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ISSN 2238-0205

Os lugares da memória de Carlos Drummond de Andrade: imagens poéticas de Belo Horizonte (MG)Flora Souza Pidner, Lucas Zenha Antonino, Maria Auxiliadora da Silva

Geograficidade | v.5, n.1, Verão 2015

OS LUGARES DA MEMÓRIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: IMAGENS POÉTICAS DE BELO HORIZONTE (MG)The places of Carlos Drummond de Andrade’s memory: poetic images of Belo Horizonte (Minas Gerais)

Flora Sousa Pidner1 Lucas Zenha Antonino2 Maria Auxiliadora da Silva3

1 MestreemGeografia(UFMG),IntegrantedoGrupodePesquisaProduçãodoEspaçoUrbano(PEU/UFBA),DoutorandadoProgramadePós-graduaçãoemGeografiapelaUniversida-deFederaldaBahia(UFBA).floraspidner@gmail.com.

InstitutodeGeociências,UFBA,sala305b,RuaBarãodeGeremoabo,s/n,CampusOndina,Ondina,Salvador,BA.40170-115.2 MestreemGeografia(PUC-MG),IntegrantedoGrupodePesquisaGeografar(UFBA).lucaszenhas@gmail.com. InstitutodeGeociências,UFBA,sala305b,RuaBarãodeGeremoabo,s/n,CampusOndina,Ondina,Salvador,BA.40170-115.3 DoutoraemGeografiapeloUniversitédeStrasbourg,França,CoordenadoradoGrupodePesquisaProduçãodoEspaçoUrbano(PEU/UFBA),ProfessoradoProgramadePós-Gradu-açãoemGeografiapelaUniversidadeFederaldaBahia(UFBA).dorasilv@ufba.br.

InstitutodeGeociências,UFBA,sala305b,RuaBarãodeGeremoabo,s/n,CampusOndina,Ondina,Salvador,BA.40170-115.

Resumo

OtextopromoveodiálogoentreaGeografiaeaLiteratura,abordandoo espaço na arte poética.Os poemas escolhidos foram “O fim dascoisas e Triste horizonte”, de Carlos Drummond de Andrade, querepresentamlugaresdeBeloHorizonteparaamemóriadopoeta.O lugarépensandocomoumacategoriaqueserefereaumadimensãoespacialemqueháaproduçãodeidentidades,depertencimentoedeafetividade,aomesmotempoemqueéondesedesenrolaocotidiano.Oautorrevelaseusofrimentodiantedastransformaçõespelasquaisacidadepassou,contrapondo-seaelas,sobretudoporconsiderarqueas suas identidades espaciais morreram diante da metropolização.Amorte das coisas, tal como anunciada pelo poeta, está inseridanos processos sociais e históricos que transformam as cidades, oscotidianos, os lugares e, assim, a vida.Os lugares da memória dopoetaficaramrepresentadosatravésdessespoemas.

Palavras-chave:Geografia.Literatura.Poesia.

Abstract

ThepaperpromotesadialoguebetweenGeographyandLiterature,whichaddressesthespacethroughthepoeticart.Thepoemsselected“OFimdasCoisas”(“TheEndoftheThings”)and“TristesHorizontes”(“Blues Horizons”) by Carlos Drummond de Andrade. These textsrepresentplaces inBeloHorizonte (MinasGerais) to thememoryofthepoet.Theplaceisidentifiedasacategorythatreferstoaspatialdimensioninwhichoccurstheproductionsofidentities,ofbelongingandofaffectivity.Atthesametime,theplaceiswheretheeverydaylife isdeveloped. Inthesepoemstheauthorsrevealshissuffering infrontofthetransformationbywhichthecityofBeloHorizontepassed;heputs himself radically against these changes, especially, becausehe consider that the city’s spatial identities diedduring theprocessofmetropolization.Thedeath of things, asannouncedbythepoet,isembeddedinthesocialandhistoricalprocessandmovementsthattransformed the cities, the everyday life, the places, and therefore,the life.Theplaces of memories of thepoet remained representedthroughthepoems.

Keywords:Geography.Literature.Poetry.

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Os lugares da memória de Carlos Drummond de Andrade: imagens poéticas de Belo Horizonte (MG)Flora Souza Pidner, Lucas Zenha Antonino, Maria Auxiliadora da Silva

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Introdução

A“[...]vidanacidadeéefervescente.Nãohácomorepresentá-ladeumaúnicaforma,diantedeinfinitaspossibilidadesderepresentação”(HISSA;MELO,2008,p.294).Éapartirdessaideia,ampliando-aparaatotalidadedoespaço,quesebuscaempreenderestudosnaGeografiaapartirdediferentesformasderepresentaçãodoespaço,paraalémdaCartografia.“Nãosedeveesquecerqueéasociedadequeproduz,consome e ressignifica o espaço, e aGeografia, uma das possíveisleiturasdoespaço,éumapráticaquetambémpodesefazeratravésdodiscursoliterário”(PINHEIRO;SILVA,2004,p.25).ALiteraturatorna-se, então, uma rica fonte de expressões espaciais, por ser pensadainerentementearticuladaaoespaço,àgeografiadoslugaresqueestãonossujeitose,portanto,nosartistas,nosespectadoresenosleitores.Délio Pinheiro e Maria Auxiliadora da Silva (2004, p. 22) tambémsublinhamque “na história, os dois fenômenos – escrita e cidade –ocorremquasesimultaneamente”.Aintençãoéleraescritadacidadee a escrita textual sobre a cidade aomesmo tempo. Dessa forma,tambémépossívelafirmarque“artistassemprecriaramgeografias,seentendemosqueaproduçãoculturalétambémumapráticaespacial”(MARQUEZ,2009,p.24).É nessa perspectiva que o diálogo entre Geografia e arte tem

crescido nos últimos anos. Literatura, artes plásticas, música,fotografiae cinema têmsidoabordadosnoâmbitodaGeografia.Aideiaé“[...]articularashistóriasdasartescomasgeografiasdasartes”(SOULAGES,2010,p.67).Nessaperspectiva,aarteea ciência têmpotenciaisparaaproximar,paraexpandirouniversodossujeitos,parageraração.Alémdisso,quandose“[...]entendeamanifestaçãoartísticacomo

potênciacriadorademundos,constituindo realidade,deum lado,e

revelandopartedaessênciadomundo,deoutro”(MARANDOLAJR.,2010,p.22),caminha-separaumdiálogofrutíferoentreGeografiaeLiteratura,sendoostextospoéticosumaformaderepresentaçãoqueenriquecemoconhecimentogeográfico.Ditoaindadeoutra forma,“aexperiênciapoética supõeasexperiênciashumanascrucialmentebásicas, vividas ou intuídas, delicadas e violentas, singulares euniversais”(WISNIK,2005,p.33).Taisrelaçõesexistenciaishumanassão chamadas, por Dardel (2011, p. 31), de geograficidade, quesignificaamaneirade sereestarnomundoeque tem“[...] aTerracomolugar,baseemeiodesuarealização”.A articulação teórico-metodológica entre Geografia e Literatura

pode ser tecida de diferentes maneiras. A proposta deste texto éproduzirumintercâmbioentreessessaberesapartirdeoutrodiálogo,entre dialética e fenomenologia. Concorda-se com Ângelo Serpa(2013, p. 169) quando este autor afirma que “a fenomenologia nãoexclui a contradição da dialética, justamente porque busca rompercomafamiliaridadecomomundoparaapreendê-loerevelá-locomoparadoxo”. Milton Santos (2002), anteriormente, também elabora,coerentemente,abordagensdialéticasefenomenológicas,sobretudoem sua obra “A natureza do espaço”, cujo subtítulo expressa essacomposição:técnica e tempo, razão e emoção.Noseiodeumadastriplicidadesdialéticas–espaçoconcebido,espaçopercebidoeespaçovivido – construída por Henri Lefebvre (2000), há uma importanteinfluência fenomenológica, sobretudo por parte de Merleau-Ponty,paraaelaboraçãodeconceitodeespaço vivido(SERPA,2013).GastonBachelard (1998) falaem dialéticaparase referiraosconceitosquetrabalhaempares,taiscomovisíveleinvisível,interioreexterior,casaeuniverso,etc.Essessãoalgunsautoresquerevelamaricapossibilidadedearticulaçãoentreessesmétodos.

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A categoria de análise geográfica eleita para a elaboraçãodessas articulações aqui propostas é o lugar, palavra-conceito quepermite uma abordagem teórico-metodológica ao mesmo tempofenomenológicaedialética (SERPA,2013).NoâmbitodaGeografia,o lugar é uma categoria de análise que dá sustentação ao estudodoespaço,oobjetodeestudodessaciência.Emoutraspalavras,ascategoriasgeográficassão,dealgumamaneira,desdobramentosdoobjetodeestudo(HISSA,2001).É interessantedestacarquea literatura também fazmovimentos

paraestabelecimentosdediálogos.Calvino(1990b,p.84)expressouumdosprocedimentosqueseguiaparaproduzirseustextosliterários:“[...] numdesses livros científicos emque costumometer o nariz àprocuradeestímulosparaaimaginação”.Oautorcontinuaressaltandoseu aprendizado com a ciência para construir imagens literárias.A literatura também não se enclausura.O próprio escritor italianoreafirmaque“[...]ograndedesafioparaaliteraturaéodesabertecerem conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visãopluralísticaemultifacetadadomundo”(CALVINO,1990b,p.127).Nestetexto,ospoemasdeCarlosDrummonddeAndrade,“Ofim

dascoisas”4e“TristeHorizonte”5,foramescolhidosparaarealizaçãodeumdiálogoentreGeografiaeLiteratura,poisrepresentamlugares da memóriadopoetae,assim,revelamasuarelaçãocomoespaçoda cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais.Drummond nasceu em Itabira, interior de Minas Gerais, em 1902.ViveumuitosanosemBeloHorizonte,maspassougrandepartedesuavidanoRiodeJaneiro,paraondesemudouem1934etambém

4 Essepoemafoipublicado,pelaprimeiravez,nolivro“Algumapoesia”,em1930,sendoolivrodeestreiadoautor,numapequenatiragemnãocomercialdeapenasquinhentosexemplares.

5 EssepoemafoiescritoporDrummondnadécadade1970efoipublicadonolivro“Dis-cursodeprimaveraealgumassombras”.

ondefaleceu,em1987.ParaWisnik(2005),Drummondéopoetaquemaisutilizaeexploraapalavramundoeseussignificadospossíveis.“Váriasdimensõesdemundosimpõem-seaí,desdelogo.Aprimeiraéametrópole,istoé,acidade-mundomoderna,emqueadimensãoda pessoa é ao mesmo tempo potencializada e ultrapassada pelaonipresença dos meios técnicos e pela mercantilização” (WISNIK,2005, p. 25). É a Belo Horizonte em processo demetropolização olugardosdoispoemasaquiexplorados.

O fim das coisas

Eisoprimeiropoema:

O fim das coisas

FechadooCinemaOdeon,naRuadaBahia.Fechadoparasempre.Nãoépossível,minhamocidadefechacomeleumpouco.Nãoamadureciaindabastanteparaaceitaramortedascoisasqueminhascoisassão,sendodeoutrem,eatéaplaudi-la,quandoforocaso.(Amadurecereiumdia?)Nãoaceito,porenquanto,oCinemaGlória,maior,maisamericano,maisisso-e-aquilo.QueroéoderrotadoCinemaOdeon,omiúdo,fora-de-modaCinemaOdeon.Aesperanasaladeespera.AmatinêcomBuckJones,tombos,tiros,tramas.Aprimeirasessãoeasegundasessãodanoite.Adivinaorquestra,mesmonãodivina,costumeira.OjornaldaFox.WilliamS.Hart.Asmeninas-de-famílianaplateia.Aimpossível(sonhada)bolinação,pobresátiroempotencial.Exijoemnomedaleiouforadalei

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quesereabramasportasevolteopassadomusical,waldemarpissilândico,sublimeagoraqueparasempresubmergeemfuneraldesombrasnesteprimeirolutulentodejaneirode1928.

(ANDRADE,2013,p,109)

AspalavrasdeDrummondnopoema“Ofimdascoisas”endereçamo leitor às ideias de identidade e de pertencimento construídos narelaçãoentreosujeitoeoespaço.Essas ideiasestãopresentes,porexemplo, no pronome possessivo minhas. O autor se apropria doCinemaOdeon – uma dessas coisas –, sabendo que ele não é seu,sobas referênciasdapropriedadeprivada.Entretanto, tal cinemaéseu, soboutras referências–nãomercantis–pensadasapartirdossentimentosdeidentidadeedaconstituiçãodeumaafetividadeentreosujeito(poeta)eoespaço(cinema).Se,nessaperspectiva,oespaçoédosujeito–oCinemaOdeonédeDrummond–osujeitotambémédoespaço–opoetatambémédoCinema.Afinal,oquesãooslugares,senãonósmesmos?Aomesmotempoemqueoslugaressãoprodutoshumanos, esse espaço da vivência cotidiana também é fonte paraassignificaçõesqueossujeitosproduzemacercadesimesmosedomundo.Drummondrevela,emseupoema,qualidadesdesipróprio,quese

constituemapartirepormeiodasuavivênciaespacial.Essarelaçãoentre sujeito e espaço, construída ao longo da história de vida dosujeito,tambémsefundamentanasintersubjetividades6,poisosujeitoésempreindividualecoletivo,simultaneamente.Osujeitoincorpora

6 Intersubjetividadeéumconceitocentralnafenomenologia,desdeainauguraçãodes-temétodocomHusserl(2000),passandoporMerleau-Ponty(2006)eporSartre(2005).Afenomenologiaéumafilosofiaradicalmentehumanista,queconsideraooutroeaconstruçãodossujeitosépensadaintersubjetivamente.Ouniversalnafenomenologiaéodiálogoentreossujeitos.

ao seu seros lugaresdevivência, tal comooCinemaOdeonparaopoeta,atravésdoverboconviver,quetambémincluiasrelaçõescomoutrossujeitos.Olugarédefinidopelapresençadocorpodoshomensnoespaço.

Merleau-Ponty(2006)éumfenomenólogoqueexploraosatributosdocorpoesuapercepçãodoespaço-tempo.AnaFaniCarlos(1996,p.20)éinfluenciadaporsuasideiasesublinhaesseencontro:“Éatravésdeseucorpo,deseussentidosqueele[osujeito]constróieseapropriadoespaçoedomundo.Olugaréaporçãodoespaçoapropriávelparaa vida – apropriada através do corpo, dos sentidos, dos passos deseusmoradores–éobairro,éapraça,éa rua”.Ocorpodoespaçointegra-se às experiências do corpo do sujeito e cria a dimensão

subjetivaquecompõeamemória:“Ocorpoé[...]umamemóriasábia

queregistraossinaisdoreconhecimento:elemanifesta[...]umsaber-

fazerquesinalizaaapropriaçãodoespaço”(MAYOL,2008,p.55).Essa

apropriaçãodoespaçoéomovimentodeinterligaçãoentreahistória

individualdosujeitoeahistóriacoletiva.No“[...]corpo[...]secoloca

a possibilidade de transbordamento, de desfiguração das fronteiras

entre o individual e o social” (DIÓGENES, 2003, p. 189). Augustin

Berque (1998,p.87) tambémdácentralidadeao corponoprocesso

de percepção da paisagem, dialogando comMerleau-Ponty (2006):

“[...] não é somente a visão, mas todos os sentidos, não somente

a percepção, mas todos os modos de relação do indivíduo com o

mundo”.Éumcorpoposicionado,quetemfunçãoe,que,portanto,

nãoéneutro.

Apartirdastransformaçõessocioespaciaisdoslugares,emespecial

os lugares das cidades metropolitanas, como é o caso de BeloHorizonte,quesepropõeapensarasnoçõesreferentesao lugardamemória.“OcinemaOdeoninauguradoem1906,aindacomoteatro

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Paris,naregiãocentraldeBeloHorizonte,assimcomomuitasoutrassalas de cinema da cidade, hoje se restringe à memória” (SENRA,2009,p.1).MiltonSantos (2002,p. 102)afirmaque: “a cadaevento,a forma

serecria.Assim,aforma-conteúdonãopodeserconsideradaapenascomo forma, nem apenas como conteúdo”. O lugar contém umahistória acumulada, tambémexpressana suapaisagem,que é umadasfontesparaasuaespecificidade.Afrustraçãodopoeta,expressaem seus escritos, é a perda dessa forma-conteúdo passada, quepreenchia o seu lugar Belo Horizonte de significado. Ele nãomaispoderáfrequentaroCinemaOdeon,comonasuamocidade.Eleagoraéumelementodasuamemóriaenãomaisdoespaçodacidade.OCinemaOdeoneraumfragmentodacidadedeBeloHorizonte.A

cidadetambémestavaali,nessecinema,nessefragmentodoespaçoem que ricas vivências e encontros se realizavam. Entretanto, oenredodacidadesemodificoue,assimcomooscotidianos,oslugaresda cidade vivem novas funções, novos hábitos, novas articulaçõesespaciaiseaprópriacidadeganhaatribuiçõesmetropolitanasquesesobrepõemaesseseupassado.Seoslugaressão“[...]umaporçãodoespaçoemqueoshomenssereconhecem.Reconhecemasuahistória,oseuambiente,oseuuniversoderelações,experiências,lembranças,desejos,conflitos,vivências”(MELO,2006,p.65-66),opoetaosperdeemBeloHorizonte,transformando-aemumacidadeemruínasparasi,pois“acidade,comoestadodearte,ésubstituídapeloideáriodafuncionalidade,ouseja,maisracionalidadeemenosemoção”(NUNES,2007,p.32).

Triste Horizonte

Nopoema“Tristehorizonte”,ogritodeangústiaedefrustraçãodeDrummonddiantedesuasperdasespaciaissãoaindamaioresemais

incisivasdoquenopoema“Ofimdascoisas”.Estepoemafoiescritoposteriormentee,assim,osprocessosreveladospeloprimeiropoemaestavam em pleno movimento de acentuação. Um poema crítico,contundentee,aomesmotemponostálgico,emqueele,maisumavez,valorizaosseuslugares da memória.“Tristehorizonte”éumpoemalongoquerevelacomooautorsechocacomastransformaçõesquetomamBeloHorizontecomoemumassalto.Atrajetóriaédacidadeprovinciana àmetrópole, em que o fechamento doCinemaOdeone a abertura doCinemaGlória, “maior, mais americano,mais isso-e-aquilo” eram apenas uma expressão dessasmudanças, vistas pormuitoscomooprogressodacidade.ParaJoséMiguelWisnik (2005,p.40),“BeloHorizonte[está]numlugardefronteiraentreaprovíncia,aprovínciadaprovíncia,acapitaldacapitaleascapitaisdascapitais”paraopoeta.Eisoprimeirotrechodotextopoético:

Triste Horizonte

PorquenãovaisaBeloHorizonte?asaudadeciciaecontinua,[branda:Voltalá.

Tudoébeloecantantenacoleçãodeperfumesdasavenidasquelevamaoamor,nosespelhosdeluzepenumbraondese[projetamospurosjogosdeviver.Anda!Voltalá,voltajá.

Eeurespondo,carrancudo:Não.Nãovoltareiparaveroquenãomereceservisto,oquemerece[seresquecido,serevogadonãopodeser.

Nãoopassadocor-de-coresfantásticas,BeloHorizontesorrindo[púberenúbilsensualsemmalícia,lugardelerosclássicose[amarasartesnovas,lugarmuitoespecialpelagraçadoclima[epelogosto,quenãotempreço,defalarmaldoGovernono[lendárioBardoPonto.

Cidadeabertaaosestudantesdomundointeiro,inclusive[Alagoas,“maravilhademilharesdebrilhosvidrilhos”[mariodeandradementecelebrada.

Não,Mário,BeloHorizontenãoeraumatolicecomoasoutras.Eraumaprovincianasaudável,decarneslevespesseguíneas.Era[umremanso,eraumremansoparafugiràspartesagitadas

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[doBrasil,sorrindodoRiodeJaneiroedeSãoPaulo:tão[prafrentex,asduas!enóslá:macio-amesendadosnacalmae[naverdebrisairônica...

Esquecer,queroesqueceréabrutalBeloHorizontequese[empavonasobreocorpocrucificadodaprimeira.

(ANDRADE,1978,p.21-22)

NodiálogoqueDrummondestabelece,poeticamente,comMáriode Andrade, ele revela que um novo encontro com a cidade seriadesconcertante.Opresenteeopassadoseencontrariamdentrodele,secontrastariameoangustiaria.Olugarquesefazpresenteapenasnamemória é fontede inquietaçãopara ele, que sente como se astransformaçõesdacidadetivessemdesrespeitandoasuamocidade,mais do que isso, como se tivessem subtraindoda sua constituiçãoenquantosujeitoarelaçãoespacialqueconstruiunamocidade.ABeloHorizonte-metrópolequeDrummondnega,nãoéparaseraplaudida,poiselasefez“sobreocorpocrucificadodaprimeira”,daprovinciana,daquelaqueéamadaporele,mesmoqueapenasnamemória.O cotidiano cada vez mais acelerado, mais agitado também o

incomoda, já que essa intensificação dos ritmos cotidianos estáimbricadanaconstituiçãodanovaBeloHorizonte,éumacaracterísticada cidade metropolitana. É acompanhado pela aceleração datransformaçãodapaisagem,poisacidadeseexpandiueseverticalizoubastante,sobretudoapartirdadécadade1940.Osistemaviáriofoiampliado,novosloteamentosforamabertoseomercadoimobiliáriose consolidou, dando centralidade à renda da terra para se pensarnasmoradiasenosacessosaosespaçosdacidade.“Comoresultadodo processo em movimento, Belo Horizonte nas décadas de 1960e1970ganhaocorpoeos conteúdosdeumaautênticametrópole”(SENRA,2009,p.6).Essastransformaçõesespaciais–quenãopodemser compreendidas apenas na escala local, pois atravessaram e

atravessamascidadesemtodoomundo,cadaumaàsuamaneira–atingemolazer,oentretenimentoeotempodestinadoaodescanso,quetambémsetornaprodutivoeprogramado.

Nocentro,designadoaquiealhures,encontra-seoprocessodere-produçãodasrelaçõesdeprodução,processoquesedesenrolasobosolhosdecadaum,queserealizaacadaatividadesocial,inclusiveaquelasaparentementemais indiferentes (os lazeres,a vida cotidiana,ohabitar eohábitat, autilizaçãodoespaço)(LEFEBVRE,2008,p.21).

Uma indústria do lazer se consolida. “Concomitante, observa-se tambéma redução dos espaços de sociabilidade aos espaços deconsumo.Oqueacabaporcondicionaraacessibilidadeàculturaeaolazer aopoder econômico, forjandonichosde reunião entre iguais”(SENRA,2009,p.6)7.Nacontinuidadedopoema,oautorutilizaasreferênciascatólicas

queforamesãoapropriadasenquantotoponímiasdasruasedosbairrosdacidade.Asreferênciasreligiosasseimprimemnoespaço,atravésdasignificaçãoqueossujeitosencaminhamparaele.Opoetainterpelaossantoseamãodivina,questionando-os:“Terãoendoidecido?”.Essainquietaçãorevelaumatensãonasuareligiosidadeeopoetasesenteabandonado.ParaDrummond,ossantosseesqueceramdeprotegera cidade dessas transformações que ele considera avassaladoras equedestroemoseulugar,relegando-oàmemória.Opoetapontuaoselementosqueservemà reproduçãoampliadadocapitalque foramintroduzidos no espaço da cidade, tornando-a cidade-mercadoria ecomoissooincomoda.Taisprocessossãoinerentesàmetropolização:

7 Osshoppings centerseatransferênciadamaiorpartedassalasdecinemaparaessescentrosentramnessecontextodemetropolizaçãodeBeloHorizonteapartirdadécadade1980,apósaescritadospoemase,porisso,elesnãoserãotrabalhadosnestetexto.

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Quero não saber da traição de seus santos. Eles a protegiam,agora protegem-se a simesmos. São José, no centromesmoda cidade, explora estacionamento de automóveis. São Josédendroclastanãodeixadepésequerumpé-de-pauondeamarraroburrinhonumaparadanocaminhodoEgito.SãoJosévaientrarfeionocomérciodeimóveis,vendendoseusjardinsreservadosa Deus. São Pedro instala supermercado. Nossa Senhora dasDores, amizade da gente na Floresta, (vi crescer sua igreja àsombradoPadreArtur) abre cadernetadepoupança, lojasdeacessóriosparacarros,papelaria,aviário,pães-de-queijo.TerãoendoidecidoessesmeussantoseadoloridamãedeDeus?Ou foiemnomedelesquepastoresdeixamdepastorearparafaturar?NãoescutemavozdeJeremias(eéoSenhorquefalaporsuabocadevergasta):“Euvosintroduzinumaterrafértil,edepoisdeláentrardesaprofanastes.Aidospastoresqueperdemedespedaçamorebanhodaminhapastagem!Eisqueosvisitareipara castigar a esperteza de seus desígnios”. Fujo da ignóbilvisãodetendasobstruindoasalamedasdoSenhor.(ANDRADE,1978,p.21-22)

Dessa forma,Drummondpreferemanter as referências espaciaisque tem de Belo Horizonte em suamemória, como um respeito asimesmo.Jáqueelenãopodeimpediradinâmicadacidade,eleseimpedeounãosepermitevê-la,comoumaformadepreservaroseulugar,jáqueelenãopodeestarneleesentir-sejuntodele,anãoserrecorrendoàprópriamemória.Paraopoeta,todasastransformaçõesdeBeloHorizontesãochocantes,causamsensaçãodeestranhamento,de desamparo e desconstroem sua identidade. Em outro trecho, oautorcontinua:

Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austeropíncaro serrano. De lá verei uma longínqua, purificada BeloHorizontesemescutarorumordosnegóciosabafandoalitaniados fiéis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens deesperança nos homens pacificados – os doces mineiros queteimamemexistirnocaosenotráfico.Emvãotentoaescalada.Cassetetes e revólveres me barram a subida que era alegriadominicaldeminhagente.Proibidoescalar.

Proibidosentiroardeliberdadedestescimos,proibidoviveraselvagemintimidadedestaspedrasquesevãodesfazendoemformadedinheiro.Estaserratemdono.Nãomaisanaturezaagoverna.Desfaz-se,comominério,umaantigaaliança,umritodacidade.Desisteoulevabala.Encurraladostodos,aSerradoCurral,osmoradorescáembaixo.Jeremias me avisa: “Foi assolada toda a serra; de improvisoderrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi osmontes, e eis que tremiam.E todosos outeiros estremeciam.Olheiterra,eeisqueestavavazia,semnadanadanada”.Sossegaminha saudade.Nãome cicies outra vezo impróprioconvite.Nãoqueromais,nãoquerover-te,meuTristeHorizonteedestroçadoamor.(ANDRADE,1978,p.21-22)

A crítica do poema também é direcionada àmineração daSerradoCurral.Hoje,esseelementodapaisagem, imponente,se reduzaumacasca.Avertentevoltadaparaacidadeestáintacta,comoumaforma de forjar a permanência da identidade da cidade e dos seusmoradoresparacomaSerradoCurral,masooutro lado temoutraface, é propriedade privada, é uma paisagem que nega a ideia datoponímiadacidade:BeloHorizonte.Opoetaatérevelaquenãomaispodeescalá-la,nãomaispodeobservareapreciaracidadelá de cima,poisamineraçãoeapropriedadeprivadaprevalecerameoexpulsaramdesseseulugar8.ASerradoCurralfoiescolhidacomoumadasfronteirasdacapital

mineira, desde o seu início, quando Belo Horizonte ainda era umprojetomodernonofimdoséculoXIX,umdesenhoqueantecedeuàocupaçãodoespaçoquehojeéacidade.Aserraéumabarreirafísica,umafronteiranatural.Aomesmotempo,seéfronteiraésocial,porque

8 Desde2012foiinstaladonaSerradoCurralumparquequeéadministradopelaFunda-çãodeParquesMunicipaisegerenciadopelaempresaConstrutoraBHForte.Tomba-dapelaLeiOrgânicadoMunicípioepeloInstitutodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional(IPHAN)em1960,essaserraé,segundoesseórgão,omarcogeográficomaisrepresentativodeBeloHorizonte.

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aescolhaporessafunçãonãofoidanatureza,daforma-relevo,foidasociedadequelhedeuumconteúdo.Nesseprocesso,aSerradoCurralassumeumadimensãosimbólicadaenacidade.Umaforma-relevoquenãoseencerrana sua forma física,poisengendradanumcontextosocioespacialqueadefinecomoumgeossímbolo,umelementodapaisagemsignificadosimbolicamente,ouseja,“[...]umaformadelinguagem,uminstrumentodecomunicaçãopartilhadoportodose,emdefinitivo,olugarondeseinscreveoconjuntodavisãocultural”(BONNEMAISON,2002,p.124).A cidade não se expandiu para além dessa fronteira –

indissociavelmente natural e social –, não a ultrapassou, maso significadourbanoaalcançou,apartirdamineraçãoe,dessemodo, da sua destruição em busca deminérios. Essa Serra doCurral casca, essa primeira aparência da paisagem do pontode vista de quem está na cidade, dissimula os processos demineraçãoqueadestruírampor trás.Umacontradição,pois “onomeédefiniçãoessencial,éparteconstituintedoobjetodequenomeia”(CAUQUELIN,2007,p.161).Entretanto,hoje,portrásdoBeloHorizontesimbólico,sóháumburacodeixadopelaatividademineradora,umvazio.Umvazioquetambémseprojetanopoetaenosbelo-horizontinos.AfotografiadeFernandoRabelo9(Figura1),feitaemfevereiro

de2014,éreveladora,poisinverteopontodevistafrequenteda

9 FernandoRabeloautorizouapublicaçãodafotografia.Eleébelo-horizontinoeviveusuainfâncianoChileenaFrançaduranteoexíliodopai.Aindaadolescente,iniciousuacarreirafazendoflagrantesdocotidianodeParis,ondecursoufoto-grafia.Comaanistiapolítica,FernandoretornouaoBrasil.Trabalhouparaosprin-cipaisjornaisdopaís,comoFolhadeSãoPaulo,OGlobo,JornaldoBrasiledepoiscomoEditordeFotografia.Éautordo livroTributoàLagoa,umacoletâneadeimagenssobreaLagoaRodrigodeFreitas,noRiodeJaneiro.Possui trabalhosqueretratamoutrasartes,comoamúsica,erealizouaexposição“FoconaMPB”.FernandovivenoRiodeJaneirodesde1990etemproduzido,atualmente,umasériedefotografiasdeBeloHorizonte.

paisagem de Belo Horizonte e descortina a Mina deÁguas Claras,situadaatrásdaSerradoCurral.Emumprimeiromomento,porestaremprimeiroplanonaimagem,

a mina se apresenta aos olhos do espectador da fotografia. Umacrateramarcanteeexpressiva,comumlagotípicodeantigosespaçosdemineração.Umapartedaencostareveladesmoronamentodosolo.A cidade, com todas as suas construções, com suas verticalidadesdestacadas,estánoplanodefundoda imagem,eosolhostambéma tateiam,mesmoqueposteriormente.O conjuntodapaisagem seforma.Oespantoéimediatoparaumbelo-horizontinoouparaquemconheceacidadeeestádesacostumadoavê-ladessepontodevista.Talfotografiatrazumatentativademultiplicarospontosdevista,

como defendiaHumboldt, em busca da compreensão da paisagem(CLAVAL,2007)etambémcomointuitodeaprofundarainterpretação

Figura 1–MinadeÁguasClaras.FronteiramunicipalentreBeloHorizonteeNovaLima.Fonte:Rabelo(2014).

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dosarranjosespaciaisaosquaisasformasestãoinseridas.Afotografianão revela,assim,apenasa forma,ovisível,aaparência.A imageméquestionadoraenosremeteaações,asujeitos,aempresas,aumadinâmica socioespacial que constrói e transformapaisagens.Assim,a cidade não émenos importante na composição da fotografia porestarnoplanodefundo,poisasuapresençaexpressaastensõesentrecidadeemina,entreBeloHorizonteesuafronteira-horizonte-casca eéessarelaçãoinvertidaporumpontodevistaqueoautor-fotógrafoFernandoRabeloconfiguraepõeacento10.Outrasquestõesqueestãoalémdovisíveltambémvêmàtona,como

arelaçãohistóricadoestadodeMinasGeraiscomamineração,queestánatoponímiadopróprioestado.Amineraçãorasgaapaisagemmineirae escavaaalmadomineiro,espaçoesujeitoatravessadosporumaatividadeeconômica,tambémpercebidapeloautordospoemasemsuacidadenatal,Itabira,cujapaisagemfoibrutalmentemodificada11.NaimagemestátambémotristehorizontedeDrummond.Aminaeseusdesmoronamentosseagigantamdiantedosnossos

olhosenospermitemperceberagrandezadesseproblemaambiental,muitasvezes,escamoteado,passandodespercebidonosautomatismoscotidianos.MasDrummond jáodenunciava.OquesentiriaeoquediriaopoetadiantedessaimagemdeFernandoRabelo?A escrita dos poemas é uma reação da memória do poeta, que

buscafixarosmomentoseosespaçosvividosporele.Amemóriatraz

10Todafotografiaéprodutodeumaintencionalidadedofotógrafo.Oconceitodeinten-cionalidadefoiproduzidonoâmbitodafenomenologiaporHusserl(2000).Eleérea-propriadoporMiltonSantos(2002)etambémpodeserexploradaparapensarmosaspráticasartísticascomoaLiteraturaeaFotografia.

11OpoemamaisconsagradodeDrummond(2002,p.68)sobreItabirachama-se“Confi-dênciadoItabirano”:“AlgunsanosviviemItabira/PrincipalmentenasciemItabira./Porissosoutriste,orgulhoso:deferro./Noventaporcentodeferronascalçadas,/Oitentaporcentodeferronasalmas[...]/Tiveouro,tivegado,tivefazendas/Hojesoufuncio-náriopúblico/Itabiraéapenasumafotografianaparede./Mascomodói!”.

umaespéciedefantasmadotempoedoespaço.Drummondclamapelaspermanênciasecomonãoépossívelalcançá-las,eleasregistrapoeticamente. A forma de permanência encontrada por ele é arepresentaçãodoslugares da memóriaatravésdospoemas,enquantoFernando Rabelo eterniza aquilo que é negado por Drummond, ocontrapontoaopoemanaimagemfotográfica.Essasmudanças,quesetransformamemperdasparaDrummond,

sãoo ladocrueldacidadeparaeleeépor issoqueeleoptaporumtomdramático.Assim,“[...]oprogressocomasuaforçademolidoraéquepossibilitaqueamemóriaaflore”(LIMA,2000,p.184).Énessecontextoqueosignificadoeaspolíticasdepatrimônio,porexemplo,foramconstruídos.Nospoemas,oautoracabaporinterpretaracidadeesuastransformações,aorevelarosseussentimentosinterligadosàsuamemóriaqueafloramdevidoaessasmudançaseexpressaoqueparaele,emBeloHorizonte, seriapatrimônio,mesmoquenãosejaalvodaspolíticaspatrimoniaisdeproteçãodapaisagem.Trata-sedeumlamentoqueaproximaDrummonddeoutropoetadamodernidade,CharlesBaudelaire,quemanifestaumpesar,poisavelhaParisnãoexistiamais:“asformasdeumacidademudammaisdepressa,lamentavelmente,queocoraçãodeummortal”(BAUDELAIRE,1976,p.85).Aefemeridade,atransitoriedadeeabuscapelasegurançasão

característicasdamodernidade,dohomemmodernoedascidades,

queéproduzidacomoo espaçodotempomoderno.Apaisagemdas

cidadesmaterializa asmarcas dessas características: elas carregam

o passado, elas representam o presente e são os alicerces para o

futuro.O lugar tambémé feitodoencontrodopassadoedo futuro

no presente e é esse encontro que os poemas de Drummond aqui

exploradosexpressam.O conceito de rugosidade elaborado por Milton Santos (1986;

2002)ajuda-nosarefletirsobreesseencontrodetemposnoespaço

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e sobre as memórias. “Chamemos de rugosidade o que fica dopassado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta doprocessodesupressão,acumulação,superposiçãocomqueascoisassesubstituemeacumulam-seemtodososlugares”(SANTOS,2002,p.140).Arugosidaderepresentaasuperposiçãoeaconvergênciadetemporalidades na paisagem e a metamorfose histórica de formase de conteúdos sociais. Essas temporalidades inscritas nos lugaresparticiparam e ainda participam do cotidiano, ao mesmo tempoem que as ações cotidianas erguem e destroem os objetos quecompõemapaisagem.Asrugosidadesexpressamoscontextossociaispreexistentes,numaimagemdepalimpsesto(MELO,2006).Historicamente, a produção e a transformação de paisagens não

significam um simples depósito de objetos, um em cima do outro.Háosobjetosquepermanecem,osquesãomodificados,osquesãodestruídos, há ruínas.Todos convivem num determinadomomentodapaisagem.Cadarugosidadeexpressaumaforçaidentitáriaqueserefereàidentidadedolugaredossujeitosmaterializadosnapaisagem.Numlugar,superfíciesantigaserecentessetocamemumemaranhadodefunçõessociais.

Ahistóriaéhistóriasobrehistória,escritasobreescrita,espaçosobre espaço. O espaço pode ser interpretado, portanto,como uma superposição de grafias, de natureza social, feitade superfícies complexas, já que não se consegue apagarcompletamente as grafias anteriores (HISSA; MELO, 2008, p.297).

No convívio contemporâneo, funções e formas passadas – asrugosidades – misturam-se aos objetos e às funções produzidosno cotidiano presente, influenciando a produção do espaço atual.“O processo social está sempre deixando heranças que acabamconstituindoumacondiçãoparaasnovasetapas”(SANTOS,2002,p.

140).Ditodeoutraforma,“otrabalhojáfeitoseimpõesobreotrabalhoa fazer” (SANTOS,2002,p.141).Nessesentido,o lugar tambémsetransforma, quer na sua aparência física expressa pela paisagem,querportodososmovimentossociaisinscritosnessaespacialidadeeexperimentadoscotidianamente.Olugarnuncaésempreomesmo,mesmoquandoasuapaisagem

não se modifica com intensidade e rapidez. “Sobre o caráter doslugares,pode-sedizerquesãoespaçosafetivamentevivenciadosoucompartilhadosnumtempoespecífico”(MELO,2006,p.15).OtempoespecíficoqueospoemasserefereméodamocidadedeDrummond.Entretanto, a Belo Horizonte do poeta não volta mais, nem suapaisagem,nemtodasasfunçõesatribuídasaelanaquelemomento,nem os cotidianos e, assim, nem os lugares constituídos naqueleperíodo,talcomoosqueDrummondregistraemseuspoemas.Aomesmotempo,nemmesmoo sujeito semantém imobilizado

em suas subjetividades. Mesmo que o Cinema Odeon não tivessesidofechado,mesmoseo fim de outras coisas tratadaspelopoetaem“TristeHorizonte”nãotivesseacontecidonosespaçosdacidade,DrummondnãoconseguiriareviverosmomentosquepassouemBeloHorizonte,poiscadavezqueexperimentamosumavivêncianoespaçoelase realizadeumamaneiradiferente.Osujeito tambémjánãoémaisomesmo,comooadultonãoémaisacriança,semdeixardesê-la.Acriançaeoadultosubsistem(LEFEBVRE,1983).Amocidadedopoetaestánopoetaadulto,assimcomoaBeloHorizonteprovincianaestánametrópole,masnemosujeito,nemacidadesãoosmesmos,tambémporquetodonovoencontroentreossujeitoseoespaçoeentreosprópriossujeitosérepletodetransformaçõesedepermanências.Assim,sempreháonovoquesubsistecomoantigoequeosupera.Para Merleau-Ponty, as recordações podem ser constituídas e

reconstruídas o tempo todo. “Antes de qualquer contribuição da

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memória, aquilo que é visto deve presentemente organizar-se demodo a oferecer um quadro em que eu possa reconhecer minhasexperiênciasanteriores”(MERLEAU-PONTY,2006,p.44).Opassadose renovanoatopresentedeperceber,quandoa sensaçãoanteriorpodeserrepensada,reconstituída,jáqueestáemumanovasituação.Amemóriaéresgatadapelopresente:“[...]foiprecisoqueaexperiênciapresenteprimeiramenteadquirisseformaesentidoparafazervoltarjustamente esta recordação e não outras” (MERLEAU-PONTY,2006, p. 45). Merleau-Ponty valoriza então um tempo sincrônicona interpretação da memória e o passado só tem sentido quandointerpretadoàluzdacontemporaneidade.Como já discutido, o lugar também se transforma, quer na

sua aparência física expressa pela paisagem, quer por todos osmovimentos sociais inscritos nessa espacialidade e experimentadoscotidianamente,querpelasprópriastransformaçõesdossujeitosqueovivenciam.“Cadanovatotalizaçãocrianovosindivíduosedáàsvelhascoisasumnovoconteúdo”(SANTOS,2002,p.120).Novossignificadossãoatribuídos,cotidianamente,aoslugares,àssuaspaisagenseaossujeitos,emumaunidadedialética.

Considerações finais

Nos poemas “O fim das coisas” e “Triste Horizonte” o espaçoé um componente essencial, assim como suas transformações,seu movimento, suas contradições. Drummond, com sua práticaculturalcrítica,elaboraumconhecimentoespacialdacidadedeBeloHorizonte,deseusfragmentosespaciaisque,aomesmotempo,sãoumatotalidade.BeloHorizonteémundo,comoopróprioDrummondgostadedenominar.Umacidade-mundovivenciadaporumsujeito-mundo: um lugar.Tambémnos ensinaMiltonSantos (2002,p. 314)

a esse respeito quando afirma que “cada lugar é, à suamaneira, omundo”.Muitos lugaresdamemóriadopoetaaindaestãovivosnacidade

de Belo Horizonte de maneira ressignificada. A dinâmica espacialé incessante e, para Drummond, esse movimento é doloroso. Nosreferidospoemas,Drummondrevelaaangústiaqueastransformaçõeshistórico-espaciais impõem aos sujeitos, que as vivenciamcotidianamente nos lugares. No seu caso, a Belo Horizonte amadalhe escapa e amemória revivida no presente desenvolve nele uma“[...] consciência agudae reflexivado limite” (WISNIK, 2005, p. 23).Um limiteenquantosujeito,plenodeemoções, frenteàsmudançasespaciais,queofazpreferirtrancafiaracidadeàsuamemória.É importante registrar que o poeta não esteve mais em Belo

Horizonte após a escrita do poema “Triste Horizonte”, em 1976.Ele preferiu não vivenciar a Belo Horizonte metropolitana, que oangustiavaequejátraziasuamemóriaàtonasódepensarnela.ComoafirmaDardel(2011,p.34),“Acor,omodelado,osodoresdosolo,oarranjovegetalsemisturamcomaslembranças,comtodososestadosafetivos,comasideias”.VivenciaraBeloHorizontemetrópoleseriaumsofrimentoaindamaisatrozparaopoeta.“NapoesiadeDrummond[...]aatençãodosujeitoécontinuamenteinterpeladaporaquiloquelheescapa,que lheextrapolaos limites,queempenhaotodoepõeosujeitoemcausa” (WISNIK,2005,p.23).Osujeito-poetaseexpõeemcausa,mastambémcolocaossujeitos-leitoresemcausa.Háumaintersubjetividadeentreautoreleitorqueseencontrampormeiodotextopoético.Comoelemesmocolocaparatodosnósem“Ofimdascoisas”:

Nãoamadureciaindabastanteparaaceitaramortedascoisasqueminhascoisassão,sendodeoutrem,

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eatéaplaudi-la,quandoforocaso.(Amadurecereiumdia?)

(ANDRADE,2013,p,109)

Amplia-seessaemblemáticaperguntaparatodosossujeitosdiantedasperdasdosseuslugares:Amadureceremosumdia?

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SubmetidoemJunhode2014.RevisadoemOutubrode2014.AceitoemNovembrode2014.

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