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Resistências simbolistas. Outras percepções da Modernidade: experiências estéticas e
sensibilidade de um grupo marginal
MARIANA ALBUQUERQUE GOMES
O fim do século XIX brasileiro foi marcado por discussões em que os termos “nação”,
“progresso”, “modernização” e “futuro” eram recorrentes. Nesse contexto, foram idealizados
e realizados projetos de urbanização dos grandes centros urbanos, como na cidade do Rio de
Janeiro. Essas reformas provocaram experiências e transformações que foram determinantes
para o desenvolvimento de uma nova sensibilidade estética, pois além das demolições físicas
imputadas sobre a dimensão material da cidade, outras simbólicas, como ressalta Renato
Gomes (1994), foram se sobrepondo.
Segundo o cronista Luís Edmundo, que registrou em sua crônica a dinâmica
remodeladora de Pereira Passos, a ação do prefeito do Rio de Janeiro foi de proporção enorme
porque, além de remodelar materialmente a cidade, transformou-a em seus usos e costumes
(LUÍS EDMUNDO, 2003: 47). Assim, ao mesmo tempo em que se remodelava a estrutura
física do Rio de Janeiro, foi sendo “demolido” um conjunto de antigos hábitos e tradições
coloniais, com intuito de estabelecer e assegurar o novo status de cidade moderna à capital.
Nessa perspectiva, as reformas urbanas do fim do século, de modo geral, eram guiadas
por uma ideia de necessidade de apagamento da tradição urbana e mental, fosse medieval ou
colonial, para o erguimento da cidade moderna, em sua plenitude: uma cidade da ordem e do
progresso; cidade civilizada. Nesse cenário de modernização, o Rio de Janeiro viveu uma
Modernidade em que as contradições e os embates que lhe foram postos perpassavam os mais
diferentes campos, incluindo o literário.
Conforme Robert Pechman (1999), com a Modernidade e seu processo de
remodelações urbanas, a cidade se torna o cerne da observação, da análise e do discurso, pois
ela passa a traduzir a própria ideia de civilização. É nesse sentido que Beatriz Sarlo (2010)
observa a cidade não só como tema do político, espaço onde se dão embates ideológicos, mas
também como um espaço imaginário que a literatura inventa e ocupa em seus literatos, que
celebram ou denunciam a sua modernização. Narrar a cidade no fin de siècle, então, é
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O trabalho aqui apresentado é adaptação de parte da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cuja pesquisa foi iniciada no curso de mestrado (2014-
2016), com financiamento de bolsa fornecida pela CAPES.
2
percebê-la como ambiente de rupturas, em constante mudança, de apagamento de rastros, para
fazer-se nova e moderna.1
Reflexivos em sua (auto)crítica sobre o que o mundo moderno estava a oferecer sob a
égide do progresso como devir, os simbolistas voltaram sua escrita para o universo interior e
os aspectos não racionais e não lógicos da vida, como o sonho e o transcendental na busca da
imaginação libertadora. Conforme Vera Lins (2009), esses artistas, acreditando que a razão é
insuficiente, buscaram uma interioridade que possibilitava criar outros universos pela
imaginação, pelo sonho, pela ficção. Em suas experiências estéticas, ao confrontarem uma
ideia de nação pautada no progresso e ao criticarem um projeto nacional racionalista e
cientificista dominante2, os literatos simbolistas propuseram uma alternativa para se ler a
Modernidade, questionando a dimensão utilitarista e mecanicista desse mundo e o lugar/papel
do artista nele.
Com vistas a observar a resistência empreendida pelas experiências estéticas
simbolistas na cena finissecular brasileira, realizaremos uma breve análise sobre alguns
aspectos da revista literária simbolista Rosa-Cruz (1901/1904)3, disponível na Fundação Casa
de Rui Barbosa – em cotejo com outras produções – para refletir sobre o modo como esses
artistas em suas experiências estéticas respondiam às tensões do mundo moderno.4
Conforme Edmund Wilson (1967), podemos identificar nas estéticas simbolistas duas
tendências distintas, uma que o autor denominaria “sério-estética”, que estaria estabelecida
em Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé, e outra
denominada “coloquial-irônica”, cujos principais representantes seriam Tristan Corbière e
1 É na junção da categoria do novo com o devir moderno, que a modernização e o progresso se fazem carro-
chefe da modernidade, tendo como palco desse processo, a cidade. Aqui, como no livro organizado por
Francisco Foot Hardman (1998), em nome do progresso, a cultura brasileira se (re)constrói como apagamento de
rastros, pois, como observa Willi Bolle, nesse momento, “construir o novo é apagar o velho, não deixar marcas”
(BOLLE, 2000: 17). 2 Podemos verificar essa dimensão em uma crítica produzida por Nestor Vítor sobre os simbolistas: “Os
simbolistas vieram exatamente assim. Representaram eles uma reação contra todos os erros da literatura realista,
estreita aliada do cientificismo, inferiormente intelectualista, antimetafísica, prosaica por natureza” (VÍTOR,
1969: p. 238). 3 Para esse trabalho, nos detivemos apenas no primeiro número publicado da primeira fase da revista (1901). 4 É preciso, antes de prosseguirmos em nosso exercício, ressaltar a importância de perceber as práticas estéticas
em suas configurações como experiências capazes de engendrar novas formas do sentir e proporcionar novas
formas de sensibilidade e subjetividades políticas. Sob esse prisma, nos aproximamos das proposições de
Jacques Rancière (2009), que sugere pensar a estética em sentido largo, como modos de percepção e
sensibilidade – maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem o mundo. Como o “sistema de formas a
priori determinando o que se dá a sentir” (RANCIÈRE, 2009: 16), ela se ocuparia de tudo aquilo que define o
que está em jogo na experiência política, sendo um modo de dividir e compartilhar uma experiência sensível
comum.
3
Jules Laforgue.5 Ambas as tendências estavam presentes nas reações simbolistas
finisseculares, no Brasil; os traços da vertente sério-estética, podemos encontrar, sobretudo,
na revista literária simbolista Rosa-Cruz.
A Rosa-Cruz surgiu em homenagem ao poeta simbolista Cruz e Sousa, falecido em
1898, e foi publicada nos anos de 1901 e 1904 – com um interstício de trinta e dois meses –
no Rio de Janeiro, sob a direção de Saturnino de Meirelles.6 De publicação mensal, a primeira
fase da revista contempla quatro números e teve duração de junho a setembro de 1901. Já sua
segunda fase, é composta por três publicações, que foram de julho a setembro de 1904.7 Sem
publicidade e outras formas de financiamentos, a revista oferecia assinaturas para o Brasil e
estrangeiro8 e, de acordo com o escrito em sua primeira página, estava “à venda em todas as
livrarias do Brasil” (ROSA-CRUZ, 1901).
Diversos são os aspectos que provocam inquietações ao debruçarmos o olhar sob a
Rosa-Cruz, como o fato dessa não apresentar divisões internas em seções, o que era comum
nas revistas. Seus textos publicados não são ordenados em seções e sua sequência parece ser
definida de modo arbitrário, além de publicar textos em francês sem tradução. Sem
ornamentos gráficos, a revista apresenta em alguns números um retrato de algum literato – o
primeiro número, de junho de 1901, apresenta um retrato de Cruz e Sousa, feito por Maurício
Jubim [figura 1].
Figura 1 – Retrato de Cruz e Sousa, de Maurício
Jubim, na Rosa-Cruz
5 Para um panorama sobre o traço coloquial-irônico, através da análise do hebdomadário literário simbolista
Pierrot, ver: GOMES, M., 2017. 6 A revista Rosa-Cruz possui todos os seus sete números disponíveis para acesso na Fundação Casa de Rui
Barbosa. Há também na Biblioteca Nacional, uma cópia microfilmada da revista em questão, no rolo número
PR-SPR 177-181, em um total de 172 fotogramas. 7 A redação da revista mudou de uma fase para outra, da rua Sete de Setembro para a Praça Tiradentes. Outra
mudança diz respeito à tipografia responsável pela impressão, que no primeiro momento ficou a cargo da
tipografia do Instituto Profissional e no momento posterior, da tipografia Leuzinger. 8 Preço de venda no Brasil: 6$000/ano; 3$000/semestre; $500/avulso (Brasil). No estrangeiro: 8$000/ano;
4$000/semestre/ $800/avulso.
4
Retrato de Cruz e Sousa realizado por Maurício Jubim e
publicado no primeiro número da revista Rosa-Cruz;
“Cruz e Sousa”, Rosa-Cruz, Rio de Janeiro, ano I, n. 1,
p. 2, junho de 1901; Fundação Casa de Rui Barbosa,
Arquivo Andrade Muricy, Coleção Plínio Doyle.
Sua edição de estreia conta com uma espécie de epígrafe, em francês, retirada de um
dos pequenos poemas em prosa de Baudelaire: Le chien et le flacon. A Rosa-Cruz publica
textos de Cruz e Sousa e estrangeiros, como Rimbaud e Mallarmé; e além das contribuições
de Alphonsus de Guimaraens, escrevem sempre na revista aqueles a quem Luís Edmundo
(1938: 446-448) identificou como os integrantes do grupo do “Antro”, formado pelos
“discípulos” de Cruz e Sousa: Meirelles, Jubim, Félix Pacheco, Tibúrcio de Freitas e Carlos
D. Fernandes. Vale ressaltar também a presença feminina no primeiro ano da folha, com a
publicação de textos da escritora Raphaelina de Barros.
Não obstante, o que mais gera incômodo está na capa da revista. Ou melhor, não está:
em sua capa aparece apenas o nome, composto por um jogo de palavra (Rosa) e símbolo (uma
cruz pátea) [figura 2].
Figura 2 – Capa da revista Rosa-Cruz
5
A hibridização entre palavra escrita e símbolo,
recorrente nas experiências estéticas simbolistas, se
manifesta no nome da revista que homenageia Cruz e
Sousa. Rosa-Cruz, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, junho de
1901; Fundação Casa de Rui Barbosa, Arquivo Andrade
Muricy, Coleção Plínio Doyle.
Em comparação às demais revistas, a ausência de qualquer floreio gráfico causa um
estranhamento. Todavia, a proposta não se encaixaria fora das experimentações simbolistas de
jeito algum, pois se apresenta em uma forma de expressão vaga, na qual o símbolo / a palavra
evoca realidades ocultas, transcendentais e suprassensíveis que não podem ser apreendidas
objetivamente.9 Não apenas a configuração gráfico-estética da revista Rosa-Cruz sugere sua
condição de mistério, mas seu próprio nome evoca tal condição, ao referenciar a ordem
mística rosacruciana. As referências místicas aparecem, inclusive, na descrição do grupo: “O
Antro é impenetrável. Turris ebúrnea. Reduto de entonados sonhadores. Loja maçônica.
Grande Oriente da literatura nacional [...]” (LUÍS EDMUNDO, 1938: 448, grifos do autor).
Nos textos publicados na Rosa-Cruz não há tom jocoso e a seriedade com que as
preocupações estéticas de seus membros são tratadas destaca-se, sobretudo, nos artigos de
9 De acordo com Anna Balakian (2007), as estéticas simbolistas, que tomaram corpo em Paris no período entre
1885 e 1895 – e foram experenciadas no Brasil finissecular – tinham como princípio o uso do símbolo, da
musicalidade, da expressão indireta dos estados de espírito e das correspondências.
6
crítica – de Saturnino de Meirelles, Félix Pacheco, Castro Menezes e Carlos Góes, no
primeiro ano da revista; e de Pereira da Silva, Rocha Pombo, Tavares Bastos, Mario Carneiro,
no segundo ano, além da permanência nesses números de textos de Meirelles e de Pacheco.
Não obstante, é possível identificar uma mescla das tendências – ainda que possamos dizer
que a “sério-estética” subordine a “coloquial-irônica” –, que se dá, sobretudo, nos temas.
Alguns tão intrínsecos à nova sensibilidade moderna que se tornavam, de fato, comuns a
ambas, como o tema / a imagem da multidão.
Na Modernidade, de acordo com Bolle (2000: 79-80), “as massas” têm lugar de
destaque nos escritos dos literatos no final do século. Em meio a esse espetáculo de forças
incontroláveis e ameaçadoras da multidão na paisagem urbana, o olhar desenvolveu um papel
fundamental. Georg Simmel (1987), ao pensar uma sociologia acerca da relação entre a
metrópole moderna e a vida mental proporcionada por ela, ressalta que as condições
psicológicas criadas pela metrópole são operacionalizadas por esse olhar. A multidão faz parte
da nova mentalidade da metrópole e, com seu olhar, o literato registra as sensações urbanas.
Um conto publicado no primeiro número da Rosa-Cruz oferece uma leitura acerca da
multidão e de seu poder, na cidade moderna. “Perfis amigos”, do português João Barreira,
narra – em uma descrição repleta de associações, alusões e sensações, toda sinestésica e
psicologizada – a história de dois amigos músicos que ao chegarem numa cidade – palco e
personagem ao mesmo tempo, com suas ruas e multidões – põem-se a tocar sua música. Das
sensações provocadas por essa sugestiva melodia, a multidão curiosa, que se juntara para
ouvi-los, responde aos seus efeitos:
Era uma sinfonia acre, gritada e murmurada, dando a sensação de um novelo de
serpentes que se despedaçam, irritada em gritos de chacal e morrendo em
estremecimentos de revolta vencida, tão dolorosa e tão lamentosa, como se fosse
tocada no coração pela passagem bárbara de um arco incandescido. [...]
Quando a música findou, num despedaço arranco intraduzível, um murmúrio de
surda desconfiança, como esses movimentos incompreensíveis da alma popular,
agitou, num rancor elétrico, a massa dos ouvintes.
Aquelas notas arremessadas como um rouquejar de heresias, chocou-lhes a simpleza
rude e a hipocrisia correta, com a altivez raivosa de uma profanação ou de um
desafio. Sentiram-se varados e mistificados: aqueles boêmios da Arte, eram, sem
dúvida, uns diabólicos emissários do país do Mal. Expulsá-los era um dever a
cumprir para com a Ordem, e todos, quer os simples, quer os grosseiros podiam
começar essa obra de justiça.
Então, explodindo de uma boca anônima, um clamor de ameaças foi crescendo e
rolando, umas vozes mais audazes gritavam: fora! fora! E uma pedra silvou indo
bater no calcanhar do rabequista.
E, sem olharem, num silêncio de resignação secular, os dois músicos tristes
partiram.
7
Assim, errantes na vida, incompreendidos e rebelados, tendo no gesto e na alma o
desdém dos que vivem sós no meio das Multidões, arrastaram as suas sombras por
uma avenida larga e nova, dolorosamente grotescos, iluminados cruamente pela
irônica faiscação do gás. (BARREIRA apud ROSA-CRUZ, 1901: 12-13, grifos
nossos).
Vemos a força que a multidão anônima apresenta na cidade moderna, seu poder de
exclusão; e a marginalização daqueles que – “boêmios da Arte”, “incompreendidos e
rebelados” – querem perverter a “Ordem”. Assim como o flâneur, mas representados sob
outra máscara, os músicos do conto de Barreira estão em meio à multidão, porém, sós.
Podemos notar traços do satanismo baudelairiano nas imagens sinestesicamente
psicologizadas e reconhecer os signos da Modernidade – a multidão, a larga e nova avenida e
a iluminação a gás –, que coroam o infortúnio desses artistas.
Também é interessante perceber – e, para tal, nos valeremos da transcrição de mais
dois trechos do conto – a dimensão psicologizante que é trabalhada na narrativa por Barreira;
não só na descrição da sinfonia, mas, sobretudo, nas descrições das duas personagens
principais:
Um era esguio, com um velho hábito de monge em que se via a miséria de um
empréstimo ou de um roubo. Tinha um nariz aquilino e forte, d’onde irradiavam em
arcos violentos as sobrancelhas de azeviche. A barba era caprina e preta. A face
mergulhada no fundo do capuz, tinha a palidez cansada de quem viveu uma
existência rebelde, no açoitamento constante de uma fatalidade assassina. Trazia
uns chapins sem cor, enlameados pelos grandes caminhos. Tocava rabeca.
O outro vestia uma blusa de seda preta, tinha as mãos feminis, aristocraticamente
finas, e uma cara rapada, inquietante de lividez impassível. Os olhos, a força de
fitarem, parecia recolherem-se e olharem para dentro; a boca, reta como um corte de
faca, desenhava o sarcasmo revoltado que traduz as impaciências de um século.
Toda a sua figura imóvel era de uma inércia de mármore. Tocava violoncelo.
(BARREIRA apud ROSA-CRUZ, 1901: 12-13, grifos nossos).
Após a descrição das personagens, o literato dá continuidade às explorações das
imagens sinestesicamente psicologizadas, que se incorporam nas ações, meticulosamente,
observadas:
Os músicos hipnotizavam-se, emudecidos, naquela espiritualizante concentração de
uma dor antiga. Sentia-se a alegria amarga de quem lança um ácido numa chaga
aberta, o movimento nevrotico de um carrasco de si mesmo que se sente nadar na
quintessência do gozo, ao fazer viver, para a contemplar, a sua arrastada existência,
coberta de chagas, corroída de remorsos, constelada de tédios seculares. Não era
um evolar de sons, era um crestar de carnes num braseiro, o crepitar de um Moloch
de onde subia um coro rouco de blasfêmias, de risadas, de beijos.
A arcada do homem esguio era curta, incisiva, irada: sentia-se nele o desejo violento
de apunhalar rapidamente, em cortes simples e rápidos, cortar milhares de
existências incomodas e vis, com a precipitação de uma vingança apressada.
8
A do homem do violoncelo tinha a lentidão fria de um inquisidor. Era nobre, lenta,
de uma correção medida e larga, em que se sentia o prazer diabólico de retalhar
uma alma com método e com arte. Era impecável como o verso de um parnasiano. E
sua figura tomava uma expressão serena e deificada em que a boca precisava mais
nitidamente o sarcasmo, e em que o olhar se tornava mais intenso de análise cruel.
(BARREIRA apud ROSA-CRUZ, 1901: 12-13, grifos nossos).
Carl Schorske (1900) atribui o surgimento de uma nova concepção de homem às
transformações experienciadas nesse fin de siècle. Conforme o autor, a nova concepção do
“homem psicológico” foi proporcionada pelas indagações resultantes de um cenário crítico,
no qual os intelectuais se questionaram sobre a sobrevivência do indivíduo diante de um
mundo social em um processo constante de desmoronamento – como nos mostra Marshal
Berman (1986). Schorske apresenta a nova dimensão psicologizante dessa realidade
finissecular como um produto da interseção dos âmbitos do político, do cultural, do social, da
estética e da psique:
A cultura liberal tradicional tinha se concentrado sobre o homem racional, cujo
domínio científico sobre a natureza e o controle moral sobre si deveriam criar a boa
sociedade. [...] o homem racional teve de dar lugar àquela criatura mais rica, mas
mais perigosa e inconstante, que é o homem psicológico. [...] A catástrofe da ruína
do liberalismo metamorfoseou ainda mais a herança estética em cultura de nervos
sensíveis, hedonismo inquieto e, muitas vezes, franca ansiedade. (SCHORSKE,
1990: 26-31).
Segundo ele, a crise do sujeito fora sentida como uma perda dos arquétipos outrora
edificados, ocasionando uma série de tentativas de reconstrução do “eu” – demolido e sem
esperanças – que se desenvolveram em torno de preocupações estéticas. Uma dessas
tentativas, na qual podemos figurar os simbolistas, se apresentou como uma vertente cética às
ideias modernas que proclamavam o progresso guiado pela racionalidade científica e a
emancipação do indivíduo pelo positivismo iluminista.
Se, como escreve Antonio Edmilson Martins Rodrigues (2000: 131), a nova cultura
burguesa, moldada pelo capitalismo, oferecia um empobrecimento – uma vez que era
submetida a uma ideia de progresso técnico e instrumental que não permitia a decolagem da
ideação, matando a criatividade e reordenando o mundo das oportunidades aniquilando a
liberdade; os simbolistas, na contramão desse movimento, ofereciam uma possibilidade de
crítica reflexiva sobre essa Modernidade progressista e utilitária, reinserindo a imaginação
livre no fazer artístico e notabilizando, assim, a capacidade imaginativa / criadora do artista.
9
Tal dimensão, para os simbolistas, fundamental ao artista que se quer moderno, pode
ser lida no artigo “Exposição de pintura”, de Saturnino de Meirelles, publicado na Rosa-Cruz.
Ao analisar as obras do pintor academicista Antonio Parreiras, o crítico de arte afirma que as
pinturas realizadas por Parreira não apresentam nada além de algumas diferenças na técnica e
que, portanto, não chega ao ponto culminante em que os artistas anseiam chegar. Essa nova
estética, que também se fazia ética, já fora enunciada em Baudelaire – de quem os simbolistas
brasileiros eram leitores –, como observa Laura Moutinho Nery:
[...] o artista moderno não era mais um copiador da natureza ou um repetidor dos
modelos clássicos: a nova agenda do que Baudelaire definira como
Modernidade exigia o comprometimento ético e estético do artista na experiência
atual e concreta. (NERY, 2014: 67).
Em seu artigo, o crítico de arte percebe aquilo que o simbolista Gonzaga Duque (2001:
118) descreveu como uma “banalidade oficial que qualquer lente de sobrecasaca preta pode
chamar estética” e que definiria a “velha estética das academias”. Meirelles critica a
perspectiva da Arte como cópia estrita do natural:
Mas a exatidão almejada na pintura, não é essa cópia flagrante e material, a que
chamam os mestres da Escola de Bellas-Artes, muito dogmaticamente, cópia do
natural.
É certo ser essa cópia o ponto de partida para essa outra, vista e sentida através do
temperamento do artista; mas dai, a julga-la a verdade e a última coisa em Arte, é
grande o abismo que se cava.
Em Arte, não consiste a cópia do natural nessa transposição imbecil e minuciosa da
Natureza.
Ela consiste na reprodução inteligente e espiritual, na imitação difundida pelos
nossos sentidos e pelos nossos nervos, que da grande harpa da Natureza, arrancam
todos esses mistérios insondáveis e todos esses sentimentos profundos.
(MEIRELLES apud ROSA-CRUZ, 1901: 7-10, grifos do autor).
O crítico dá prosseguimento à sua análise e ratifica que as dimensões das telas do
artista não se equiparam às de grandes dimensões dos grandes artistas, alegando que Parreira
se ausentaria desse “sentimento de hora”, a sensibilidade imaginativa que era necessária a
essa arte moderna:
E na impossibilidade de dar a sua obra esse sentimento de hora, em que a alma do
artista se funde com as próprias tintas, essa rara delicadeza que todo o paisagista
possui no seu pincel, todas essas transposições sutilíssimas e finas, procura impor-
se com a exorbitância de suas telas, de dimensões fabulosas, esquecendo-se no
entanto, de que não foram pelo seu tamanho que se tornaram celebres as telas dos
grandes e reais artistas.
Não foram por certo pelas suas monstruosas dimensões, que ficaram imortalizados
os quadros de Corot e Courbet.
Mas sim pela sensibilidade nervosa de seu pincel, que sabia dar à paisagem a sua
cor e sentimentos próprios. Que fazia sentir todos os segredos da Natureza, todas as
10
cordas que vibram nas suas fundas e escuras grutas misteriosas. (MEIRELLES
apud ROSA-CRUZ, 1901: 7-10, grifos nossos).
Gonzaga Duque (2001), em um artigo de crítica de arte publicado no O Globo, em
1882, já elencara os elementos apresentados minuciosamente na crítica de Meirelles. Duque
expõe, em meio sua análise sobre os pintores Almeida Júnior e Rodolfo Amoedo, sua
inclinação a uma arte que, em recusa da cópia, proporcione – ao mesmo tempo em que é
proporcionada pela – a liberação da capacidade imaginativa / criadora do artista:
Não ser imitador é difícil [...]. Todo o artista que procura em derredor a verdade,
que investiga a natureza, que age aos impulsos do seu educado organismo, é, sem
levantar dúvidas e questões, um moderno, um indivíduo consciente do seu papel, do
seu dever, da sua vida. (DUQUE, 2001: 68, grifos nossos).
Àquilo que dizem ser arte – e diverge da percepção moderna de arte que os simbolistas
apresentam por pautar-se em uma preocupação técnica de reprodução, reduzida à cópia –
Meirelles (1901: 7-10), em seu artigo, designa como “industrialismo mascarado de Arte”. Eis,
mais uma vez, a dimensão da crítica reflexiva, lúcida e cética, que identifica o mal-estar na
sociedade e expõe as mazelas do, cada vez mais, funcional mundo moderno do capital e do
burguês e industrial. Nesse sentido, a crítica dos simbolistas não se restringe ao campo das
artes.
Conforme Lins (1991), os simbolistas fazem parte de uma vertente cética e
desencantada do modernismo que desorganiza a visão burguesa e positivista de mundo
moderno. Suas críticas não são restritas às artes, e tampouco se dirigiam somente às relações
sociais; com olhar acurado, criticavam a cultura do sistema social que engendrava tais
relações. Como podemos entrever em um trecho do diário de Duque, de junho de 1901 –
mesmo mês e ano do artigo publicado na Rosa-Cruz –, sobre a aquisição do quadro A Prece,
do pintor Antonio Parreiras – o mesmo da crítica de Meirelles –, pela Câmera Municipal de
Niterói. Primeiro, Duque faz uma breve análise sobre o quadro em questão – que apesar de
não ser um exame em detalhe, como a obra de Meireles, não é menos séria:
Os jornais noticiam, hoje, que a Câmara Municipal de Niterói adquiriu A Prece de
Antonio Parreiras, e aplaudem esse ato de generosidade e protecionismo.
Daqui, do meu canto, ponho-me a pensar no caso. A Prece é um mau quadro.
Dizem pessoas entendidas em lavouras que não há plantações de milho em lugares
vazios, porque as chuvas, sem o necessário escoamento, estragariam a planta que é
sensibilíssima à umidade. Isto dizem as pessoas entendidas, mas o quadro de
Parreiras representa um extenso milheral seco, em planície, donde concluo – ou o
artista pintou-o d’après nature e os entendidos não falam com a verdade, ou teve ele
a intenção de imitar o Angelus de Millet, com uma planície rosa para dar a
11
impressão do isolamento e da grandeza, donde inverdade por intentos de imitação.
Em todo caso, eu nada afirmo neste particular. [...] Ora bem, pelo que respeita ao
valor artístico do quadro a Câmara Municipal de Niterói não foi feliz. Agora
vejamos o protecionismo de que falam os jornais. (DUQUE apud LINS, 1991: 164-
166, grifos nossos).
Depois, o simbolista registra em sua crítica àquilo que denomina uma “política de
protecionismo”, esmiuçando a cultura que subsistia no sistema social e nas relações artísticas
estabelecida, refletindo sobre o âmbito mercadológico que, cada vez mais, se fazia impor aos
artistas e literatos e suas produções. O crítico, em consonância com as experimentações
simbolistas, apresentava sua proposta combativa frente ao mundo moderno que a tudo,
progressivamente, mercantilizava:
A Câmara adquiriu por dez contos de réis esse quadro, para o colocar na sala de
suas sessões. Antes de tudo, o quadro, por suas dimensões, é para uma galeria e não
para uma reles sala de Câmera Municipal arrebentada como a de Niterói, cujo estado
financeiro todo o mundo conhece. Colocá-lo numa sala quase sem luz, de dimensões
acanhadas, é sacrificar a obra de arte, anulá-la no seu efeito, porque nem a Câmara
se irá dar ao trabalho de reformar a sua sala, nem o seu erário lhe consente tamanho
dispêndio.
De mais o assunto da Prece é impróprio para uma sala de sessões da Câmara
Municipal, não há argumento que lhe garanta a aplicabilidade. Melhor andaria a
Câmara, desde que seu empenho é proteger o artista, oferecendo o quadro ao palácio
do governo, onde poderia figurar como ornamento de dependência de recepção. [...]
Essa mania de proteger os artistas, comprando-lhes quadros que não se sabe onde
colocá-los é uma indústria já desenvolvida. O Conselho Municipal do Distrito
Federal deu o exemplo enchendo sua sala de sessões de retratos, paisagens e
alegorias dependuradas com um mau gosto irritante.
Não é o fato da proteção ao artista, o que me desperta estas linhas, porque de tanto
eles vivem e de mais do que isso precisam; o estranho e censurável no caso é a falta
de seriedade que vai nele. Uma instituição oficial tem a obrigação de concorrer para
o desenvolvimento moral do público e essa mania de pregar quadros à parede, que
não tenham significação correlata, que não se harmonizem com o destino do
edifício ou da dependência do edifício onde estejam, corrompe a justa compreensão
da arte, anarquiza o bom gosto e distorce, além do mérito da obra por sua má
colocação, o verdadeiro valor do artista que se limita a ser um negociante mais ou
menos feliz. (DUQUE apud LINS, 1991: 164-166, grifos nossos).
Duque critica o estabelecimento da ordem do mundo da mercadoria, que se expande e
corrompe todos os âmbitos da vida social, inclusive o “território” das artes. Entretanto, ao
mesmo tempo em que essa lógica mercadológica, bem como a ideologia do progresso pautada
em uma razão técnico-científica, ganhava espaço e colocava as artes em lugar subalterno à
ciência técnica e, subserviente ao mercado – como também é evidenciado por Meirelles em
seu artigo –, gerava-se uma reação que propunha como alternativa pensar a realidade do
homem moderno em sua complexidade, pela imaginação e autoconsciência.
12
As experiências estéticas dos artistas simbolistas reagiam frente a esse processo
burguês de modernização que demolia referenciais e laços simbólicos em prol de um
progresso mecanicista e utilitarista que subordinaria a tudo e a todos. Articulados em uma
nova sensibilidade estética, ao se voltarem para uma interioridade onírica, eles não buscavam
uma exacerbação da subjetividade e dos sentidos desvinculados do mundo social, mas sim a
potencialidade do caráter reflexivo e transformador das faculdades do pensamento e da
imaginação.
O caráter hermético dessas experiências possibilitou a exploração de imagens
evocadas, de uma linguagem velada que se valia da sugestão e aludia a sua “condição de coisa
misteriosa” e a fusão das sensações físicas com as espirituais. Nesse sentido, a estética
simbolista se apresentava como uma recusa ao fácil, provocando uma revolução, não só na
linguagem poética, como também nos hábitos, costumes e modas finisseculares.
Essa nova sensibilidade estética, proposta pelos artistas simbolistas, oferecia uma nova
forma de perceber o mundo e de representá-lo. É na contracorrente da nova ordem do capital-
industrial, da modernização, da mecanicidade e do progresso, que os simbolistas – como
Duque, Barreira, Meirelles e os representantes da Rosa-Cruz –, constroem uma subjetividade
mais complexa, em resistência a um mundo regido por mecanismos de relógios, como
assinala Lins (1991: 34), que se quer cada vez mais guiar pelo utilitarismo e a imediaticidade.
Tal fora o empenho das experiências estéticas simbolistas nesse fim de século.
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