matéria carlos drummond de andrade

10
cultural Em 1890, o caixeiro-viajante português José Francisco Monteiro fundou Humaitá (AM), cuja história se destacou entre as demais cidades da Amazônia, em especial pela construção de uma biblioteca no conjunto de prédios reservados à prefeitura, à câmara, à igreja e à delegacia de polícia. O acesso à leitura ajudou a formar gerações seguidas de profissionais liberais, políticos e intelectuais. 14-23 uma biblioteca na floresta Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Fotografia | Música | Artes plásticas Oriente Médio além da visão ocidental 24-31 Drummond, o poeta sempre necessário 62-69 Tite arma time com escritores 50-53 Ano I n.º 2 agosto/2012 R$ 9,90 www.valercultural.com.br

Upload: editora-valer

Post on 22-Mar-2016

262 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Matéria da edição numero 2 da revista Valer Cultural

TRANSCRIPT

Page 1: Matéria Carlos Drummond de Andrade

cultural

Em 1890, o caixeiro-viajante português José Francisco Monteiro fundou Humaitá (AM), cuja história se destacou entre as demais cidades da Amazônia, em especial pela construção de uma biblioteca no conjunto de prédios reservados à prefeitura,

à câmara, à igreja e à delegacia de polícia. O acesso à leitura ajudou a formar gerações seguidas de profissionais liberais, políticos e intelectuais. 14-23

uma biblioteca na floresta

Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Fotografia | Música | Artes plásticas

Oriente Médio alémda visão ocidental24-31

Drummond, o poeta sempre necessário62-69

Tite arma time com escritores50-53

Ano I n.º 2

agosto/2012

R$ 9,90

www.valercultural.com.br

Page 2: Matéria Carlos Drummond de Andrade

e o sentimento do

documento

Drummond de Andrade, um

dos poetas mais conhecidos do

Brasil, morto em 1987, recebe

homenagens em todo o país

pela passagem dos seus 110

anos de nascimento. Nada mais

justo, porque sua poesia ecoa

ensinamentos, às vezes de forma

dura como a realidade, sobre os

enigmas da condição humana.

62 valercultural

Page 3: Matéria Carlos Drummond de Andrade

Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de

Andrade nasceu em 1902. Fez prati-

camente a travessia do século que se

encerra, morrendo, em 1987, no Rio de

Janeiro. Passou a infância na cidade natal, partindo mais

tarde para Belo Horizonte, onde se iniciou no jornalis-

mo, ao mesmo tempo em que participava da vida in-

telectual, ligando-se ao grupo modernista e publicando

seus primeiros poemas.

Formado em Farmácia, o escritor dedicou-se à lite-

ratura. Durante anos colaborou em diversos jornais de

Minas e do Rio de Janeiro. Sem poder sobreviver de sua

arte, ingressou no funcionalismo público, atividade em

que se aposentou. Sua estreia aconteceu em 1930, com

o livro Alguma poesia.

Foi um dos fundadores, em 1925, do principal órgão

modernista de Belo Horizonte, A Revista. Em 1928, ao

publicar, na Revista de Antropofagia, seu célebre poe-

mundoma No meio do caminho provocou escândalo e acirrada

discussão. O texto é expressivo do caráter irreverente

que caracterizou a fase heroica do modernismo. Mais

do que uma provocação, o poema é ilustrativo de uma

das temáticas recorrentes na obra de Drummond – os

obstáculos da vida. No seu caminhar, o ser humano en-

contra muitas pedras:

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

e o sentimento do

Tenório Telles | escritor

63valercultural

Page 4: Matéria Carlos Drummond de Andrade

2

Ao refletirmos sobre os descaminhos das civilizações contem-

porâneas, não há como ignorar essa obsessão pelo imediato, pelo

fugaz em que tudo parece e nada é. Essa percepção da incons-

tância da vida, do desencontro, do agônico e do próprio absurdo

da existência não escaparam à sensibilidade poética de Carlos

Drummond de Andrade, como se depreende da leitura do Soneto

da perdida esperança:

Perdi o bonde e a esperança.

Volto pálido para casa.

A rua é inútil e nenhum auto

passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta

em que os caminhos se fundem.

Todos eles conduzem ao

princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo

ou se é alguém que se diverte

por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.

Entretanto há muito tempo

nós gritamos: sim! ao eterno.

3

Sintonizado com os dramas, angústias e esperanças vividas

pelo homem contemporâneo, Drummond constrói uma poesia

articulada com seu tempo. Apesar de suas dúvidas e ceticismo,

do tom melancólico e contido de seus versos, é evidente em sua

obra o compromisso com a vida, com a condição do ser humano

no mundo. O poema “Mãos dadas” é expressivo da obstinação

do poeta diante da realidade, seu enfrentamento solitário do ab-

surdo, desesperança e solidão que corroem a alma do homem.

O texto é uma afirmação de seu inconformismo e generosidade:

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mão dadas.

(...)

64 valercultural

Page 5: Matéria Carlos Drummond de Andrade

Foto: Divulgação

65valercultural

Page 6: Matéria Carlos Drummond de Andrade

ções que marcaram a década de 20,

em particular a crise que se seguiu à

quebra da bolsa de valores de Nova

Iorque, em 1929, e que culminou

no fim da República Velha. Sua obra

teve como pano de fundo as movi-

mentações políticas que resultaram

na implantação do Estado Novo, a

Segunda Guerra Mundial, a Guerra

Fria. Nos anos de 1960, assistiu ao

triunfo da intolerância política com

o golpe militar de 1964.

Como não se passa impune-

mente pela vida, o poeta não ficou

indiferente a esses acontecimentos.

A indignação e a consciência da ne-

cessidade de resistir à banalização

da maldade e ao triunfo da barbárie

impulsionaram Drummond a um po-

sicionamento crítico diante da reali-

dade. O escritor aderiu à causa socia-

lista, colocando sua arte a serviço da

vida, da luta contra tudo que ultraje o

ser humano. O poema “Nosso tem-

po”, do livro A rosa do povo, publica-

do em 1945, é uma evidência do seu

comprometimento social:

O tempo é a minha matéria, o

[tempo presente, os homens

presentes, a vida presente.

A produção poética de Drum-

mond tem como fundamento o

humano, perpassada por intensa

densidade existencial e profundo

conteúdo filosófico. Soube traduzir

poeticamente as inquietações de

seu tempo, os dilemas de uma épo-

ca marcada pela intolerância, pelo

vazio, ameaçadora para a vida.

4

A poesia de Carlos Drummond

de Andrade está identificada com

o espírito modernista. O autor é o

mais destacado representante da

geração que surgiu nos anos 30, da

qual fazem parte Murilo Mendes,

Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e

Cecília Meireles.

Drummond testemunhou os

grandes acontecimentos que mar-

caram o século XX. Viveu as agita-

Este é tempo de partido,

tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,

viajamos e nos colorimos.

A hora pressentida

[esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo.

[Sapatos.

As leis não bastam. Os lírios não

[nascem

da lei. Meu nome é túmulo, e

[escreve-se

na pedra.

(...)

O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições,

[símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma

[floresta,

um verme.

Diferente dos autores do primei-

ro momento modernista, mais liga-

dos a uma postura irreverente e ex-

perimental, os poetas da segunda

geração, que se firmam na década

de 30, farão uma poesia de compo-

nente reflexivo. Suas obras refletem

uma profunda preocupação com o

sentido da existência humana, o

confronto do homem com a reali-

dade, expressivo de seu estar-no-

-mundo. Esse modo de perceber a

vida explica o conteúdo existencial

que perpassa a poesia dessa gera-

ção: Não, meu coração não é maior

que o mundo. / É muito menor. /

Nele não cabem nem as minhas

dores. / Por isso gosto tanto de me

contar.

66 valercultural

Page 7: Matéria Carlos Drummond de Andrade

5

A poesia de Carlos Drummond

é um testemunho vívido e humano

sobre a vida e sua época. A leitura

de suas obras deixa evidente sua

inquietude e irresignação diante da

realidade. Suas posições em face

dos problemas que marcaram seu

tempo.

Há escritores que não se lê

impunemente. Drummond é um

desses autores. Seus poemas são

prenhes de questões, nos fazem

pensar sobre o sentido de nossas

vidas. Dentro de uma perspectiva

didática, é possível determinar cer-

tas margens de sua produção poé-

tica. Os temas mais constantes em

sua obra.

O desajustamento do indivíduo é uma marca fundamental de

sua poesia. O poeta se sente um ser à margem, deslocado de seu

tempo, um gauche, alguém que está à esquerda, isolado, como

se depreende dos versos do “Poema de sete faces”:

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida.

(...)

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

(...)

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

O menino Carlos Drummond, em Itabira, e com a família em 1915

Foto

s: D

ivul

gaçã

o

67valercultural

Page 8: Matéria Carlos Drummond de Andrade

Esse sentimento de fragilidade e impotência diante

de seu próprio existir-no-mundo, perpassado por um

tom melancólico, é característico de seu discurso po-

ético. Em alguns poemas, como “Confidência do itabi-

rano”, é expresso de forma nostálgica, em que recom-

põe por meio da memória a infância, a família, o pai,

a cidade. O passado projeta-se, de forma dolorosa, no

presente:

Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida

[é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,

vem de Itabira, de suas noites brancas,

[sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.

(...)

Tive ouro, tive gado, tive fazenda.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

6

A poesia de Drummond afirma-se pela riqueza te-

mática. Sua obra é como um caleidoscópio em que o

rosto estilhaçado do tempo se reflete, a vida em seu

escoar contínuo. Captura no cotidiano a matéria com

que compõe as malhas de seu canto.

Nada escapou ao seu olhar gauche, nem mesmo

o fazer poético. É recorrente em seus textos a reflexão

sobre a poesia, a linguagem, a magia de transformar

o silêncio em canto, desnudando a face das palavras.

A metalinguagem é um traço marcante de sua arte. O

poema “Procura da poesia” é ilustrativo de sua alqui-

mia poética:

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

Há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

(...)

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

Tem mil faces secretas sob a face neutra

E te pergunta, sem interesse pela resposta,

Pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Percebe-se assim que o fazer poético não é o exercí-

cio da inocência, do transbordamento de desordenadas

emoções. A poesia é o espelho estilhaçado em que se

reflete o mundo, a vida. Ao contemplá-lo, o poeta captu-

ra os fios evanescentes com que tece as malhas de seu

canto. É um diálogo com o ser, com a alma fraturada dos

homens. Como dizia o filósofo Martin Heidegger, em seu

belo estudo sobre a poesia de Hölderlin: A linguagem

68 valercultural

Page 9: Matéria Carlos Drummond de Andrade

originária, porém, é a poesia na

sua qualidade de instituição do ser.

7

Drummond decifrou o enigma:

a vida é uma miragem, um fio par-

tido entre o silêncio e o abismo. Rio

que caminha para o vasto mar da

memória. É inevitável em seu fluir

corrosivo e nada escapa à voraci-

dade do tempo. Tudo sucumbe ao

destilar contínuo de suas águas. Re-

sistir é o que nos resta – dizer não à

vulgaridade, à morte da esperança,

ao poder e à mentira. Defender a

vida do lobo que a espreita avida-

mente. Ou como diz o poeta:

Alguns, achando bárbaro o

[espetáculo,

Prefeririam (os delicados)

[morrer.

Chegou um tempo em que não

[adianta morrer.

Chegou um tempo em que a

[vida é uma ordem.

A vida apenas sem

[mistificação.

Foto: Divulgação

69valercultural

Page 10: Matéria Carlos Drummond de Andrade