já estão em situação de rua e os que chegam de forma quase que
natural. Frequentemente estão agrupados e em uma conversa informal, onde através de sua
história ou no contar o seu dia-a-dia, o outro também aprende, a fabricação e troca de saberes
também se constitui uma forma de se se olhar as táticas de sobrevivência e implica a aprender
a lidar com a imprevisibilidade permanente. Para Freire (1980, p.64), “(...) o educador já não
é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando
que, a ser educado, também educa”.
A educação não se caracteriza apenas por práticas de ensino institucionalizadas
formais, em se tratando de pessoas em situação de rua, ela se dá principalmente nas trocas de
saberes e essa prática educativa, garante muitas vezes, a possibilidade de permanecer vivo nas
ruas. No último capítulo deste trabalho, conseguiremos visualizar com clareza como estas
táticas se dão no dia a dia do nosso companheiro de pesquisa.
27
CAPITULO II
O FÊNOMENO PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL – DA
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS ATUAIS
[...] a existência desvela, em face da liberdade uma figura do
mundo totalmente nova, o mundo como promessa e ameaça
para ela, o mundo que lhe arma ciladas, a seduz ou lhe cede,
não mais o mundo uniforme dos objetos de ciência kantianos,
mas uma paisagem de obstáculos e de caminhos, enfim o
mundo que nós „existimos‟ e não somente o teatro do nosso
conhecimento e do nosso livre arbítrio. (MERLEAU-PONTY)
É objetivo deste capítulo é realizar um percurso sucinto da complexa história do
Brasil, salientando alguns pontos que dizem respeito ao nosso trabalho, buscando perceber a
origem do fenômeno da chamada “população em situação de rua” no Brasil.
Nunca foi antes na historia da humanidade estranho as ruas terem um caráter público.
De certa forma, na Idade Média, não havia um espaço de vida privada, somente com as
corporações começam simultaneamente um controle do tempo de trabalho, o relógio como
marcação de um horário que atingiria uma ordem para todos e todas. Nas sociedades tribais a
casa, nem à noite é utilizada, para ser lugar de acolhimento. As pessoas ou recorrem a ela em
situações especificas, chuvas, ventos, perseguições, etc.
Nem mesmo a sexualidade eram práticas privadas, porque sendo parte da natureza,
e as crianças não consideradas senão com adultas de tamanho pequeno, não tinham um status
ou formas de comportamento sob controle específico, e compartilhavam de toda a vida de
todos e todas (Ariés, 1991).
O extraordinário é a privatização do espaço público da rua. Isso não é apenas um
sintoma, uma prática de um tipo de economia e cultura de criar a privatização de espaços com
prerrogativas arraigadas somente àqueles espaços, e proibido o acesso aos considerados
estrangeiros e forasteiros. Pessoa alguma vive sem estar em um território de onde organiza
sua vida. Não somos pássaros, não somos peixes... A terra é o lugar onde podemos viver, e
dela retirar o conjunto de coisas para continuarmos vivendo.
28
Historicamente a existência de pessoas em situação de rua, tem mostrado não ser este,
um fenômeno restrito ao Brasil, nem às sociedades capitalistas modernas, mesmo
compreendendo que estas tenham sido as mais eficazes em produção de miséria e exclusão.
De acordo com Simões Junior (1992, p. 19), na antiguidade, já eram registrados grupos
habitando as ruas e vivendo quase que exclusivamente da mendicância.
Desde a antiguidade, já era registrada a presença de determinados grupos de
pessoas habitando as ruas e vivendo quase que exclusivamente de
mendicância. Apesar de o fenômeno em si adquirir conotações ao longo da
história, o morar na rua sempre manteve uma característica fundamental: é
observável unicamente em aglomerações humanas permanentes, o que
significa ser ele um fato tipicamente urbano. (SIMÕES, 1992, p. 19)
O autor também afirma que, na civilização grega e no Império Romano, este
movimento de pessoas vivendo nas ruas já existiam,
As primeiras referências sobre a existência de populações habitando as ruas
remontam a Grécia antiga. Com a decomposição da sociedade arcaica, a
consolidação da propriedade privada e a expropriação de terras comuns,
ocorre um grande êxodo de populações de população de despossuídos para
as cidades, vindo dar origem aos primeiros grupos de mendicantes é
vacantes urbanos.
Em Roma, o fenômeno reveste-se de características semelhantes: despejos
Rurais, vítimas de guerra, exército dissolvidos, enfim, todo um contingente
de população sem-terra e sem ofício, de mutilados, de doentes, que se
desloca para a cidade sem outra alternativa a não ser a mendicância, a
vadiagem ou à prática de atividades consideradas marginais. (SIMÕES,
1992, p. 19 e 20)
Na Idade Média, as pessoas que perambulava pelas ruas eram má vistas, tinha um
caráter questionável e independente da época em que se investigue, uma das características
marcantes era a apartação social e territorial. Para Frangella (2009, p.39), desde esse período
já se observa o estigma de vadiagem que essas pessoas carregavam.
(...) a mobilidade era justificada para a ordem social quando se traduzia em
um caráter migratório dentro da estrutura e da rede que a controlava; (...)
Assim, a errância era aceitável como uma condição passageira e não como
um modo de vida. Dessa forma, quando a perambulação era – e é ainda –
justificada dentro da moralidade da busca de trabalho, mais amplamente
legitimada, essa relação de estranhamento se atenuava. Mesmo assim, o
imaginário em torno dos errantes os marca como agentes poluidores,
perigosos; mais contemporaneamente, como fracassados.
Essa vida em espaço público perdurou e se aprofundou, nas sociedades ocidentais,
inclusive no período da Idade Média. As praças, becos eram lugares de poder estar, viver,
29
dormir, fazer sexo, sem restrições. Dado o conceito da sexualidade não estar expulsa do
cotidiano. Não havia ainda preocupação com crianças, pois eram seres considerados idênticos
aos adultos ainda em crescimento, e deveriam aprender com a vida vivida, a convivência
cotidiana.
O espaço delimitado inicia quando as atividades de trocas ganham o sentido de
mercado. E a produção passa a exigir, sobretudo nas cidades que começam a se organizar, não
como forma de convivência, mas como fatores de tronar possíveis o trabalho da corporação
que se organizava, e do controle do tempo de trabalho, e dos espaços reservados a este.
Surgem, para demarcar o tempo, relógios e sinos nas torres das Igrejas, como forma de
padronizar os tempos, fatiá-los e distribuir uniformemente para os interesses mercantis.
Aprofunda-se do feudalismo o controle territorial pelo senhorio, ou nobre.
Estabeleceram-se, então, espaços voltados a controle de uso e usufruto privado. De sorte que
viver e usufruir este espaço, eram sempre sob a forma de favores, e não raro, de perda
inclusive da liberdade, e de vida ameaçada.
Com o fim da escravidão no Brasil e novos postos de trabalhos que estavam surgindo,
a elite brasileira passou a se preocupar em substituir a mão de obra negra pela dos imigrantes
brancos vindos da Europa. Essa política de segregação racial fez com os negros vivessem as
margens da sociedade, como cita ANDRADE (2014, p.22):
Devemos considerar que o fato de a maioria da população negra
brasileira estar em péssimas condições de vida no século XX origina-
se com o fim do tráfico de escravos em 1850, com o fim da escravidão
em 1888 e com a tentativa de substituir a mão de obra escrava (negra)
pela assalariada (imigrante), o que não alcançou todo o território
brasileiro. Também não podemos desconsiderar a importância das leis
contra a escravidão para melhoria da vidada população negra. O que
levantamos como reflexão é que o Estado não criou políticas de
atendimento aos escravos, que os inserissem no mercado de trabalho.
As leis apenas libertaram juridicamente, mas os negros continuaram
escravos, seres inferiores, sob o olhar do branco.
Progressivamente a mão-de-obra negra foi perdendo espaço para o trabalho
assalariado imigrante europeu nas lavouras agrícolas brasileiras, pois as maiorias dos
fazendeiros se recusavam a assalariar os ex-escravos. Com isso, os negros foram
abandonados nas ruas, estavam livres, porém sem a mínima condição para sobreviver, isto é,
o fim da escravidão não cessou os maus tratos, a humilhação e a sua negação como seres
humanos. Como afirma Forestan Fernandes (1978, p. 15):
30
A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem
que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de
assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de
trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela
manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer
outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto
prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (...)
Essas facetas da situação (...) imprimiram à Abolição o caráter de uma
espoliação extrema e cruel. (2008: p.28)
O que se conforma à mesma percepção de Abdias do Nascimento que a crueldade
operou uma marca muito maior por dentro, a partir de uma relação de aniquilação e
hospedagem do hospedeiro no escravo, buscando a perda de sua referencia e de sua memória,
através do corpo e do imaginário opressor:
A ação do racismo no Brasil, por si só com altos graus de intolerância
e perversidade, tentou com todos os recursos que o conhecimento
permite anular o homem e a mulher negros na sua dimensão
existencial, buscando liquidar a sua memória, a sua identidade, o seu
corpo e o seu espírito (NASCIMENTO apud HUNTLEY, 2000, p.
231)3.
A história do trabalho no Brasil carrega com ela as marcas das senzalas, o trabalhador
escravo que gerou tantas riquezas ao Brasil carrega consigo a invisibilidade, se quando
escravos já eram invisíveis a essas análises, pós-abolição não houve grandes mudanças, o foco
era voltado ao trabalhador branco e imigrante. Esse período se estabeleceu como um
momento de transição da formação do trabalho livre, onde os ex-escravos foram ficando a
mercê de sua própria sorte. MARTINS (1979) traz em sua obra:
(...) a questão abolicionista foi conduzida em termos da substituição do
trabalhador escravo pelo livre, isto é, no caso das fazendas paulistas, em
termos de substituição física do negro pelo imigrante. O resultado não foi
apenas a transformação do trabalho, mas também substituição do
trabalhador.
Os ex-escravos, além de serem discriminados pela cor, pois na época havia uma
exaltação do imigrante branco, associada à ideia da incapacidade do negro para o trabalho e
somando-se à população pobre que se constituía em mulheres empregadas nas casas-grandes,
filhos ilegítimos dos brancos ou escravos velhos, doentes e incapazes para o trabalho, muitos
cativos, diligentes que compraram sua alforria com o fruto de seu trabalho além dos que
3 http://vencontro.anpuhba.org/anaisvencontro/L/Leonardo_do_Amaral_Alves.pdf
31
fugiram enquanto estavam em condição de escravidão. Formaram os indesejados, os
deserdados da República. Como afirma Cardoso:
[...] ao longo dos séculos, os cativos e/ou seus descendentes se libertaram da
escravidão e passaram a compor a população não diretamente envolvida com
a economia escravista, que com o tempo se avolumou em virtude da
miscigenação. Em 1850, quando cessou o tráfico negreiro, havia cerca de
dois milhões de escravos numa população estimada em oito milhões de
almas, das quais mais de 90% viviam no campo. A força de trabalho já não
era majoritariamente escrava. O censo demográfico de 1872 contou perto de
dez milhões de brasileiros, dos quais 1,5 milhão de cativos. Como considerar
intersticiais, ou sem lugar, os 75% de brasileiros que já não eram escravos
em 1850? Esse grupo heterogêneo, mestiço, majoritariamente miserável,
disperso pelo território nacional e afeito à migração constante em busca de
meios de vida não participava diretamente do setor dinâmico da economia
(que então se deslocava para as lavouras de café de São Paulo), mas era parte
da dinâmica social mais geral. (2008, p 76 e 77).
Segundo Rodas e Prudente (2009, p. 503)4, não houve uma preocupação coma
integração dos ex-escravos na sociedade vigente:
Nem mesmo a abolição da escravatura com a Lei Áurea se preocupou com a
integração do ex-escravos na sociedade vigente, deixando-o estigmatizado
com a negatividade pautada a toda sorte de um sistema de trabalho livre, que
não tinha lugar para aqueles que hora vieram para servirem no trabalho
compulsório. Situação que contribuiu para formação do estigma de mau
cidadão, marcado pela: malandragem, prostituição, vadiagem, entre outros.
Esse grupo sequer era considerado na época como povo brasileiro, representava a
maior parte da população do país, chegando a cerca de 65%, excluindo indígenas. E a
interpretação da população branca burguesa, que se continua era de que seriam milhares de
pessoas vistas como parasitas, inúteis e vagabundas e que não tinham acesso às benesses da
sociedade em formação como expressa de maneira violenta, Manoel Bomfim:
Nos interstícios dessa malha de feudos, uma população de mestiçagem,
produto de índios e negros, negras e refugos de brancos, indígenas e
escravos revés, uma mescla de gente desmoralizada pela escravidão ou
animada de rancores, uma população vivendo à margem da civilização,
contaminada de todos os seus vícios e defeitos, sem participar de nenhuma
de suas vantagens. (BOMFIM apud SPRANDEL, 2004, p.38).
E o panorama ainda persiste na visão autoritária, branca, eugênica dos processos de
higienização, que enxergavam apenas o aumento do número de desocupados, trabalhadores,
4 http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67867
32
lumpens5 – no sentido clássico – excrecências - em situação de rua; e, crianças abandonadas
nas ruas redundaram também em aumento da violência, sobretudo da população branca, do
aparato policial contra a população carimbada como animais, no sentido de Agamben. O
historiador Luiz Edmundo (1880-1961), em sua obra ”O Rio de Janeiro do meu tempo” fez
uma descrição do cenário desse período:
“Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar
pelas hospedarias da rua da Misericórdia, capoeiras, malandros,
vagabundos de toda sorte: mulheres sem arrimo de parentes, velhos
que já não podem mais trabalhar, crianças, enjeitados em meio à gente
válida, porém o que é pior, sem ajuda de trabalho, verdadeiros
desprezados da sorte, esquecidos de Deus...(...) No morro, os sem- -
trabalho surgem a cada canto”.
Nas principais cidades do Brasil, como Rio de Janeiro, as favelas e cortiços, foram às
saídas encontradas pelos descendentes de escravos e pelas pessoas de baixa renda, para
ocupar e sobreviver. Segundo Valladares (1998, p.07) eram “considerados [...] como o lócus
da pobreza, espaço onde residiam trabalhadores e se concentravam, em grande número vadios
e malandros, a chamada “classe perigosa””. A última audiência na Câmara de Cuiabá, semana
passada, retoma esse mesmo refrão. A audiência considerada pública era para abrir
perspectivas de negociação com grupos externos interessados em financiamento ao turismo os
lugares onde havia afluxo de “drogas”. Esse discurso trazido por Valladares é fruto da classe
burguesa dominante que possuía na classe trabalhadora uma imagem de homogeneização,
tanto econômica como espacial. Buscava, segundo o autor, diluir a ideia de identidade
positiva da sociedade para com esses moradores e com suas residências.
Durante o Império, as pessoas mais abastadas da sociedade viviam em grandes
casarões nas regiões centrais das cidades, com o passar dos tempos, já no século XIX, devido
à falta de cuidado, esses casarões foram abandonados e um grande número de pessoas que não
tinham lugar para morar invadiram esses locais e assim se deu a origem dos cortiços, essa
forma de abrigamento acabou favorecendo a invisibilidade dessas pessoas. Situação ainda
presente ao observarmos a região central de Cuiabá e bairros como o Porto, as pessoas em
5Lumpen, Inclusive na literatura marxista foi considerado as pessoas “perversas” ou „sobrantes‟ nas ruas que não se
enquadravam dentro da ordem produtiva à qual pertenciam. E, como delinquentes e maus, mantinham uma vida em agressão
aberta à sociedade, e como setores antissociais. Na revolução Bolchevique, coube à Máximo Gorki e a Makarenko
reorganizar a educação socialista com estas crianças e adolescentes considerados delinquentes. Atualmente a literatura sobre
população de rua, inclusive as pesquisas trabalham sempre na perspectiva de „integração‟ destas pessoas via trabalho
produtivo, que na verdade não é um processo de sentido, mas de escravidão declarada, de sua exploração. E de atá-los ao
Estado que temos... e não ao que queremos.
33
situação de rua, costumam invadir os casarões antigos e abandonados que por conta do seu
tombamento histórico, não podem ser demolidos e o restauro oneroso aos donos.
Eram nesses locais que a população obtinha pagamentos irrisórios por sua mão de
obra, encontrava taxas de aluguel que conseguiam pagar, uma vez que as habitações
concentravam um grande número de pessoas, em um espaço muito reduzido, onde o abandono
por parte dos serviços públicos mantinha uma infraestrutura das moradias era precária, como
o acesso mínimo à agua potável, coleta de lixo e serviços de esgoto.
Os cortiços, apesar de se apresentarem como uma boa forma de lucro para seus
diversos proprietários, para o Estado eles representavam não só um local com grande
agrupamento de doenças contagiosas, mas também “um foco potencial de agitações
populares, residência que era de um número elevado de trabalhadores, imigrantes em sua
maioria, que viviam no limiar da subsistência” Muitos deles, ligados aos movimentos
anarquistas que tomaram o Brasil, em função do baixo preço, pago pelo trabalho deles
(ABREU, 2003, p.212).
Surge pela primeira vez o impulso de se construir uma sociedade capaz de se tornar
menos diferenciada, e superar, pelo progresso, uma base nacional popular, para superar a
herança colonial, a escravidão e construir um conjunto de dimensões e „temperos” que
criassem o nacional popular. Vencendo a resistência de núcleos isolados.
A ideia, de progresso, mudança, transformação rápida pelo trabalho, pelo arcabouço de
controle jurídico, e exigir que os grupos abrissem mãos de suas diversidades locais, e
adquirem-se formalmente aspectos de uma cultura de massa, popular. O interesse era
necessário, pois era impossível uma sociedade divida entre muitas nações, costumes, tribos,
sem uma língua comum, um sentimento comum, uma base para uma nacionalidade, mais
imposta do que negociada. Importante foi a contribuição de Marilena Chauí no seu trabalho
acerca do Nacional Popular. Importante compreender que o Nacional Popular foi estratégia e
continua sendo de homogeneizar a sociedade brasileira para o controle político, normalmente,
pelos déspotas esclarecidos, no mesmo sentido deles, de produzir um fenômeno em que se
busca uma convivialidade com o abandono do que se é, para realizar uma síntese harmoniosa.
Foi nesse período que vivenciamos no país uma supervalorização do progresso, onde se
exigia que houvesse uma superação da herança colonial e da escravidão para assim se
construir uma identidade nacional. Com esse objetivo, o Estado passou a interferir na vida
social e reconstruir os espaços urbanos se utilizando de ações higienistas para controlar
socialmente a população. Neste contexto, a pobreza passa a se tornar um problema social da
34
época, deixando de ser encarado simplesmente como um fenômeno sem importância, visto
que o Estado visava grandes transformações sociais, políticas, industriais para o país. No
entanto, a primeira reforma se deu somente em 1902, no Rio de Janeiro, gerando um grande
processo de urbanização e uma melhoria considerável na saúde pública.
Para Valladares (1990, p.7), neste contexto, os pobres passaram a ser considerada uma
classe perigosa e que necessitária ser reprimida e controlada para que não se comprometesse a
ordem. Eram vistos como inúteis para sociedade e onerosos para o Estado, portanto precisava
ser ajustada, para isso a solução seria os libertarem dos “vícios da pobreza”, como a preguiça,
a mendicância, a vagabundagem e a doença. Essa época se caracterizou pelo destaque que os
médicos e sanitaristas obtiveram devido às medidas tomadas com relação à saúde pública e
higienização das cidades, como o fechamento dos cortiços, as campanhas de enfrentamento de
epidemias, demolição dos locais de moradias insalubres, o intuito era de moralizar a pobreza e
a miséria.
A Reforma Urbana aos poucos foi transformando a paisagem da cidade do Rio de
Janeiro. Decretos que mudavam, aleatoriamente, havia decretos proibindo entre outras pautas,
a construção/reestruturação de imóveis sem o aval da Prefeitura. Milton Campos falava de um
processo urbano que não tinha nada de normal, nem organizado, todo contrário. Convivia com
o improviso. Os cortiços existentes e diversas formas de trabalho “não oficiais” que
aconteciam no centro da cidade, como marreteiros, vendedores ambulantes, camelôs,
trabalhavam nas ruas, sem impostos do imóvel onde moravam. Priorizavam, os mais pobres,
migrantes, sem teto, morar em cortiços localizados no centro, mesmo em péssimas condições
de habitabilidade, pois naquela época, no caso de procura de emprego, era a área central da
cidade que oportunizava bicos, pequenas ajudas, e mais possibilidades de trabalho eventuais.
Tanto como contribuía com maior economia de gastos por não pagar transporte, e haver vagas
de emprego que precisavam rapidamente ser preenchidas.
A população mais pobre de diversas capitais brasileiras morava em cortiços, e, por
conta da grande concentração de pessoas em um local pequeno, a propagação de doenças,
como a febre amarela e a cólera, era muito comum, desinterias, viroses.
Ora, a Reforma, queria organizar a sociedade brasileira, com se fora uma única
entidade, sem diversidades e singularidades, sem as dimensões linguísticas próprios das
tribos, sem sinais de todo traduzíveis. Ela se baseava no tripé: “saneamento, abertura de ruas e
embelezamento, e objetivou a atração de capitais estrangeiros para o país”. (PINHEIRO e
35
JUNIOR, 2006, p.04) o poder público expulsou os moradores desses cortiços, demolindo uma
parte dos imóveis e no local abriu novas ruas que contribuíram na circulação interna e na
diminuição nos custos do transporte de mercadorias do comércio, ou seja, beneficiou o
crescimento do capital.
A segregação sócio-espacial, que pode ser notado inclusive nos dias atuais, passou a
ser visto então, em diversas capitais brasileiras. São nas regiões mais afastadas dos grandes
centros que vivem os negros e pobres, se destacando na paisagem urbana as favelas e morros
em condições mínimas de habitabilidade onde os serviços públicos praticamente inexistem e
com poucas oportunidades de empregos. A dificuldade de acesso, o não transporte, levou a
que as pessoas mais ricas ficassem no abrigo, sem risco, perto de linhas de bonde e ônibus,
considerando a morro como o inferno, lugar infecto, sem alegria só tristeza, destituído de
educação, bem estar e higiene.
Ali onde a exclusão confunde-se com confinamento e serve para armazenar
grandes contingentes populacionais em situação de longa exclusão, porque
não têm acesso ao emprego e a renda. (CARRIL, 2006, p.17)
Com as diversas expedições científicas ocorridas no Brasil entre 1900 e 1915, ficou
evidente a forma precária de vida das populações que residiam nas áreas periféricas das
cidades. Essas expedições levaram para áreas rurais do país às linhas telegráficas, estradas de
ferro, usinas hidrelétricas, bem como as inspeções sanitárias e combate a doenças como
malária, tuberculose, hanseníase e peste bubônica. De acordo com Márcia Sprandel,
As descrições feitas não davam margem a dúvidas sobre a exploração a que
era submetida à população rural. Além disso, as narrativas sobre a pobreza
da dieta, o estado das residências e a escassez de água tinham um impacto
redobrado em função da utilização de fotografias (SPRANDEL, 2004, p.51).
A partir desta descoberta, a ideologia médico‐eugênica ganhou força por defender que
a única forma de salvar o Brasil do atraso e da miséria seria “amputar a parte gangrenada do
país para que restasse uma população suscetível ao progresso” (SCHWARCZ apud
SPRANDEL, 2004, p.52). Com este pensamento, a partir de 1920, se deu a divisão entre os
que teriam recuperação e isso poderia se dar através da educação, proibição de más condutas e
estabelecimento de boas redes de relacionamento. Por outro lado, se estabeleceu o grupo que
não havia possibilidade de recuperação, lá se encontravam as pessoas em situação de rua, bem
como as prostitutas, criminosos, prisioneiros e doentes mentais, para esses o que restavam
36
eram a punição e a esterilização em massa como solução para o fim da miséria, perversões e a
doença. Concordando com as palavras de Márcia Sprandel, considera‐se este um.
(...) estranho movimento que propõe acabar com a miséria
esterilizando os miseráveis, acabar com o pecado esterilizando os
pecadores, acabar com os vícios esterilizando os viciados, acabar com
a loucura esterilizando os doentes mentais (SPRANDEL, 2004, p.53).
Percebe‐se, em face do exposto, que a intervenção estatal tinha um objetivo específico:
a modernidade; e qualquer ação que pudesse se esgotar em “apenas” oferecer dignidade e
direitos ao povo, era rechaçada. Desta forma,
durante o longo período da transição para o capitalismo (...), cujo
momento mais intenso foi os anos 1870 a 1930, o Estado brasileiro
concentrou sua atuação médica na higiene sanitária (...). A assistência
médica aos trabalhadores e às classes pobres em geral do Rio de
Janeiro era prestada pelas beneficências, as mutualidades e a
filantropia (SOLIS; RIBEIRO, 2003, p.136).
2.1– As Politicas Públicas de Atenção à População em Situação de Rua no Brasil
Ao fazermos uma retrospectiva nos fatos concernentes às políticas públicas e sociais
de atenção a população em situação de Rua no Brasil, é imprescindível que façamos uma
breve contextualização sobre a política de assistência social no país, visto que, ambas
possuem raízes na caridade, filantropia e na solidariedade religiosa. Suas práticas eram
pautadas em ações paternalistas e concedidas na forma de favores aos indivíduos, com isso, a
compreensão que se tinha era que essas pessoas eram favorecidas e não pessoas de direito.
Confundia-se a assistência com caridade, era mais uma prática que uma política, quem
prestava a benesse era vista com bons olhos à sociedade e a Deus e os que eram beneficiados
lhe restavam à gratidão, pois estavam sendo agraciados com um auxilio no qual não era lhes
de direito.
Desde o século XVIII, a assistência social, era entendida como mais um recurso de
legitimação e manutenção do poder, além de uma forma eficaz de controle dos movimentos
sociais e da classe trabalhadora. Suas práticas dependiam de iniciativas voluntárias e isoladas
de auxílio aos que se encontravam desempregados, autônomos, trabalhadores rurais,
prostitutas, população em situação de rua, loucos, criminosos, isto é, aos pobres e desvalidos
da “sorte”.
37
Segundo Sposati (2006), com a concepção do Conselho Nacional de Serviço Social,
no governo de Getúlio Vargas, instituiu-se pela primeira vez uma assistência pública, neste
cenário, viu-se a criação da Legião Brasileira de Assistência – LBA, onde o comando fora
dado a então primeira dama Sra. Darcy Vargas, o órgão se destinava a atender de forma
pontual, emergencial e fragmentada às pessoas excluídas do sistema de proteção trabalhista.
Sposati reforça a afirmação que, apesar do trato da pobreza e da miséria ter deixado de ser
tratado como um problema de polícia, no entanto a assistência assumiu uma posição
conservadora em uma versão filantrópica baseada no “primeiro damismo”,
O trato da assistência social no âmbito da moral privada, e não da ética
social e pública, é um dos equívocos dessa versão filantrópica. O primeiro –
damismo, a benemerência está no âmbito da moral privada. Neste sentido, é
que os conservadores pretendem agir (e agem) modelando a atenção àqueles
mais cravados pela destituição, desapropriação e exclusão social,
organizando atividades que vinculam as relações de classe, sob a égide do
favor transclassista, do mais rico ao mais pobre, com a vinculação do
reconhecimento da bondade do doador pelo receptor. (...).
O modelo conservador trata o Estado como uma grande família, na qual as
esposas de governantes, as primeiras damas, é que cuidam dos “coitados”. É
o paradigma do não direito, da reiteração da subalternidade, assentado no
modelo de Estado patrimonial (...). Neste modelo, a assistência social é
entendida como espaço de reconhecimento dos necessitados, e não de
necessidades sociais. (SPOSATI, 2001:76).
. A LBA era o retrato da forte relação do Estado e da filantropia privada, a assistência
disponível na época, desconstruía toda e qualquer noção de direito, cidadania e justiça social.
A autora Vera Telles (2001), reforça que a assistência era um lugar do “não direito”:
(...) esse é o lugar dos não‐ direitos e da não‐ cidadania. É o lugar no qual
pobreza vira „carência‟, a justiça se transforma em caridade e os direitos, em
ajuda a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de cidadania, mas
pela prova de que dela está excluído (TELLES, 2001, p. 26).
A Assistência Social se se configurou como uma política pública, somente com a
Constituição de 1988, aliás, esse período se configurou como um divisor de água no campo
dos direitos sociais. Os movimentos sociais articularam um intenso debate em torno das
políticas sociais e da assistência social e, no qual culminou com a sua integração no tripé da
Seguridade Social juntamente com a Saúde e Previdência, cada uma com suas respectivas
atribuições e viabilização do acesso aos direitos, tornando-se uma política pública que
significa direito do cidadão e dever do Estado.
38
Nesse sentido a Seguridade Social implica que todo cidadão tenha acesso a
um conjunto de certezas e seguranças que venham cobrir, diminuir ou
precaver os riscos e as vulnerabilidades sociais. A partir dessa nova
concepção foi instituído o reconhecimento do direito universal, independente
se o cidadão contribuísse com o sistema previdenciário ou não. (YASBECK,
1997, p.13).
Discorrer sobre a política de Assistência Social nos importa a esta pesquisa, por que
ela está totalmente atrelada ao atendimento às necessidades básicas, sobretudo da população
em maior risco e vulnerabilidade social, como o caso das pessoas em situação de rua.
Na década de 70, a assistência prestada especificamente para as pessoas em situação
de rua era realizada pela Pastoral do Povo da Rua, da Igreja Católica, que inicia um
movimento de organização de pessoas em situação de rua, com destaque para os municípios
de São Paulo e Belo Horizonte. Essas iniciativas religiosas implantaram casas de assistência
às pessoas em situação de rua organizaram movimentos de representação popular, sobretudo
em relação aos catadores de materiais recicláveis, e realizou eventos e comemorações de
mobilização social de cunho local (BASTOS, 2003; CANDIDO, 2006). Na década de 90,
alguns episódios dão maior destaque e visibilidade à população em situação de rua,
evidenciando-se a urgência de sua inclusão nas legislações. O primeiro deles é o Fórum
Nacional de Estudos sobre População de Rua, em 1993, seguido do Grito dos Excluídos a
partir de 1995.
A Lei Orgânica da Assistência Social- LOAS, aprovada em 07 de dezembro de 1993,
atribui um caráter de maturidade legal aos serviços sócioassitenciais, tendo como instância de
coordenação o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Tal lei
instituiu o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) enquanto instância máxima de
deliberação. Suas competências principais consistem em aprovar a Política Nacional de
Assistência Social (PNAS), normatizar e regular a prestação de serviços sejam eles de caráter
público ou privado no campo da política em questão. Acompanhar e fiscalizar as entidades e
organizações de assistência social, zelar pela efetivação do sistema participativo e
descentralizado; acompanhar e avaliar a gestão dos recursos, divulgar no Diário Oficial da
União todas as decisões, bem como do Fundo Nacional de Assistência Social, dentre outras.
(BRASIL, CNAS, 2010).
A LOAS como Lei inova ao afirmar para a Assistência Social seu caráter de
direito não contributivo (independentemente de contribuição à Seguridade e
para além dos interesses do mercado), ao apontar a necessária integração
39
entre o econômico e o social e ao apresentar novo desenho institucional para
a Assistência Social. (YASBECK, 2006, p.12).
Com a aprovação da LOAS, fica estabelecido que cabe ao Estado e suas instituições
consolidarem em rede uma política pública de direito, rompendo com práticas remotas de
benemerência e filantropia, inclusive as de atenção a população em situação de rua. Fica
instituído, também na LOAS em seus artigos 4° e 5º, enquanto modelo de gestão, o Sistema
Único da Assistência Social (SUAS). A aprovação da Política Nacional de Assistência Social
ocorreu em 2004, nela se atribuiu à Proteção Social Especial o atendimento da população em
situação de rua.
De acordo com a Política Nacional de Assistência Social,
“... a Assistência Social, enquanto política pública que compõe o tripé da
Seguridade Social, e considerando as características da população atendida
por ela, deve fundamentalmente inserir-se na articulação intersetorial com
outras políticas sociais, particularmente, as públicas de Saúde, Educação,
Cultura, Esporte, Emprego, Habitação, entre outras, para que as ações não
sejam fragmentadas e se mantenha o acesso e a qualidade dos serviços para
todas as famílias e indivíduos”. (PNAS, 2004, p. 42)
Entretanto, ao se fazer menção às políticas públicas para a população em situação de
rua, observa-se que a intersetorialidade ainda é uma meta distante a ser alcançada e um
desafio na execução destas políticas. Para Adorno (2004) e Varandas (2004) os programas
sociais dirigidos às pessoas nesta situação ideologicamente reproduzem o descarte social de
uma população considerada como excedente, sendo caracterizados pelas práticas de retirada
dos indivíduos das ruas, penalizando-os pela situação em que se encontram. São as frequentes
operações de "higienização”, como as que aconteciam no passado da cidade, expulsando-se as
pessoas dos lugares nos quais elas encontram recursos para sobreviver.
Outro importante evento que marcou a trajetória das políticas públicas de atenção as
pessoas em situação de rua no Brasil, ocorreu em setembro de 2005, em Brasília, evento
pioneiro que pode representar o primeiro passo para a construção de uma política pública de
abrangência nacional direcionada para pessoas que estão em situação de rua, o Primeiro
Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua6. Organizado pelo Ministério do
Desenvolvimento Social - MDS e pela Secretaria Nacional de Assistência Social - SNAS, o
6 O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a Secretaria Nacional de Assistência
Social (SNAS) realizaram um levantamento nacional no sentido de obtenção de dados a respeito da população
em situação de rua, em 76 municípios (incluindo todas as capitais), com população acima de 300 mil habitantes,
no período entre dezembro de 2004 e 27 de abril de 2005. (Fonte: Relatório Simplificado do Primeiro Encontro
Nacional sobre População em Situação de Rua do Governo Federal, 2005).
40
objetivo deste encontro foi discutir os desafios e estratégias para construção de políticas
públicas específicas para este público, além de uma troca de experiência entre os trinta e
quatro representantes de doze capitais ou municípios brasileiros, que estavam desenvolvendo
ações com população em situação de rua.
Segundo DANTAS (2007, p.38), os principais objetivos e desafios do encontro foram:
(...) a troca de experiências entre entidades que atuam com população em
situação de rua; o conhecimento das principais demandas que estão sendo
dirigidas aos estados relativas ao tema; a discussão de estratégias de
participação popular na elaboração das políticas públicas e o conhecimento
das ações do Ministério do Desenvolvimento Social que já beneficiam as
pessoas em situação de rua. Como pontos inovadores, a discussão de
estratégias de participação popular e controle democrático das políticas
públicas destinadas à população em situação de rua e o reconhecimento do
papel das ONGs e de entidades ou fóruns de população em situação de rua,
neste processo.
Entre os principais desafios no enfrentamento da questão reconhecidos no
evento, está a produção de dados e informações; a superação da cultura
dominante de preconceito e assistencialismo; o apoio ao processo de
organização das pessoas em situação de rua; a articulação das políticas
setoriais, adequando-as às demandas deste grupo populacional e as políticas
de financiamento com fontes de base diversificada. Outros desafios incluem
o desenvolvimento de políticas de valorização dos trabalhadores e das
condições de trabalho nos espaços de acolhida de população em situação de
rua; ações educativas para a sociedade acerca do fenômeno, e, por último,
mobilizar e adequar os serviços de segurança e justiça de modo a prevenir
ações de violência e responsabilizar os culpados por crimes cometidos contra
esta população.
Os desafios discutidos neste primeiro encontro, ainda hoje são latentes, demonstrando
o longo caminho que ainda teremos principalmente no que tange a superação do
assistencialismo e do apoio ao processo de organização das pessoas em situação de rua. Com
relação a esse último, podemos destacar a articulação e organização política que as
associações e cooperativas de catadores de materiais reaproveitável obtiveram, pois
começaram a constituir um movimento organizado na luta pela formulação de políticas
públicas direcionadas ao segmento.
Ainda em 2001, se realizou em Brasília o Primeiro Congresso Nacional dos Catadores
de Materiais Recicláveis e a 1ª Marcha Nacional da População de Rua, os participantes
apresentaram a toda a sociedade e às autoridades responsáveis pela implantação e efetivação
41
das políticas públicas, através de uma Carta a Brasília7, com as reivindicações e propostas que
seguem:
Em relação ao Poder executivo, propomos:
Garantia de que, através de convênios e outras formas de repasse, haja
destinação de recursos da assistência social para o fomento e subsídios dos
empreendimentos de Catadores de Materiais Recicláveis que visem sua
inclusão social por meio do trabalho.
Inclusão dos Catadores de Materiais Recicláveis no Plano Nacional de
Qualificação Profissional, priorizando sua preparação técnica nas áreas de
gestão de empreendimentos sociais, educação ambiental, coleta seletiva e
recursos tecnológicos de destinação final.
Adoção de políticas de subsídios que permitam aos Catadores de
Materiais Recicláveis avançar no processo de reciclagem de resíduos
sólidos, possibilitando o aperfeiçoamento tecnológico dos empreendimentos
com a compra de máquinas e equipamentos, como balança, prensas etc.
Definição e implantação, em nível nacional, de uma política de coleta
seletiva que priorize o modelo de gestão integrada dos resíduos sólidos
urbanos, colocando os mesmos sob a gestão dos empreendimentos dos
Catadores de Materiais Recicláveis.
Garantia de que a política de saneamento tenha, em todo o país, o
caráter de política pública, assegurando sua dimensão de bem público. Para
isso, sua gestão deve ser responsabilidade do Estado, em seus diversos níveis
de governo, em parceria com a sociedade civil.
Priorização da erradicação dos lixões em todo o país, assegurando
recursos públicos para a transferência das famílias que vivem neles e
financiamento para que possam ser implantados projetos de geração de renda
a partir da coleta seletiva. E que haja destinação de recursos do programa de
Combate à Pobreza para as ações emergenciais.
Em relação à cadeia produtiva:
Garantir nas políticas de financiamentos e subsídios, que os recursos
públicos sejam aplicados, prioritariamente, na implantação de uma política
de industrialização dos materiais recicláveis que priorizem os projetos
apresentados por empresas sociais de Catadores de Materiais Recicláveis,
garantindo-lhes acesso e domínio sobre a cadeia da reciclagem, como
estratégia de inclusão social e geração de trabalho e renda.
Em vista da cidadania dos Moradores (as) de Rua
Reconhecimento, por parte dos governos, em todos os níveis e
instâncias, da existência da População de Rua, incluindo-a no Censo do
IBGE e garantindo em lei a criação de políticas específicas de atendimento
às pessoas que vivem e trabalham nas ruas, rompendo com todos os tipos de
discriminação.
Integração plena da População de Rua na política habitacional que
garanta e subsidie a construção de casas em áreas urbanizadas, e que parta da
recuperação e desapropriação dos espaços ociosos nos centros das cidades,
garantindo-lhes o direito à cidade.
Priorização da geração de oportunidades de trabalho, com garantia de
acesso a todos os direitos trabalhistas, aos Moradores de Rua, superando
7 Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável. Carta de Brasília. Disponível:
http://www.mncr.org.br/sobre-o-mncr/principios-e-objetivos/carta-de-brasilia (acessado em 28/set/2016).
42
especialmente as discriminações originadas na falta de domicílio e/ou na
indicação de endereços de albergues.
Promoção de políticas públicas de incentivo às associações e
cooperativas de produção e serviços para e com os Moradores de Rua.
Garantia de acesso à educação de todos os Moradores de Rua,
especialmente das crianças, em creches e escolas, independente de
comprovante de residência, possibilitando também a inclusão das famílias
que moram nas ruas no programa Bolsa-Escola.
Inclusão dos Moradores de Rua no Plano Nacional de Qualificação
Profissional, como um segmento em situação de vulnerabilidade social,
garantindo seu encaminhamento a formas de trabalho que geram renda.
Garantia de atendimento no Sistema Único de Saúde - SUS aos
Moradores de Rua, abrindo também sua inclusão nos programas especiais,
como “saúde da família” e similares “saúde mental”, DST/AIDS/HIV e
outros, instituindo “casas-abrigo” para apoio dos que estão em tratamento.
Com esta carta, os catadores de materiais recicláveis, demonstraram o seu fortaleceram
enquanto movimento social percebeu-se que juntos e organizados podem pressionar o Estado
e a sociedade a valorizá-los como trabalhadores que são. No entanto, somente em 2009, após
a realização do Segundo Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, que o
movimento conseguiu consolidar a Política Nacional para a População em Situação de Rua –
PNPR, através do Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009.
A PNPR8 traz uma definição para população em situação de rua, que passa a ser
utilizada por diversos pesquisadores no Brasil, acerca de questões sobre essa população
específica e na criação de políticas setoriais para a inclusão dessa população nos programas
sociais:
(...) o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza
extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a
inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros
públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de
forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
para pernoite temporário ou como moradia provisória.
No mesmo ano de 2009, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) aprovou
a Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009 – Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistenciais, que é responsável pela organização e descrição das unidades, serviços
ofertados e público alvo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Na Tipificação,
encontramos alguns serviços específicos para a população em situação de rua: Serviço
Especializado em Abordagem Social – oferecidos nos CREAS ou Centros POP; o Serviço
8 Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/decreto/d7053.htm
43
Especializado para a População em Situação de Rua – oferecido nos Centros POP e os
Serviços de Acolhimento Institucional.
Com relação às políticas públicas no âmbito da saúde, destacam-se as dificuldades
extremas de acesso aos serviços públicos pela população em situação de rua. Esta população
está imersa em uma realidade na qual a negação de direitos básicos é a tônica, a necessidade
de sobrevivência torna-se imperativa e nem sempre está relacionada ao cuidado à saúde. Tal
fato reforça a tendência dos indivíduos a não priorizar procurar tratamento médico, a não ser
em situações de emergência, como traumatismos, agudização dos sintomas ou em estágios
avançados de enfermidade. Sua atenção à saúde se volta somente principalmente para as
unidades de pronto atendimento, visto que as políticas de prevenção ainda não conseguiram
sua efetividade.
No universo em que vivem, onde o adoecimento se dá fisicamente por conta da má
alimentação, privação das necessidades básicas além do forte desgaste devido sua luta diária
pela sobrevivência, acarretam também um adoecimento psíquico atrelado a um imenso
sentimento de desamparo, tristeza, abandono e indiferença. As pessoas em situação de rua são
intensamente vulneráveis aos agravos à saúde, apresentando uma série de patologias inerentes
às suas condições de vida.
Nesse contexto, políticas públicas de atenção à saúde a este público implicam um
olhar diferenciado e desafiador, principalmente pela necessidade de considerar os princípios
doutrinários do Sistema Único de Saúde, a universalidade, a equidade e a integralidade.
A universalidade da atenção incorpora o direito à saúde como uma das faces da
cidadania. Como assegurar a universalidade em um modelo de saúde ainda excludente em
relação à população em situação de rua?
A equidade no texto constitucional assegura que a disponibilidade dos serviços deve
considerar as diferenças entre os grupos de indivíduos, é, portanto, um princípio de justiça
social, conceituado na Constituição como aquele que visa “assegurar ações e serviços de
todos os níveis de acordo com a complexidade que o caso requeira, more o cidadão onde
morar, sem privilégios e sem barreiras”. (RONCALLI, 2003, p 28-49). Como garantir a
equidade em um sistema que não reconhece que as pessoas em situação de rua apresentam
necessidades específicas no seu atendimento?
A integralidade na organização das práticas nos serviços de saúde deve observar a
perspectiva de ações programáticas horizontalizadas, buscando ampliar a apreensão das
necessidades dos diferentes grupos populacionais. Como garantir a integralidade em um
44
sistema que não está preparado para ouvir as pessoas em situação de rua em seu contexto
social e assim atender às suas demandas?
No que tange os serviços públicos, a atenção à população em situação de rua
enfrentam desafios diários, as dificuldades vão desde a rejeição dos profissionais de saúde,
muitas vezes devido ao seu aspecto físico, as dificuldades em manter uma higiene regular que
pode provocar atitudes de repulsa por parte das equipes, a falta do comprovante de residência,
muitas vezes sem documentos de identificação e cartão do SUS, as pessoas em situação de rua
enfrentam pesados entraves burocráticos no acesso às unidades de saúde, principalmente nas
unidades ambulatoriais, dificultando sua passagem pelos diferentes estágios do tratamento,
entre eles o recebimento de medicação, a marcação de consulta de retorno e o agendamento
de exames.
Com intuito de superar estes desafios no atendimento a pessoas em situação de rua, o
governo federal no ano de 2009, lançou alguns serviços específicos para o atendimento a essa
população. Dentre eles, o Programa de Consultório de Rua do SUS - CRS, a princípio ligado
à atenção secundária, na coordenação de saúde mental e atualmente, na atenção primária com
uma mudança na nomenclatura para Consultório na Rua. Segundo Tondin (2011.p. 48)
A primeira experiência de Consultório de Rua no Brasil foi iniciada em
Salvador, ao final dos anos 90, consistindo na disponibilidade de veículos
móveis para abordagem e acolhimento das situações de uso prejudicial de
álcool e outras drogas nos locais onde vivem ou se agrupam os usuários,
principalmente crianças e adolescentes.
O idealizador do primeiro Consultório de Rua no Brasil Nery Filho, no início dos anos
90, na época doutorando em Sociologia, em Paris, conheceu a ONG “Médicos do Mundo”,
organização francesa, formada por profissionais de saúde que atendiam pessoas em situação
de vulnerabilidade social, como: moradores de rua9, profissionais do sexo, através de um
ônibus equipado como uma unidade móvel de saúde. (TONDIN, 2011). A partir desse modelo
de atendimento, onde se dava em onde as pessoas em situação de rua se agrupavam e sem um
ponto fixo, como a maioria das instituições q prestam atendimento à saúde, conseguiam se
aproximar desses grupos vulneráveis.
Assim, segundo a Portaria GM 1059/2005 os Consultórios de Rua se constituem como
dispositivo público, componentes da rede de atenção substitutiva em saúde mental,
oferecendo as pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas ações de
promoção, prevenção e cuidados primários no espaço de rua. Preconiza ainda promover ações
9 O termo “morador de rua” foi utilizado pela autora.
45
que enfrentem as diversas formas de vulnerabilidade e risco, especialmente em crianças,
adolescentes e jovens, tendo como eixo principal o respeito às diferenças, a promoção dos
direitos humanos e da inclusão social, o enfrentamento do estigma, as estratégias de redução
de danos e a intersetorialidade. Estando alinhado às políticas de saúde do Sistema Único de
Saúde (SUS).
Em Cuiabá-MT, a equipe do CAPS AD – Adolescer sob a coordenação da psicóloga
Mara Cristina Tondin, enviou uma proposta ao Ministério da Saúde solicitando a implantação
do Consultório de Rua em setembro de 2010 e no mesmo ano recebeu sua aprovação. O
programa foi implantado de fato no ano de 2011 e após um mapeamento da cidade, definiu os
pontos estratégicos de atuação, pelo número significativo de pessoas em situação de rua em
uso/abuso de álcool e outras drogas a região do Bairro Porto e Bairro Alvorada nas
proximidades da Rodoviária. Sobre os atendimentos nestas regiões, Massavi e Tondin (2014,
p. 131) afirmam:
As abordagens realizadas nos locais onde se concentram pessoas em situação
de rua possibilitam ações educativas de prevenção e promoção da saúde e de
cuidados básicos clínicos, além da aproximação desta população e, quando
necessário e de forma integrada, acompanhadas de outros serviços de saúde
e assistência social. Seu principal objetivo é oferecer esta intervenção e
cuidados no próprio espaço de rua, preservando o respeito ao contexto
sociocultural da população.
O Programa tinha como diretriz norteadora a Redução de Danos – RD, a estratégia que
surgiu em meados de 1989 no intuito de se fazer um enfrentamento ao aumento significativo
de pessoas infectadas com HIV, principalmente pelo uso de drogas injetáveis. Ao longo da
história, a RD se mostrou uma estratégia fundamental, pois como não visa somente à
abstinência, ampliou a oferta de atendimento e intervenções em saúde junto às populações
vulneráveis que estão ou não em situação de rua.
A RD possui um grande potencial de ser uma prática libertadora, pois atua
com vistas a proporcionar que o sujeito seja protagonista de sua própria
história e promova a construção de caminhos diferentes e possíveis. A
relação construída é horizontal, baseada no diálogo franco e aberto, por isso
podemos afirmar, com toda a certeza, que o melhor atendimento como
redutora de danos foi no dia em que nos sentamos no chão para conversar
com um grupo de moradores de rua. A partir daquela noite, não houve mais
a diferenciação: eles estavam em mim como eu estava neles. (MASSAVI &
TONDIN, 2014, p.138)
Outro serviço lançado no Brasil para o atendimento específico das pessoas em
situação de rua, esse ligado a Política de Assistência Social, o CREAS POP- Centro de
Referência Especializado para População em Situação de Rua em 2010, com objetivos de
46
reintegração social, pessoal e familiar, favorecendo um espaço de fortalecimento de vínculos
interpessoais, além do atendimento psicossocial10
.
Em Cuiabá, o CREAS POP foi fechado durante a preparação da capital como uma
das sedes no país da Copa do Mundo ocorrida em 2014, pois se localizava no Centro
Histórico e por pressão dos comerciantes locais, com a reclamação que este serviço acabou
“atraindo” um grande número de pessoas em situação de rua e que isto estaria “atrapalhando”
suas vendas e descaracterizando a beleza no centro, sendo assim a Prefeitura de Cuiabá
cederam as pressões e fecharam o serviço. Até o fim desta pesquisa, Cuiabá não sinalizou a
sua reabertura, os atendimentos foram direcionados para o CREAS que não possuem
especificidade para atender essa população, demonstrando desinteresse em oferecer um
atendimento especializado a esse grupo que vive em constante vulnerabilidade.
Este capítulo contribuiu para que compreendêssemos o caminho construído na
história do Brasil que pudesse nos levar a entender a origem da vulnerabilidade em que hoje
vivem as pessoas em situação de rua e de como as políticas públicas ainda não conseguiram
garantir um acesso igualitário aos serviços de saúde e aos direitos da cidadania. Apesar de
toda legislação vigente, os serviços instalados nos municípios ainda apresentam dificuldades
em sua execução, ações higienistas, paternalistas e assistencialistas ainda são práticas comuns
nestes serviços. A prática precisa ser voltada a uma busca incessante pela justiça social e em
defesa pela vida, oferecendo a essa população uma possibilidade de resgate de sua cidadania e
garantia de direitos.
10
Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. CREAS POP para a População em Situação de Rua. Extraído de [http://www.mds. gov.br/saladeimprensa/noticias/2010/junho/creas-pop-para-a-populacao-emsituacao-de-rua], acesso em [26 de fevereiro de 2017].
47
CAPITULO III
A FENOMENOLOGIA MERLEAU- PONTYANA COMO CAMINHO
POSSÍVEL NA COMPREENSÃO DO OUTRO QUE VIVE NA RUA
“Gostaria que as pessoas que não vivem nas ruas conseguissem se
enxergar com os meus olhos, será possível? Será que elas
enxergariam a imagem que elas se veem no espelho?” (Barba, 2016)
Em uma noite, aproveitei da minha preguiça em cozinhar e saí em busca de algo
rápido nas redondezas para jantar, parei em uma lanchonete onde vende o famoso espetinho,
sentei e no período de espera percebi o Barba se aproximando de minha mesa, estava
diferente, aparência entristecida, o sorriso sempre constante deu lugar a uma expressão mais
dura. Perguntou se poderia se aproximar, respondi que sim e o convidei a sentar, não aceitou,
disse não querer criar problema para mim. Apesar de minha insistência, foi enfático em sua
decisão, Barba evitava criar problemas com a vizinhança e populares do bairro, isso lhe
garantia um mínimo de condição para sobreviver ali. Foi nessa conversa que ele me disse a
frase citada no início deste texto, dizia que o olhar do outro sobre ele, apesar de algumas
tentarem desviar o olhar e dele era muito cruel, se questionava se as pessoas se percebiam
assim.
Esse momento com o Barba me trouxe algumas reflexões que ultrapassam a pesquisa,
me fez reavaliar, inclusive o meu olhar sob o outro. Fez-me perceber o quanto preconceituosa
ainda sou ou ainda estou, prefiro pensar que seja um verbo de ação e que posso modificar isso
em mim. E porque estou assim? Porque muitos estão olhando a população em situação de rua
com toda a uma imagem pré-concebida? Criamos tantas imagens sobre essas pessoas, mas
quase nunca o são positivas e essas criações transferiam como verdade absoluta quando nos
deparamos com essa população. Criamos um ser tão triste, violento, fétido, imundo baseados
em nosso padrão de vida, como se elas não merecessem viver declaramos sua morte como
pessoa, passamos inclusive a não enxerga-la. Passamos a excluí-las de nosso mundo, como se
isso fosse possível, é extremamente penoso para nós pensarmos que estamos juntos e que eu
muitas vezes sentenciei alguém a sua invisibilidade, estamos ligados umbilicalmente.
48
Pesquisar as pessoas em situação de rua só é possível se adentrarmos essa realidade,
ou nos perderíamos em nossos sentidos. Por isso é preciso estar junto com eles para sentir
como sobreviver neste mundo que criamos para nós, onde não deixamos espaço para o
diferente. Foi neste contexto que como pesquisadora e estudiosa deste fenômeno, que a
fenomenologia Merleaupontyana se mostrou como percurso metodológico possível a fim de
desvelar oque propomos como objetivo desta.
Estabelecer um diálogo com Merleau-Ponty é um desafio a qualquer pesquisador ou
pesquisadora, optar por uma metodologia que é um organismo vivo que vai se criando
conforme a experienciamos, não a nada pronto, não há um manual de como fazer ou não
fazer, ela se dá na minha relação com o outro. Citamos o professor Passos e Rezende (2016, p.
01),
Sintonizar os saberes corporeificados pela experiência, e realizar o melhor
que se possa, a difícil parturição em palavras de conceitos que comuniquem,
ao menos, alusivamente, a experiência. Os fenômenos invadem o corpo do
pesquisador enunciando sentidos, sempre inéditos, jamais vãos. Eles não se
amoldam, não se amansam ao leito de Procusto de qualquer metodologia
preestabelecida, posto que toda a vida seja ebulição.
Refletir sobre uma questão que nos inquieta, como as razões das vulnerabilidades da
população em situação de rua, busca-se a compreensão do vivido dessas pessoas numa
situação a qual eles se relacionam com o mundo já dado, que está aí, no qual são lançadas,
que ela necessariamente terá de enfrentar. Nas descrições focalizei a sua percepção do morar
na rua e nos significados atribuídos nesta experiência. A fenomenologia existencial de
Merleau Ponty nos dá condições de oferecer contribuições importantes, pois procura colocar o
pesquisador e pesquisadora na perspectiva dos sujeitos da pesquisa, compreender sua
experiência e seus sentimentos, desvelando assim o que é, na visão deles, estar vivenciando
nestas condições. Este percurso nos conduza um referencial fenomenológico, investigando a
verdade a partir da origem de todo conhecimento, a experiência do mundo, procurando, a
partir daí, descrever o fenômeno, analisá-lo e interpretá-lo, assim chegando à compreensão do
que é essencial na estrutura do fenômeno. Neste sentido, a fenomenologia emerge como o
método mais adequado para conduzir o estudo no sentido de permitir a aproximação e a
compreensão das várias perspectivas dos sujeitos da pesquisa.
Você poderia me contar a história da sua vida com os antecedentes que são
mencionados por sua família e pessoas conhecidas, incluindo seu nascimento?
49
Esta interrogação contém a minha própria inquietação, que faz parte da experiência
vivenciada coma população em situação de rua ao longo da minha vida profissional. Neste
pesquisar busco desenvolver a compreensão deste fenômeno.
Escolhi adentrar nesta compreensão pela perspectiva da própria pessoa em situação de
rua, a escolha pelas pessoas que estão na praça do bairro Porto em Cuiabá se deu por uma
afinidade com o grupo, conquistada durante o trabalho no Projeto Consultório de Rua do SUS
nos anos de 2011 a 2013, mesmo após o encerramento dos atendimentos a nossa relação não
se findou, outros trabalhos se iniciaram, dentre eles o “RuAção”. Foi neste contexto que a
minha inquietação se desvelou: Quais as razões que nos levam a vulnerabilizar essa população
e a resposta esperamos vir da história de vida de nosso entrevistado, são nele que toca a
injustiça e o nosso ódio e que provocam cicatrizes profundas injustificáveis, buscamos sair
dos discursos caridosos e escancarar nosso verdadeiro eu na relação com esse outro.
Optei por observar e acompanhar o grupo que vive no Porto, seu cotidiano e como se
relacionam e escolher uma pessoa em situação de rua em específico que devido à escolha de
Cuiabá como uma das sedes da última copa do mundo e a higienização realizada pelos
governos estaduais e municipais, foi procurar abrigo longe do seu grupo em um bairro
periférico na capital, Tijucal. Essa escolha também está embriagada de vivências pessoais,
pois ele vive no bairro onde vivi desde minha vinda de Cáceres com 11 anos de idade, passei
minha adolescência e parte da minha vida adulta neste local.
Por acreditar que, estar vivenciando no presente esta experiência na rua, os seus
sentimentos a respeito dessa vivência aparecerá na sua percepção antes de passarem por um
processo reflexivo. Procuro, nos seus relatos, a experiência pré-reflexiva, que é a origem de
toda a reflexão e dos conhecimentos sobre o mundo. Explicitados os sujeitos e a região do
inquérito, volto à interrogação que foi dirigida a pessoa em situação de rua em forma de uma
pergunta geradora. É necessário que eu a verbalize na forma de uma pergunta clara, que me
possibilite obter mais do que uma simples resposta. Desejo um depoimento que responda à
inquietação que me instiga a pesquisar. Não apenas uma descrição restrita do que seja estar na
rua, mas sim a descrição de uma experiência que envolve sentimentos e pensamentos sobre
uma realidade vivida, e a percepção desta realidade dentro de um contexto, levando à reflexão
dos seus significados e das suas repercussões na existência das pessoas. A intenção da
interrogação foi de obter uma compreensão do que seja o morar na rua e sua vulnerabilidade,
através da análise interpretativa dos seus discursos, chegar às características essenciais do
50
fenômeno estudado, as quais permitirão compreender os seus significados essenciais a sua
estrutura.
Para tentar minimizar a influência da pesquisadora na descrição dos fatos da vida do
Barba, decidimos tentar entrar no mundo invisível da rua e deixar a sua voz ecoar. Assim,
optamos por acompanha-lo, realizando uma observação participante. Nesse momento a escuta
se torna o método de pesquisa mais apropriado e vamos a campo acreditando, que as falas
sempre nos dizem mais do que seus autores imaginam. Dessa forma, optamos, por meio da
observação e do diálogo, por ouvir e compreender o que o Barba tinha a nos dizer.
Durante as entrevistas procurei manter uma postura fenomenológica: apresentei-me,
descrevi o meu trabalho, solicitei a sua colaboração, assim como a permissão para gravar.
Nesse momento, expliquei-lhes que o projeto havia sido aprovado pela instituição, e obtive o
seu consentimento formal. Busquei ouvi-las de forma compreensiva e aberta, sem limite de
tempo, envolvendo-me empaticamente, evidenciando o meu interesse. Outras vezes nos
encontrávamos por acaso e ele me chamava para contar algo que havia se esquecido, os locais
foram diversos, na calçada, em frente de um bar, num posto de combustível, em baixo do
viaduto do Tijucal. Nesses momentos aproveitava para questioná-lo sobre alguns pontos que
me gerou dúvidas, nem sempre consegui gravar, muitas vezes escrevi em meu caderno de
campo, o deixei livre para contar suas histórias sem interromper ou fazer outros
questionamentos. Nesta abordagem, o sujeito da pesquisa se expressará espontaneamente a
respeito dos significados da sua experiência. Os depoimentos foram posteriormente transcritos
exatamente como foram expressos.
O objetivo do método fenomenológico é descrever a estrutura total da experiência
vivida, os significados que a experiência tem para os sujeitos que a vivenciam.
Diferentemente do positivismo, que pretende descobrir causas e formular leis, a
fenomenologia utiliza a observação atentiva para descrever os dados como eles se apresentam.
A fenomenologia preocupa-se com a compreensão do fenômeno, não com a sua explicação
(MARTINS, 1993).
Para realização da pesquisa, optamos por um estudo de caráter qualitativo de
orientação fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty, que pressupõe a
intersubjetividade e a recriação de significados no processo da relação com o objeto de
pesquisa. Essa metodologia representou para nós neste estudo, uma nova maneira de olhar o
ser humano e sua relação com o mundo e nos implicarmos nesta vivencia enquanto um ser
51
encarnado nesta realidade, como bem afirma o autor: “Nós estamos misturados com o mundo
e com os outros numa confusão inextricável” (Merleau-Ponty, 2006, p. 518).
Na experiência relatada neste estudo, a metodologia fenomenológica sob a luz dos
pressupostos de Merleau-Ponty, direcionou a ênfase na dimensão existencial do viver humano
e nos significados vivenciados pelas pessoas em situação de rua, buscando os sentidos tal
como se apresentaram na relação, em uma descrição densa desta vivencia.
Para Merleau-Ponty (2006), a fenomenologia estuda as essências na própria
existência e não busca compreender o homem e o mundo de outra forma, senão a partir de sua
facticidade. No entanto, a busca dos significados não se realiza por meio de um
distanciamento neutro, nem de uma passagem ao real, uma vez que, não há possibilidade para
uma percepção pura. Ele acontece no contato direto com o vivido, na relação de encontro e
imbricamento do sujeito e do objeto de estudo.
A análise do fenômeno situado é uma das possibilidades da pesquisa fenomenológica.
A análise da estrutura do fenômeno situado é uma das possibilidades da pesquisa
fenomenológica. É orientada pelas ideias fundamentais da fenomenologia, e segue os passos
que apresento a seguir, de acordo com MARTINS (1993): 1º passo consiste na descrição, que
deve retratar e expressar a experiência consciente do sujeito; 2º passo é a redução
fenomenológica, que consiste na crítica reflexiva dos conteúdos da descrição; O 3º passo do
método é a interpretação fenomenológica. Segundo MARTINS (1993), a fenomenologia
existencial utiliza a comunicação interpessoal para chegar à compreensão dos significados da
experiência vivida pela pessoa. Focaliza a experiência consciente deste sujeito (intenção) que
permite limites epistemológicos a serem definidos em nível de descrição.
No decorrer do processo de entrevistas buscamos compreender a construção da
memória do entrevistado através dos possíveis eixos, tais como Infância, Família, Vida nas
Ruas, Educação, táticas de sobrevivência e Desemprego, amizades e inimizades, conflitos e o
que lhe dá sentido para sua vida.
Ou seja, este estudo pretendeu obter uma reflexão acerca da experiência enquanto
pesquisadora e militante dos movimentos sociais, tomada sob a perspectiva da descrição
densa e sensível dessa vivência com as pessoas em situação de rua. Compreendendo nossa
proposta, como apenas uma possibilidade de vislumbrar esta realidade diante de tantas outras
possíveis. A observação participante e a descrição densa nos possibilitaram um caminhar
seguro nesta trilha metodológica.
52
Com a observação participante, nos possibilitou uma adequada entrada no campo de
pesquisa, favorecendo que reduzíssemos a estranheza entre a pesquisadora e o nosso
companheiro de pesquisa. Um dos pressupostos da observação participante é o de que a
convivência do investigador com a pessoa ou grupo estudado cria condições privilegiadas
para que o processo de observação seja conduzido e dê acesso a uma compreensão que de
outro modo não seria alcançável. Admite-se que a experiência direta do observador com a
vida cotidiana do outro, seja ele indivíduo ou grupo, é capaz de revelar na sua significação
mais profunda, ações, atitudes, episódios, etc.. Tal perspectiva é assim expressa por
EZPELETA & ROCKWELL (1986): "Na observação participante, as relações interpessoais
entre pesquisador e sujeito, ali chamadas 'relações sociais', constituem as teorias; é a relação
que determina o pensamento e não o contrário." (p. 83).
Nem sempre foi possível entrevistar, utilizar o gravador ou fazer as anotações em
campo, partindo dessa dificuldade comum em pesquisas com pessoas em situação de rua,
buscamos suporte metodológico na observação participante como método. Com a observação
participante, nos possibilitou uma adequada entrada no campo de pesquisa, favorecendo que
reduzíssemos a estranheza entre a pesquisadora e o nosso companheiro de pesquisa. A
observação participante, com apoio nos princípios da fenomenologia, diferentemente quando
aliada a Antropologia, utiliza a observação participante como algo para desvendar redes mais
complexas de relacionamentos do ser humano, de forma descritiva, a Fenomenologia procura
estudar o senso comum, o cotidiano desse ser, com base em teorias compreensivas e/ou
interpretativas preestabelecidas, que são levadas a campo para teste e comprovação ou
falseamento.
O processo na pesquisa da observação participante se deu em três etapas, segundo
orientações de RICHARDSON, 1999: Na primeira, houve a nossa aproximação ao local onde
normalmente o Barba costumava ficar, este momento não houve muitas dificuldades, pois o
mesmo já nos conhecia desde o trabalho no Consultório de Rua do SUS. Neste momento, o
Barba nos aceitou como pesquisadora, alguém externo interessado em realizar com ele, um
estudo. Segundo RICHARDSON, essa aproximação exige paciência e honestidade, pois é
condição inicial necessária para que o percurso da pesquisa possa, de fato, ser realizada com a
participação do Barba como protagonista.
Na segunda etapa, houve o esforço da pesquisadora em obter uma visão conjunta do
campo pesquisado com o Barba. Concomitantemente, com as nossas observações da vida
cotidiana na rua, realizamos um estudo de documentos oficiais, leituras de dissertações e teses
53
acerca do tema escolhido, artigos e livros que nos subsidiaram na compreensão da realidade.
Os dados eram, assim que possível registrado em um diário de campo, para não haver perda
de informações relevantes e detalhadas sobre o que fora observado, após esse momento,
passa-se para terceira fase, na qual foi preciso sistematizar os dados. A compreensão dos
dados precisou informar a pesquisadora a situação real do Barba e sobre a percepção que este
possui de seu estado, principalmente de sua relação com a rua.
Para subsidiar a descrição em si, procuramos suporte metodológico na descrição densa
segundo Geertz (2008, p.4), onde devemos buscar explicar e interpretar as expressões sociais
que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever seu objeto de estudo em suas mais
diversas particularidades, levando em conta todos os pequenos fatos que cercam sua vida
social, não bem os fatos em si, mas a ação social destes fatos. Não se buscou leis gerais, mas
sim significados/significações.
A descrição densa caracteriza-se na forma como o pesquisador ou pesquisadora
descreve seus estudos, segundo GEERTZ (2008, p.4) devemos buscar explicar e interpretar as
expressões sociais que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever seu objeto de
estudo em suas mais diversas particularidades, levando em conta todos os pequenos fatos que
cercam sua vida social, não bem os fatos em si, mas a ação social destes fatos. Não se busca
leis gerais, mas sim significados/significações.
Com relação à experiência pessoal da investigação etnográfica, esta significa lançar-se
em uma aventura em que os êxitos só se vislumbram a léguas de distância. É um esforço que
nos leva a interpretar e observar os “nativos” baseados em nossas conversas com eles. “O que
procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais do que
simplesmente falar, é conversar com eles [...]” (GEERTZ, 2008, p.10). O antropólogo então
deve ter essa habilidade especial, de se deslocar, abandonar seu lugar de falante para ouvinte.
Abrir espaço para o outro.
É no campo que se faz etnografia densa, instrumento sine qua non da
antropologia; numa convivência intensa com os diversos; fisgando a cada
momento a diversidade em sua singularidade; mergulhando extensivamente
no microscópico; induzindo a totalidade imanente a qual ela aponta;
relacionando parte/todo, dialeticamente, a cada instante, ligando
particularidades à universalidade, relativizando ambas, referenciadas ao
cotidiano às estruturas macro-políticas; perspectivando toda ação cultural e
suas tramas para um horizonte de relatividade; mantendo a tensão com a
objetividade - distanciado dos „mitos‟ da objetividade; aferrando os vôos
indômitos da subjetividade e imaginação à discrição da inteligência, em
todo o processo; teorizando por sobre a prática, localizada espacial e
temporalmente; não se deixando ofuscar pela tentação cartesiana do
54
esgrimamento lógico; precavendo-se, a todo o momento, dos riscos das
grandes conclusões; “ater-se ao mínimo, sem deixar-se conter pelo
máximo”; perscrutando os sentidos possíveis e a teia de significações que
anima e estrutura um grupo, uma comunidade e seus indivíduos; não
dissociando o estudo das diversidades de nossa própria condição humana,
evitando fetichizá-las a tal ponto que elas reificando-nos, nos destituam do
significado ético-político inerentes à nossa condição de pesquisadores e de
compromisso com o mundo que pesquisamos e as superfícies duras da vida.
(PASSOS, 2003, p. 236 e 237)
Assim sendo, este estudo pretendeu obter uma reflexão sobre as críticas das razões
vulneráveis ouvindo o relato de uma pessoa em situação de rua, tomada da descrição e
compreensão dessa experiência vivenciada, com vistas, por sorte, sensibilizar pessoas que
trabalham com estes setores, com a sociedade de maneira geral que os invisibiliza ou legitima
a violência geral contra estas populações, por não conhecerem as razões de suas recusas de
participação em uma sociedade que constrói o altar da imolação das vítimas, por mecanismos
sutis, ou as utiliza como se fossem „instrumentos‟ para produção, (des) reconhecendo sua
humanidade. Por outra, o trabalho pretende, eventualmente, subsidiar políticas públicas.
Durante a pesquisa várias experiências foram desveladas, tanto na entrevista
individual quanto na observação e vivencia com nosso companheiro desta pesquisa, trazendo
reflexões acerca da utilização de metodologias cientificas que valorizem outras
epistemologias, num movimento de ruptura com a ideologia de que conhecimentos são
produzidos exclusivamente nos limites da universidade.
55
CAPÍTULO IV
O CAMINHO É A HISTÓRIA, A HISTÓRIA SE FEZ CAMINHO –
BARBA E O COMPARTILHAR DE SUA TRAJETÓRIA.
Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é
comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os
outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles.
(MERLEAU-PONTY)
Se pudéssemos escolher um verbo norteador para este capítulo, com certeza seria,
olhar, no sentido de uma busca frenética por informações e significações e Merleau-Ponty
contribuiu durante a pesquisa, em nos ensinar a olhar, pois é através do olhar que primeiro
interrogamos as coisas, e devemos compreender o corpo, de forma geral, como um sistema
voltado para a inspeção do mundo. É uma descoberta corpo a corpo com o mundo vivido,
percebendo a ligação entre o olhar do outro e o meu corpo vivo, que remete a um único
mundo, neste sentido, o outro não se torna objeto ao ser olhado por não poder ao olhá-lo, ser
abarcado por inteiro. Somos ambos “sujeitos anônimos da percepção”, conforme o pensador:
Pela reflexão fenomenológica, encontro a visão não como „pensamento de
ver‟, segundo a expressão de Descartes, mas como um olhar em posse de um
mundo visível, e é por isso que aqui pode haver para mim um olhar de
outrem, este instrumento expressivo que chamamos de um rosto pode trazer
uma existência assim como minha existência é trazida pelo aparelho
cognoscente que é meu corpo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 471).
Ouvir mais do que falar, foi assim que se constituíram as nossas entrevistas com o
Barba, sem que isso negasse um diálogo com ele, porém era preciso ter claro a definição do
papel do sujeito que fala e do sujeito que ouve na pesquisa. Para Merleau-Ponty,
Se a fala pressupusesse o pensamento, se falar fosse em primeiro lugar unir-
se ao objeto por uma intenção de conhecimento ou por uma representação,
não se compreenderia por que o pensamento tende para a expressão como
para seu acabamento, por que o objeto mais familiar parece-nos
indeterminado enquanto não encontramos seu nome, por que o próprio
56
sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos
enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu como mostra o
exemplo de tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o
que nele colocarão (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 241).
Para Merleau-Ponty, a fala não é a expressão do pensamento, mas o próprio
pensamento, ou seja, o sujeito que fala não é falante, é pensante. Nesta perspectiva dialógica
da fenomenologia, nos colocamos com o Barba, na posição de pesquisador (a) como de
pesquisado (a), numa relação pautada na alteridade, olhar e ser olhado, falar e ouvir a fala do
outro, pautada em um sentido afetivo.
Assim a fala não traduz naquele que fala um pensamento já feito, mas o
consuma. Com mais razão ainda, é preciso admitir que aquele que escuta
recebe o pensamento da própria fala (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 242).
Por tanto, existe uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma
reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos
pensamentos próprios (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 243).
De forma solidária, fomos para rua amparada pelas contribuições de Merleau-Ponty,
fomos em busca da fala do Barba, nosso companheiro nesta pesquisa. Fala que é o próprio
pensamento e não seu mero instrumento, daí a possibilidade de “pensar segundo o outro” e
enriquecer “nossos pensamentos”.
As ruas e becos de Cuiabá, das históricas as mais modernas, apresentam um cenário que
depende muito da maneira com que você a olha, depende inclusive do ponto de vista de cada
um. Contemplar o óbvio pode nos levar a banalidade de tudo ou ainda tomar uma cena
irrelevante em algo extremamente profundo, em todos esses anos trabalhando e percorrendo
por essas ruas e becos da Capital, pude compreender tantos aspectos que por quase uma vida
não enxergava, mas eles estavam ali independentemente da minha existência.
Para Merleau-Ponty,
Quando minha mão direita toca minha mão esquerda, sinto-a como uma
"coisa física", mas no mesmo momento, se eu quiser, ocorrerá um
acontecimento extraordinário: eis que a mão esquerda também começará a
sentir a mão direita. A coisa física anima-se - ou mais exatamente permanece
o que era o acontecimento não a enriquece, mas uma potencia exploradora
vem assentar-se nela ou habitá-la. Logo, toco-me tocante, meu corpo efetua
"uma espécie de reflexão". Nele, por ele, não há somente relação em sentido
único daquele que sente com aquilo que sente: a relação inverte-se, a mão
tocada torna-se tocante, e sou obrigado a dizer que o tato esta espalhado em
meu corpo, que o corpo e "coisa que sente", "sujeito-objeto”. (MERLEAU-
PONTY, 1991, p. 183-184).
57
Os relatos que se seguem e que transcrevemos, são histórias contadas durante as
entrevistas com o Barba, são lembranças trazidas pela fala que envolve o tempo passado e o
tempo presente. Pouco apouco esses relatos foram se transformando em olhares de quem
conta e de quem escreve, sem a mínima intenção de afirma-las enquanto verdadeiras ou
falsas, sem a intenção de interpretá-las, mas buscando compreendê-las como outra forma de
estar no mundo. Uma narrativa que não esconde o envolvimento da pesquisadora, revelando
um diálogo feito onde foi possível, sem cerimonias formais.
4.1 O Local dos encontros:
Para realização da pesquisa optamos pelo afastamento das áreas centrais da cidade,
regiões conhecidas pelo grande número de pessoas vivendo em situação de rua, isto se deu
por duas razões: primeira porque nosso protagonista já estava há algum tempo se
“refugiando” 11
em um bairro periférico de capital, visto que fora expulso da região do bairro
Porto de Cuiabá com extrema violência estatal com advento da Copa do Mundo, onde a
capital foi uma das cedes no Brasil. Segundo, fomos escolhidos por ele, de alguma forma,
devido aos anos de trabalho como o Consultório de Rua do SUS, conseguimos estabelecer
vínculos preciosos em nossos atendimentos, sendo assim, barreiras comuns na aproximação
com este grupo social já estavam superadas.
4.2 Barba: nosso companheiro nesta jornada
Nosso protagonista, que recebeu dos companheiros da rua o apelido de Barba, nos
relatou estar vivendo na rua aproximadamente 13 anos, é negro, nasceu em Cuiabá, filho de
uma família tradicional e de classe alta da capital, possui nível superior, tem uma fala
coerente e articulada. Relata ser formado em Direito e que ainda possui o contato com sua
família, apesar de não ser frequente.
A história que se conta no bairro tijucal, era que ele é trabalhador, vive na rua, não
rouba ninguém, mas usa drogas, por isso era melhor manter distância dele. Após anos atuando
11
No período pré Copa do Mundo em Cuiabá, houveram várias ações governamentais ligados a Segurança
Pública que realizou a retirada da população de rua de vários lugares estratégicos da cidade, existiram várias
denuncias inclusive de extermínio dessa população, outros expulsos, presos sem terem cometidos nenhum crime,
como fora denunciado em vários textos do Livro Ruação das epistemologias da rua à política da rua, disponível
no link: http://200.129.241.80/editora2/download/ebook_RuAcao.pdf. Barba conseguiu fugiu para um bairro
periférico e mesmo após o evento, permaneceu na mesma região.
58
com usuários de drogas e população em situação de rua, isso me soava como um empurrão
para ouvi-lo, compreender quem era aquela pessoa por traz daquela barba e de um olhar
curioso. Por certo que não haveria ninguém melhor para trilhar este caminho comigo senão
está figura de um humor impressionante, reservado e de vivencias duras familiares e da rua.
Assim me percebi parte de todo aquele cenário de miséria e abandono, onde a palavra
viver é pouco expressada, a palavra sobreviver se torna um mantra, um suspiro diante da
morte da individualidade. Por isso também, a pessoa em situação de rua desta pesquisa tem
um nome, aquele escolhido por ele, abundante de significados, diz muito dele, pois o tira da
invisibilidade que todos nós sociedade o colocamos, ele não deseja ser “todo mundo” ele
deseja ser o Barba.
De fato, o Barba é o retrato da exclusão social no Brasil, a violência dirige-se ao plano
das diferenças físico-corporais e étnicas, o racismo é inegável ao percebermos que os que
estão nas ruas, são negros em sua maioria. Os valores dessa população nem sempre são
reconhecidos e legitimados pela sociedade, pelo contrário, são negados e reprimidos, assim
como bem sublinha Xiberras,.
os excluídos não são rejeitados apenas fisicamente (racismo),
geograficamente (gueto) ou materialmente (pobreza), são excluídos
também das riquezas espirituais: seus valores não são reconhecidos e
são ausentes ou excluídos do universo simbólico. Quando surgem,
esses valores figuram como invertidos, atributos negativos que os
situam na categoria dos estigmatizados, a categoria negativa.
(XIBERRAS, 1993, p. 52).
4.3 Os encontros...
Sentimentos de inferioridade, pequenez e incapacidade são despertos como uma
espécie de controle sobre aqueles que se encontra em situação de rua, atingindo-os o nível
emocional-afetivo, levando-os a um imenso vazio interior, vazio que surge não da falta de
comida, mas de afeto e sonhos, de perspectivas em relação a seu futuro. Isto é facilmente visto
e compreendido na necessidade que muitos possuem em contar sua história, ou contar uma
história, ainda assim continua sendo a sua.
Era uma noite quente, munida de gravador, caderno e caneta me aproximei desse
homem, estava deitado em um colchão em uma cabana feita de restos de diversos materiais
em uma calçada de chão batido. Estava sem camisa e de shorts olhando para algo além do que
pude identificar ou compreender, cheguei lhe desejando uma boa noite e perguntando se
poderia me aproximar, ele se levantou e me autorizou. Expliquei o motivo da minha presença
59
e pedi para ouvi-lo, questionou do porque a história dele teria algum valor para os outros, mas
sem me deixar tempo para respondê-lo, disse “porque também tenho meu valor, também sou
gente né dona?” o respondi com um sorriso, “assim como eu”. Perguntou-me se gostaria de
sentar para começarmos e assim inicia a nossa história, Barba passou a existir na minha vida
assim como eu na dele.
Dirigi a pergunta suleadora da nossa pesquisa: Você poderia me contar a história da
sua vida com os antecedentes que são mencionados por sua família e pessoas conhecidas,
incluindo seu nascimento? Assim o Barba iniciou sua fala.
Meu nome verdadeiro já nem faço questão de lembrar, faz um bom tempo
que não uso, hoje me chamo Barba, só de olhar pra minha cara já dá pra
perceber o porquê né (risos). Meu pai já foi pro outro lado, minha mãe ainda
vive, tenho duas irmãs que casaram bem, quase nunca vejo elas, só no natal e
no meu aniversário que elas vem me ver. Eu era o filho preferido, único filho
homem, cada vez que minha mãe engravidava eu rezava para que fosse um
irmão, não aguentava a pressão todo dia na minha cabeça. Para meu azar só
nascia mulher, para elas a pressão era para conseguir fisgar um pretendente
rico, na verdade não sabia o que era pior a minha vida ou a delas. (Barba)
Assim eu cresci, estudei em boas escolas, mas sempre eu tentava sair da
linha não aguentava essa história do filho perfeito do papai, então arrumava
briga na escola andava só com os malas, em troca levava muita porrada do
meu pai, nunca na minha cara, ele dizia “você será juiz não pode ter cicatriz
na cara”, mas toda vez que eu brigava eu pedia para os caras me bater
justamente nela, meu pai ficava só o ódio e minha mãe tentava apagar o
fogo, nem sempre conseguia. (Barba)
Minha relação com meu pai sempre foi difícil ele queria que eu fosse uma
pessoa que eu nunca quis ser, ele era advogado sabe, tentou várias vezes
concurso para ser promotor, juiz, mas nunca conseguiu passar então decidiu
o que eu seria, tipo, esse era o sonho dele não meu, ele nunca me perguntou
o que eu queria talvez tinha medo de ouvir a verdade (...)12
eu não queria ser
nada só queria viver e não ser escravo desse mundo maldito. (Barba)
Acabei fazendo muita coisa do que ele queria, não tinha muita escolha,
terminei o segundo grau e fiz direito em uma faculdade particular, porque
não me esforçava para entrar numa pública e quando terminei, saí de casa
direto para rua. Loucura né?! Eu acho né, larguei todo conforto, vida boa,
dinheiro, mulheres, em troca da minha liberdade, em troca de ser o que
quero ser, mas ela teve um preço que eu pago dia após dia, fiquei só. (Barba)
A senhora sabe que não é todo dia que tem alguém para conversar, é bem
difícil, por isso minha vida hoje se resume a montar minha casa, muitos
acham que não tenho direito de viver aqui então a destroem. Trabalhar
porque não sou bandido dona, tenho minha consciência limpa ando de
12
Sinal utilizado para evidenciar momentos de silêncio na sua fala
60
cabeça erguida, trabalho até de graça e fumo meu brau porque para aguentar
esse lugar é preciso companhia. (Barba)
Cena comum em nosso cotidiano é a de limitar a solução para resolver o problema da
existência de pessoas em situação de rua, a uma reinserção ou inserção na esfera produtiva,
porém a exclusão vivida por essas pessoas, incluindo o Barba possui uma abrangência maior,
“evidencia um processo que envolve trajetórias de vulnerabilidade, fragilidade ou
precariedade e até a ruptura dos vínculos nas dimensões sócio familiar, do trabalho, das
representações culturais, da cidadania e da vida humana”. (ESCOREL, 1999, p. 259).
A senhora deve ter ficado curiosa para saber o que meu pai fez quando
descobriu que eu fui morar na rua né, quase me matou de tanta porrada fui
parar no hospital não poupou nem minha cara (risos), mas não demorou
muito, fugi e voltei para Praça do Porto, quando ele descobriu me internou
no hospital de louco13
fiquei lá um tempo, nem lembro quanto, me davam
um sossega leão toda vez que eu acordava, ouvia muita gente dizendo no que
eu era louco por largar minha casa pra morar na rua, colocaram até a culpa
„brau‟ que fumo de vez em quando, mas na verdade eu só queria me livrar da
minha pior droga, meu pai, é muito triste dizer isso, mas é a verdade. (Barba)
Barba ao retratar a sua história familiar, nos possibilitou compreender como se dá,
muitas vezes essa desvinculação sócio familiar, o empurrando para um não-lugar, que
segundo Andrade (2014, p. 187) é um ”território sem significados, o que remete para a
questão da desresponsabilização do papel do Estado”.
Fazia um tempão que não falava dele, ninguém nunca quer ouvir minhas
histórias, bem da verdade as pessoas não querem nem que eu exista (risos),
mas conselhos é o que mais me dão, mais do que comida (risos) falam pra eu
sair da rua, até parece que meu pai morreu e pedaços deles foram pra várias
pessoas, muitas que passam aqui repetem frases que sempre ouvi do meu
pai. (Barba)
O pai do Barba faleceu em decorrência de um câncer, falou muito pouco sobre este
episódio, percebe-se que essa é uma ferida ainda não cicatrizada, apesar de toda divergência,
havia uma extrema relação de amor de barba por ele, remorso talvez por algumas palavras e
atitudes, mas a saudade era evidente, durante sua fala, houve momentos de silêncio, silêncio
carregado de significados, lágrimas ousavam descer pelo seus olhos, mesmo com sua
insistência em limpá-las ou escondê-las.
Findamos nossa entrevista nesta noite e marcamos para continuar no dia seguinte.
Cheguei ao local marcado e o aguardei, logo o avistei com um sorriso largo trazendo sua
carriola cheia de recicláveis, ele amplia sua casa com que encontra nas calçadas do bairro.
13
Se refere ao Hospital Psiquiátrico Adalto Botelho, situado em Cuiabá.
61
Que bom que a senhora voltou, posso continuar a contar a minha história?
Respondo que sim lhe oferecendo um sorriso de agradecimento. Tô contente
porque alguém se interessou por o que eu falo. Onde mesmo que eu parei?
Ahhh lembrei, no hospital de doidos (risos), já fui para lá outras vezes volta
e meia à assistência social e a polícia tirava nós lá da praça, levavam a gente
para delegacia e depois pra algum outro lugar, já fui para o Adalto, pra
clinicas para noiados14
, mas eu sempre voltava pro meu lugar. (Barba)
Um certo dia meu pai cansou, viu que não adiantava e que era minha
decisão, proibiu minha mãe de ir me ver e de me dar algum dinheiro, mas
mãe é mãe né, ela sempre dava um jeito e assim é até hoje. (Barba)
Agora vou contar como é viver nessa Babilônia, mais conhecida como a rua.
aqui só sobrevive os fortes, nos primeiros dias já entendi que seria barra
pesada. Foram os moradores da praça que me ensinaram a sobreviver, que
dividiram o pão comigo. Cada um tá aqui por algum motivo, mas somos
descriminados, as pessoas tem nojo. Se parassem para conversar iriam ver
que aqui tem de tudo: médico, professor, enfermeiro, pessoas que, como eu,
fizeram escolhas diferentes da sua na vida, mas que não deixaram de ser
gente. (Barba)
A primeira coisa que aprendi foi que não se deve se apegar com nada, nem
mesmo com sua cueca, você pode dormir com ela e acordar pelado, na rua as
pessoas deixa livres quem realmente elas são e não falo só de quem vive
aqui, já vi pessoas tidas como normais que não ta na rua, mas ta roubando
noiado aqui. Exemplo, no frio sempre aparece alguém doando agasalho, não
adianta pegar dois porque vai acabar sem nenhum (risos), parece que Deus
achou uma forma de nos ensinar que tudo nesta terra é passageiro, então não
adianta bancar o egoísta, se ganhou dois já doa pra outro senão se fica
marcado como alguém que não contribui com o grupo, não pense que é fácil,
fora da rua somos movidos ao egoísmo e individualismo, aqui é diferente,
não temos nada nosso, se não aprender isso não sobrevive aqui. (Barba)
Neste mundo sem paredes dependemos um do outro até para continuar vivo.
Não adianta guardar muita coisa, nem dinheiro, existe gente boa dentro das
casas como tem nas ruas. O que eu tenho eu divido, aprendi quando morava
na praça e faço isso até hoje e não é só com quem vive na rua não, é com
qualquer um, o triste é que muitos têm nojo do que nós tocamos e acaba não
aceitando. Ganho muitas roupas, mas só tenho o que preciso. (Barba)
A existência de um espírito solidário e cooperativo entre as pessoas em situação de rua
é um fato que surpreende a sociedade. Costumam ajudar-se mutualmente e dividem a comida
e a bebida, mesmo que seja pouca. A rua se faz comunidade, mas isso se faz com certo tempo
de rua, normalmente quando a pessoa é recém-chegada, relata Barba, ela ainda possui muitos
traços individualistas, mas o tempo ela compreende que socializar o que ela tem é um ponto
chave para sobreviver nas ruas.
14
Se refere à Clinicas para dependentes químicos.
62
Falando em Deus, não sei se a senhora tem religião, vai que vou te chatear
com o que vou dizer, mas como a senhora não tá aqui por conta de igreja é
pela Universidade, me sinto tranquilo em comentar, tanto na praça quanto
aqui vem sempre um povo de certas igrejas que me cansa. Quem ajuda a
gente de verdade são pessoas que não querem nada em troca, porque o
estado vem e destroem o que a gente construiu, levam nossas cobertas,
colchões, as igrejas ajudam, mas tem que ficar ouvindo um monte de coisas,
aí eu prefiro nem pegar nada, nunca me perguntam se quero ouvir, vai que
não acredito em nada, será que sou obrigado a virar crente em troca de um
pão com margarina ou de um prato de sopa? (Barba)
Muitas ações, sejam elas individuais ou até do próprio estado, apresentam com fortes
marcas paternalistas e com um viés da caridade, em alguns momentos estes sujeitos que
naquele momento são “dignos” de receber ajuda são tidos como privilegiados, quando na
realidade, lhes eram de direito, porém essa cultura tuteladora, ainda tão presente no cotidiano
das pessoas em situação de rua não favorece o protagonismo e a emancipação desses sujeitos.
Não pense a senhora que não acredito em Deus, mas creio que ele seja mais
do que isso que muitos pregam é a natureza que envolve todo universo é o
sol e a lua também. Assim que eu me guio, dia a dia, sei quando é dia pelo
sol que está lá em cima e sei que é noite porque a lua também está lá em
cima, não tenho relógio nem celular (neste momento da uma risada me
lembrando de que não teria como recarregar a bateria do seu celular se o
tivesse), é a vida que me acorda e um dia será a morte que não me deixará
acordar, isso não me deixa triste porque tudo tem um fim, aprendi isso
vivendo onde estou. (Barba)
Nem sempre tenho o que calçar, e a senhora acha que fico triste com isso,
claro que não, aproveito pra sentir a terra no meu pé, mas por esses dias
ganhei dois tênis, to bonito perante a sociedade.
Eu muito aprendi dentro da minha casa, na época em que morava com meus
pais, mas nesses anos que estou na rua eu amadureci uns cinquenta anos
aprendi o que é dividir, cuidar e mais ainda, o que é viver um dia de cada
vez. O amanhã não existe, até que eu acordo e abro meus olhos, por isso
repito para senhora, eu não moro na rua, eu vivo. (Barba)
Assim como para Almeida e Oliveira (2005, p. 150) 15
, “compreendemos os sujeitos
que vivificam a rua como produtores de saberes e criadores de um jeito de viver, de
trabalhar, de ser, de estar, tramadas em opções e posturas presentes em todos os âmbitos de
sua participação”. São pessoas que resistem e que lutam para permanecerem vivos, mesmo
convivendo em um universo de violência constante.
Acredito que a minha sorte foi ter vindo pra este bairro, à polícia tocou toda
a galera lá da praça, ouvi dizer que muita gente sumiu, entendi que nós não
15
file:///C:/Users/Vivi/Downloads/1321-3251-1-SM.pdf
63
combinávamos com a Copa do Mundo. Mas não me arrependo, aqui
ninguém mexe comigo, sou trabalhador e não roubo ninguém, com meus
braços carpino quintal, levo compra, limpo as mesas dos bares, por onde eu
passo vou limpando (deu uma gargalhada), sou pobre, mas sou limpinho
dona. Eu num nego que uso minhas porcarias (se referindo ao uso de drogas)
só que pago com dinheiro fruto do meu trabalho, nunca cometi crime
nenhum. (Barba)
As pessoas em situação de rua constroem suas redes de relações sociais, isso
proporciona certa segurança para sobreviver às diversidades e na construção de
conhecimentos, nessas relações de convívio, segundo Almeida e Oliveira (2005, p. 150)
podem “ser amistosas ou tensas, acolhedoras ou opressoras, as pessoas se educam na e para
a sua humanidade, para a cidadania negada, conquistada e assumida”.
Foi muito triste o dia que tive que fugir de lá, me senti um criminoso,
quando vi que a coisa era séria saí correndo pro meio do mato, a polícia
levou todo mundo, não sobrou ninguém, a Senhora acredita? Veio até ônibus
pra carregar o povo, depois disso não vi mais muita gente não, fico me
perguntando, será que mataram todo mundo? O que é pior é pensar que qual
a razão pra tudo isso, nós também somos gente, fazemos parte da cidade,
queiram ou não queiram. A justiça passa longe de nós, tudo que eu estudei
me parece uma grande fantasia, nem direitos humanos chega na rua. (Barba)
Dona as pessoas acham que somos lixo porque vivemos na rua, mas não
somos, sou um ser humano como qualquer outro é muito sofrido saber que
não nos consideram porque não vivemos dentro de um quadrado, qual a
diferença entre nós, por exemplo? E isso é grave, porque se todo mundo
acreditar que não somos nada ou ainda que não existisse, qualquer um pode
vir até aqui e meter uma bala em nós, quem vai reclamar né, eu ainda tenho
uma mãe e quem não tem? (Barba)
Neste momento, Barba me fez lembrar uma frase do Padre Júlho Lancellotti em uma
entrevista para o IHU, “O morador de rua não pode ser tratado como lixo. Deve ser tratado
como pessoa, ter a sua dignidade respeitada. É preciso ter coragem para amá-los” 16
, o
desprezo, a invisibilidade, o não levar em conta a indiferença, a ausência de políticas públicas
que não o tenham como clientes, mas como uma pessoa sujeita de direitos que deve ser
respeitada. Contrariando o que se é dito no senso comum e expressado pelas mídias ou pela
opinião pública – de que a população em situação de rua é constituída por pessoas loucas,
sujas, vagabundas, quase animais - sua voz exprime que “não é”. E o Barba continua seu
relato,
16
Entrevista disponível no link: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/504712-moradores-de-rua-e-preciso-ter-coragem-para-ama-los-entrevista-especial-com-julio-lancellotti, acessada dia 19/10/2016
64
Já vi tanta coisa feia nessas ruas, vi gente acordar com chute de polícia,
apanhava sem saber até o que fez de errado e quando perguntava ouvia “por
você ter nascido desgraçado”. Agora a senhora me diz uma coisa, a polícia
não serve para mim, eu não mereço ser protegido? Teve um caso que
presenciei, colocaram um saco na cabeça de um cara, sufocando, pra que ele
entregasse o traficante, ou ele entregava ou levaria ele pra quebrada e
apagaria ele! (Barba)
Segundo Rozendo17
(2011), ainda sobre a herança higienista imperial que se apresenta
como uma força bastante ativa na atualidade, onde o Estado encontra ainda mais subsídios
para intervir repressivamente sobre a vida das pessoas em situação de rua, legitimando a
repressão e desqualificando seus hábitos e costumes, como ocorre no caso da Polícia Militar.
Barba relata com clareza, nesse episódio de abuso de autoridade e uso de métodos de tortura,
por parte da polícia militar, contra uma pessoa em situação de rua.
Muitos acreditam que quem manda na rua são os traficantes, pra mim isso
não é verdade, os verdadeiros donos das ruas são os policiais, a regra é deles,
aqui não existe direito civil ou constituição. Por isso é melhor não andar com
muita coisa para evitar problema. Esses dias um cara foi debater com um
policial e tomou um cacete, deram tanta porrada e chutes que foi parar no
hospital, levado pela própria PM e ainda jogaram todas suas coisas no lixão.
A gente tem que andar assim, sem nada, policial mandou parar, eu obedeço,
cansei de apanhar. Já cheguei de perguntar se fiz alguma coisa errada, me
responderam que sou um estorvo para sociedade, a melhor escolha é o
silêncio, assim você tem mais chance de continuar vivo. (Barba)
Então ficamos em uma situação complicada, não podemos carregar nossa
casa nas costas porque corremos o risco de perder tudo, sendo assim resolvi
construir um barraco aqui nesta calçada, nesses anos que estou aqui já perdi
as contas de quantas vezes a prefeitura, polícia, presidente de bairro e
vereador já mandaram destruir tudo, saio para trabalhar quando volto não
tem mais nada, lá vou eu dormir no relento. Essa calçada é dum terreno
baldio que só é limpo por mim, pra não infestar de rato ou cobra, nunca
soube que o dono foi responsabilizado por abandonar isso aqui, agora só
conseguem ver que eu sou o problema. (Barba)
Utilizando os locais públicos como moradia, locais considerados de ninguém, ao
mesmo tempo em que é de todo mundo, Barba acabou por não pertencer mais a nenhuma
comunidade política, permanecendo à margem da cidadania, que constitui o primeiro direito
humano, o direito a ter direitos. Ao se ocupar dos locais públicos para ficar, Barba acabou por
expor tudo que se é considerado de domínio privado, não o suficiente, a realização de ações
privadas no espaço público é entendida como transgressão dos princípios básicos da
organização social, que distinguem, “o que é próprio da casa e o que concerne à rua”
17
http://seer.assis.unesp.br/index.php/revpsico/article/viewFile/546/348
65
(Damatta 1991). Desta forma, apenas como transgressores da lei é que são restituída as
pessoas em situação de rua a condição de cidadãos. Somente como criminosos é que são
referendados e considerados pela lei, sobretudo como indivíduos portadores de deveres para
com o restante da população.
A senhora acha que só polícia é contra nós? Que nada, o que eu já ganhei de
marmita azeda, uma vez até bicho tinha, como pode alguém ser tão mau de dar
comida estragada para alguém. O pior é a sede, as pessoas nem água querem nos
dar, mandam a gente trabalhar. (Barba)
O senso comum e o destaque negativo evidenciado pelos diversos meios de
comunicação nos levam a crer que essas pessoas vivem em um eterno ócio e que possuem
uma vida fácil, pois não assumem responsabilidades, ledo engano, as pessoas que estão nesta
condição precisam lutar insistentemente para manter-se vivos diariamente, a eminência da
morte ultrapassa barreiras do tempo, não por condições naturais da vida, não está ligada a
velhice, mas por uma exposição corriqueira de violência, seja ela da ordem natural ou estatal.
São renegamos a uma vida puramente biológica, os isolamos de toda e qualquer
participação no mundo, não são mais considerados cidadãos, se tornaram supérfluos e
desnecessários à vida social, à condição de descartáveis18
. Na maioria das vezes, passam
despercebidos mesmo quando nos interpelam na busca de alguns trocados ou alimentos, que
são angariados à custa de sua retirada, de seu afastamento e isolamento.
(...) e ainda nos chamam de vagabundo, aqui onde to vivendo não acontece
muito isso, as pessoas já me conhecem, trabalho até de graça pra eles, mas
quem ta lá na praça vive num deserto, às vezes tem que beber a água do rio.
As pessoas mudam pro outro lado da rua com medo ou nojo, sei lá! Fingem
que não nos vê, olham pro outro lado. (Barba)
O outro como um “nada”, caracterizado como um não-ser, ganha dimensões políticas e
é, segundo Giorgio Agamben, uma “vida matável” ou “vida nua”. Vida nua é a vida “matável
e insacrificável do homo sacer”. É a vida que foi colocada fora da jurisdição humana, seu
exemplo supremo é a vida no campo de concentração. Estando fora da jurisdição, a “vida
nua” é a vida que pode ser exterminada sem que se cometa qualquer crime ou sacrifício, como
foi explorado por nós no primeiro capítulo desta dissertação. De acordo com Mattos e Ferreira
(2004) As noções que circulam sobre as pessoas em situação de rua fazem com que a
sociedade, mesmo que involuntariamente, os marginalize.
18
Na sua introdução à obra No meio da rua, Marcel Bursztyn (2003) sublinha o fato de que o sistema global
produz pessoas descartáveis, que passam a viver do descarte do consumo, do lixo como a única ponte que une os
excluídos aos incluídos. Como se os indivíduos humanos fossem lixo, vivendo na rua e da rua, do lixo dos ricos.
O descarte humano e o descarte do consumo se entrelaçando, um alimentando-se do outro.
66
Contudo, se refletirmos sobre a qualidade destas interações, observaremos
que comumente nós as olhamos amedrontados, de soslaio, com uma
expressão de constrangimento. Alguns as veem como perigosas, apressam o
passo. Outros logo as consideram vagabundas e que ali estão por não
quererem trabalhar, olhando-as com hostilidade. Muitos atravessam a rua
com receio de serem abordados por pedido de esmola, ou mesmo por pré-
conceberem que são pessoas sujas e mal cheirosas. Há também aqueles que
delas sentem pena e olham-nas com comoção ou piedade. Enfim, é comum
negligenciarmos involuntariamente o contato com elas. Habituado com suas
presenças parece que estamos dessensibilizados em relação à sua condição
(sub) humana. Em atitude mais violenta, alguns chegam a xingá-las e até
mesmo agredi-las ou queimá-las, como em alguns lamentáveis casos
noticiados pela imprensa. (MATTOS e FERREIRA, 2004, p. 47).
Em resumir um ser humano a nada, ao mesmo tempo em que o equipara com um
objeto, que como qualquer objeto ele será medido pelo seu valor e utilidade, circunstância
intuitivamente as pessoas em situação de rua a perceberem que lucram mais quando lavam os
para-brisas dos automóveis ou cuidam dos carros em vias públicas do que se esmolar. Eles
passam a ter algum valor e a existir, no momento que “servem” para alguma coisa.
Em um paralelo entre a ideologia nazista e o neoliberal, MOREIRA, 2007 afirma
sobre a apartação social:
Portanto, tal como no sistema nazista, em que somente o ariano era
considerado como cidadão e ser superior; no sistema capitalista também
apenas os melhores sobrevivem. Mas como não há lugar para todos nessa
sociedade excludente, aqueles que não se adaptam são marginalizados,
perseguidos e não sofrem a morte na câmara de gás, mas na inanição, na
desonra e nos presídios [...] O capitalismo, hodiernamente imposto, mata aos
poucos, retira a dignidade e a autoestima, provocando uma verdadeira tortura
psicológica, antes da eliminação física das pessoas não produtivas, ou seja,
das classes inferiores. (MOREIRA, 2007, p. 177)
Podemos ver no relato do “Barba” seu processo de invisibilização “olham para o outro
lado” num esforço de mantê-los longe, ao menos da vista. A sua fala é carregada de
subjetividade, de sentimentos que expressam uma moralidade excludente por parte daqueles
que querem mantê-los à distância. Moralidade esta desumana, que promove um processo de
invisibilização o qual o Barba percebe como um fator humilhante. É um sentimento
expressivo, repetido e enfatizado em seu relato muitas vezes, como quem angustiadamente
pede socorro diante marginalização e construção de uma identidade que lhe é imposta, a de
inúteis. Invisibilidade e identidade que lhes são impostas, que é prontamente naturalizada
simbolicamente na sociedade.
67
O que eu queria saber, quem sabe a sra. me ajuda a entender, porque cada
dia tem mais gente na rua, muitos dizem que é por causa da droga, mas não
acredito nisso não, eu mesmo conheci poucos que pararam aqui por conta da
maldita, agora tem muito bêbado, alcoólatra né, que na loucura tomam até
álcool de posto, esses dias mesmo soube que um companheiro meu lá da
praça morreu com cirrose, não devia nem ter mais fígado e ele vivia com o
corotinho nos braços, dizia ser a mulher dele (risos), será que no céu tem
rua? Se tiver é lá que ele tá (risos) porque era gente boa, ele merece o céu,
porque aqui na terra viveu no inferno. (Barba)
Antes de vir pra rua eu acreditava que aqui eu seria livre, mas na verdade
aqui é uma prisão também, agora sem parede e sem lei, a partir da hora que
virei morador da rua, perdi até meu nome, sou um Zé ninguém que não
combina com a cidade, às vezes fico me perguntando se ainda existo. Uma
noite dessas, estava aqui na minha dormindo de boa e acordei com uns
playboys jogando água em mim, me chingando, fico imaginando se eu era
assim também antes de virar isso aqui. (Barba)
Muitas pessoas me falam, então se a rua é esse inferno porque você não sai
dela, sua família tem condições, mas isso não basta, eu estou me
reconstruindo e não me vejo em outro lugar. Peço perdão a minha família se
minhas escolhas as fizeram sofrer, peço perdão às pessoas que não são de
rua por ser quem eu sou, sinto muito, mas vou permanecer aqui. (Barba)
“Sinto muito, mas vou permanecer aqui”, reafirma Barba sua condição de rua, assim
como ele, muitas pessoas estão nesta situação, apesar de toda diversidade, expostos a todo
tipo de violência e indiferença. Assim me despeço de Barba, um homem incrível sobrevivente
das ruas e de todo sistema que nos cerca, após o final do período das entrevistas, fui visita-lo
algumas vezes, e na última vez não encontrei seu barraco, novamente a prefeitura “limpou” a
calçada onde ele vive a pedido da população do bairro, mais uma vez foi dormir ao relento.
Assim a história do Barba encontra eco em todos os cantos do país, infelizmente ele não é o
único que não tem o direito de sonhar com um futuro melhor, pois precisa lutar para continuar
vivo hoje, agora.
Toda a fala do Barba nos traz inquietações profundas, buscamos dialogar, após ouvir
tudo que ele tinha a nos contar, com autores que pudessem nos dar algum norte para
compreensão, principalmente a cerca dos motivos ou até motivações para que o extermínio
seja justificável em se tratando desta população já fragilizada desde sua essência. Podemos
perpassar pelos caminhos religiosos, raciais, econômicos e muitos outros, mas todos eles de
alguma forma tentam se justificar. Tentar compreender a falta de envolvimento de todos nós,
do se importar com o outro, na indiferença, no lavar as mãos, simplesmente a banalidade do
68
mal. Foi através de leituras das obras de Hannah Arendt, que nos possibilitou ter em mãos
uma possibilidade de resposta.
A questão a ser compreendida é desafiadora, pois nos faz pensar como funcionam
esses mecanismos em centenas de pessoas nas grandes cidades, de forma que quase em sua
totalidade, que os leva a desviar de uma pessoa deitada em uma calçada como se fosse apenas
um obstáculo a ser ultrapassado, fazendo com que Ignore qualquer atrocidade cometida contra
esses seres humanos, apenas seguem o seu caminho naturalmente. Essa atitude só pode ser
vista como uma nova forma de banalidade do mal, pois não há uma preocupação em intervir
para alterar a situação, na verdade ocorre uma anuência implícita de um desejo de abreviação
da existência dessas pessoas.
Qual seria a razão deste enredo acontecer diariamente e de uma forma pouco empática
para a maioria da sociedade? Como olhar e não se importar? Seria a banalidade do mal19
?
Segundo Leister (2010),
A recuperação desse momento particularmente cruel na história da
humanidade tem como finalidade única introduzir a discussão sobre uma
espécie contemporânea de “mal” que vitima milhares de pessoas em situação
de rua, nos grandes centros urbanos brasileiros, lenta e gradualmente, uma
forma de violência particular: a supressão de sua dignidade humana.
(LEISTER, 2010, p. 189 - 190)
Fazemos essa associação do termo “banalidade do mal”, com a situação atual das
pessoas que estão em situação de rua, visto que este grupo sofre um processo de eliminação
físico e moral, visível a toda sociedade, no entanto, aparenta não incomodar a maioria das
pessoas.
As pessoas em situação de rua são vistos somente quando “teimam” em sair de sua
invisibilidade, quando provocam certo incomodo a sociedade em geral, quando se é preciso
desviar dos seus corpos quando estão dormindo nas calçadas ou quando nos interpolam
pedindo algum trocado nos sinaleiros. Desviar, fechar o vidro do carro, fingir que não ouviu
um pedido de ajuda, deixar todas essas cenas urbanas para trás e continuar a se ocupar de seus
assuntos e seus smartfones é uma dinâmica frequente nas cidades, essas figuras maltrapilhas e
19
Quando Hannah Arendt criou a expressão “banalidade do mal”, referia-se tão somente ao mal que se abateu
sobre os judeus da Europa continental, alvos da política nazista de eliminação sistemática. A expressão
“banalidade do mal” relaciona-se, portanto, com a indiferença dos executores da política nazista, de extermínio
da raça judia, enquanto pessoas normais, e ao sofrimento infringido nos campos de concentração. O “mal” ao
qual Hannah Arendt se referiu é aquele ligado à eliminação física de homens, mulheres e crianças. Essa
expressão sintetizou a tese defensiva de Eichmann, basicamente de que apenas era um executor de ordens e que a
“Solução Final” naquele contexto não poderia ser considerada uma violência quando executada nas câmaras de
gás. (LEISTER, 2010,p. 188)
69
malcheirosas não são reconhecidas pela maioria das pessoas, como seu semelhante. Não é
preciso se culpar por não se sentir tocado por este cenário, porque ninguém é culpado, a não
ser a própria pessoa em situação de rua que exerceu seu poder de escolha em estar nesta
condição tão degradante da sua condição humana.·.
A invisibilidade social das pessoas em situação de rua, em Mato Grosso é notícia
frequente nas mídias casos de violência contra as pessoas em situação de rua onde quando se
consegue descobrir o agressor, ele consegue demonstrar a total indiferença e se justifica com
histórias banais. É o caso de um assassinado ocorrido em abril de 2016 em uma cidade do
interior de Mato Grosso, Lucas do Rio Verde, situada a 360 km de Cuiabá. Um contador de
34 anos, identificado pelo nome de Thiago Bernini, confessou ter atropelado propositalmente
Francisco Vianei dos Santos Silva de 61anos, que vivia em situação de rua naquele município,
segundo palavras do agressor, o motivo do assassinato foi porque estava se sentindo
incomodado com a presença do Francisco, que usava a obra dele, que está orçada em dois
milhões de reais, como abrigo no período noturno.
Justificou que procurou a Assistência Social da cidade para que o retirassem do local,
porém nada foi feito e relatou que ele queria só dar um susto e que não tinha intenção de
matar, no entanto, câmeras20
que gravaram o atropelamento, mostra o Francisco sendo
atropelado quando estava de costas e o agressor continua o trajeto não prestando socorro à
vítima. Francisco foi enterrado como indigente, mesmo tendo documentos de identificação.
A história trágica no qual Francisco foi à vítima e de tantos outros Franciscos, e seu
crime foi estar em condições de rua! Demonstra o quanto o totalitarismo pode promover e
instaurar a banalidade do mal, a violência generalizada gratuita e perversa traduzindo no dia-
a-dia a crueldade para com grupos já vulnerabilizados. A banalidade do mal se tornou uma
realidade, pois a perversividade passou a constituir como algo costumeiro e deixou de causar
estranhamento, a violência passou a fazer parte do cotidiano das pessoas em situação de rua
de maneira tão intensa que não produz espanto algum.
O Francisco se tornou um mero obstáculo para seu algoz, como qualquer objeto sem
valor, foi descartado, e o mesmo seguiu seu caminho sem olhar para trás. A indiferença, a
coisificação do outro fica evidente na sua morte que até mesmo após findar sua vida quando
fora enterrado como indigente. A exclusão por indiferença, isto é, o deixar morrer que esses
indivíduos experimentam no próprio corpo dia-a-dia, é ainda coroada com o advento da
morte, pois são enterrados como indigentes, perdendo até mesmo o nome, não restando
20
Cenas das câmeras disponíveis no seguinte link: http://g1.globo.com/mato- grosso/noticia/2016/05/contador-
atropela-morador-de-rua-de-proposito-e-e-preso-em-mt-veja-video.html
70
qualquer rastro de sua passagem pelo mundo. Desta maneira, morrem sem deixar vestígio
algum de terem existido e a memória de sua passagem pelo mundo abisma-se nas sombras do
esquecimento, tal como acontece com tantas pessoas que são mortas diariamente nas ruas de
nossas cidades.
Em fim, a invisibilidade do Barba e do Francisco, nos remete a uma palavra, um
sentimento, “esperança”. Palavra, sobretudo, é o que me toca no ouvir a história do Barba e
me movimenta a criar meios que contribua com a superação de visões distorcidas acerca da
realidade da rua, uma delas é dar voz a essas pessoas, somente ela pode dizer o que elas
vivem. “Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança
enquanto luto e se luto com esperança espero” (FREIRE, 2005, p. 95).
O Barba não deseja ser tutelado por ninguém, deseja ser ouvido e a universidade
precisa continuar possibilitando momentos como o Ruação, onde possibilitou que diversos
pesquisadores e pesquisadoras pudessem se colocar no lugar do outro, de escutar seus apelos e
de priorizar a vida humana.
71
PARA CONTINUAR EXISTINDO: A GUISA DE PROVOCAÇÕES
Levando em consideração o objetivo deste estudo, dar voz a uma pessoa em situação
de rua a fim de descrever como ele se vê e vê o mundo que o rodeia, a fim de se compreender
os mecanismos que o oprime e que provoca sua invisibilidade ou sua visibilidade a partir de
padrões de colonização e de sua reificação, buscamos respeitá-lo como protagonista cerceado
pelo processo civilizatório de sua história, inclusive desta pesquisa, visto que ela somente foi
possível por um encontro libertador entre nós e ele.
Os termos utilizados para identificar o grupo social a que esta pesquisa se propôs a
compreender foram “pessoas em situação de rua ou situação de rua”, visto que por englobar
não apenas os que dormem na rua, mas todos os que estão nas ruas, seja mendigando,
roubando, fazendo uso de algum tipo de drogas por certo período, catando materiais
recicláveis, jogando malabares nos sinaleiros, dormindo, etc., a intenção foi destacar o caráter
processual do fenômeno. Reforçando o desejo de nosso sujeito de pesquisa quando afirmou e
se identificou como não sendo da rua, mas que “está na rua” e por compreender que a rua não
é um lugar que denota pertença, eles estão na rua por uma série de problemas pessoais e
sociais, assim estão em situação de rua, o que inclusive traz ao ser humano a possibilidade de
mudança se assim ele quiser e puder.
O Barba neste processo, sujeito imbuído de significados gerados no diálogo com o
mundo e com a cultura, principalmente pela verdade de suas experiências sensíveis, que se
dão no espaço da rua, foi escolhido por mim, assumo, porém também nos escolheu, a partir do
momento que nos acolheu de forma solidária e curiosa, com uma sede incomum de reafirmar
sua condição de ser vivente, “eu existo”, “eu existo”. Através da história de vida do Barba,
nos favoreceu uma compreensão ampla de todo o processo do estar na rua, obvia que não em
sua totalidade e isso não foi um objetivo que gostaríamos de alcançar, pelo contrário, foi a sua
individualidade que nos seduziu.
Neste sentido, a fenomenologia de Merleau-Ponty como método, nos convidou a fazer,
na pesquisa qualitativa, uma experiência onde aos poucos foram desvelando os sentidos da
existência do Barba e sua relação com a rua. Chegamos porque a fenomenologia de Merleau-
Ponty nos ajudou a abrir trilhas e nos trouxe a compreensão do corpo próprio que surge
quando deixa de ser um mero instrumento da alma e passa a ser o lugar de toda a experiência
e pensamento possível. O corpo próprio é o lugar da experiência e da singularidade, da
ambiguidade e das contradições, ser corpo próprio é inevitavelmente ser-com. Corpos que
72
interagem, se encontram, compartilham e se angustiam juntos, buscando sempre ser com ele,
assim como afirma Merleau-Ponty, “ser uma consciência, ou antes, ser uma experiência, é
comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar
de estar ao lado deles” (Merleau-Ponty, 2006, p. 142).
A possibilidade, contudo, de dar voz ao Barba, não me exclui desse processo de forma
alguma, pois tendo eu também um corpo inserido neste mundo e que em alguns momentos da
pesquisa se viu confundido com o corpo dele e demais coisas físicas manifestadas no mundo,
no entanto, este corpo ao qual chamo de meu é o corpo com o qual escrevo e observo os
outros corpos existentes junto ao meu, simultaneamente acabei por ter uma percepção única
deste corpo que é meu. Essa experiência perceptiva foi minha e demais ninguém, pois tenho
consciência do meu corpo através dela e do mundo, e se é verdade que o meu corpo é.
no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o
pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a
volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio
de meu corpo. (Merleau-Ponty, 2006, p. 122)
Por isso, esta pesquisa é única, pois o corpo fenomenal, tanto o meu quanto do Barba,
possuiu uma particularidade própria na qual fomos simultaneamente sujeito e objeto e que se
revelou como portadores de existência de um sentido para a realidade. Assim como afirmou
Merleau-Ponty,
a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca
o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento
do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em
realidade. (Merleau-Ponty, 2006, p. 269)
Nem sempre foi possível entrevistar, utilizar o gravador ou fazer as anotações em
campo, partindo dessa dificuldade comum em pesquisas com pessoas em situação de rua,
buscamos suporte metodológico na observação participante como método. Com a observação
participante, nos possibilitou uma adequada entrada no campo de pesquisa, favorecendo que
reduzíssemos a estranheza entre a pesquisadora e o nosso companheiro de pesquisa. A
observação participante, com apoio nos princípios da fenomenologia, diferentemente quando
aliada a Antropologia, utiliza a observação participante como algo para desvendar redes mais
complexas de relacionamentos do ser humano, de forma descritiva, a Fenomenologia procura
estudar o senso comum, o cotidiano desse ser, com base em teorias compreensivas e/ou
73
interpretativas preestabelecidas, que são levadas a campo para teste e comprovação ou
falseamento.
O processo na pesquisa da observação participante se deu em três etapas, segundo
orientações de RICHARDSON, 1999.
Na primeira, houve a nossa aproximação ao local onde normalmente o Barba
costumava ficar, este momento não houve muitas dificuldades, pois o mesmo já nos conhecia
desde o trabalho no Consultório de Rua do SUS. Neste momento, o Barba nos aceitou como
pesquisadora, alguém externo interessado em realizar com ele, um estudo. Segundo
RICHARDSON, essa aproximação exige paciência e honestidade, pois é condição inicial
necessária para que o percurso da pesquisa possa, de fato, ser realizada com a participação do
Barba como protagonista.
Na segunda etapa, houve o esforço da pesquisadora em obter uma visão conjunta do
campo pesquisado com o Barba. Concomitantemente, com as nossas observações da vida
cotidiana na rua, realizamos um estudo de documentos oficiais, leituras de dissertações e teses
acerca do tema escolhido, artigos e livros que nos subsidiaram na compreensão da realidade.
Os dados eram, assim que possível, registrados em um diário de campo, para não haver perda
de informações relevantes e detalhadas sobre o que fora observado.
Após esse momento, passei para terceira fase, na qual foi preciso sistematizar os
dados. A compreensão dos dados precisou informar a pesquisadora a situação real do Barba e
sobre a percepção que este possui de seu estado, principalmente de sua relação com a rua.
Para subsidiar a descrição em si, procuramos suporte metodológico na descrição densa
segundo Geertz (2008, p.4), onde devemos buscar compreender e interpretar as expressões
sociais que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever seu objeto de estudo em
suas mais diversas particularidades, levando em conta todos os pequenos fatos que cercam sua
vida social, não bem os fatos em si, mas a ação social destes fatos. Não se buscava, segundo o
próprio Geertz, leis gerais, mas sim significados/significações.
Com relação à experiência pessoal da investigação etnográfica, esta significou lançar-
se em uma aventura em que os êxitos só se vislumbram a léguas de distância. É um esforço
que nos levou a interpretar e observar o Barba baseado em nossas conversas com ele.
“O que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais do
que simplesmente falar, é conversar com eles [...]” (GEERTZ, 2008, p.10). A pesquisadora
precisou ter essa habilidade especial, de se deslocar, abandonar seu lugar de falante para
ouvinte. Abrindo espaço para o outro.
74
Partimos, pois do entendimento que pessoas em situação de rua não surgiram ou se
restringiram às sociedades capitalistas, contudo, na história percebemos que este sistema tem
se mostrado extremamente eficaz na produção de miséria e exclusão. Nesse contexto inserem-
se as pessoas em situação de rua, que desde sua origem, foi diagnosticada como vício e falha
de caráter e tratada com repressão e violência pelo Estado. Essas pessoas são o retrato do
processo de exclusão no país, exclusão esta com origens econômicas, já referidas, mas
caracteriza também pela falta de pertencimento social, falta de perspectivas, dificuldade de
acesso à informação e perda de autoestima.
A condição de situação de rua transforma a vida de qualquer sujeito social, as
mudanças permeiam o seu modo de olhar o outro e a si próprio, a sociedade o tratam de uma
maneira quase não-humana. Os direitos sociais, existenciais, políticos - apesar de tê-los
formalmente – lhes são subtraídos, „elevando-os” a um estado de exceção.
A rua se tornou um campo de concentração onde a legalidade é confusa e a
flexibilidade das leis é uma constante, é a criminalização da pobreza, o estado e a sociedade
passam a tratar um problema social como se fosse criminal, negando o fato de que essas
pessoas se encontram neste estado por uma sonegação e negligência histórica do poder
público e do poder econômico, negando-lhes direitos fundamentais. A sua condição social o
reduz enquanto vida humana, favorecendo episódios de todo tipo de violência pelo estado e
sociedade, esses ataques não são repreendidos com o mesmo entusiasmo quando são
direcionados aos que não estão em situação de rua.
As pessoas em situação de rua se tornaram uma vida indigna de ser vivida, isto é, uma
vida matável, sob a apatia e permissividade social, nesta condição elas se tornam invisíveis ao
direito e a sociedade possibilitando atos de crueldade de toda espécie. As ações concretas do
estado normalmente se restringem a políticas higienistas, a final, essas pessoas se
transformaram em uma espécie de lixo que precisa ser retirado dos espaços urbanos, com o
apoio da sociedade.
Como sobreviver a este campo de concentração que a rua se tornou para essas
pessoas? Driblar todos os estigmas e barreiras sociais, inclusive destituídos da condição de
humanos, as pessoas em situação de rua precisam buscar diariamente alternativas de trabalho
para sobreviver. Buscam sem a possibilidade de escolha, nas atividades mais degradantes
possíveis, alcançarem o status de trabalhador tão importante numa sociedade capitalista.
Distanciam-se do mercado formal, onde teriam os direitos assegurados pela legislação
trabalhista e previdenciária e lhes empurram a uma linha tênue de desumanidade, lhes
75
sobrando como alternativa o trabalho informal, a mendicância, além da execução de pequenos
furtos, tráfico de drogas, prostituição, etc.
Observar as táticas e modos de vida que essas pessoas criam no seu dia-a-dia, olhar a
tudo isto nos requisitou como pesquisadora uma atenção cuidadosa par não cair em
armadilhas de se tentar moralizar as maneiras de viver destes sujeitos, por vezes
desqualificando-as ou romantizando os processos de sucateamento da vida com as quais
convivem, afirmando, equivocadamente, que a rua é, por excelência, espaço de liberdade. A
população em situação de rua não vive em um mundo paralelo aos que não estão nesta
situação, pelo contrário, estes modos de vida são fabricados de forma entrelaçada a todos os
processos e relações sociais que se dão na cidade de forma geral.
Como já mencionado a cima, o fenômeno situação de rua não nasce com sistema
capitalista e muito menos no Brasil, desde a Grécia antiga já se tem notícia. No Brasil, a partir
da abolição da escravidão e da queda do Império, a incorporação da mão de obra de
imigrantes brancos europeus em detrimento dos escravos e dos nacionais livres, é apontada
como o inicio no da ocorrência de pessoas em situação de rua, visto que sem a realização de
reformas que os integrassem socialmente os ex-escravos foram abandonados nas ruas,
vivendo de forma precária como vagabundos e sem identidade, estavam livres, mas não
podiam se manter. Maus tratos, desrespeito, negação de sua condição, humilhações não
mudaram com o fim da escravidão. Por trás disso, havia um projeto de modernização
conservadora que não tocou no regime do latifúndio e exacerbou o racismo como forma de
discriminação. Barba é negro, se identifica assim, segundo fonte do Ministério da Saúde -
Departamento de Apoio à Gestão Participativa (DAGEP/SGEP/MS) apontam que estimam
que 67% da população em situação de rua no Brasil é composta por negros ou pardos.
Até o momento não vimos por parte do estado, seu interesse em criar ou implementar
políticas públicas que busquem autonomia e participação da população em situação de rua,
pelo contrário, observa-se que as existentes reproduzem o descarte social, sendo caracterizado
pelas práticas higienistas de retirada compulsoriamente dessas pessoas das ruas, penalizando-
as pela situação que se encontram. Em Cuiabá-MT, as políticas são pontuais e os serviços não
dialogam na assistência social o atendimento se resume a abordagens de rua e albergues e na
saúde, o Consultório na Rua labuta sozinho para garantir atendimentos básicos e mínimos a
essa população, no campo educacional é onde se encontra a maior lacuna, apesar de algumas
iniciativas em nível nacional onde algumas escolas abrem seus portões para atender as
pessoas em situação de rua, em Cuiabá iniciativas como esta inexistem.
76
Esta pesquisa procurou respeitar o protagonismo do Barba, e descrever como ele
mesmo se vê e vê o mundo que o rodeia. Seus relatos cheios de vida, pode nos contar sua
trajetória nas ruas. Aprendemos, com ele, os mecanismos que o oprimem e provocam ora sua
invisibilidade, ora sua visibilidade. Foram dois anos, com a sensação de esgotamento já
presente, buscando compreender as inspirações que pudessem nos conduzir ao despertar a
possibilidade de tradução de uma razão vulnerável – a dele – pela qual abriga o direito de
tantos, reconhecidamente parceiros na luta de sobrevivência, de tentar compreender a origem
de tanto abandono, violência, descaso para com a população em situação de rua, da qual é
parte.
Percebemos pelos relatos do Barba, que as pessoas em situação de rua, são vistos
quando teimam em sair de sua invisibilidade, quando provocam certo incômodo a sociedade
em geral. Então, é frequente se ter notícia nas diversas mídias, de uma pessoa em situação de
rua, quando ela comete algum crime ou quando se noticia sua morte, no último caso precisa
ter sido de uma forma que comova, do contrário, será mais uma morte que não mereceu
audiência. De outra forma, sempre que se opta pelo desaparecimento de moradores e ou
pessoa em condição de rua, liga-se o corpo à droga posta junta, como forma de “justificar” a
necessidade de sua retirada da convivência, pelo risco que representa à “sociedade”.
A questão a ser compreendida é desafiadora, pois, nos faz entender melhor como
funcionam esses mecanismos em nós, na sociedade como um todo, que favorecem a nossa
quase completa indiferença a essa população, ao ponto de não nos incomodar com o seu
abandono social e, ou a sua execução impiedosa. Acreditando que uma das possibilidades de
resposta, seria uma forma de banalidade do mal, no sentido descrito por Hannah Arendt, de
legitimar a não despreocupação em intervir nesta situação, evidencia a anuência implícita de
um desejo de abreviação da existência dessas pessoas. Reforça a tese de que são vidas
indignas de ser vivida, negando-lhes a humanidade.
Apesar do quadro desanimador, passar esse tempo com o Barba, nos alimentou de esperança
de que este trabalho não foi em vão. As histórias que foram relatadas falmm mais que da vida
nas ruas, de violências, de episódios tristes; e, que elas falem também do inusitado mundo
daqueles que mesmo que considerados mortos teimam em continuar vivos, falem da vida de
sobreviventes, falem da vida repleta de solidariedade e que elas possam nos ajudar a resgatar
a nós próprios desse fosso perverso de maldade contra o outro, que é o que nos faz viver. Nos
reencontremos com nossas origens: a RELAÇÃO com todos outros e outras: “Nós estamos
misturados com o mundo e com os outros numa confusão inextricável” (Merleau-Ponty,
77
2006, p. 518). Há uma tarefa de vida toda, de encontrarmos os sentidos lá onde eles se
refugiam, LIBERTANDO-NOS da nossa maldosa e perversa civilização.
78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
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