noções sobre o ser em tomás de aquino

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  • Ano 10 n. 1 jan./jun. 2010 - 111

    GORA FILOSFICA

    Noes sobre o ser em Toms de Aquino

    Prof. Dr. Nadir Antonio Pichler1

    ResumoSe para os filsofos pr-socrticos o ser unvoco, em Aristteles, polvoco, emToms de Aquino, ele anlogo, ou seja, expressa-se, manifesta-se, desvela-sepor meio da analogia, pela sua existncia, pelo actus essendi, pelo ato de existir.Assim, o ser, Deus, primeiro vivenciado antes de ser apreendido e compreen-dido pelo intelecto humano, sendo o fim ltimo do homem, propiciador debeatitude. Por meio de sua evidncia, pela caracterizao de Deus como serprimeiro e pelos seus atributos de essncia e existncia, procuraremos descre-ver, em linhas gerais, noes sobre o ser em Toms de Aquino.Palavras-chave: Ser, Deus, actus essendi, essncia e existncia.

    Notions concerning the being by Thomas Aquinas

    AbstractAs for the presocratic philosophers, being is univocal, by Aristotle it, i.e., thebeing, is plurivocal, by Thomas Aquinas it is analogous, so to say, it expressesitself it manifests itself, it unveils itself, through its actus essendi, i.e., throughits own act of being, through its act of existing. So, through, this way, theBeing, God, is, firstly, fully and deeply lived, self-lived before being apprehendedand comprehended by human intellect, being final aim for man, happiness,provider. Through His own evidence, through Gods characterization as the firstBeing and through his attributes concerning His own essence and existence, weshall try describing, in outline, notions regarding to the being by Thomas Aquinas.Key words: Being, God, Actus essendi, Essence, Existence.

    1 A evidncia do ser

    A preocupao primeira de Toms de Aquino, ao constituir suasntese filosfico-teolgica, investigar a verdade divina que semanifesta na verdade ontolgica, nos seres. Intrnseco s criaturas, emespecial ao homem, h um conselho mudo da natureza, isto , tudoest em equilbrio, ordem e harmonia, herana do modelocosmocntrico grego. Tudo reflete a grandeza, a medida, o silncio e asabedoria do ser2. Por isso, a filosofia do ser sustenta, une e harmonizatoda a estrutura do edifcio da sntese tomista.

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    CURSO DE FILOSOFIA

    O ser, na metafsica de Toms de Aquino, pressuposto detodo pensamento e objeto do conhecimento humano, o primeiro aser conhecido, porque abarca a totalidade do real. Por isso, o Aquinatetem como princpio a tese fundamental: O ser o que de mais ntimotem uma coisa e o que de mais profundo existe em todas as coisas3.Essa evidncia absoluta e transcendente, que o ser o primeiro co-nhecido e evidente por si mesmo, demonstra que no possvel negara verdade. Ela torna-se evidente e objetiva a inteligncia humana4.

    Mesmo acolhendo a herana do cdigo filosfico grego so-bre a concepo do ser, especificamente a aristotlica e a neoplatnica(com algumas restries a essa), Toms amplia essa viso, adaptan-do-a ao cdigo judaico-cristo.

    Assim, se, de um lado, o Telogo identifica e comea suareflexo, de acordo com a Escritura, dizendo que, no incio era o Ver-bo, de outro, o Filsofo, partindo da luz natural, afirma que o ser,anterior ao bem, o primeiro que toca a inteligncia humana (primo inintellectu cadit ens). Por isso, o ser logicamente anterior quilo quea alma intelectiva identifica e concebe em primeiro lugar. Ora, isto oser, porque uma coisa cognoscvel na medida em que atual, comodiz Aristteles. [...]. [Por isso, o ser] o primeiro inteligvel, assimcomo o som o primeiro audvel5.

    2 Deus o ser primeiro

    nesse sentido de ser primeiro que toda a sntese filosfica,a antropolgica e a teolgica esto ancoradas e estruturadas na buscapelos atributos da unidade do ser, ou seja, na busca teleolgica do serprimeiro e ltimo, criador e portador de sentido para todos os serescriados. Assim, Toms de Aquino identifica e aplica essa noo de serao ser subsistente, Deus. Afinal, Deus o princpio do ser, o princpiode tudo o que existe, porque Deus 6. Todos os seres refletem, peladoutrina da participao e da analogia, o ato puro do ser, principal-mente o homem, pela sua capacidade volitiva e cognoscitiva. Todavia,mesmo que o ser primeiro se manifeste nas criaturas, ele permanececomo princpio supremo e imutvel, totalmente diferente das mesmas,porque ele ato puro.

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    GORA FILOSFICAEntretanto, a ontologia do Aquinate no se resume a um con-

    junto de princpios e enunciaes verbais, lgicas e abstratas. Sua con-cepo de ser funda-se na compreenso ontolgica de actus essendi,isto , no ato de ser, no ato de existir, onde o ser ato de todos osatos, a perfeio de todas as perfeies7, o ato puro, a atividade pri-meira, ou seja, Deus. Portanto, como Deus Ato Puro de Ser, todaparticipao na perfeio da natureza divina ser, antes de mais nada,uma participao daquele ato supremo8.

    J o ente, ou seja, todo o ser criado exerce o ser, porque criatura do ser primeiro. Consequentemente, o ente ou coisa porta-dor de sentido do ser, porque carrega o ser intrnseco sua natureza.

    Mesmo que o ser se manifeste por meio das criaturas, carac-terizando-se como a metafsica do existir, ele no se apresenta,desoculta-se, manifesta-se em toda sua totalidade e plenitude9, por-que o ser, o ato de ser, ou seja, Deus, anterior a qualquer ente ouideia. Ele no apreendido e definido pelo raciocnio e pelo juzo nasua essncia total e absoluta, permanecendo, assim, como um mistriopara o homem10. Por isso, seu ato de ser infinito. Da a necessidadede falar do ser primeiro, por meio de atributos. Afinal, o ser se expres-sa, se desvela, no de forma unvoca nem equvoca, mas de formaanloga.

    Em consequncia disso, todos os seres que no se identifi-cam com a essncia do ser subsistente tm propriedades finitas. So-mente Deus possui seu prprio ato de ser em plenitude e de formaabsoluta. Somente ele possui a prpria essncia (quididade) e a pr-pria existncia (sem movimento) eternamente perenes. Afinal, em Deus,essncia e existncia se identificam11. As criaturas, ao contrrio, sem-pre esto em busca, em potncia para a atualizao, para a perfeiodo seu ser. O actus essendi delas sempre limitado, determinado erestringido pela sua essncia12.

    Essa forma de constituir o ser foi e objeto de duras crticas,principalmente pelos filsofos da contemporaneidade. Porm,

    a afirmao de que o ser o primeiro conhecido sig-nifica que a evidncia primeira que as coisas exis-tem. Este realismo natural do pensamento geral-

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    mente tratado com desdm, sob o pretexto de que ingnuo, e at vulgar, na opinio de alguns. Vulgari-dade por vulgaridade, Kierkegaard ter sempre ra-zo contra os professores que ensinam um universoe recebem os seus honorrios num outro. [...]. S.Toms nunca renegar esta primeira viso realistaque se tem das coisas. No procurar sequer provaresse realismo que vivido e exercido antes de serreconhecido e proclamado13.

    3 Essncia e existncia

    Para Toms de Aquino, pela existncia que se chega es-sncia de todas as coisas e as diversas modalidades da existncia,porque a existncia, o ato de existir, mais perfeito que a essncia. Eo ser inseparvel da existncia atual, porque aquilo que real no nem a essncia nem a existncia, mas o ser. Assim, essncia e existn-cia no so duas coisas justapostas, mas dois princpios do mesmoser. Contudo, h uma prioridade ontolgica da existncia sobre a es-sncia. Nesse sentido, na terminologia dos termos em Toms de Aquino,o substantivo existncia corresponde sempre ao infinitivo esse14.

    Porm somente Deus seu prprio ser, porque o ser pri-meiro. Alm disso, tudo o que tem ser, tem existncia atual. J emDeus, obviamente, no h uma existncia atual composta, somenteuma existncia atual pura.

    Convm destacar que a noo de ser desenvolvida por To-ms de Aquino no tem o ponto de partida, o princpio, num ser ideal,eterno, de acordo com o neoplatonismo. O ser de Toms no algojustaposto, como uma entidade perdida que a alma intelectiva precisarecordar. Seguindo Aristteles, afirma-se que o ser est formalmenteintrnseco prpria coisa, sendo sua atualidade. Por isso, necessaria-mente, o ser est para a essncia, da qual difere, assim como o atoest para a potncia15. O ser se manifesta na e por meio da coisa, masno de forma total como vimos.

    Alm disso, difcil localizar, especificamente nas obras filo-sficas e teolgicas de Toms de Aquino, uma justificativa analtica esistemtica da noo de ser, mesmo considerando o opsculo O Ente

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    GORA FILOSFICAe a Essncia. Diante disso e seguindo Aristteles, parece que o Aquinatetem um posicionamento firme: como o ser o primeiro conhecido,sendo a noo absolutamente primeira, goza da indemonstrabilidadeprpria dos princpios16. E sempre que necessrio, recorre noode ser para justificar metafisicamente os problemas fundamentais desua sntese.

    Se, em Aristteles, o primeiro motor imvel o ato puro dopensar, em Toms, Deus o ato puro do ser. Sobre essa noo pri-meira e fundante do ser, estrutura-se todo o pensamento tomista. Afi-nal, se Deus o ser subsistente, ele existe. E a sua existncia condi-o necessria para edificar toda a sua sntese.

    Consideraes finais

    Toda a metafsica de Toms de Aquino possui uma estruturade fundo, isto , a afirmao do actus essendi. o reconhecimento doser como a expresso primeira do movimento de toda a realidade,seja ela das coisas materiais e das criaturas seja ela das coisas imateriaise do esprito, sem ignorar a sua formulao pelo conceito humano,pela verdade lgica. Diferente da metafsica moderna, que, em linhasgerais, reduz o ser ao pensar, somente ao enunciado lgico, spotencialidades da inteligncia humana, a ontologia tomista se assentaintrinsecamente na presena do ser. Assim, se o ser o primeiro a serconhecido, Toms busca estabelecer uma unidade entre o ser e o pen-sar: o ser se afirma pela sua presena antes de ser afirmado pelointelecto17. Logo, se Deus , existe, ele propiciador de beatitude. Ea beatitude o fim ltimo do homem.

    De acordo com esse itinerrio, Toms de Aquino afirma emsua filosofia moral que no possvel, nesta vida, alcanar a beatitudeperfeita em plenitude pela contemplao de Deus. Por mais que o s-bio se esforce, por meio da virtude terica da sabedoria, somente possvel conhecer os efeitos da essncia divina, caracterizada pelabeatitude imperfeita. Assim, essa possibilidade atualizada pela ativi-dade da vida contemplativa, ficando a beatitude perfeita para a outravida, na contemplao da glria celeste.

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    Cabe ressaltar ainda que, o ser ou a essncia divina na snte-se tomista, somente conhecida pela alma intelectiva como distinoda razo, ou seja, pelas representaes e conceitos engendrados deforma anloga, proporcional quilo que conhecido das coisas cria-das. O conhecimento da essncia de Deus s evidente em si mesmo,mas no para o homem, nesta vida. Entretanto, os conhecimentosconstrudos pela tradies filosfica e teolgica das substnciasimateriais, principalmente de Deus, produto da inteligncia, por meioda cincia divina ou metafsica, no se caracterizam como meras fic-es. Tudo isso o resultado do esforo especulativo com o objetivode conhecer o princpio primeiro, que subsiste por si, que eterno, doqual tudo se origina e se estrutura teleologicamente.

    Notas

    1 Doutor em filosofia e professor da Universidade de Passo Fundo - RS.2 SERTILLANGES, Antonin Gilbert. As grandes teses da filosofia tomista.

    Trad. de I. G. Ferreira da Silva. Braga, Portugal: Crus, 1951, p. 12-17.3 AQUINO, Toms de. Suma teolgica. Trad. de Alexandre Corra. Reedio

    revisada por Rovlio Costa e Luis Alberto De Boni. Porto Alegre: SulinaEditora, 1980, I, q. 8, 1, c., p. 59: Esse autem est illud quod est magis intimumcuilibet, et quod profundius omnibus inest. Doravante essa obra ser abre-viada por S. Th.

    4 S.Th I, q. 2, 1, ad 3, p. 40: Dicendum quod veritatem esse, in communi, estper se notum.

    5 S.Th I, q. 5, 2, c., p. 40: Illud per vocem, illud ergo est prius secundumrationem, quod prius cadit in conceptione intellectus. Primo autem inconceptione intellectus cadit ens, quia secundum hoc unumquodquecognoscibile est, inquantum est actu, ut dicitur in IX Metaphys. (lect. X).Unde ens est proprium obiectum intellectus, et sic est primum intelligibile,sicut sonus est primum audibile. Em outra obra, no mesmo sentido, Tomsexpressa: Ens autem et essentia sunt qua primo intellectu concipiuntur, utdicit Auicenna in principio sua Methaphisica (AQUINO, Toms. O ente ea essncia. ed. bilnge. Trad. de Carlos Arthur do Nascimento. Petrpolis:Vozes, 1995, Prlogo, 1, p. 13). Doravante essa obra ser abrevia por EE.

    6 AQUINO, Toms. Suma contra os gentios. Trad. de Odilo Moura. Rev. deLuis A. De Boni. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, I, c. 10-13, p. 33-44. Doravanteessa obra ser abrevia por SCG.; GILSON, tienne. A existncia na filosofiade S. Toms. Trad. de Geraldo Pinheiro Machado; Gilda Mellilo; Yolanda

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    GORA FILOSFICABalco. So Paulo: Duas Cidades, 1962, p. 23.

    7 De Pot., 7, 2, ad 9 apud RASSAN, Joseph. Toms de Aquino. Trad. de IsabelBraga. Lisboa: Edies 70, 1980, p. 35.

    8 GILSON, 1962, p. 41.9 GILSON, Etienne. Elementos de filosofa cristiana. Trad. de Amalio Garca-

    Arias. Madrid: RIALP, 1981, p. 64.10 LAUAND, Luiz Jean. Toms de Aquino, hoje. So Paulo: GRD; Curitiba:

    Champagnat, 1993, p. 31-32.11 SCG I, 22, 1, p. 59: Deus igitur non habet essentiam quae non sit suum

    esse.12 GILSON, 1962, p. 39.13 RASSAN, 1980, p. 32.14

    Ibid., p. 35.15 S.Th I, 3, 4, c., p. 26: Quia esse est actualitas omnis formae vel naturae [...].

    Oportet igitur quod ipsum esse comparetur ad essentiam quae est aliud abipso, sicut actus ad potentiam.

    16 GILSON, 1962, p. 24.17 RASSAN, 1980, p. 31.

    Referncias

    AQUINO, Toms de. Suma teolgica. Trad. de Alexandre Corra.Reedio revista por Rovlio Costa; Luis A. De Boni. Porto Alegre:Sulina Editora, 1980. 10 v.

    ______. Suma contra os gentios. Trad. de Odilo Moura. Rev. deLuis Alberto De Boni. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, 2 v.

    ______. O ente e a essncia. ed. bilnge. Trad. de Carlos Arthurdo Nascimento. Petrpolis: Vozes, 1995.

    GILSON, Etienne. Elementos de filosofa cristiana. Trad. deAmalio Garca-Arias. Madrid: RIALP, 1981.

    ______. A existncia na filosofia de S. Toms. Trad. de GeraldoPinheiro Machado ; Gilda Mellilo ; Yolanda Balco. So Paulo: DuasCidades, 1962.

    LAUAND, Luiz Jean. Toms de Aquino, hoje. So Paulo: GRD;Curitiba: Champagnat, 1993.

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    CURSO DE FILOSOFIA

    RASSAN, Joseph. Toms de Aquino. Trad. de Isabel Braga. Lisboa:Edies 70, 1980.

    SERTILLANGES, Antonin Gilbert. As grandes teses da filosofiatomista. Trad. de I. G. Ferreira da Silva. Braga: Crus, 1951.

    Endereo para contato:e-mail: platao321@yahoo.com.br

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