musica na liturgia
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1. INTRODUO
Sempre que se fala na posio dos dois principais reformadores protestantes1
quanto msica no culto de suas igrejas nascentes, destacam-se suas inegveis diferenas.
Lutero pensava na msica litrgica como uma espcie de mensagem em sons. Esperava que
ela fosse veculo para textos que deveriam ser apropriados a cada momento do culto e da vida
da igreja durante o ano cristo. Ele queria, alm disso, v-la eficiente veculo para ensinar
verdades teolgicas e fixar os prprios ideais da Reforma nas mentes dos fiis. Para isso
deveria ser cantada por toda a comunidade, no s pelo clero e os textos seriam, naturalmente,
sempre na lngua local e no mais em latim, como estabelecera a tradio romana. Calvino, de
sua parte, defendia que s a verdadeira palavra de Deus poderia ser cantada durante o culto e
no palavras humanas. Coerente com o Princpio Regulador2, segundo o qual s podemos
adorar a Deus se o fizermos da forma como ele nos ordenou na sua Palavra, Calvino propunha
que na liturgia s se cantassem palavras da Sagrada Escritura, especialmente os salmos, sem
acompanhamento instrumental, caracterizando uma cerimnia de maior austeridade e
simplicidade do que nas liturgias de outras confisses protestantes.
Lutero enfatizava a importncia do anncio da Palavra de Deus pela prdica, mas
tambm entendia que boa msica poderia fixar as verdades teolgicas anunciadas. nesse
1Eleger principais reformadores ser quase sempre postura consideravelmente arbitrria, do interesse de quemestuda o fenmeno. Foi assim tambm aqui.2A tradio Reformada calvinista enfatizou o chamado Princpio Regulador, tipicamente aplicado adoraopblica: o culto cristo deve se reger apenas pelo que clara e explicitamente revelado no Novo Testamento. Oprincpio regulador estabelece uma das distines entre os calvinistas e outros protestantes. Diferentes dosLuteranos e Anglicanos, que crem que as igrejas podem fazer o que a palavra de Deus permite e neste casotudo o que no proibido permitido os Reformados calvinistas ensinam, como se disse, que as igrejas podemfazer somente o que a Escritura ordena; da o prprio nome Reformado: reformado segundo a Palavra de Deus.O Princpio Regulador se aplica no somente adorao, mas a todos os aspectos da vida e da igreja: A menosque a igreja possa encontrar uma clara garantia das Escrituras para um ensino ou prtica particular, ela no podefalar ou agir. Neste sentido amplo, o Princpio Regulador apenas uma variao do pressuposto principal dahermenutica reformada: sola Scriptura (e tota Scriptura). (Cf. ainda sobre o Princpio Regulador, nota derodap 56).
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contexto que se deve entender sua concesso (LUTHER, 1951, n. 7034): Depois (ao lado) da
teologia, msica o lugar mais prximo e a mais alta honra.3 Para ele, teologia e msica
relacionavam-se estreitamente, pois msica veculo apropriado para anunciar a Palavra de
Deus, fazendo-o de forma especial, fcil de memorizar, por meio de sons organizados em
ritmos, melodias e harmonias.
Calvino, quando defendeu que a msica do culto devia estar sempre associada a
palavras da Sagrada Escritura, entendia que nada seria mais digno de ser cantado do que a
Palavra que Deus legara aos homens, j que, segundo ele mesmo esclareceu, os salmos nos
incitam a louvar a Deus, orar a Ele, meditar nas Suas obras a fim de que O amemos, temamos,
honremos e O glorifiquemos, o que esclareceu no prefcio do Saltrio Genebrino (apud
OLD, 1996, p. 51-52), para concluir em seguida: O que Santo Agostinho diz totalmente
verdade; a pessoa no pode cantar nada mais digno de Deus do que aquilo que recebemos
dele.
Lutero (LUTHER, 1944, p. 372) entendia que a prpria msica era donum
divinum et excellentissimum, uma ddiva divina e maravilhosa (sobremodo excelente). Era
presente de Deus dado exclusivamente aos homens. No caso da msica vocal, segundo Lutero
(LUTHER, 1951, n. 2542), as notas musicais intensificam a fora da palavra. Mais ainda, na
tradio musical reformada luterana, a msica revela o texto, representa as palavras, descreve
as idias do texto. Assim, msica litrgica deve ser a explicao do texto (explicatio textus).
Em carta a George Espalatino4, em 1523, Lutero afirmou que a msica deve ser uma espcie
de exegese, uma explanao interpretativa do texto, um "sermo em sons" (prdicatio
3Nach der Theologia der Musica den nhesten Locum und hchste Ehre.(Luther, 1951, n.7034).4Georg Burkhardt (1484-1545), chamado George Espalatino (Georg Spalatin), nasceu em Spalt, cidade prximaa Nrenberg da o epteto Spalatin. Doutorou-se em Artes filosofia na ento nova Universidade deWittenberg, onde havia ingressado em 1502. Logo passou a servir Frederico, o sbio, prncipe eleitor da Saxnia,tornando-se educador do jovem prncipe Johann Friedrich. Pouco depois foi nomeado secretrio privado doprprio prncipe, e a seguir, seu conselheiro. Defendeu a causa da Reforma na corte, mesmo que o prncipeFrederico ainda permanecesse fiel doutrina catlica, influenciando na atitude benevolente do prncipe emrelao ao prprio Lutero, com quem mantinha relaes estreitas. Seu conselho era muito apreciado tambm naescolha dos professores da Universidade, o que contribuiu para que esta alcanasse sua mxima glria: durante operodo de sua superviso o nmero de matrculas excedia o de todas as demais escolas superiores da Alemanha.
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sonora). Lutero enfatizou o cntico congregacional, mas deixou claro que este s atingir seu
objetivo se a Palavra de Deus puder ser anunciada, compreendida e memorizada pelo povo
por seu intermdio (LUTHER, 1969, p. 220).
Calvino, como Lutero, desde cedo se preocupou com a msica na igreja. Logo em
sua primeira estada em Genebra propusera o cntico congregacional: os Salmos seriam
aprendidos formando-se um coro de crianas que, depois de bem ensaiado, ensinaria o
restante da congregao (HALSEMA, 1968, p. 82). Quando retornou a Genebra, aps sua
estada Estrasburgo, adaptou muitos elementos da liturgia que ali conheceu para aquele que se
tornaria o Rito de Genebra (1545), a base para o culto nas Igrejas calvinistas por toda a
Europa: Sua, Frana, Alemanha, Holanda e Esccia (SCHAFF, 1996, p. 371).
- o -
H muitos anos a questo litrgica e em especial a msica tem nos interessado
particularmente. Quando aprendamos, discutamos, questionvamos, e mais tarde
ensinvamos as idias de Martinho Lutero e algumas de Joo Calvino sobre a msica no
culto, parecia-nos que algumas das prticas que os reformadores defendiam, mesmo que
distintas, eram constelaes5particulares de convices fundamentais comuns. As decises
que cada um tomou em relao msica no culto de suas igrejas nascentes eram fruto de
reflexes e concluses teolgicas semelhantes, de convices litrgicas comuns. As aparentes
ou reais divergncias tratavam-se, algumas vezes, apenas de uma questo de nfase.
5Utilizamos a palavra constelao com sentido modesto, despretensioso, longe do complexo uso que dela faza Psicologia Analtica. Para Jung constelar indica a ativao de um arqutipo (sobre os arqutipos, cf. JUNG,2000, p.13s), seja em pessoa ou situao coletiva; e a palavra constelao exprime o fato de que a situaoexterior desencadeia um processo psquico que consiste na aglutinao e atualizao de determinadoscontedos. (JUNG, 1986, p. 29). Estar constelado quer dizer que o indivduo est em atitude de prontido, apartir da qual reagir de forma definida. Neste nosso trabalho, constelaes quer apenas significar asexteriorizaes de idias longamente gestadas; as manifestaes visveis de decises tomadas a partir deconvices profundamente interiorizadas.
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O que aqui se prope, assim, investigar se h, de fato, fundamentos comuns
entre os dois reformadores concernentes s suas idias sobre msica na liturgia e, havendo,
investigar quais seriam, j que eles os nortearam ao fixarem os princpios litrgicos de suas
igrejas nascentes. Encontrados e destacados os conceitos basilares sobre a msica e o culto de
Lutero e Calvino, esperamos que tais conceitos, apesar da distncia histrica, geogrfica e
cultural que nos separa, possam ser vlidos ainda hoje como norteadores para o estudo e a
prtica da msica nas igrejas reformadas brasileiras contemporneas. No se trata deve ficar
desde agora absolutamente claro de defendermos para as igrejas atuais a reproduo do
culto reformado do sculo XVI, a repetio exata dos seus elementos, o resgate do seu
formato original. Vivemos em outro tempo, so outros os anseios, outras as incertezas; no
imaginamos que hoje se devam cantar apenas as canes da Reforma, reproduzir suas preces,
repetir suas prticas; justo e necessrio que a Igreja contempornea busque novas canes,
de textos que falem do seu tempo, que proclamem os temores modernos, as incertezas atuais.
Repetimos: so os fundamentosdo ideal litrgicomusical da Reforma que nos interessam.
Esclarecemos, ainda, que no pretendemos aprofundar o estudo de comoviabilizar na igreja
de hoje aqueles conceitos. Cremos que apont-los ser suficiente para a reflexo daqueles que
se preocupam com as questes relacionadas ao culto e liturgia.
o
A bibliografia existente sobre a Reforma e os reformadores vasta e abrange
todos os seus aspectos. Viviam ainda os reformadores e j surgiam publicaes sobre a
Reforma e seus lderes, tanto dos que os aplaudiam quanto dos que os criticavam. O
importante texto de Johann Sleidan6, considerado o primeiro historiador oficial da Reforma,
6 Johann Sleidan, na verdade Johann Philippson, nasceu em 1505 na cidade de Schleiden (da o Sleidan donome), naquele tempo ducado de Luxemburgo, e morreu em 1556 em Estrasburgo. Em abril de 1555 publicou
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descreveu muito cedo aqueles grandes acontecimentos, que se originaram de forma modesta
no protesto individual de Martinho Lutero. provvel que, nos meios evanglicos, se fale
mais em Lutero que em Calvino, como quer Wilson de Castro Ferreira (1990, p. 16), o que
pode em parte ser compreendido, j que a ele cabe a glria de iniciar, por assim dizer, a
grande reforma do sculo XVI. (FERREIRA, 1990, p. 16).
Nos ltimos anos, e talvez em razo do tempo em que vivemos, tempo de repensar
valores, de quebra de paradigmas, multiplicam-se as publicaes sobre o tema tambm em
nosso prprio idioma e pas. As mais populares revistas semanais trazem freqentes
reportagens de capa sobre a histria e os fenmenos do mundo religioso, o que, se no reflete
aumento de interesse pela Religio, em si, certamente revela enorme curiosidade por
Religiosidade7, esta, sim, caracterstica do nosso tempo. Referindo-se ao fenmeno desse
nosso tempo j chamado ps-moderno, Gene Edward Veith8comenta:
A linguagem do consentimento racional trocada pela linguagem daesttica. Em vez de dizer: Eu concordo com aquilo que aquela igrejaensina, as pessoas dizem: Eu gosto daquela igreja. [...] A verdade no temnada a ver com crenas religiosas ps-modenistas. Os devotos dizem frases
sua mais importante obra, o De statu religionis et reipublicae, Carolo Quinto, Caesare, Commentarii(Comentrios sobre a situao da Religio e do Estado sob o Imperador Carlo V), logo traduzido para oalemo como Commentare ber den Stand der Religion und des Staates unter Kaiser Karl V, um dos maisimportantes e o mais antigo retrato histrico da Reforma. Os Commentarii descrevem o desenvolvimento daReforma na Europa, especialmente na Alemanha, desde 1517 a 1555, ano da sua publicao. Sleidan esforou-sepor manter posio confessional neutra, utilizando e comparando intensivamente as fontes ento disponveis.Exatamente esse cuidado despertou crticas por seu trabalho, tanto entre os Protestantes quanto entre os
Catlicos. Traduzido para todas as lnguas europias, o volume teve sucessivas e inmeras edies durante osculo XVII e at o sculo XVIII. At ento, certamente mais de 345 edies foram publicadas.7 O Censo 2000 do IBGE (Tabela 4 Principais religies do Brasil de 1980 a 2000) revelou declnio dasreligies tradicionais e enorme crescimento dos Sem religio, o que no quer dizer sem espiritualidade:
RELIGIO 1980 1991 2000Catlicos 89,2 83,3 73,7Evanglicos 6,6 9,0 15,4Espritas 0,7 1,1 1,4Afro-brasileiros 0,6 (0,57) 0,4 (0,44) 0,3 (0,34)Outras religies 1,3 1,4 1,8Sem religio 1,6 4,8 7,3TOTAL(*) 100,0% 100,0% 100,0%
(*) No inclui religio no declarada e no determinadaFonte: IBGE, Censos demogrficos
8 VEITH, Gene Edward. Catequese, pregao e vocao. In:____. Reforma hoje. So Paulo: Cultura Crist,1999. p. 80.
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como: O Maharishi demais. Ou Acho brbaro o budismo. Ou ACientologia realmente me ajuda a entrar em contato com meus sentimentos.Os ps-modernistas tm a tendncia a ser sincretistas, juntando elementos dereligies diversas ou sistemas de f que acham simpticos, desprezando o
fato de que podem ser racionalmente incompatveis.
Talvez seja hora de fazer ressurgir o pensamento de Calvino, j que, e aqui
concordamos com Wilson de Castro Ferreira (1990, p. 20), Calvino uma personalidade que
de tempos em tempos ressurge para atender a reclamos de determinadas crises, s quais a sua
obra se torna pertinente. De fato, no mundo todo, reaparece em grande quantidade literatura
especializada sobre o tema da Reforma, e h publicaes recentes de grande abrangncia e
vastas dimenses. Nos anos noventa, um livro de 564 pginas sobre a Reforma na Europa foi
publicado (DICKENS, 1998) e, pouco mais tarde, os mesmo autores publicaram a historia da
Reforma (DICKENS, 1999). O ano de 1996 j assistira ao lanamento da Enciclopdia
Oxford sobre a Reforma (HILDEBRAND, 1996), em quatro volumes e quase 2.000 pginas, e
em 1999 apareceu outro livro substancioso sobre as Reformas na Europa (TRACY, 1999). Em
2000 apareceu O Mundo de Reforma, de Pettergree, com 576 pginas e em 2001, um dos
maiores historiadores ingleses da Igreja crist, Owen Chadwick, publicou O incio da
Reforma no continente(CHADWICK, 2001), com 446 pginas.
Muita coisa escrita no nosso pas, ou traduzida para nosso idioma, tem gerado
certa controvrsia. J. Bossy, por exemplo, em seu livro sobre o cristianismo no ocidente, de
1985 e aqui publicado em 1990, quer se livrar do termo Reforma e o menciona apenas trs
vezes, atribuindo-lhe menor importncia do que usualmente se faz. Ele admite que algo
importante aconteceu no sculo XVI e a palavra Reforma provavelmente um guia to
bom quanto qualquer outro para investigar o que foi aquilo (BOSSY, 1990, p. 32). Mas,
segundo ele, deve-se usar com economia o termo, pois transmite a impresso de que algo
errado acontecia antes com o cristianismo e que agora estava sendo substitudo por algo
correto. Em alguns aspectos aproximando-se de Bossy, Felipe Fernandz-Armesto, em seu
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Reforma: o cristianismo e o mundo 1500-2000, compreendeu a Reforma como uma espcie
de princpio de religio mundial, iniciado entre os sculos XVI e estendendo-se at o XX.
No um momento decisivo e a sua aproximao de Bossy, na convico dos dois de que
um engano imaginar a Reforma como algo que veio corrigir de vez o que no estava bem
mas sim uma histria contnua, englobando as experincias religiosas comuns aos cristos de
diferentes tradies no mundo inteiro, moldando suas relaes com o mundo e entre si.
(FERNNDEZ-ARMESTO, 1997, p. 9). Por isso ele nos faz imaginar um lago na Guatemala
em cujas margens misturam-se catlicos, evanglicos e praticantes de religies sincretsticas
para, em seguida, nos levar a uma praa pblica no Zaire onde religiosos danam em xtase; e
Coria do reverendo Moon; e s senhoras presbiterianas da Esccia; e a um padre na Nova
Guin celebrando missa vestido com uma saia de capim... Todas estas, segundo Armesto,
apenas variadas manifestaes da Reforma, em diferentes formas e modos, tpicas do
cristianismo como um todo (FERNNDEZ-ARMESTO, 1997, p. 15). Jean Delumeau
(1989), historiador catlico francs, em seu Nascimento e afirmao da reforma, prefere
acreditar que a Reforma protestante e a Contra-Reforma catlica tinham mais caractersticas
comuns importantes do que divergncias. Quando fala sobre o que chamou ecumenismo de
outrora, Delumeau esclarece: esforamo-nos por alargar as perspectivas e mostrar que as
duas Reformas, por muito tempo rivais, tiveram as mesmas causas, de modo que se
assemelham por seus mtodos e pelas dificuldades que houveram de enfrentar
(DELUMEAU, 1989, p. XVIII). Ele as compreende como episdios de uma cristianizao na
Europa onde o povo pela primeira vez encarou o que significava ser cristo, com todas as suas
conseqncias. Ainda segundo Delumeau, foi na poca da Reforma que os Dez Mandamentos
suplantaram os Sete Pecados Capitais como padro moral. Embora todos esses sejam
importantes trabalhos sobre o tema, e tenham contribudo para nossa pesquisa, nenhum deles
tem como preocupao central o culto e a liturgia, embora obviamente no os ignore.
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Livros sobre Calvino e o calvinismo h em profuso. O livreto de Charles W.
Baird, aqui publicado em 2001 como A liturgia reformada, concentra-se o que o ttulo
evidencia no culto e na liturgia calvinistas. um ensaio que, embora no to extenso,
consegue referir-se com razovel propriedade sobre a atividade pastoral de Calvino e suas
igrejas, sobre John Knox e a Esccia, sobre os Puritanos, a igreja holandesa e o diretrio de
culto reformado. Apesar de no aprofundar a questo musical, h observao importante
quanto msica, embora marginal, no captulo dois, A ltima comunho de Calvino, que
mostra o reformador, prximo da morte, cantando com sua igreja o Cntico de Simeo, com
o qual, na adorao calvinista, a celebrao da Ceia sempre termina (BAIRD, 2001, p. 41). A
seguir o texto do cntico transcrito traduzido para o portugus e, na nota de rodap, todo o
texto original, como Calvino deve ter cantado. Um outro estudioso de Calvino, Alister
McGrath, cujoA life of John Calvinfoi traduzido e publicado aqui (McGRATH, 2004), alm
da histria da vida do reformador, fala sobre sua obra, dedicando boa parte de um dos
captulos, o oitavo (O cristianismo segundo Calvino: a mensagem), a um resumo
comentado dos quatro livros das Institutas de 1559 (p. 178-202). No s por isso o livro
importante material de referncia.
Ainda sobre o calvinismo, um dos livros mais conhecidos Calvino e sua
influncia no mundo ocidental, editado por Stanford Reid (1990) e escrito a muitas mos, j
que seus 16 captulos so de diferentes especialistas, cada um escrevendo em sua respectiva
rea (o prprio Reid assina dois captulos). O primeiro captulo, O Calvinismo como uma
fora cultural (p. 11-31), assinado por Robert D. Knudsen , entre todos, o que maior
contribuio pode dar ao nosso trabalho. bem verdade que Knudsen no discute a relao de
Calvino com a msica, especificamente, mas sim com a educao ou com aquilo que
podemos chamar de cultura ocidental. O autor defender que Calvino e o calvinismo
ocuparam seu lugar entre as maiores foras que moldaram nossa moderna sociedade
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ocidental. (REID, 1990, p. 11). Ele analisa a relao de Calvino com a cultura humanstica
do seu tempo, e compreende que ele promoveu o gosto pelas artes liberais em contraposio
aos estudos que preparavam o indivduo para ganhar a vida. Isso, segundo Knudsen,
natural, j que: encontramos em Calvino um acentuado gosto pelas artes liberais e interesse
em instruir-se nelas, de modo que nada fica ele a dever aos humanistas seus contemporneos.
No so necessrias muitas palavras, disse ele, para expressar quo cara nos a aquisio das
artes liberais. (p. 13). Por detrs de tudo, porm, explica o autor, est a convico de Calvino
na doutrina da soberania de Deus e na sua convico na divina vontade criadora: Isto tornou
possvel, para ele [Calvino], ver que esta vontade se estende a toda histria e quilo que
central histria, ou seja, atividade formadora do homem, que o corao do
desenvolvimento cultural. Assim, a cultura pode ser concebida como um aspecto da
atividade humana, distinta da natureza, mas no como independente da Lei divina, do plano
divino e da divina vocao. (REID, 1990, p. 30-31).
Dentre os livros sobre o pensamento reformado destaca-se especialmente o
editado por Donald K. McKim, e aqui publicado sob o ttulo Grandes temas da tradio
reformada, em 1998. Trata-se de uma seleo de trabalhos de diversos autores sobre liturgia,
missiologia e teologia sob ponto de vista reformado. natural que os de maior interesse para
nosso trabalho so os que tratam da liturgia e do culto, temas para o qual foi destinada uma
seo inteira do livro, Dimenses litrgicas (p. 231-293), com cinco ensaios, dois deles
especificamente sobre liturgia reformada: A liturgia reformada, de Nicholas Wolterstorff (p.
233-265) e Reflexes a respeito da liturgia e do culto na tradio reformada, de LindaJo H.
McKim (p. 266-271).
Tambm muito pertinente para nosso trabalho o livro de Abraham Kuyper,
Calvinismo, aqui publicado em 2002. Na verdade trata-se de uma coletnea de seis palestras,
por ele proferidas na Universidade e Seminrio de Princeton, em 1898. O quinto captulo,
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Calvinismo e arte, discute a relao de Calvino com as chamadas belas artes e o
preconceito que sempre enfrentou, de ser o calvinismo sinnimo de mau gosto artstico.
H uma subdiviso especfica para a msica (p. 175-177), na qual aponta a relao da
Reforma com o cntico congregacional e com o grande desenvolvimento tcnico que viria
depois, promovido por ela. Alguns exageros no que se refere msica devem ser creditados
paixo do autor pelo tema geral do livro e talvez ao fato de ele no ser msico, nem
especialista em histria da msica: os homens que primeiro arranjaram a msica do Salmo
para o canto calvinista foram os bravos heris que cortaram as amarras que nos prendiam ao
Cantus firmus (KUYPER, 2002, p. 175). claro que as amarras j haviam sido cortadas
antes. Ou: Quando Goudimel, seu colega calvinista [...], descobriu que a voz mais alta das
crianas sobrepujava o tenor [...] ele, pela primeira vez[!], deu voz de liderana ao soprano;
uma mudana de grande influncia que, desde ento, sempre tem sido mantida. (KUYPER,
2002, p. 176, grifo nosso). Tais observaes do autor, porm, no desmerecem o livro, ao
contrrio: impressionante como algum no especializado em msica tenha escrito tanto
sobre questes tcnicas especficas quela arte!
O livro de Ronald Walace, traduzido para o portugus com o ttulo Calvino,
Genebra e a Reforma e aqui publicado em 2003, tambm faz referncia vida e obra do
reformador genebrino, mas dedica boa parte do texto, especialmente a primeira parte, O
reformador e sua cidade (p. 31), ao estudo do contexto onde Calvino atuou, a Genebra do
sculo XVI. Sua ocupao pastoral enfatizada, e sua preocupao com a igreja estudada na
seo seguinte, O sacerdote e o pastor. Os ideais de Calvino quanto cultura e as artes no
so esquecidos: Walace mostra o que Calvino pensava sobre as cincias liberais (p. 89 et
seq.), sobre a questo de uma cultura crist (p. 60, 104 et seq.), sobre as artes (p. 48, 95 et
seq.) e sobre a relao entre a Igreja e a cultura (p. 94 et seq.). Calvino reconheceu que h
uma inclinao natural dentro dos homens e das mulheres para as atividades artsticas e
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culturais para desenvolvimento delas. [...] Eles devem essa inclinao diretamente a Deus, o
Criador e Redentor (WALACE, 2002, p. 93). Quanto msica no culto, o autor afirma que
Calvino assumiu uma posio intermediria entre Lutero e Zunglio, lembrando-nos que
Calvino acreditava que se devia permitir que a msica desempenhasse um papel nos ofcios
da religio, dos quais exclua as artes visuais. (WALACE, 2002, p. 96).
H muitos livros escritos no Brasil sobre o calvinismo e alguns estudiosos
brasileiros dedicados ao tema, como Paulo Anglada, por exemplo, conhecido por sua
preocupao com o pensamento calvinista. Seu Calvinismo: as antigas doutrinas da graa,
publicado em 1996, e em segunda edio em 2000, reparte com os leitores sua fala pastoral,
seus estudos proferidos na igreja que pastoreava em 1992. O texto trata mais da doutrina que
dapraxiscalvinista, o que justifica a ausncia de referncia msica reformada.
Diferente o trabalho de outro dedicado estudioso de Calvino, Hermisten Costa,
Calvino de A a Z, da srie Pensadores Cristos, publicado em 2006. Trata-se de uma
coletnea de 1400 citaes do prprio Calvino, arranjadas em verbetes em ordem alfabtica.
a voz, portanto, do prprio reformador, organizada em tpicos por Costa. No nosso caso, teis
verbetes sobre Adorao, Culto, Louvor e Msica l esto, revelando-nos muito do
pensamento do reformador sobre a msica litrgica.
Da mesma forma, h considervel material traduzido e publicado no Brasil sobre
Lutero e o luteranismo, o mais extenso de todos o da Comisso Interluterana de Literatura,
que congrega a Editora Sinodal de So Leopoldo e a Concrdia Editora de Porto Alegre no
enorme esforo de traduzir e publicar a obra de Martinho Lutero. O stimo volume, Vida em
Comunidade, publicado em 2000, nos ser extremamente til no presente trabalho, j que
compila os textos de Lutero sobre Comunidade, Ministrio, Culto, Sacramentos, Visitao,
Catecismo e Hinos (LUTERO, 2000).
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Dentre os muitos livros sobre Lutero e o luteranismo escritos no pas, um livreto
publicado em 2000 chama nossa ateno: Katharina Von Bora, uma biografia, escrito por
Heloisa Gralow Dalferth, pastora da IECLB. Foi pesquisa para seu projeto de doutoramento e
o trata da mulher Catarina e no da esposa do reformador, como deixa claro logo no incio.
Dalferth fala de sua personalidade decidida e corajosa que tanta importncia teve na vida
familiar de Lutero e que, desta vez o outro, o esposo de Catarina. Claro que o livro nos
oferece uma viso mais pessoal da Reforma, aproximando-nos das pessoas que diariamente
cercavam o reformador: investiga a infncia de Catarina, sua vida no mosteiro, sua ida a
Wittenberg, seu casamento, a vida familiar e econmica, e traa um relato da situao da
famlia depois da morte de Lutero. O Apndice traz quinze cartas escritas por Lutero esposa
e que nos revelam muito do conhecido humor do reformador: algumas das cartas j no
destinatrio trar Minha simptica querido senhor [assim mesmo, no masculino] Katharina
Luther, doutora, pregadora de Wittenberg; ou Minha simptica, querida Kthe Luther,
fazedora de cerveja, juza no mercado de porcos de Wittenberg; ou ainda santa, mulher
preocupada, senhora Katharina Luther, doutora, mulher de Zlsdorf, de Wittenberg, minha
graciosa, querida dona-de-casa. (DALFERTH, 2000, p. 129-132).
Dentre os textos escritos no Brasil sobre a msica e o culto na igreja protestante,
h desde os tradicionais e por demais conhecidos Msica sacra evanglica no Brasil:
contribuio sua histria, e Do coral e sua projeo na histria da msica, de Henriqueta
Rosa Fernandes Braga, ambos publicados em 1961, o Histria da msica sacra, de Ruy
Wanderley publicado em 1977 e o Msica e Adorao, de Joo Wilson Faustini, publicado no
incio da dcada de 1970, com segunda edio em 1996. Os trs dedicam-se a estudar a
msica no culto reformado distinguindo as opes feitas por Lutero e Calvino, sem porm
aprofundarem a discusso sobre as razes que os motivaram.
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De grande importncia para o estudo do culto no Brasil so os livros do Prof.
mile G. Leonard e de Carl Joseph Hahn. O primeiro chegou Universidade de So Paulo
vindo da Frana. Estudou a histria da igreja evanglica brasileira e escreveu em francs,
dentre outros, o livro que, traduzido, chamou-se O protestantismo brasileiro (LONARD,
2002). Leonard preocupou-se e questionar a aceitao dos protestantes no pas, a separao
entre a igreja brasileira e as misses, o papel dos evanglicos na educao, a fragmentao
dos protestantes brasileiros, o surgimento do carismatismo. Leonard foi professor na Sorbone
e, estrangeiro em nosso pas, pode estudar o fenmeno brasileiro de fora, com a iseno
necessria ao pesquisador. O segundo,Histria do Culto protestante no Brasil, de Carl Joseph
Hahn, originalmente sua tese de doutoramento defendida na Faculdade de Teologia de
Edimburgo, Esccia, foi aqui publicado em 1989. Suas consideraes sobre o modelo de culto
que chega ao Brasil via Estados Unidos (p. 121); sobre a questo do hinrio produzido pelos
Kalley e dos primeiros hinos evanglicos em portugus (p. 141, 150); sobre as preocupaes
de Simonton com liturgia e msica (p. 165); sobre as observaes do Dr. William Kerr quanto
ao descuido com a ordem litrgica por parte de alguns jovens pastores (p. 219-220); sobre o
desenvolvimento da liturgia e do culto nas igrejas brasileiras, portanto, resultado de todas as
influncias que sofreu, concentram-se, naturalmente, no culto brasileiro e no na histria do
culto reformado ou do que pensaram os reformadores.
Semelhantes ao livro de Hahn, dois dentre os vrios livros de Boanerges Ribeiro
que tratam do culto no Brasil, Protestantismo e cultura brasileira (1981) e A igreja
presbiteriana no Brasil, da autonomia ao cisma (1987), tambm se concentram, como seus
prprios ttulos deixam claro, na igreja protestante brasileira, especificamente. Descrevem,
respectivamente, o trabalho dos missionrios evangelistas do sculo dezenove em nossa
ptria, suas dificuldades e conquistas, e o desenvolvimento e organizao da Igreja
Presbiteriana no Brasil at o incio do sculo XX. No primeiro h uma seo que trata
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especificamente do culto no Brasil, Culto e pregao, (1981, p. 53-70), no qual trata dos
primeiros cultos dirigidos por Simonton, Blackford, Kalley, Jos Manoel da Conceio, bem
como das dificuldades e estratgias para entender a mente dos brasileiros, expresso que d
nome ao captulo (p. 53). A seo conclui: Na Capital da Provncia, to promissora, o acesso
mente dos brasileiros no estava fcil. (RIBEIRO, 1981, p. 70). No segundo, A igreja
presbiteriana no Brasil, da autonomia ao cisma, h um captulo que trata do cntico na igreja
protestante brasileira nascente. o sexto, A igreja que canta, e assim inicia: No h
necessidade de insistir: Cantava-se muito na igreja evanglica emergente no Brasil Imperial.
(RIBEIRO, 1987, p. 133). O captulo trata da escolha que os lderes faziam dos hinos para o
culto e do que as igreja preferiam cantar. Ribeiro traz uma amostragem dos hinos cantados no
perodo de 1861 a 1903, informando quando, onde e em que circunstncia se cantou cada
hino! (p. 136-146). Tambm por isso o livro referncia fundamental para o estudioso da
msica de culto nos primrdios da igreja presbiteriana brasileira.
Encerrando esse grupo, e no menos importantes que os anteriores, esto os livros
de Antonio Gouva Mendona, O Celeste Porvir, e Introduo ao protestantismo brasileiro.
O primeiro foi originalmente tese de doutorado do autor, apresentada ao Departamento de
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo em 1982, e o segundo, escrito a quatro mos
com Prcoro Velasques Filho, foi primeiro editado em 1990. Embora os dois trabalhos tratem
muito mais da insero do protestantismo no Brasil, especificamente, foram valiosas, para
este nosso trabalho, as informaes da Parte I de O Celeste porvir, sobre a histria do
protestantismo, especialmente quando tratou da evoluo da teologia calvinista, do calvinismo
na Inglaterra e do puritanismo.
Mais recentemente, em 2002, Sergio Freddi Jnior publicou Msica crist
contempornea, sua tese de doutorado que, apesar de dedicada ao estudo do culto evanglico
brasileiro, e especificamente da Igreja Presbiteriana Independente, ocupa-se tambm em
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estudar as origens e as funes do cntico no protestantismo. Embora correndo o risco de
defender que Lutero trouxe qualquer msica popular para o culto, garante: Calvino tinha
como horizonte composies inditas e com qualidade, por isso contratou um grupo de
profissionais renomados de sua poca, como Louis Bourgeois, Claude Goudimel e Claudin Le
Jeune, para que realizassem os trabalhos composicionais e poticos (p. XX). Redimiu-se no
calvinismo, portanto.
Finalmente, o livro de Denise Cordeiro de Souza Frederico, Cantos para o culto
cristo, se aproxima em alguns aspectos deste nosso trabalho, j que discute, com razovel
cuidado, a msica e o culto da Idade Mdia e da Reforma. Seu foco principal, porm, no o
pensamento dos reformadores e a relao que entre eles possa haver, mas, antes, a histria de
como se fez a seleo dos cnticos para o culto cristo durante a histria, e a conseqente
tenso entre a tradio e a contemporaneidade. O que ela pretende, portanto, discutir a
hindia contempornea, a msica impressa nos hinrios tradicionais e a luta pela insero da
msica pop no culto dos nossos dias, luz dos acontecimentos semelhantes na histria da
msica sacra desde o Antigo Testamento, passando pelo Novo, pela Patrstica e a Idade
Mdia, a Reforma e a Contra-Reforma, o Barroco e o Romantismo. Tudo isso para tentar
estabelecer critrios de seleo de canes religiosas eventualmente vlidos ainda nos nossos
dias.
H muito mais, naturalmente. Aqui esto apenas os que alguma relao tm, uns
muito prxima, outros bem distante, com o estudo que aqui propomos.
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Comunidades inteiras, tanto Igrejas quanto Estados, participaram desde o incio
desse grande choque, ao qual se chamou Reforma, e sofreram os tremores que se seguiram.
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Enquanto a teologia de Lutero foi sendo sistematizada em termos de Luteranismo, e muitas
regies da Alemanha adotaram formalmente o que ser conhecido como a religio
evanglica, outros governos buscaram uma forma um pouco diferente de protestantismo,
mais radical em seu afastamento da igreja romana, principalmente parte da Alemanha e
especialmente a Sua, a partir de Genebra, onde Calvino exerceu sua influncia intelectual e
espiritual. Essas foram chamadas Igrejas Reformadas9, ttulo que indica sua busca por serem
mais bem reformadas (Cf. COLLINSON, 2006, p. 24).
Neste nosso trabalho, antes de estudarmos o pensamento dos reformadores,estudamos a sociedade, a poltica, a cultura, o ambiente artstico e o religioso onde se
desenrolou a Reforma, compreendendo-a em seu contexto original. A seguir analisamos o
fenmeno musical em sua essncia e em sua utilidade como veculo de comunicao. Depois
estudamos os conceitos de culto de Lutero e Calvino, a partir do contexto de local e da poca
em que viveram. S ento falamos das idias de cada um deles sobre a msica e sua
associao com o culto e a liturgia. Defendemos, como j se disse, que ambos preocuparam-se
mais com a essncia do que com a forma do culto e que, quanto s diferentes expresses
artsticas e culturais, mas em especial msica, ambos reconheceram o grande poder que tem
de mover nossas emoes, de nos estimular e que, por isso mesmo, ocupa um lugar
importante no culto e na vida dos fiis. Se Lutero compreendeu a msica como presente de
Deus aos homens, Calvino a definiu como a maior das artes. Ambos a exaltaram como
precioso veculo para o texto e um poder maravilhoso para comover coraes e para dignificar
tendncias e princpios morais.
Cremos que a liturgia protestante tenta refletir, no culto, os ideais de reforma da
prpria igreja e que a Reforma foi ponto culminante de um longo processo de mudanas
9Considerando que essas expresses, igreja reformada, igreja evanglica, igreja protestante, bem comoalgumas outras, do ambiente musical, tais como coral alemo, canto gregoriano, salmo calvinista, quandousados em diferentes contextos podem ter significados distintos, consulte, no APNDICE, nossa Definio deTermos, para exata compreenso do sentido com que foram aqui utilizados.
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sociais, polticas, econmicas e religiosas. Para Lutero era necessrio reformarem-se os
pontos crticos da Igreja medieval, sem descartar, entretanto, o que era aproveitvel para a
igreja que nascia. Calvino parecia ser mais radical e queria resgatar elementos da igreja
apostlica, perdidos ao longo da histria e construir uma nova igreja. Mas ao se analisar mais
atentamente o culto proposto pelos dois reformadores, percebe-se em ambos grande cuidado
quanto ao objeto prprio do culto: Deus. Isso parece nortear tudo o que disseram e todas as
providncias que tomaram para que a msica no fosse apenas adereo no culto, j que a ela
reservada funo maior. Preocupava-se Lutero, preocupava-se Calvino; preocupavam-se
ambos com a msica que suas comunidades deviam cantar nos cultos. Foi essa preocupao
comum que fez da msica congregacional uma das mais marcantes caractersticas das
comunidades filhas da Reforma, essa avassaladora e complexa revoluo que, j nos
estertores da Idade Mdia, concluiu longo processo reacionrio, abrindo definitivamente as
portas dos Tempos Modernos.
1.1. A REFORMA NO CONTEXTO DAS MUDANAS SOCIAIS,
POLTICAS E RELIGIOSAS DO FIM DA IDADE MDIA
A Reforma foi um fato histrico, poltico, social e religioso. Revolucionou o
pensamento, as idias e as atitudes, em todos os aspectos, de boa parte da civilizao europia
do sculo XVI. claro que Lutero no foi o primeiro reformador da igreja romana, e,
evidentemente, nem Calvino o ltimo. ...Reforma era uma espcie de mantra rodado muito
antes da Reforma, escreve Collinson (2006, p. 32). J no sculo VI Gregrio Magno
promoveria uma reforma litrgica considervel. Mais tarde, no sculo XI, outro Gregrio,
agora indiscutivelmente papa, dirigira aquilo que se conhece como reformas gregorianas, e
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em 1215 Inocncio III, outro reformador, tambm papa, convocou importante conclio,
realizado no Palcio de Latro, para formular a doutrina oficial da Eucaristia, um marco
reformatrio. Isso para nos referirmos apenas a alguns movimentos reformatrios surgidos no
seio da igreja antes da Reforma. Poderamos alencar muitos outros, ainda, preocupados em
reformar no s a forma mas a prpria teologia da igreja romana, como John Wicliff
(ca.1320-1384), na Inglaterra, que defendia quase dois sculos antes de Lutero o princpio
da Sola Scriptura, ou Jan Huss (1373-1415), e em 1403 havia proposto reformar a igreja
Romana na Bomia ensinando heresias contra a autoridade do papado, e que por isso foi
condenado e morto pela igreja romana exatos cento e dois anos antes das 95 teses luteranas. A
partir da e depois, ...no sculo XV todos falavam em reforma uma espcie de equivalente
a coisas corriqueiras como a maternidade e o po com manteiga. Esse termo era
freqentemente encontrado na frmula reforma da Igreja, de sua cabea e seus membros
(COLLINSON, 2006, p. 37).
Depois de Lutero e de Calvino, outras reformas foram vindo, novos reformadores
sempre surgindo, muitos propondo reformar a prpria Reforma, alguns supostamente fiis ao
lema igreja reformada, sempre em reforma. Boanerges Ribeiro em seu Igreja evanglica e
repblica brasileira, referindo-se a Ruy Barbosa e a sua crtica igreja catlica brasileira
daquele tempo, escreve: Ruy no agnstico nem ateu, como tentaram fazer crer os
defensores mal avisados da Igreja Catlica. Ruy, o que , Reformador (RIBEIRO, 1991, p.
1). Assim amplo tornou-se o sentido de reformar!
A Reforma, porm, aquela, de Lutero e Calvino, foi algo diferente, maior.
Todas as outras reformas s so chamadas reformas devido a sua relao ou semelhana
com um ou alguns elementos daquela, do sculo XVI. E aqui novamente Collinson (2006, p.
28): Se no tivesse havido a Reforma, a palavra jamais teria sido usada para indicar o que
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aconteceu no sculo X, ou no sculo XI, ou no sculo XVIII, ou indicar aquilo que alguns de
nossos desconstrutores sugerem que esteja sempre acontecendo.
Para Antonio Gouva Mendona, a chamada Reforma Protestante se constituiu
de uma srie de movimentos que redesenharam o mapa religioso do continente europeu e,
mais tarde, plasmou com sua diversidade as expresses religiosas crists no continente
americano, africano e asitico. (MENDONA, 1997, p. 56,57). Por tudo isso pode ser
considerada um dos marcos do fim da Idade Mdia e do incio dos Tempos Modernos. Est
claro que podemos eleger muitos outros marcos importantes. Para Peter Burke (2003, pg. 19),
o incio do perodo moderno ser definido como os sculos de Gutenberg a Diderot, em outras
palavras, a partir da inveno da imprensa com tipos mveis na Alemanha, em torno de 1450,
at a publicao daEnciclopdia, de 1750 em diante. Para Umberto Eco, para alm das datas,
marco importante de incio dos tempos modernos foi a lngua dos discursos tericos,
filosficos ou teolgicos, j que a Idade Mdia os fez em latim, e de lngua latina a Idade
Mdia escolstica. Quando se comea a conduzir um discurso terico em lngua vulgar, a
despeito das datas, j estamos fora da Idade Mdia. (ECO, 1989, p. 11).
O que no se pode negar que a Reforma Protestante foi uma espcie de ponto
culminante de um longo processo, iniciado j, talvez, no sculo XII ou XIII, quando se
comeou a questionar o Direito, a Sociedade e os Dogmas religiosos, trincando o teto j
quebradio da antiga hegemonia eclesistica. Com a fundao das primeiras universidades10
,
deslocaram-se os centros culturais dos mosteiros para as cidades. Podia-se agora cursar uma
carreira acadmica sem pertencer ao clero numa contnua laicizao da cultura. Como ainda
lembra Burke (2003, pg. 38), as disciplinas que podiam ser estudadas, pelo menos
10Cidades e Universidades foram surgindo em toda Europa a partir do sculo XII. As primeiras universidades, as...instituies-modelo de Bolonha e Paris foram seguidas por Oxford, Salamanca (1219), Npoles (1224), Praga(1347), Pavia (1361), Cracvia (1364), Louvain (1425) e muitas outras. Em 1451, quando Glasgow foi fundada,eram aproximadamente cinqenta as universidades em operao. (Burke, 2003, pg. 38).
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oficialmente, eram fixas: as sete artes liberais11 e os trs cursos de ps-graduao12 de
teologia, direito e medicina. O ensino e a autoridade da igreja, at ento tidos como nica e
indiscutvel verdade, comearam a ser questionados por esses jovens universitrios, novos
intelectuais, que ganharam influncia no desenvolvimento eclesistico-poltico e estimularam
o fortalecimento da burguesia.
A oscilante autoridade do papado, a violncia poltica do prprio Papa,
acompanhada de freqentes perseguies e prises polticas, despertavam grande nmero de
movimentos de rebeldia at no seio da igreja, alm de movimentos leigos que, apesar de no
obterem sucesso imediato, no foram de todo desbaratados, nem por cruis guerras apoiadas
pela igreja, nem pelos impiedosos tribunais da inquisio. A igreja medieval europia,
hierrquica, dominadora, detentora de enorme autoridade, tornava-se cada vez mais distante
dos fiis. Sobre essa Igreja, Pierre Bourdieu, que estudou o fenmeno em seu A Economia
das Trocas Simblicas(2001, p. 62) afirmou:
A concentrao do capital religioso nunca foi talvez to forte quanto naEuropa medieval. A Igreja, organizada segundo uma hierarquia complexa,utiliza uma linguagem quase desconhecida do povo e detm o monoplio doacesso aos instrumentos do culto, textos sagrados e sobretudo os
sacramentos. Ao relegar o monge ao segundo nvel na hierarquia dasordines, ela torna o sacerdote devidamente nomeado o instrumentoindispensvel da salvao e confere hierarquia o poder de santificao.
Descobrimentos cientficos e invenes tcnicas terminam por fertilizar o solo j
preparado para o final de uma era. Em 1440 Johann Gutenberg criou a impressora de livros e
em torno de 1500 o italiano Ottaviano Petrucci desenvolveu a impressora de notas musicais.
11As sete artes liberais eram aquelas nas quais todo ser humano honrado e livre (nem servo nem escravo) deviaser treinado: Gramtica, Retrica, Lgica, Aritmtica, Geometria, Msica e Astronomia. Interessa-nos nessetrabalho especialmente o Quadrivium, uma espcie de smula das sete artes e que compreendia as quatroArs quese relacionavam entre si: Aritmtica, Geometria, Msica e Astronomia. Ainda sobre o Quadrivium , cf. p. 48-49.12O autor evidentemente no se ocupa, nesse ponto da obra, a esclarecer diferenas entre as carreiras acadmicasna Idade Mdia e nos nossos dias, com suas especificidades quanto graduao e ps-graduao, o que pormo faz no decorrer da obra citada e para a qual remetemos o leitor. So ps-graduaes diferentes, aquela daIdade Mdia e a dos nossos dias.
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Ambos colaboraram imensamente para a rpida divulgao, pouco mais tarde, dos escritos,
hinos e doutrinas de Calvino e de Lutero.
Com os descobrimentos de Colombo e Vasco da Gama, a terra ganhou novas
dimenses, conheceu novos povos e novas culturas, e as pesquisas de Nicolau Coprnico
quanto ao sistema solar e o movimento dos planetas transformaram o panorama do universo.
O que queremos dizer com tudo isso que a sociedade medieval centro europia
estava madura para a Reforma. Tudo conspirava para que ela viesse.
Existe, porm, uma tenso entre o acontecimento e o procedimento, isto , entre a
Reforma como parte de um contnuo mundo da histria e a Reforma como extraordinrio
momento histrico, uma bomba que casse sobre a Histria, algo que mudasse o rumo da
histria, fenmeno que se aproxima daquilo que Max Weber chamou de carisma: Sem
dvida, a autoridade carismtica uma das grandes foras revolucionrias da Histria.
(WEBER, 2003, p. 136). Para o importante cientista social, figuras como Moiss, Isaas ou
Lutero, eram carismticas. E lderes carismticos, por suas qualidades, subvertem o
organismo legal (WEBER, 1944, vol I, p. 252-253).
Deve-se observar, ainda, que qualquer igreja entendendo-se esse termo
sociologicamente pode, a qualquer tempo, viver conflitos e divises em seu seio, como nos
lembra Otto Maduro em seu Religio e Luta de Classes (MADURO, 1981, p. 183): Toda
igreja (...) abriga em seu seio conflitos tais que seu desenvolvimento pode, sob certas
circunstncias, favorecer processos religiosos com funes sociais no conservadoras e at
revolucionrias. Pierre Bourdieu (2001, p. 60) afirmara que o caminho natural das coisas
que os grupos religiosos surjam como seitas, transformem-se em igrejas e algum dia
provoquem novas reformas:
Toda seita que alcana xito tende a tornar-se Igreja, depositria e guardi deuma ortodoxia, identificada com as suas hierarquias e seus dogmas, e poressa razo, fadada a suscitar uma nova reforma.
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Muito maiores e mais violentas podem ser as revolues e divises em situao de
crise extrema como a que se instalou naqueles dias que antecederam a Reforma. Bastava que
aparecessem os homens que as liderassem. Seguindo o princpio weberiano, Maduro (1981, p.
142) dir que toda igreja encara permanentemente o perigo do aparecimento de profetas, que
so os produtores religiosos que conseguem mobilizar o pblico da igreja contra o seu
monoplio do poder religioso. Ele ainda acrescentar que o profetismo poder surgir dentre
os prprios profissionais da religio, o prprio clero, quando insatisfeito (1981, p. 142):
Na medida em que certas categorias do clero no encontram satisfao totalem seus interesses em cada conjuntura concreta das relaes de forareligiosa e na medida em que certas categorias do clero (...) se inclinam aveicular as solicitaes religiosas insatisfeitas de fraes subalternasinteressadas em conquistar sua prpria autonomia religiosa, (...) h sempre(...) condies religiosas objetivas para gerar e apoiar um movimento desubverso da ordem religiosa estabelecida.
Portanto, se fato que na sociedade medieval centro-europia as condies para
uma grande Reforma j se apresentassem h muito, era preciso que surgissem os lderes, os
homens que conseguissem impressionar outros homens, mobiliz-los, reuni-los, articul-los,
dar corpo ao movimento, para que este pudesse ser concretizado13. Era preciso, como lembra
Maduro (1981, p. 143, grifo do autor), a produo de um movimento profticoe, para isso, o
surgimento doprofeta:
Todavia, a existncia de tais condies scio-religiosas objetivas no bastapara produzir um movimento proftico, isto , uma mobilizao crescente deforas tanto do clero quanto do laicado explicitamente questionadora domodo de produo religiosa imperante e capaz de quebrar o monoplio do
poder religioso exercido pelo corpo sacerdotal estabelecido. Para que seproduza um movimento proftico, mister que surja umprofeta, isto , umapessoa ou um grupo capaz de reunir, articular, em seu discurso e nos seusatos, aquelas condies tantosociaiscomo religiosas que possibilitam (...) osurgimento desse movimento proftico. O profeta aquela pessoa (ou grupo)
13Uma pertinente distino entre profeta, messias e sacerdote oferecida por Maria Isaura Pereira deQueiroz em seu O messianismo no Brasil e no mundo, especialmente na introduo geral (2003, p. 25-46).
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capaz de fazer explcito o implcito, capaz de unir o desunido, capaz deformular no discurso e nos atos um conjunto de procuras religiosasinsatisfeitas, de maneira tal que os clientes insatisfeitos (leigos e clrigos) seachem expressos nessa formulao proftica e mobilizem ento as prprias
energias em torno do profeta, de seu discurso e de seus atos.
nesse ambiente que os reformadores Lutero e Calvino se levantaram, algo
semelhante ao movimento de constante reforma proposta por Bourdieu, ou, talvez, ao
movimento proftico de Maduro. Nesse caso poderamos dizer: foi esse ambiente que
contribuiu para que se levantassem Lutero e Calvino.
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2. MSICA COMO FENMENO SONORO E COMO
ELEMENTO LITRGICO.
Troncos de rvores, blocos e lminas de pedra percutidos; bzios, cnulas vegetais
e ossos soprados; embiras, cips ou crinas retesadas e beliscadas; emisses sonoras vocais e
inflexes meldicas articulando ou no palavras... Parece, mesmo, que alguma forma de
msica tem acompanhado o homem desde o incio da sua histria; ou ainda, desde sua pr-histria. De fato, at hoje e nisso socilogos, arquelogos e antroplogos concordam
nenhum grupo humano foi encontrado que no cultivasse algum tipo de expresso musical em
sua comunidade: msica vocal, apenas; msica instrumental, apenas; ou as duas,
independentes, ou complementares, simultaneamente. No so poucas as referncias ao fato, o
da presena da msica nas comunidades mais antigas, como a de Domingos Alaleona (1972,
p. 39):A origem da msica perde-se, como dizem os historiadores, na noite dos tempos. No
h povo antigo no qual no se encontrem manifestaes musicais.
Se a presena de expresses musicais trao comum a todos os grupos humanos
j encontrados, compreendeu-se que, alm disso e isso pode ser muito surpreendente
alguns desses povos utilizavam sons musicais com certa sofisticao, como forma de
comunicao interpessoal. Existe at mesmo uma apaixonante discusso sobre o fato de que,
para alguns grupos, a comunicao meldico-musical talvez tivesse sido anterior a qualquer
forma de linguagem verbal. O prprio Alaleona (1972, p. 39) assim se refere ao fato: ...no
homem primitivo, a linguagem musical, em forma rudimentar, precedeu a linguagem
propriamente dita. Os que defendem essa possibilidade acreditam que esses grupos
utilizaram suas vozes em inflexes meldicas ascendentes, descendentes ou lineares; ememisses longas ou breves; contnuas ou interruptas msica, portanto como forma de
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expressarem idias ou sensaes, ainda antes de terem formulado palavras, formatado frases,
vocabulrio que obedecesse sintaxe, desenvolvido linguagem falada, portanto. Seriam, nesse
caso, emisses vocais meldico-musicais que j constituam estruturas suficientes para
expressarem suas idias! Tudo indica que essa discusso permanecer insolvel, mas
fascinante pensar na possibilidade.
Isso no quer dizer, porm, que sons emitidos por seres humanos, definveis como
alguma forma de msica, no reflitam destes dos seres humanos que os tenham emitido
algum trato cultural. que a natureza oferece apenas rudos e sons disformes, que, para se
tornarem msica precisam ser processados culturalmente. Claude Lvi-Strauss, na abertura
de seu O cru e o cozido (2004), observa que: ...a natureza produz rudos, e no sons
musicais, que so monoplio da cultura enquanto criadora dos instrumentos e do canto (p.
42). O autor dos Tristes Trpicoscompreendeu que, embora troncos, bzios e cnulas sejam
fartamente oferecidos pela natureza, a freqncia da percusso, ou a intensidade do sopro,
ou a variedade do uso que criaro aquilo que se poder chamar Msica. No que se refere
voz humana, que sempre esteve l, isto , que estava naturalmente disponvel, so suas
diferentes inflexes, suas variadas nuanas de emisso que criaro seqncias inteligveis,
compreensveis, e que podem ser definidas como musicais. por isso que o socilogo franco-
belga pode concluir: ... os sons musicais no existiriam para o homem se ele no os tivesse
inventado. (LVI-STRAUSS, 2004, p. 42). A matria prima j l estava; a msica no. Esta
precisava ser culturalmente construda.
2.1. MSICA COMO VECULO
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Se msica, ento, veculo de comunicao interpessoal, ela, alm disso, tambm
comunicao que transcende os limites do prprio grupo cultural, espalhando seu contedo,
a palavra, para alm da cultura local. Talvez no possuamos outra ddiva [...] que possa ser
to divulgada e entendida por pessoas de todos os idiomas, escreveu Bill Ichter, para, em
seguida justificar: A msica entendida por todos e capaz de expressar sentimentos e
pensamentos que no podem ser expressos totalmente por meras palavras. A msica supera
barreiras idiomticas. (ICHTER, 1980, p. 23-24). De fato, se a msica no conseguisse
difundir seu contedo para alm da cultura local, as idias de Martinho Lutero, em boa parte
contidas nos corais luteranos14, no teriam provavelmente se espalhado com tamanha
velocidade, no apenas entre os habitantes de Wittenberg, mas entre boa parte do povo de fala
germnica; no s entre o clero e os acusadores de Lutero, mas tambm entre laicos, que nada
conheciam de disputas teolgicas; no s entre os homens mais sbios e ilustres, mas tambm
e especialmente entre os camponeses simples, e entre iletrados aldees.
No transcendesse a msica os limites do espao que a produziu e os Arapesh no
memorizariam msicas de povos diferentes, introduzindo-as em suas prprias celebraes, o
que os faz sentirem-se integrados, no s como membros do grupo local, apenas, mas tambm
com os vizinhos, prximos ou mais distantes. Foi Margaret Mead, estudando aquele povo da
Nova Guin, quem descreveu a reunio que organizam, ao redor de uma fogueira, para cantar
canes de vrios outros povos, o que garante quela comunidade sua insero em sociedade
que transcende seus prprios limites geogrficos e histricos. Alm disso, a prtica arapesh
testemunha o grande poder que a msica tem de espalhar-se, e de levar a mensagem nela
contida:
Os homens se aglomeram volta de uma fogueira; as mulheres cozinhamnas proximidades, muitas vezes ao ar livre [...]. Cai a noite e o frio damontanha mida aproxima a todos do fogo; sentam-se em volta das brasas e
14 Coral Luterano, aqui, refere-se ao gnero musical nascido com a Reforma Protestante para o Cultoreformado, um tipo de msica que se apresentou como alternativa ao Coral Gregoriano, a msica que secantava na Liturgia Romana (Cf. definio de termos no Apndice).
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entoam canes importadas de toda a parte, que refletem os cnonesmusicais de muitos povos diferentes.(MEAD, 1979, p. 34).
Tambm por isso, msica e culto (alguma forma de msica, qualquer forma de
culto) formam binmio inseparvel desde os tempos mais remotos do relacionamento do
homem com o ser divino: se msica ajudava os seres humanos se comunicarem entre si, ela
devia ser ferramenta para que os seres humanos se comunicassem com o sagrado, com o
numinoso15. Deveria ser til nas suas cerimnias litrgico-religiosas, quando adentrassem o
mundo sagrado, invisvel, apenas intudo e, freqentemente, amedrontador. Para Aldo
Natale Terrin (2004, p. 212), msica e experincia religiosa no parecem [...] separveis na
pr-histria do mundo, naquela realidade inicial em que comeamos a tomar conscincia do
mundo e de ns mesmos.
Deve-se ter em mente, sempre, que a Msica da qual aqui se fala, refere-se a
qualquer forma de msica, vocal e instrumental, soando independentemente ou
simultaneamente. Para certos povos a voz era a expresso maior de comunicao com o
divino. Para outros, instrumentos musicais especialmente criados para o culto, tornavam-se
sagrados, e s vezes configuravam o prprio objeto de culto. Entre os Mundugumos da Nova
Guin, povo antropfago, caador de cabeas, tambm estudado por Mead, tocar flautas o
culto por excelncia. Para eles, h diversos cultos, cada um deles regido por uma flauta
diferente. A flauta, alm de ferramenta para o ritual litrgico, pode tornar-se o prprio objetosagrado, isto , acumula, em si, a condio de veculo e ao mesmo tempo de objeto do culto.
15 com muita liberdade que utilizamos a expresso cunhada por Rudolf Otto e tornada conhecida em seu livroO Sagrado, especialmente nos captulos I e II, O Numinosoe O Tremendo, respectivamente. Para ele o termotenta definir aquilo que ...aparece como elemento vivo em todas as religies. Ele constitui a parte mais ntima e,sem ele, a religio perderia as suas caractersticas. (OTTO, 1985, p. 12). nesse mesmo sentido, fiel aoconceito original, que Carl Gustav Jung se apropriar do termo ao falar sobre religio, especialmente em seuPsicologia e Religio, o que deixa claro logo no primeiro captulo, A Autonomia do Inconsciente: Religio como diz o vocbulo latino religere uma acurada e conscienciosa observao daquilo que Rudolf Ottoacertadamente chamou de numinoso (JUNG, 1987, p. 9). Neste nosso trabalho, muito mais modestamente,numinoso quer apenas fazer referncia ao desconhecido, divindade, quele(s) a quem se teme, ao(s) ser(es)digno(s) de adorao, de se prestar culto: qualquer divindade e qualquer culto.
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Nessa condio ela quem determina e d nome ao culto, garantindo grande prestgio para o
seu proprietrio:
Em vez de um culto aldeo ou tribal, existem vrios cultos, um culto dasflautas do esprito da gua, um culto das flautas do esprito da mata [...].Cada um desses objetos sagrados propriedade individual [...]. O
proprietrio de uma flauta de crocodilo a mantm oculta em sua prpria casa.[...] as flautas sagradas e as cerimnias de iniciao, sem as quais ningum
pode olhar para as flautas, tornaram-se parte do jogo que os grandes homensexecutam em busca do prestgio e fama. (MEAD, 1979, p.181).
Nem todos os instrumentos musicais so sagrados para os Mundugumos e apenas
alguns so revestidos de sacralidade passando a ser venerados. Quer dizer que aquele povoconhece e pratica um tipo de msica secular, desassociada do culto, e outra, separada
especialmente para o momento do ritual, sacralizada, portanto.
Assim, conclumos at aqui que, primeiro, algum tipo de msica acompanha o
homem por toda sua histria; segundo, que ela pode servir como meio de comunicao entre
pessoas de uma mesma cultura e que pode levar mensagens de um grupo cultural a outro;
terceiro, que msica e culto esto fortemente associados: se sons musicais so bons veculos
para difundir mensagens entre os seres humanos, certamente devem ser teis para que estes se
comuniquem com o ser divino, com o numinoso.
Agora devemos caminhar mais um passo considerando o seguinte: se h msica
para difundir mensagens, para falar dosdeuses e para falar aosdeuses, haveria, quem sabe,
alguma msica atravs da qual os prprios deuses falassem aos homens? Que fizesse,
portanto, o caminho inverso, no do homem para os deuses, mas sim dos deuses para os
homens?
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2.1.1. O HOMEM FALA COM DEUS E DEUS FALA COM O HOMEM
Analisando a msica ritual, cltica, de diferentes grupos culturais desde os mais
primitivos, no ser difcil perceber que a comunicao do homem com o divino, pode ser
caminho de mo dupla: se os homens crem que podem falar ao deus atravs da msica,
alguns crem tambm que o deus pode falar com o ser humano por seu intermdio. H povos
para os quais qualquer msica sempre associada ao sagrado, e o canto, considerado a prpria
voz da divindade. Para estes, no se pode falarcom o numinoso, mas possvel chegar-se a
ele cantando!
Eduardo Viveiros de Castro, que estudou os ndios da Amrica do Sul, chama
ateno para dois aspectos do canto entre eles: primeiro, que o canto quase sempre religioso;
e segundo, que esse um trao comum de todas aquelas sociedades:
[...] o xamanismo, a pajelana essencialmente canto. E seu cantar exatamente fazer os deuses falarem; o canto nessas sociedades indgenas, eisso outro trao comum nelas, fortemente conotado do ponto de vistareligioso. Quer dizer, cantar a atividade religiosa por excelncia. A faladivina sempre cantada, digamos assim, o canto a forma suprema da fala.(CASTRO, 1999, p. 24, grifo nosso).
Castro mostrou que, nessas comunidades, msica tambm veculo para a
divindade comunicar-se com o homem: A forma, por excelncia, de comunicao da
divindade, dos espritos, com os humanos, atravs do canto. Ento, o canto a voz do
alm, a voz do transcendente. (Ibid., p. 24, grifo nosso).
Mantendo-se as devidas propores que Histria e Geografia, isto , o tempo, o
espao, bem como a cultura, exigem, o fenmeno reproduz, aqui, mutatis mutandi, o
pensamento de Martinho Lutero quanto msica no culto: para Lutero, a origem divina da
msica a aproxima da prpria f e a torna predestinada a acompanhar sempre a vida crist.
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Por isso tem espao garantido e honroso no culto, onde ela , por um lado, resposta dos
homens ao chamado de Deus, mas tambm anuncio, proclamao.
Mas para melhor compreendermos essas idias, devemos, antes, lembrar o que
Lutero disse sobre o culto. Walter Blankenburg, em seu Kirche und Musik
(BLANKENBURG, 1979, p. 326), destaca um importante aspecto, o de que o culto luterano
no era umsacrificiumoferecido a Deus pelos homens, mas sim um beneficium, um presente
de Deus aos seus filhos. A graa de Deus e sua beno chegavam ao seu povo atravs da
Palavra e do Sacramento (beneficium); as oraes, louvores e aes de graas da comunidade
elevavam-se at Ele (sacrificium), conceito que Lutero (apud REED, 1947, p. 8, traduo
nossa) esclarece de maneira muito simples:
Essas so as duas funes do sacerdcio: ouvir Deus falar, e falar com Deus,que nos ouve. Atravs da Beno, do sermo e da distribuio do SantoSacramento, Deus vem at ns e fala conosco; ento eu o ouo e novamentevou at ele, falo nos prprios ouvidos de Deus, que ouve minha orao.
Christiane Bernsdorf-Engelbrecht (1980, v. 1, p. 13) define o culto reformado
como um encontro da Igreja com seu Senhor, encontro esse bipolarizado entre Wort /
Palavra (em especial a prdica) e Antwort / Resposta (o louvor e a orao da
comunidade). Com a concepo do sacerdcio geral de todos os crentes, Lutero no mais
aceitou que os fiis permanecessem passivos no culto e caberia msica papel importante nos
dois plos. Assim que, na concepo reformada do culto bipolarizado entre WorteAntwort,
no cabe msica papel apenas no segundo plo, o da resposta do fiel ao convite divino.
Msica litrgica16tem, ela tambm, funo de anncio, de proclamao (Verkndigung), e
16H que se fazer clara distino entre Msica Sacra e Msica Litrgica: Chamamos sacra toda msicacujo tema central, ou gnero, ou forma, tem como ponto de partida o ambiente religioso, utiliza textos religiososou da histria da religio, mesmo que no tenha sido composta para qualquer igreja ou culto. Litrgicas soapenas as msicas produzidas para algum culto, comprometidas com alguma liturgia, com o ambiente, com ocultuante e o cultuado. sacro, por exemplo, mas no litrgico, o oratrio O Messias, de G. F. Handel, j queno foi composto para qualquer culto mas sim como pea comercial para o teatro; so sacras, ainda, as grandesMissas, os Te Deum, os Magnificat dos compositores do Classicismo ou do Romantismo, mas no obraslitrgicas, j que, apesar de seus textos, natos em ambiente religioso, no foram compostas para qualquer culto,
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ela o faz eficientemente ...pois as notas [...] vivificam o texto (...da die noten [...] den text
lebendig machen) (LUTHER, 1951, n. 2545). Em outras palavras, se o homem fala a Deus
atravs dos cnticos religiosos, tambm Deus pode falar ao homem por seu intermdio.
Parece que surge, aqui, uma dupla funo para a msica litrgica, uma diviso
funcional: msica bom veculo para o homem falar com Deus, mas tambm eficiente meio
para Deus falar ao homem. No importa se a mesma msica pode ocupar ambos os papis,
tomar as duas funes; importa apenas reconhec-los.
2.2. MSICA COMO FENMENO SONORO
Quando aqui falamos em msica, referimo-nos especificamente ao fenmeno
sonoro musical, arte de combinar os sons com algum sentido lgico, esttico. No nos
referimos ao conjunto letramsica. As palavras que, acrescentadas msica formaro os
cnticos, precisam ser compreendidas, a priori, como um elemento parte, j que extra-
musical. O prprio Calvino (In: COSTA, 2006, p. 194), embora no fosse msico, sabia
distinguir perfeitamente a msica como fenmeno sonoro, isolando-a da poesia, do texto, que
pode ou no acompanh-la: Ora, falando particularmente da msica, admito-lhe duas partes: a
letra, ou contedo e matria; em segundo lugar, o canto, ou melodia. Um bom texto pode ser
associado a uma msica m, por exemplo, ou, ao contrrio, um texto ruim pode vir
acompanhado de excelente msica. Para qualquer anlise mais profunda que se queira fazer
de qualquer cano , pois, necessrio distinguir o texto da msica. Por isso mesmo faz-se
no tm caractersticas litrgicas, antes as de espetculos musicais para o teatro. Por outro lado, so litrgicosos Preldios Corais e as Cantatas Sacras de J. S. Bach, por exemplo, ou as obras de outros tantos compositoresque compunham para a liturgia dos cultos das igrejas onde trabalhavam, comprometidos com o ambiente cltico,com a tradio e com a forma da cerimnia. De acordo com esse critrio, portanto, nem toda msica sacra litrgica.
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necessrio esclarecer exatamente a que tipo de fenmeno nos referimos quando falamos em
msica. E defini-la pode ser tarefa no muito simples.
At a primeira metade do sculo XX, a maior parte dos tratados de teoria musical
definia msica como a arte de combinar os sons de maneira agradvel ao ouvido (Cf., como
exemplo, SINZIG, 1976, p. 384; ou ICHTER, 1976, p. 9). Hoje consideramos essa definio
ultrapassada, envelhecida, pois provoca, evidentemente, a seguinte questo: agradvel ao
ouvido de quem?; ou que ouvido determinar se dada combinao de sons pode ser
considerada msica?. Se aceitssemos a definio, restringiramos o fenmeno musical questo cultural, ao gosto pessoal, o que quer dizer, por exemplo, que a msica das antigas
dinastias chinesas, difcil de ser compreendida hoje, jamais poderia ser considerada msica
por muitos de ns, cidados ocidentais do terceiro milnio! Ainda como exemplo, mas
considerando a questo pelo ngulo oposto: se msica uma combinao de sons para que
resultem agradveis ao ouvido, sempre haver algum que a julgar agradvel, ao menos o
compositor! Nesse caso qualquer agrupamento sonoro deveria ser msica. Deve-se
buscar, portanto, uma definio mais apropriada.
Considerando que msica , indiscutivelmente, um fenmeno sonoro, parece
bvio defini-la como uma forma de arte que tem como material bsico o som, conforme
expressou M. Penna (1999, p. 14). Mas esse som precisa ser modelado de acordo com os
valores culturais de uma dada sociedade, num momento especfico de sua histria. Assim,
Penna (1999, p. 14) retoma a definio anterior e a complementa: msica uma linguagem
artstica, culturalmente construda, que tem como material bsico o som.O som, portanto,
o ponto de partida, o material bsico, mas no o nico. Murray Shafer, importante compositor
e educador canadense contemporneo, em seu Ouvido Pensante (1991), discute as mais
conhecidas e antigas definies de Msica, e oferece uma outra, atual, embora, segundo ele
mesmo, provisria: Msica uma organizao de sons (Ritmo, Melodia, etc.) com a
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inteno de ser ouvida (SHAFER, 1991, p. 35). Shafer alerta para a inteno: nem todo
som aleatrio msica, portanto, e, nesse caso, aproxima-se da definio de Penna, quando
este falou em linguagem culturalmente construda. Mas Shafer reconhece que msica
fenmeno complexo e que suas partes, ritmo, melodia, etc, precisam ser organizadas.
De fato, entre os diversos elementos constituidores da msica, alguns se
destacam, especialmente o Ritmo (freqncia com que um evento ocorre em dado espao de
tempo neste caso o pulso e os acentos tnicos e tonos do conjunto) e a Melodia (sucesso
de sons, isto , um som seguido de outro, numa ordem contnua). No existe msica sem esseselementos bsicos,17 embora se possa falar de muitos outros, como a Harmonia 18 e o
Timbre19, por exemplo. Concentrando-nos apenas nesses trs, Ritmo, Melodia e Harmonia,
fato, hoje indiscutvel e cientificamente experimentado, que cada um desses elementos tem
ao (ou influncia) preponderante sobre parte especfica do organismo humano: o ritmo
sobre os msculos; a melodia sobre as emoes e a harmonia sobre o intelecto.
Assim, a estrutura rtmica da msica, o Ritmo, implcito ou explcito20, que
interfere em nossa estrutura muscular, altera nosso pulso cardaco, nossa velocidade de
marcha, ou nosso sistema respiratrio.21So as Melodiasque interferem poderosamente com
as emoes humanas e podem levar pessoas da alegria s lgrimas ou da euforia calma em
poucos instantes22. So as Harmonias, elaboradas em estruturas de maior ou menor
17 possvel haver uma forma de msica s com o elemento Ritmo. Fanfarras, grupos de instrumentistasrtmicos certamente fazem msica. Mesmo esses, porm, freqentemente formam estruturas rtmicas complexaspara que melodias simples, vocais ou instrumentais, se articulem. Quando falamos em msica aqui, entretanto,pensamos no padro usual, regular (no no extraordinrio) de msica Europia e Americana.18Harmonia a combinao de diferentes melodias, tocadas ou cantadas simultaneamente.19Timbre a qualidade ou a cor de um som. Ele caracteriza o som especfico de cada instrumento ou voz.Instrumentos diferentes emitindo uma mesma nota musical, produziro diferente timbres.20Melodias implicitamente sempre formam ou causam ritmos, que tero j que formaro ritmos apelomuscular. So ritmos causados pela prpria construo da melodia, mas que agem sobre o organismo comoqualquer outra estrutura rtmica.21Embora sempre falemos aqui sobre a ao da msica sobre seres humanos, tambm animais irracionais estosujeitos mesma influencia. No caso do Ritmo, a mesma ao exercida sobre mamferos e at sobre os rpteis.22As Melodias agem tambm sobre os mamferos irracionais (mas no sobre os rpteis), da mesma forma e comas mesmas conseqncias que sobre os humanos.
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complexidade, que exigiro maior ou menor esforo intelectual do ouvinte para apreci-las e
do msico para constru-las.23
Msica, portanto, fenmeno presente em todas as culturas humanas, linguagem
artisticamente elaborada de acordo com a necessidade e a habilidade de cada grupo cultural,
age sobre os seres vivos e pode influenci-los, alterando seus sinais orgnicos, emocionais ou
intelectuais.
Tudo isso posto, queremos concentrarmo-nos, agora, na msica da igreja. Na
msica praticada nas celebraes litrgicas anteriores Reforma Protestante, bem como nas
idias dos reformadores a seu respeito; nos papis que a msica pode exercer no culto; em
suas duas funes principais no servio litrgico, impresso e expresso.
2.3. AS POSSVEIS FUNES DA MSICA NO CULTO:
IMPRESSO E EXPRESSO
Como j se afirmou, pode-se dizer, grosso modo, que a msica tem duas funes
bsicas no culto: de impresso ou de expresso. Dito de outra forma, qualquer msica, em
qualquer culto, pode desempenhar um desses dois papis: ela ser Msica de Impresso ou
Msica de Expresso. Queremos defender que qualquer forma de msica, em qualquer hora
do culto (qualquer culto e qualquer msica), utilizada consciente ou inconscientemente,
assumir um desses dois papis.
Esta diviso funcional foi bastante utilizada pela Escola de Herford24no sculo
XX, desde a dcada de cinqenta. No Brasil, tornou-se conhecida especialmente atravs de
23S seres humanos decodificam Harmonias. Animais irracionais no.
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Joo Wilson Faustini (1996, p. 15), em seu livro sobre msica e adorao, embora ali ele a
utilize de forma mais restritiva.
O papel de impresso da msica certamente o que causou, e ainda causa,
maiores dificuldades quando visto da perspectiva do culto. bem verdade que, consciente ou
inconscientemente, alguns grupos religiosos o tem valorizado em diferentes pocas da
histria, especialmente pelos que buscam, em seus cultos, apelo mais emotivo entre os fiis.
Trata-se do poder que a msica tem de atuar sobre nosso corpo e nossas emoes, alterando-
as. Nesse caso ela pode nos acalmar ou excitar, ainda que sem palavras, e criar diferentes
atmosferas: de alegria, de paz, de tristeza, de majestade, ou simplesmente um ambiente
devocional, quando for apropriada. Se as palavras de um cntico no so bem compreendidas,
desaparece sua funo de expresso (da qual falaremos abaixo), podendo, porm, subsistir a
de impresso. Longas melodias, repetio exaustiva de frases musicais, extrema nfase
meldica com grandes saltos intercalados de cromatismos, so recursos musicais que geram,
em essncia, msica emotiva e de efeito contagiante que, embora possa vir acompanhada de
texto, dele no depende, nem com ele se preocupa. Sua finalidade alcanar os presentes
emocionalmente, criando ambiente preparatrio, suposta ou verdadeiramente litrgico.
De outro lado, os cnticos entoados pela congregao ou grupo especial, em
diferentes momentos de culto, cujos textos tenham sido elaborados e escolhidos para que a
mensagem neles contida seja compreendida, absorvida e fixada pelos participantes, cnticos
esses apropriados para cada momento especfico do culto, e cujo sentido reforado pela
msica, esses podem ser classificados como msica de expresso. A msica, nesse caso,
ser veculo para o texto e ser to mais eficiente quanto melhor for seu casamento com as
palavras, isto , quanto melhor a msica puder expressar, por si s, as idias contidas no texto.
24Chamamos de Escola de Herford ao grupo de pensadores da Westflische Landeskirchenmusikschule, msicose telogos, que, na segunda metade do sculo XX eram responsveis por elaborar toda a msica da IgrejaLuterana Alem. Dentre eles destacam-se: Alexander Vlker, Lebrecht Schilling, Wilhelm Ehmann, Johannes H.E. Koch e Christiane Bernsdorff-Engelbrecht.
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H msica, portanto, que valoriza o fenmeno musical, em si; e h msica que
quer ser serva do texto e veculo para que este seja bem compreendido pela comunidade.
O que parece ter despertado tanta antipatia em alguns dos reformadores e, antes
deles, nos Pais da Igreja25, quanto ao uso da msica instrumental ou de um tipo de msica
ricamente ornamentada no culto, foi a conscincia de que os sons podiam exercer poder
sobre as emoes humanas. Eles declararam seus temores de que a msica pudesse chamar
tanto a ateno para si, desviar tanto os fiis da Palavra, inebri-los tanto pela sua beleza, que
poderia lev-los a perder o eixo central do culto. Seria a msica pela msica, no mximo
para criar ambientes atraentes, isto , apenas em sua funo de impresso.
Santo Agostinho, em suas Confisses, revela suas preocupaes quanto aos
prazeres do ouvido, prazeres esses que prendem e subjugam com maior tenacidade do que
outros prazeres (Cf. Confissesa X. 32 com a X. 33). importante observar, entretanto, que
mesmo Agostinho (1973, p. 219-220) reconhece o valor da msica quando ela serva do
texto e no espetculo em si mesma:
Porm quando me lembro das lgrimas derramadas ao ouvir os cnticos davossa Igreja nos primrdios da minha converso f, e ao sentir-me agoraatrado, no pela msica, mas pelas letras dessas melodias, cantadas em vozlmpida e modulaes apropriadas, reconheo, de novo, a grande utilidadedesse costume. [...] Portanto, sem proferir uma sentena irrevogvel, inclino-me a aprovar o costume de cantar na Igreja, para que, pelos deleites doouvido, o esprito, demasiado fraco, se eleve at aos afetos de piedade.Quando, s vezes, a msica me sensibiliza mais do que as letras que se
cantam, confesso com dor que pequei.
25Entende-se por Patrstica a cincia que versa sobre os pais da Igreja. Embora exista alguma divergncia quantos datas limites de incio (para alguns o ano 96, com a epstola Clemente I) e fim (talvez 749/750, a morte deJoo Damasceno), a Patrstica compreende todos os escritores da Antigidade crist at Gregrio Magno (mortoem 604) ou at Isidoro de Sevilha (morto em 636), no ocidente, ou ainda, como se viu, at Joo Damasceno(morto em 749), no oriente. As duas tradies, ocidental e oriental, portanto, divergem um pouco. Mas dentrodessa classificao, a Patrstica, que se encontram os oito doutores da igreja, quatro do ocidente, Ambrsio (c.339-397), Jernimo (347-419/420), Agostinho (354-430) e Gregrio, o Grande (540-604); e quatro do oriente,Baslio, o Grande (330-379), Gregrio de Nazianzo (c. 329-390), Atansio (295-373) e Joo Crisstomo (347-407). (Sobre a Patrstica, ou quem so os Pais da Igreja, e sobre os doutores do oriente e ocidente, cf. HALL,2000, p. 46-125).
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As idias de Calvino sobre a msica no culto, expressas em seu sermo sobre o
livro de J (apud STEVENSON, 1953, p. 17, traduo nossa), so muito semelhantes s de
Agostinho:
No se pode condenar a msica em si; mas porque o mundo quase sempreabusa dela, devemos ser mais circunspetos [...]. O Esprito de Deus condena[...] a vaidade que est associada msica [...] pois os homens tm muito
prazer nela: e quando eles assentam seus prazeres nessas bases e em coisasterrenas, eles no pensam em Deus.
Nas Institutas (1989, III, 20. 32) ainda se pode ouvir algo da voz agostiniana:
E certamente, se [...] o canto, por um lado, concilia dignidade e graa aosatos sacros, por outro, muito vale para incitar os nimos ao verdadeiro zelo eardor ao orar. Contudo, impe-se diligentemente guardar que no estejam osouvidos mais atentos melodia que a mente ao sentido espiritual das
palavras. [...] Aplicada, portanto, esta moderao, dvida nenhuma h queseja uma prtica muito santa, da mesma forma que, por outro lado, todos equaisquer cantos que ho sido compostos apenas para o encanto e deleite dosouvidos nem so compatveis com a majestade da Igreja, nem podem a Deusno desagradarem sobremaneira.
A est a razo de tanto cuidado. O problema no a msica, em si, que Calvino,
alis, sabia apreciar. Mas a mente devia estar mais atenta s palavras do que os ouvidos
msica. O perigo era o excesso de prazer na msica, na beleza dos sons que encantam os
ouvidos. Demasiada atrao por coisas terrenas e se deve lembrar que msica era uma arte
secular para Calvino desviava o pensamento das pessoas e as afastava de Deus. Calvino,
assim, nunca foi contra o uso, mas sim contra o abuso da arte da msica no culto de louvor
cristo. (KEITH, 1987, p. 71, grifo do autor).
Mas alm de tudo isso, quando estudamos a msica do final da Idade Mdia,
devemos tentar descobrir o papel que a msica ocupava na sociedade, o conceito e o uso que
dela faziam, tanto os intelectuais quanto as pessoas comuns.
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2.4. BOA MSICA, MSICA M26
Temos dificuldades considerveis, hoje, quando queremos entender o papel das
artes e em especial da msica na Idade Mdia - e necessariamente pensamos em Idade Mdia
para falarmos na Reforma Protestante - ou no Barroco. A msica ocupava um lugar na
sociedade completamente diferente do que ocupa hoje. As artes tinham, naquele tempo,
funes quase ininteligveis para ns hoje. At mesmo o prprio mundo da poca, olhado por
ns atravs de nossas lentes culturais, facilmente pode ser mal compreendido. Foi, alis, esse
olhar posterior, desfocado e inevitavelmente preconceituoso que atribuiu Idade Mdia o
epteto de Idade das Trevas.
A cosmoviso medieval, a concepo de mundo na Idade Mdia, era muito
diferente da nossa, que vivemos em um globalizado e interconectado mundo ps-moderno.
Nos tempos de Lutero e Calvino houve em alguns lugares da Europa central, uma espcie de
renascimento das idias do Gnosticismo, quase como um novo neoplatonismo27, isto , um
renascimento do neoplatonismo dos primeiros sculos e que, por sua vez, propunha um
resgate do sistema filosfico de Plato (429-347 a. C.) e dos seus seguidores. Uma das suas
caractersticas o dualismo, uma forma de conceber o mundo como que dividido em dois
plos, sem nuanas. Um bom exemplo dessa viso dualstica do mundo seu prprio conceito
da relao entre o Bem e o Mal: se algo bom, seu plo contrrio , necessariamente, mau.
Assim, se o cu bom, a terra necessariamente m. Se o esprito bom, a carne deve ser
m. O Criador indiscutivelmente bom! Logo, a criatura m.
26As idias que se seguiro, sobre os conceitos de boa msica e msica m no final da Idade Mdia, foramantes publicadas na revista Fides Reformata, volume 1, nmero 1, no nosso artigo Msica: Explicatio Textus,Praedicatio sonora, 1996, p. 60-64.27Dizemos novo neoplatonismo porque foi ainda nos sculos III e IV que floresceu em Alexandria a doutrina aque primeiro se chamou Neoplatonismo. O que se d no fim da Idade Mdia um resgate de alguns daquelesvalores, algo de sua cosmoviso, do conceito de Bom e Belo, por exemplo, em oposio ao Feio e Mau. Os queacitavam essa oposio podiam converter facilmente o sentimento do belo em um sentido de comunho com odivino, bem como identificar tudo o que lhe fosse oposto, com o mal e com Satans. No tinham, por certo, umareligio da beleza separada da religio da vida (como os romnticos). Bom e belo confundiam-se.
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Esse tipo de dualidade na forma de ver o mundo tambm se refletia na arte. A
verdadeira beleza estava nas propores entre as partes e na simetria numrica das partes com
o todo. Umberto Eco, falando sobre a definio de beleza esttica na Idade Mdia, nos lembra
(ECO, 1989,p. 45):
De todas as definies de beleza, uma teve particular fortuna na IdadeMdia, e provinha de Santo Agostinho (Epistula3, CSEL 34/1, p. 8): Quidest corporis pulchritudo? Congruentia partium cum quadam coloris
suavitate. (O que a beleza do corpo? a proporo das partesacompanhada por uma certa doura de colorido.) Esta frmula reproduziruma outra, quase anloga, de Ccero (Corporis est quaedam apta figura
membrorum cum coloris quadam suavitate, eaque dicitur pulchritudo.Tusculanae IV, 31, 31), a qual, por sua vez, sintetizava toda a tradioestica, e clssica em geral, expressa pela dade chrma ka symmetra
Era da que vinha o conceito barroco de Harmonia Sonora, uma tcnica musical,
uma arte, baseada no princpio da ordem e do nmero, com regras claras e definidas. Mas o
conceito tinha razes ainda mais antigas (ECO, 1989,p. 45s):
O aspecto mais antigo e fundamentado de tais frmulas era sempre o dacongruentia, da proporo, do nmero, que, sem dvida, originava-se dos
pr-socrticos. (A ordem e a proporo so belos e teis Aristosseno,Diels, I, 469). Atravs de Pitgoras, Plato, Aristteles, esta conceposubstancialmente quantitativa de beleza havia aparecido recorrentemente no
pensamento grego, para se fixar de maneira exemplar [...] no Cnon dePolicleto e na exposio que dele havia feito sucessivamente Galeno. [...] Onico fragmento que possumos dele j contem uma afirmao terica (o
belo surge, pouco a pouco, de muitos nmeros). [...] Destes textos nasceu,portanto, o gosto por uma frmula elementar e polivalente, por umadefinio da beleza que exprima numericamente a perfeio formal [...].
No nosso caso, quando se tratava da msica, concebia-se que aquela que se
enquadrava em certos padres tcnicos julgados bons era objetivamente boa e a que dela
diferia, a outra, era objetivamente m. A Boa Msica era organizada, ordenada, baseada em
fundamentos numricos, fossem esses fundamentos os princpios numricos do contraponto
ou, mais tarde, os do Baixo Cifrado.
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5/20/2018 Musica Na Liturgia
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Ser til, aqui, nos lembrarmos que Msica na Idade Mdia era parte do
Quadrivium, uma parte importante das sete Artes Liberais da Idade Mdia28. No Quadrivium
as artes eram compreendidas aos pares, que se complementavam relacionando-se entre si.
2.4.1.ARS,TevcnhE AS ARTES LIBERA
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