livro ad reflexoes introdutorias - cleudemar
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Cleudemar Alves Fernandes
ANLISE DO DISCURSO
reflexes introdutrias
Edio revista e ampliada
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Cleudemar Alves Fernandes
ANLISE DO DISCURSO
reflexes introdutrias
Edio revista e ampliada
-
SUMRIO
Proposio
A Noo de Discurso: discurso, ideologia e efeito
de sentido
O Sujeito Discursivo: polifonia, heterogeneidade e
identidade
Formao Discursiva; Memria e Interdiscurso:
linguagem e histria
Anlise do Discurso: entrecruzamento de
diferentes campos disciplinares
Metodologia em Anlise do Discurso
Um Exerccio de Anlise de Discurso
Uma Volta aos Percursos Tericos: as trs pocas
da AD e histrias mais
Palavras Finais
Indicaes para Leitura
Referncias Bibliogrficas
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Proposio
-
Nossa experincia como professor na rea de
Lingstica, mais especificamente de Anlise do Discurso,
em cursos de graduao e de ps-graduao, tem nos
possibilitado compartilhar um anseio comum entre os
profissionais e estudantes dessa rea. Referimo-nos falta, e
conseqentemente necessidade, de um material
bibliogrfico cuja natureza didtica facilite o acesso ou a
compreenso da Anlise do Discurso como uma disciplina.
Diante disso, em 2005 produzimos a 1. edio deste
trabalho na tentativa de preencher essa lacuna na rea em
questo. Com o mesmo interesse, apresentamos agora uma
edio revista e ampliada deste livro com o objetivo de
fornecer aos colegas professores e aos estudantes de Anlise
do Discurso um material bibliogrfico atualizado que rena
as questes basilares dessa rea de estudos e que sirva como
subsdio para as atividades de ensino. Ao apresentar uma
reflexo de carter introdutrio, procuramos tambm
fornecer pistas, ou abrir portas, para um estudo mais
-
aprofundado aos que se interessarem pelo discurso como
objeto de investigao cientfica. Faremos, pois, uma
reflexo em torno de alguns conceitos bsicos, de carter
introdutrio a essa rea do conhecimento, e delinearemos
caminhos, inclusive com indicaes de leitura, para um
estudo mais acurado.
Todo campo do saber edifica-se pautado em um rigor
terico a partir da definio de aspectos metodolgicos, e
focaliza um objeto que lhe especfico. Para a Anlise do
Discurso, enquanto disciplina, o prprio nome efetua
referncia ao seu objeto de estudos: o discurso.
Para a realizao do nosso empreendimento,
partiremos de uma interrogao inicial: O que se entende por discurso?. Aps arrolarmos algumas reflexes visando compreenso desse objeto, tendo em vista as suas
especificidades e complexidade no campo disciplinar em
questo, estabeleceremos suas inter-relaes tericas,
abordando alguns conceitos primordiais da Anlise do
Discurso, necessrios at mesmo para a compreenso de
discurso enquanto objeto de estudo. O carter de
complexidade por ns assinalado decorre do fato de discurso
implicar uma exterioridade lngua, ser apreendido no
social, cuja compreenso coloca em evidncia aspectos
ideolgicos e histricos prprios existncia dos discursos
nos diferentes contextos sociais.
Iniciaremos nossas reflexes justamente com um
captulo destinado explanao da noo de discurso e suas
possibilidades de apreenso para anlise. Nesse momento,
refletiremos tambm sobre a noo de sentidos e de efeitos
de sentidos, conceitos decorrentes das representaes sociais
e imaginrias dos homens em sociedade.
-
Dando continuidade a este estudo, j em um segundo
captulo, arrolaremos reflexes especficas sobre a noo de
sujeito discursivo, uma vez que, para a Anlise do Discurso,
no se focaliza o indivduo falante, compreendido como um
sujeito emprico, ou seja, como algum que tem uma
existncia individualizada no mundo. Importa o sujeito
inserido em uma conjuntura social, tomado em um lugar
social, histrica e ideologicamente marcado; um sujeito que
no homogneo, e sim heterogneo, constitudo por um
conjunto de diferentes vozes. Assim, as noes de polifonia,
heterogeneidade e identidade tambm constituem objeto de
reflexo e so necessrias para se compreender o que
chamamos sujeito discursivo.
As noes de formao discursiva, de interdiscurso e
o papel da memria (uma memria de natureza social)
tambm fazem parte do rol dos conceitos bsicos
necessrios para se ter uma compreenso da Anlise do
Discurso. Esses conceitos sero abordados em captulo
especfico neste estudo, o terceiro apresentado, momento em
que faremos uma recorrncia Histria, disciplina que se
entrecruza com a Lingstica para a constituio da Anlise
do Discurso.
Mostraremos, tambm em captulo especfico, o
entrecruzamento de diferentes disciplinas na constituio da
Anlise do Discurso no rol das cincias da linguagem, uma
vez que, para referir-se a discurso, necessita-se romper com
uma viso estritamente lingstica e compreender as inter-
relaes da linguagem com a Histria e com a Psicanlise.
Explicitaremos esse carter interdisciplinar visando
explicao da constituio da Anlise do Discurso como
subrea da Lingstica.
-
Nessa mesma direo, apresentaremos um captulo
para explicitar aspectos metodolgicos prprios Anlise
do Discurso. Nesse campo disciplinar, teoria e metodologia
so indissociveis, escolha metodolgica vincula-se a
escolha terica, o que deve ser condizente com a natureza
do objeto discursivo tomado para anlise.
Aps a explanao dos conceitos bsicos da Anlise
do Discurso, faremos um breve exerccio de anlise de
discurso. Tomaremos como material para anlise o poema
Leilo, escrito em 1933 por Joraci Schafflr Camargo e
Hekel Tavares. Com a anlise, apontaremos os diferentes
discursos materializados nesse texto e explicitaremos o
entrecruzamento dos aspectos sociais, histricos e
ideolgicos na linguagem, a partir dos quais apontaremos as
diferentes vozes constitutivas do sujeito discursivo.
Finalmente, faremos um retorno, para, com
recorrncia histria dessa disciplina, explicitarmos, ainda
que brevemente, seu percurso terico. A construo terica
da Anlise do Discurso, de suas primeiras proposies aos
dias atuais, passou por reelaboraes, por alteraes, ao que
seus proponentes e estudiosos denominaram inicialmente as
trs pocas da AD: AD1, AD2 e AD3. Aqui, acrescentamos
o subttulo histrias mais para pincelarmos, ainda que breve
e superficialmente, os desdobramentos e abrangncia atuais
dessa disciplina. Optamos por apresentar o percurso terico
aps a apresentao dos conceitos, como os compreendemos
atualmente, por acreditarmos que, neste momento, diante de
uma reflexo acerca dos aspectos basilares da Anlise do
Discurso, a compreenso da histria desse constructo terico
ser facilitada.
A seqncia dos captulos como os apresentamos
deve-se apenas a uma organizao didtica para este texto,
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pois, na Anlise do Discurso, os conceitos se implicam. Ou
seja, cada conceito ao ser arrolado exige a presena e
explanao de muitos outros, com os quais estabelece uma
relao de interdependncia.
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A Noo de Discurso: discurso, ideologia
e efeito de sentido
-
Como o prprio nome da disciplina em foco Anlise do Discurso indica, discurso o objeto de que essa disciplina se ocupa. Como se trata de um campo do
conhecimento cientificamente constitudo, a compreenso
desse objeto de anlise requer um rigor terico, do qual
devemos nos vestir para referirmos a discurso. Diante disso,
partiremos da interrogao: o que se entende por discurso? Discurso, como uma palavra corrente no cotidiano da
lngua portuguesa, constantemente utilizada para efetuar
referncia a pronunciamentos polticos, a um texto
construdo a partir de recursos estilsticos mais rebuscados,
a um pronunciamento marcado por eloqncia, a uma frase
proferida de forma primorosa, retrica, e muitas outras
situaes de uso da lngua em diferentes contextos sociais.
Porm, para compreendermos discurso como um objeto do
qual se ocupa uma disciplina especfica, objeto de
-
investigao cientfica, devemos romper com essas acepes
advindas do senso comum, que integram nosso cotidiano, e
procurar compreend-lo respaldados em acepes tericas
relacionadas a mtodos de anlise.
Inicialmente, podemos afirmar que discurso, tomado
como objeto da Anlise do Discurso, no a lngua, nem
texto, nem a fala, mas necessita de elementos lingsticos
para ter uma existncia material. Com isso, dizemos que
discurso implica uma exterioridade lngua, encontra-se no
social e envolve questes de natureza no estritamente
lingstica. Referimo-nos a aspectos sociais e ideolgicos
impregnados nas palavras quando elas so pronunciadas.
Assim, observamos, em diferentes situaes de nosso
cotidiano, sujeitos em debate e/ou divergncia, sujeitos em
oposio acerca de um mesmo tema. As posies em
contraste revelam lugares socioideolgicos assumidos pelos
sujeitos envolvidos, e a linguagem a forma material de
expresso desses lugares. Vemos, portanto, que o discurso
no a lngua(gem) em si, mas precisa dela para ter
existncia material e/ou real.
Para exemplificar essas consideraes, observemos o
emprego dos substantivos ocupao e invaso em revistas e
jornais que circulam em nosso cotidiano. Tais substantivos
so constantemente encontrados em reportagens e/ou
entrevistas que versam sobre os movimentos dos
trabalhadores rurais Sem-Terra e revelam diferentes
discursos que se opem e se contestam. Em torno do Sem-
Terra, ocupao empregado pelos prprios Sem-Terra, e
por aqueles que os apoiam e os defendem, para designar a
utilizao de algo obsoleto, at ento no utilizado, no caso,
a terra. Invaso, referindo-se mesma ao, empregado
por aqueles que se opem aos Sem-Terra, contestam-nos, e
-
designa um ato ilegal, considera os sujeitos em questo
como criminosos, invasores. As escolhas lexicais e seu uso
revelam a presena de ideologias que se opem, revelando
igualmente a presena de diferentes discursos, que, por sua
vez, expressam a posio de grupos de sujeitos acerca de um
mesmo tema.
Integrante da noo de discurso, encontra-se a noo
de sentido compreendida como um efeito de sentidos entre
sujeitos em interlocuo (sujeitos se manifestando por meio
do uso da linguagem). Assim, ocupao e invaso, nos
discursos supracitados, vo alm de seus significados
prescritos nos dicionrios. Se observarmos, por exemplo, a
significao de invaso para ambos os grupos de sujeito (os
defensores e os contestadores do Sem-Terra) veremos que
invadir tem sentidos diferentes e peculiares para esses
sujeitos. Esses sentidos, e no o significado da palavra
apenas, so produzidos em decorrncia da ideologia dos
sujeitos em questo, da forma como compreendem a
realidade poltica e social na qual esto inseridos.
Para falarmos em discurso, precisamos considerar os
elementos que tm existncia no social, as ideologias, a
Histria. Com isso, podemos afirmar que os discursos no
so fixos, esto sempre se movendo e sofrem
transformaes, acompanham as transformaes sociais e
polticas de toda natureza que integram a vida humana.
Acerca do discurso observado como ao social,
Orlandi (1999, p. 15) argumenta:
a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a
idia de curso, de percurso, de correr por, de
movimento. O discurso assim palavra em
movimento, prtica de linguagem: com o estudo do
discurso observa-se o homem falando.
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Analisar o discurso implica interpretar os sujeitos
falando, tendo a produo de sentidos como parte integrante
de suas atividades sociais. A ideologia materializa-se no
discurso que, por sua vez, materializado pela linguagem
em forma de texto; e/ou pela linguagem no-verbal, em
forma de imagens.
Quando nos referimos produo de sentidos,
dizemos que no discurso os sentidos das palavras no so
fixos, no so imanentes, conforme, geralmente, atestam os
dicionrios. Os sentidos so produzidos face aos lugares
ocupados pelos sujeitos em interlocuo. Assim, uma
mesma palavra pode ter diferentes sentidos em
conformidade com o lugar socioideolgico daqueles que a
empregam. Para melhor compreender essa pluralidade de
sentidos de uma mesma palavra, podemos refletir sobre os
sentidos do substantivo terra quando enunciado, por
exemplo, pelos Sem-Terra e quando enunciado por
fazendeiros integrantes da UDR (Unio Democrtica
Ruralista), uma vez que aqueles representam, de certa
maneira, uma ameaa a estes (e vice-versa). Se
acrescentarmos a essa ilustrao os sentidos de terra na
Bblia e aqueles produzidos por indgenas, entre outros,
teremos ento uma pluralidade de sentidos integrantes de (e
decorrentes de) diferentes discursos.
Essas reflexes permitem afirmar que a lngua se
insere na histria (tambm a construindo) para produzir
sentidos. O estudo do discurso toma a lngua materializada
em forma de texto, forma lingstico-histrica, tendo o
discurso como o objeto. A anlise destina-se a evidenciar os
sentidos do discurso tendo em vista suas condies scio-
histricas e ideolgicas de produo. As condies de
-
produo compreendem fundamentalmente os sujeitos e a
situao social. As palavras tm sentido em conformidade
com as formaes ideolgicas em que os sujeitos
(interlocutores) se inscrevem.
O sentido de uma palavra, de uma expresso, de uma
proposio, etc., no existe em si mesmo [...] mas, ao contrrio, determinado pelas posies
ideolgicas colocadas em jogo no processo scio-
histrico no qual as palavras, expresses e
proposies so produzidas (Pcheux, 1997b, p.
190).
A noo de discurso implica, nesse processo,
considerar as condies histrico-sociais de produo que
envolvem o discurso. Ilustramos, a esse respeito, que a
palavra terra, ao ser utilizada por determinados sujeitos,
integra um discurso e no outro tendo em vista a posio, o
lugar scio-histrico-ideolgico daqueles que a enunciam.
Como exterioridade lngua e fala, o discurso,
considerado como um objeto de investigao, constitui-se de
conflitos prprios existncia de tudo que tem vida social.
A comear pela busca de um espao na Lingstica, discurso
no a lngua e nem a fala, mas, como uma exterioridade,
implica-as para a sua existncia material; realiza-se, ento,
por meio de uma materialidade lingstica (verbal e/ou no
verbal), cuja possibilidade firma-se em um, ou vrios
sistemas (lingstico e/ou semiticos) estruturalmente
elaborados. Como o discurso encontra-se na exterioridade,
no seio da vida social, o analista/estudioso necessita romper
as estruturas lingsticas para chegar a ele. preciso sair do
especificamente lingstico, dirigir-se a outros espaos, para
procurar descobrir, descortinar, o que est entre a lngua e a
-
fala, fora delas, ou seja, para compreender de que se
constitui essa exterioridade a que se denomina discurso,
objeto a ser focalizado para anlise. Eis que, dessa maneira,
se instaura um campo de conflitos no qual diferenas sociais
coexistem. Se h diferenas, h embates no social e,
consequentemente, no lingstico. O que marca as diferentes
posies dos sujeitos, dos grupos sociais que ocupam
territrios antagnicos, caracterizando tais embates, a
ideologia, a inscrio ideolgica dos sujeitos em cena.
Portando, ideologia imprescindvel para a noo de
discurso, no apenas imprescindvel, inerente ao discurso.
Se na exterioridade do lingstico, no social, h
posies divergentes que se contrastam, nota-se a
coexistncia de diferentes discursos concomitantes, isto
implica diferenas quanto inscrio ideolgica dos sujeitos
e grupos sociais em uma mesma sociedade, da os conflitos,
as contradies, pois o sujeito, ao mostrar-se, inscreve-se
em um espao socioideolgico e no em outros, enuncia a
partir de sua inscrio ideolgica; de sua voz, emanam
discursos, cujas existncias encontram-se na exterioridade
das estruturas lingsticas enunciadas. Porm, o social e o
ideolgico que possibilitam falar em discursos, assim como
o discurso, tm existncia na Histria. Os discursos devem
ser pensados em seus processos histrico-sociais de
constituio.
A unidade do discurso constitui-se por um conjunto
de enunciados efetivamente produzidos na disperso de
acontecimentos discursivos, compreendidos como
seqncias formuladas, cuja compreenso possibilitada
pela indagao seguinte, colocada por Foucault (1995, p.
31): como apareceu um determinado enunciado e no outro
em seu lugar?
-
Essa interrogao faz com que busquemos
compreender a produo dos discursos como elemento
integrante da Histria. Se pensarmos, por exemplo, o uso
dos lexemas invaso e ocupao, to recorrentes em textos
miditicos, conforme assinalamos anteriormente, e
procurarmos compreend-los a partir da questo colocada
por Foucault, veremos as condies de produo do
discurso, ou seja, compreenderemos, a partir de um olhar
para a histria, os aspectos histricos e socioideolgicos que
envolvem a produo do discurso. Antes do surgimento dos
movimentos dos Sem-Terra, tais enunciados (se
compreendermos esses substantivos como enunciados, face
aos efeitos de sentido deles decorrentes) no circulavam na
mdia que integra nosso cotidiano, no havia um espao
histrico-social que lhes possibilitasse a existncia.
Trata-se, nesse contexto, de compreender a
singularidade da existncia do enunciado, suas condies de
produo. Como atesta Robin (1973), busca-se verificar, a
partir de enunciados efetivamente produzidos em
determinada poca e lugar, as condies de possibilidade do
discurso que esses enunciados integram. Isto equivale a
dizer que as transformaes histricas possibilitam-nos a
compreenso da produo dos discursos, seu aparecimento
em determinados momentos e sua disperso.
A noo de sentidos dependente da inscrio
ideolgica da enunciao, do lugar histrico-social de onde
se enuncia; logo, envolve os sujeitos em interlocuo. De
acordo com as posies dos sujeitos envolvidos, a
enunciao tem um sentido e no outro(s), conforme
exemplificamos referindo-nos ao emprego de invaso e
ocupao em discursos em torno do Sem-Terra.
O sentido um efeito de sentido da enunciao entre
-
A e B, o efeito da enunciao do enunciado. Isto,
considerando que A e B representam diferentes sujeitos em
interlocuo, inscritos em espaos socioideolgicos
especficos.
O sentido de uma seqncia s materialmente
concebido na medida em que se concebe esta
seqncia como pertencente necessariamente a esta
ou quela formao discursiva [...] Trata-se de um
efeito de sentidos entre os pontos A e B. [...] Os elementos A e B designam algo diferente da
presena fsica de organismos humanos individuais.
[...] A e B designam lugares determinados na
estrutura de uma formao social. (Pcheux &
Fuchs, 1990, p. 169).
O lugar histrico-social em que os sujeitos
enunciadores de determinado discurso se encontram envolve
o contexto e a situao e intervm a ttulo de condies de
produo do discurso. No se trata da realidade fsica e sim
de um objeto imaginrio socioideolgico. Trata-se
de alguma coisa mais forte - que vem pela histria,
que no pede licena, que vem pela memria, pelas
filiaes de sentidos constitudos em outros dizeres,
em muitas outras vozes, no jogo da lngua, que vai se
historicizando [...] marcada pela ideologia e pelas
posies relativas ao poder (Orlandi, 1999, p. 32).
Isto posto, reiteramos que o discurso tem existncia
na exterioridade do lingstico, no social, marcado scio-
histrico-ideologicamente. Na exterioridade do lingstico,
no social, h posies divergentes pela coexistncia de
diferentes discursos, isto implica diferenas quanto
-
inscrio ideolgica dos sujeitos e grupos sociais em uma
mesma sociedade, da os conflitos, as contradies, pois o
sujeito, ao mostrar-se, inscreve-se em um espao
socioideolgico e no em outros, enuncia a partir dessa
inscrio; conforme mostramos, de sua voz, emanam
discursos, cujas existncias encontram-se na exterioridade
das estruturas lingsticas enunciadas.
Em sntese, verificamos que, para iniciar uma
reflexo sobre o discurso, na perspectiva da Anlise do
Discurso, necessita-se buscar compreender conceitos como:
- Sentido: trata-se do efeito de sentido entre sujeitos em enunciao; nega-se a idia de mensagem
encerrada em si; contesta a imanncia do
significado;
- Enunciao: posio ideolgica no ato de enunciar e que integra a enunciao, lugar scio-histrico-
ideolgico de onde os sujeitos dizem e que marcam
o momento e o ato de dizer;
- Ideologia: uma concepo de mundo do sujeito inscrito em determinado grupo social em uma
circunstncia histrica. Linguagem e ideologia so
vinculadas, esta se materializa naquela. Ideologia
inerente ao signo em geral. Sendo assim, diante de
toda e qualquer palavra enunciada, procuraremos
verificar qual (ou quais) ideologia(s) a integra(m);
- Condies de produo: aspectos histricos, sociais e ideolgicos que envolvem o discurso, ou que
possibilitam ou determinam a produo do discurso.
-
- Sujeito discursivo: constitudo na inter-relao social, no o centro de seu dizer, em sua voz, um
conjunto de outras vozes, heterogneas, se
manifestam. O sujeito polifnico e constitudo
por uma heterogeneidade de discursos.
Esses conceitos, e outros ainda no apresentados,
esto inter-relacionados e se implicam. noo de sujeito
discursivo, que exige reflexes sobre as noes de
polifonia, heterogeneidade e identidade dedicamos o
captulo seguinte.
-
O Sujeito Discursivo: polifonia, heterogeneidade e
identidade
-
Na Anlise do Discurso, para compreendermos a
noo de sujeito, devemos considerar, logo de incio, que
no se trata de indivduos compreendidos como seres que
tm uma existncia particular no mundo; isto , sujeito, na
perspectiva em discusso, no um ser humano
individualizado. Se no se trata do indivduo, da pessoa,
como uma instncia plena de individualidade, como um ser
emprico que tem existncia particular, no se nega tambm
a existncia real dos sujeitos em sociedade. Com isso,
afirmamos que o sujeito, mais especificamente o sujeito
discursivo, deve ser considerado sempre como um ser
social, apreendido em um espao coletivo; portanto, trata-se
de um sujeito no fundamentado em uma individualidade,
em um eu individualizado, e sim um sujeito que tem existncia em um espao social e ideolgico, em um dado
momento da histria e no em outro. A voz desse sujeito
revela o lugar social; logo, expressa um conjunto de outras
-
vozes integrantes de dada realidade histrica e social; de sua
voz ecoam as vozes constitutivas e/ou integrantes desse
lugar scio-histrico.
Para a compreenso do sujeito nessa perspectiva,
verificaremos como o sujeito pode ser apreendido e
analisado a partir dos discursos. Iniciaremos, pois, com um
breve e superficial olhar para a maneira como a Lingstica
Geral considera o sujeito para, ento, contrapormos a essa
perspectiva geral a acepo da Anlise do Discurso, que
considera o sujeito constitudo por diferentes vozes sociais,
e o tem como importante ponto de discusso para a
compreenso de seu arcabouo terico.
Na Lingstica, em geral, o sujeito, quando
considerado, ora idealizado, ora um sujeito falante,
apreendido em um contexto social imediato. Para o sujeito
idealizado (ideal e no real), trabalha-se com uma
concepo de lngua como algo abstrato, um dispositivo que
o sujeito, nesse caso indivduo, poder apreender e,
consequentemente, tornar-se usurio. Em relao ao
contexto imediato, compreendido como momento e local
especfico em que se d a comunicao, ou seja, em que
ocorre o uso de uma lngua determinada, destaca-se, por
exemplo, a organizao e estruturao do dilogo, o maior
ou menor grau de obedincia gramtica padro em
conformidade com cada contexto, etc., sendo que o
contexto, inclusive, pode determinar as formas do dizer.
Uma das primeiras distines a serem estabelecidas
refere-se diferena entre sujeito falante e sujeito falando.
A referncia a sujeito falante retoma as perspectivas acima
mencionadas, ou seja, trata-se do sujeito emprico,
individualizado, que, dada a sua natureza psicolgica, tem a
capacidade para a aquisio de lngua e a utiliza em
-
conformidade com o contexto sociocultural no qual tem
existncia. O sujeito falando remonta perspectiva
assinalada quando expusemos a noo de discurso; refere-se
a um sujeito inserido em uma conjuntura scio-histrica-
ideolgica cuja voz constituda de um conjunto de vozes
sociais.
Compreender o sujeito discursivo requer
compreender quais so as vozes sociais que se fazem
presentes em sua voz. Isto posto, se retomarmos o emprego
de invaso e ocupao, conforme j expusemos, temos, pela
escolha lexical, a revelao da inscrio socioideolgica do
sujeito enunciador. Ao utilizar ocupao, por exemplo, o
sujeito integra, como partcipe, um conjunto de sujeitos cuja
natureza ideolgica revela-o como solidrio aos movimentos
dos Sem-Terra, se no um de seus integrantes. Esses
sujeitos se opem ideologicamente a um outro conjunto de
sujeitos dispersos no mbito social, contrrios a esses
movimentos, que utilizariam o lexema invaso.
Contudo, o sujeito no homogneo, seu discurso
constitui-se do entrecruzamento de diferentes discursos, de
discursos em oposio, que se negam e se contradizem. Ao
considerarmos um sujeito discursivo, acerca de um mesmo
tema, encontramos em sua voz diferentes vozes, oriundas de
diferentes discursos. presena dessas diferentes vozes
integrantes da voz de um sujeito, na Anlise do Discurso,
denomina-se polifonia (pela composio dessa palavra,
temos: poli = muitos; fonia = vozes). Face no
uniformidade do sujeito, polifonia constitutiva do sujeito
discursivo, temos a noo de heterogeneidade, que, em
oposio homogeneidade, designa um objeto, no caso um
ser, constitudo de elementos diversificados.
-
A noo de polifonia foi, originalmente, cunhada
por Mikhail Bakhtin a partir de estudos desenvolvidos sobre
o romance de Dostoivski. No estudo dessa produo
literria, Bakhtin pensou sobre o funcionamento do discurso
como forma de refletir a complexidade do romance, sua
estruturao pelos discursos, e as diferentes vozes presentes
em uma obra literria.
Inicialmente, encontramos nesse pensador a noo
de dialogismo, considerada como integrante da composio
do texto literrio, o que revela o discurso como interao
entre os sujeitos. Dialogismo refere-se s relaes que se
estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos
instaurados historicamente pelos sujeitos (Brait, 1997, p.
98), sendo que esse outro (escrito com letras minsculas)
compreende o mundo social no qual o sujeito se insere. Ao
constatar que o sujeito dialoga com um amplo conjunto
composto por outros sujeitos, com a realidade social que o
envolve, Bakhtin retoma suas reflexes acerca de um
plurilingismo no romance e ressalta a presena da polifonia
como as diferentes vozes no romance. Essas vozes so
socialmente organizadas e possibilitam o estabelecimento de
relaes sociais.
Os conceitos de dialogismo e polifonia tiveram
originalmente o texto literrio como objeto de estudo, mas
no se limitam a ele, estendem-se aos discursos cotidianos,
integram a existncia das pessoas no mundo. O estudo do
romance do literato supracitado possibilitou a compreenso
e a explicitao da natureza heterognea constitutiva da
linguagem e dos sujeitos. Assim, o sujeito e o discurso
resultam da interao social estabelecida com diferentes
segmentos em um mesmo ou em diferentes mbitos sociais;
da o entrelaamento de diferentes discursos na constituio
-
do sujeito discursivo, o que nos leva, com Bakhtin,
constatao de que o sujeito polifnico. A linguagem ser
apreendida sempre em uma situao social e histrica, na
qual e com a qual os sujeitos constituem-se pela interao
social; o eu e o outro so inseparveis e a linguagem possibilita-lhes a interao.
Como o homem no uma criao literria, as
observaes acerca da pluralidade de vozes constitutivas do
sujeito no romance, categorias denominadas por Bakhtin
como dialogismo e polifonia, ao extrapolarem os limites do
literrio, so pensadas como elementos integrantes dos
sujeitos em toda realidade social. So justamente as
reflexes acerca de dialogismo e polifonia, iniciadas como
integrantes de certo tipo de romance e compreendidas como
inerentes existncia humana, que sero retomadas pela
lingista Jacqueline Authier-Revuz para a proposio do
conceito de heterogeneidade discursiva.
A noo de heterogeneidade, conforme prope essa
autora, visando compreenso do sujeito, subdividida em
duas formas. Temos a heterogeneidade constitutiva como
condio de existncia dos discursos e dos sujeitos, uma vez
que todo discurso resulta do entrelaamento de diferentes
discursos dispersos no meio social. O sujeito constitui-se
pela interao social estabelecida com diferentes sujeitos. A
Segunda forma de heterogeneidade a mostrada. Nesse
caso, a voz do outro se apresenta de forma explcita no
discurso do sujeito e pode ser identificada na materialidade
lingstica.
Para melhor compreendermos as noes de
heterogeneidade, como apresentamos acima, podemos nos
remeter aos discursos cientficos. Se tomarmos como
exemplo um texto cuja finalidade a de possibilitar a um
-
leitor leigo uma compreenso mnima da Lingstica como
cincia, verificaremos questes como: a) o sujeito que o
escreveu deve ser um sujeito autorizado para isso;
seguramente, trata-se de um lingista; b) para se inscrever
nesse lugar de enunciao autorizado, o sujeito precisou
constituir-se como um sujeito discursivo nesse lugar.
(Dizemos com isso que o processo de constituio do sujeito
como um lingista implicou, alm dos cursos que fez graduao, ps-graduao, etc. , inmeras leituras e discusses sobre conceitos dessa rea de conhecimento); c)
para proceder a uma exposio da Lingstica como uma
cincia, a voz do sujeito enunciador constitui-se por um
conjunto de diferentes vozes (professores, colegas, textos
lidos, etc.), e o texto produzido integra uma comunidade
acadmica. Verificamos, nessa feita, uma heterogeneidade
constitutiva do sujeito. Entretanto, quando lemos esse texto
de introduo Lingstica, encontramos referncias
explcitas ou implcitas a textos e autores que o antecedem,
por meio de comentrios, citaes, uso de aspas ou itlico.
A essas diferentes vozes marcadas de maneira explcita, e
integrantes desse objeto outro texto introdutrio Lingstica recm produzido , temos o que se denominou heterogeneidade mostrada.
A heterogeneidade mostrada inscreve o outro na
seqncia do discurso discurso direto, aspas, formas de retoque ou de glosa, discurso indireto livre, ironia (Authier-
Revuz, 1990, p. 25).
Para esboar o conceito de heterogeneidade, Authier-
Revuz reflete sobre a relao do sujeito com a linguagem a
partir de consideraes, tambm, de natureza psicanaltica
possibilitadas por Freud e suas releituras efetuadas por
Lacan. Essa perspectiva corrobora a compreenso do sujeito
-
como descentrado, considerando que sempre sob as
palavras outras palavras so ditas. O sujeito tem a iluso de ser o centro de seu dizer, pensa exercer o controle dos
sentidos do que fala, mas desconhece que a exterioridade
est no interior do sujeito, em seu discurso est o outro, compreendido como exterioridade social.
Esse vis psicanaltico revela um olhar sobre o
inconsciente, sempre em atuao por meio da linguagem. O
inconsciente, conforme exps Freud, so manifestaes de
natureza psquica do/no sujeito, que fogem ao mbito de sua
conscincia, que no se manifestam de acordo com sua
vontade, mas afloram nos sonhos, nos atos falhos, nos
lapsos, etc. Assim, o inconsciente, como escape ao controle
do sujeito e estruturado em forma de linguagem, conforme
assevera Lacan, d espao manifestao do desejo. Os
lapsos, por exemplo, provocam sentidos contrrios ao que o
sujeito discursivo gostaria de mostrar. Nesse sentido,
comumente ouvimos em situaes cotidianas, aps um
sujeito fazer alguma afirmao, uma espcie de retificao
como: no isso que eu quis dizer, ou: nossa, falei demais. Alm dessas constataes do prprio sujeito de que o que falou produziu sentidos alm do que se desejava,
a produo de sentido se d fora do controle do sujeito e
fora de seu alcance.
As reflexes acerca do descentramento do sujeito, a
afirmao de que o sujeito no o centro de seu dizer,
encontra lugar tambm em Pcheux (1997b, p. 173), quando
discorre sobre dois tipos de esquecimentos do sujeito. O
esquecimento nmero 2 refere-se iluso que o sujeito tem
de controlar o que diz, de ser a fonte, a origem do seu dizer;
J pelo esquecimento nmero 1, o sujeito tem a iluso de
controlar os sentidos de seus dizeres. Essas iluses so
-
necessrias ao sujeito, mas o sujeito no o centro
organizador da enunciao. A constituio do sujeito
discursivo marcada por uma heterogeneidade decorrente
de sua interao social em diferentes segmentos da
sociedade.
Por conseguinte, o sujeito no dado a priori,
resulta de uma estrutura complexa, tem existncia no espao
discursivo, descentrado, constitui-se entre o eu e o outro. Nesse contexto epistemolgico, os sujeitos resultam de uma ligao da ideologia, inscrita histrico-socialmente,
com o inconsciente, que d vazo manifestao do desejo.
No que se refere ao desejo, e sua manifestao no
discurso, Authier-Revuz (1982) tomou de Lacan a
designao Outro (com a letra O inicial maiscula). Esse Outro, em contraposio ao outro (minsculo) que designa o exterior, o social constitutivo do sujeito, refere-se
ao desejo e sua manifestao pelo inconsciente, sob a forma
de linguagem. Sendo o inconsciente, tambm, constitudo
socialmente, o Outro refere-se ao desejo do outro como constitutivo do desejo do eu (esse eu seria o Sujeito).
Dialogismo, polifonia e heterogeneidade constituem
categorias discursivas que propiciam reflexes visando
compreenso do sujeito discursivo. Como atesta Authier-
Revuz (1998, p. 79), reside nessas reflexes o carter no
somente complexo, mas forosamente heterogneo do
campo em que se jogam o dizer e o sentido.
Com a proposio do conceito de heterogeneidade
discursiva, Authier-Revuz reitera o carter polifnico do
sujeito discursivo e chama a ateno para o descentramento
do sujeito: um "eu" implica outros "eus" e o outro se
apresenta como uma condio constitutiva do discurso do
-
sujeito, afinal, um discurso constitui-se de outros discursos e
sofre (trans)formaes na Histria.
A esses apontamentos, acrescentam-se reflexes
sobre a noo de identidade, tambm compreendida como
plural, no fixa, ou seja, em constante processo de produo.
A noo de identidade um tema que vem sendo discutido
por filsofos e socilogos nos chamados estudos culturais
ps-modernos. Estudiosos como Stuart Hall, Tomaz Tadeu
da Silva, Zygmunt Bauman, entre outros, tm caracterizado
a identidade como plural e fragmentada. A identidade
apresentada como produto das novas relaes sociopolticas
na sociedade e inacabada por no se esgotarem as
transformaes sociais que sofre. Para esses estudiosos, as
identidades dispem de um carter transitrio, mutante,
decorrente da perda da estabilidade e da fixidez para o
sujeito, deslocado, descentrado, e constitudo pelas relaes
discursivas.
Dado o carter plural da identidade, as reflexes
sobre esse conceito corroboram o conceito de sujeito prprio
Anlise do Discurso. Para esse campo disciplinar, o sujeito
produzido no interior dos discursos e sua identidade
resultante das posies do sujeito nos discursos. O sujeito
discursivo heterogneo, constitui-se pela relao que
estabelece com o outro, pelas interaes em diferentes
lugares na sociedade, e, com o Outro, que se materializa na
linguagem e mostra o sujeito em um lugar desconhecido
para si. A noo de identidade apresentada por Hall (2003) e
por Bauman (2005) contribui para a noo de
heterogeneidade na Anlise do Discurso, porque estes
autores tratam-na como plural e fragmentada, o que
colabora a compreenso da constituio do sujeito
discursivo, uma vez que a existncia do eu se d pela
-
constituio de mltiplos fragmentos do outro. Assim, o
sujeito est deslocado de seu espao sociocultural e tambm
de si mesmo.
As mltiplas identidades que passaram a constituir o
sujeito fizeram com que, em diferentes momentos, esse
sujeito assumisse diferentes identidades. No interior dos
discursos, o sujeito assume diferentes posies, portanto, a
sua identidade nunca ser a mesma em diferentes momentos
e lugares em que se encontre. O sujeito, assim como a
identidade, est sempre em movimento, desloca-se
constantemente, e cada lugar ocupado por ele o faz mostrar-
se outro, diferente de si, o que atesta o carter contraditrio
e inacabado da identidade. Reiteramos ainda que cada lugar
scio-histrico constitutivo do sujeito e da identidade
resulta, em sua constituio, de uma heterogeneidade, e se
constitui pela inter-relao com outros diferentes lugares.
A heterogeneidade constitutiva do sujeito, reiterada
nas diferentes identidades, algumas contraditrias, outras
inacabadas e algumas ainda por se produzirem, e nenhuma
fixa, todas moventes, revelam-nos a complexa constituio
do sujeito no discurso. Pelos discursos materializados
na/pela lngua, vislumbramos os deslocamentos, as
movncias, e a pluralidade constitutiva do sujeito.
Na Anlise do Discurso, a subjetividade tambm
vista da exterioridade, uma construo histrica sob
determinadas condies, e se d na relao com o discurso.
Discorrer sobre a subjetividade, assim como sobre o sujeito
e a identidade, no significa entrar na interioridade do
sujeito, requer apreend-lo pela exterioridade. No se trata
de uma relao do sujeito consigo mesmo da tica da
interioridade, pois ele se constitui sob determinadas
-
condies de produo, construdo na relao da
exterioridade.
As transformaes sofridas nas condies sociais
manifestam-se nas produes discursivas, sempre marcadas
pelo entrecruzamento de discursos e acontecimentos
anteriores. Acentua-se, dessa maneira, a fragmentao do
sujeito, a heterogeneidade constitutiva do discurso. O sujeito
discursivo plural, ou seja, atravessado por uma
pluralidade de vozes e, por isso, inscreve-se em diferentes
formaes discursivas e ideolgicas.
Com esses apontamentos acerca da constituio do
sujeito discursivo na/pela interao social marcada por
contrastes prprios s inscries ideolgicas que se opem,
e aos diferentes discursos coexistentes, reiteramos que a
polifonia um aspecto constitutivo dos diferentes discursos
e os sujeitos sofrem (trans)formaes no cenrio histrico-
social que lhes possibilitam, pela disperso dos sentidos,
constiturem-se discursivamente. A identidade, assim como
o sujeito, no fixa, est sempre em produo, encontra-se
em um processo ininterrupto de construo e caracterizada
por mutaes.
Para a Anlise do Discurso, dada a natureza
heterognea de seus objetos de estudo, o discurso, o sujeito
e a identidade devem ser observados a partir de ocorrncias
lingstico-discursivas, uma vez que os enunciados apontam
para posies-sujeito. no social que se definem as
posies-sujeito, no fixas, marcadas por mutabilidade, e a
anlise de discursos deve fazer aparecer esses elementos e
explicitar suas formaes e transformaes histricas. No
se trata, seguramente, de pontos fixos caractersticos dos
sujeitos, trata-se de movncias, de deslocamentos e
transformaes constantes na constituio dos sujeitos.
-
guisa de concluso, reiteramos:
- Sujeito: constitudo por diferentes vozes sociais, marcado por intensa heterogeneidade e conflitos,
espaos em que o desejo se inter-relaciona
constitutivamente com o social e manifesta-se por
meio da linguagem.
- Polifonia: vozes, oriundas de diferentes espaos sociais e diferentes discursos, constitutivas do sujeito
discursivo.
- Heterogeneidade: formas de presena no discurso das diferentes vozes constitutivas do sujeito.
Heterogeneidade no-mostrada (presena implcita
de outras vozes constitutivas da voz do sujeito) e
heterogeneidade mostrada (presena explcita de
outras vozes, marcadas, na voz do sujeito).
- Identidade: plural, fragmentada e marcada por mutabilidade, integra, ao mesmo tempo em que
decorre de, as relaes discursivas; logo, trata-se de
uma identidade de natureza discursiva, no fixa.
O sujeito no homogneo, e, ao conceitu-lo,
referimo-nos s noes de formao discursiva e
formao ideolgica, e inter-relao linguagem e histria,
perpassada pela memria, conceitos que constituem o centro
das reflexes a serem arroladas no tpico seguinte.
-
Formao Discursiva; Memria e Interdiscurso:
linguagem e histria
-
As reflexes arroladas em torno das noes de
discurso, sentido e sujeito levaram-nos a refletir sobre
transformaes sociais historicamente marcadas. Quando
nos referimos a invaso e ocupao, fizemo-lo para mostrar
a diferena de discursos coexistentes em torno de um
mesmo tema, e colocamos em pauta uma questo levantada
por Foucault (1995, p. 31); a saber: como apareceu um
determinado enunciado e no outro em seu lugar?. Essa
interrogao, frente apario e circulao desses lexemas
na mdia, leva-nos a procurar compreend-los como
enunciados integrantes de diferentes discursos.
Conseqentemente, recorremos Histria visando a
explicitar os processos socioideolgicos que fazem com que
tais lexemas, compreendidos como enunciados integrantes
de diferentes discursos, tenham lugar em nosso cotidiano.
Os efeitos de sentido desses ento enunciados revelam
conflitos sociais decorrentes dos espaos de enunciao, dos
-
lugares sociais assumidos por diferentes sujeitos
socialmente organizados.
Invaso e ocupao tm lugar na Histria em razo
do surgimento dos movimentos dos trabalhadores rurais
Sem-Terra e revelam a formao de discursos em contrastes.
O surgimento desses movimentos socialmente organizados
implicou embates e demarcao de posies
ideologicamente definidas. Se de um lado encontram-se
sujeitos atuando como apoio e sustentao de tais
movimentos, de outro, h os que o combatem, na tentativa
de coibi-los. Assim, ocorre a formao de diferentes
discursos que integram os processos de formao e
transformao sociais prprios existncia do homem na
histria.
Uma formao discursiva revela formaes
ideolgicas que a integram. Se olharmos mais
detalhadamente para ocupao, considerando esse lexema
como um enunciado integrante de uma formao discursiva,
veremos que seu uso envolve sujeitos oriundos de faces
religiosas, de partidos polticos de carter esquerdista,
trabalhadores de origem rural, entre outros. H, nessa
efervescncia, o entrecruzamento de diferentes discursos e
formaes ideolgicas constituindo uma formao
discursiva que, grosso modo, caracteriza-se pela
defesa/aceitao do Sem-Terra. Diante disso, podemos
atestar que toda formao discursiva apresenta, em seu
interior, a presena de diferentes discursos, ao que, na
Anlise do Discurso, denomina-se interdiscurso. Trata-se,
conforme assinalamos, de uma interdiscursividade
caracterizada pelo entrelaamento de diferentes discursos,
oriundos de diferentes momentos na histria e de diferentes
lugares sociais.
-
Os enunciados apreendidos em dada materialidade
lingstica explicitam que o discurso constitui-se da
disperso de acontecimentos e discursos outros,
historicamente marcados, que se transformam e modificam-
se. Uma formao discursiva dada apresenta elementos
vindos de outras formaes discursivas que, por vezes,
contradizem, refutam-na. Na Histria e no social, observa-se
uma disperso de discursos e acontecimentos, que, na
descontinuidade prpria dos elementos e acontecimentos
histricos, na contradio e negao do que se pode dizer
somente em determinada poca e/ou lugar, encontra-se a
unidade do discurso. Consoante com Foucault (1995), todo
discurso marcado por enunciados que o antecedem e o
sucedem, integrantes de outros discursos.
Esses elementos possibilitam a compreenso do
surgimento de novos cenrios socialmente organizados e/ou
em organizao, tendo em vista a transitoriedade
caracterstica do ser humano e da Histria, sempre passando
por transformaes sociais. O aparecimento do Sem-Terra,
por exemplo, como grupos de sujeitos socialmente
organizados atesta uma formao social na histria do
Brasil.
Nesse quadro terico, o discurso apresenta-se
relevante para se compreender as mudanas histrico-sociais
que possibilitam a combinao de diferentes discursos em
certas condies sociais especficas, resultando na produo
de um outro discurso. O aspecto histrico decorre da
interao social entre sujeitos e grupos de sujeitos como um
movimento ininterrupto e descontnuo na linha do tempo,
que conduz para a constituio de novos sujeitos e novos
grupos sociais, bem como para a formao de novos
discursos. A interao envolve a natureza dos processos de
-
produo do discurso, tambm chamado de prtica
discursiva. Na dimenso prtica social, o discurso, ao ser
produzido e interpretado, constitui uma ao social em um
contexto situacional, ideologicamente marcado.
Observando-se ainda o Sem-Terra, o discurso como prtica
social visvel.
Nesse nterim, a formao de um discurso resulta da
combinao de diferentes discursos. Sobre a noo de
formao discursiva, Foucault (1995), Pcheux (1990 e
1997b) constituem leituras necessrias, cuja compreenso e
articulao nas teorias discursivas so imprescindveis para
se compreender a Anlise do Discurso e para proceder
anlise de discursos.
Pcheux (1990b, p. 314), reportando-se a Foucault,
argumenta:
a noo de formao discursiva (FD) comea a fazer
explodir a noo de mquina estrutural fechada na
medida em que o dispositivo da FD est em relao
paradoxal com seu exterior: uma FD no um espao estruturalmente fechado, pois
constitutivamente invadido por elementos que vm de outro lugar (isto , de outras FD) que se repetem
nela, fornecendo-lhe suas evidncias discursivas
fundamentais.
Reiteramos, com essas palavras citadas, que uma
formao discursiva nunca homognea, sempre
constituda por diferentes discursos. Um mesmo tema, ao ser
colocado em evidncia, objeto de conflitos, de tenso, face
s diferentes posies ocupadas por sujeitos que se opem,
contestam-se.
-
Quando buscamos compreender, por meio de uma
anlise, uma formao discursiva dada, vemos que apenas
parcialmente apreendida, pois caracteriza-se por uma
incompletude e tem uma natureza complexa na sua prpria
disperso histrica. Um enunciado, enquanto estrutura
lingstica, implodir sob o olhar do analista, pois, de opaco,
torna-se cheio; de to coletivo, torna-se particular; de
agente, pode tornar-se objeto (e vice-versa). Assim, todo
enunciado pode tornar-se outro(s).
Para melhor compreendermos essas consideraes,
podemos retomar o lexema terra, considerando-o como um
enunciado integrante de diferentes discursos. Esse
enunciado, ao ser empregado, por exemplo, pelo Sem-Terra
e pelos integrantes da Unio Democrtica Ruralista, nunca
ser o mesmo tendo em vista a inscrio dos sujeitos em
diferentes formaes discursivas e as diferenas de sentido
da decorrentes. Conforme j pontuamos, o emprego do
lexema terra (considerado como um enunciado) e seus
efeitos de sentido revelam-no como elemento que assegura
unidade em discursos que se contradizem (de um lado, a
defesa do Sem-Terra, e de outro, a contestao).
Na Histria, podemos agrupar uma sucesso de
acontecimentos dispersos; relacion-los a um nico e
mesmo princpio organizador (cf.: Foucault: 1995, p. 24).
Entretanto, quando nos referimos unidade discursiva, no
estamos diante de um elemento homogneo e nem
uniformemente aplicvel. O conceito de unidade discursiva,
oriundo de Michel Foucault, apoia-se na materialidade
histrica e constitui-se na disperso de acontecimentos.
A noo de unidade vincula-se de disperso, pois,
como argumenta Foucault, todo discurso resulta de um j-
dito (no sabido, apagado) e esse j-dito sempre um
-
jamais-dito. Tudo que foi/ enunciado, secretamente,
silencia-se na disperso temporal e, pela descontinuidade, na
Histria, renuncia a temas e acontecimentos que, como
discursos, permanecem apagados, perdidos no tempo em
decorrncia das transformaes histrico-sociais que
ocorrem. Porm, esse j-dito (re)aparece transformado em
um jamais-dito, como continuidade de acontecimentos e
discursos que se dispersam no tempo. Nesse nterim,
unidade e disperso implicam-se, no se opem, e uma
formao discursiva tem sua regularidade pela constncia de
unidades inteiramente formadas. (No tocante s formaes
discursivas em torno dos Sem-Terra, mencionadas como
exemplo, alm de invaso e ocupao, h um conjunto
complexo de outros elementos linguagem, sujeito, ideologia, etc. envolvidos).
Ao falarmos sobre formao discursiva, referimo-nos
ao que se pode dizer somente em determinada poca e
espao social, ao que tem lugar e realizao a partir de
condies de produo especficas, historicamente
definidas.
Trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e
singularidade de sua situao; de determinar as
condies de sua existncia, de fixar seus limites da
forma mais justa, de estabelecer suas correlaes
com os outros enunciados a que pode estar ligado, de
mostrar que outras formas de enunciao exclui
(Foucault, 1995, p. 31).
Unidade e disperso, como conceitos integrantes da
noo de formao discursiva, so marcadas por
heterogeneidades constantes no jogo das relaes sociais,
coexistem s concomitantes divergncias ideolgicas que
-
demarcam os campos discursivos. Os enunciados, assim
como os discursos, so acontecimentos que sofrem
continuidade, descontinuidade, disperso, formao e
transformao, cujas unidades obedecem a regularidades,
cujos sentidos so incompletamente alcanados. Os
enunciados, compreendidos como elementos integrantes das
regularidades discursivas, inscrevem-se nas situaes que os
provocam e, por sua vez, provocam conseqncias, mas,
vinculam-se, tambm, a enunciados que os precedem e os
sucedem. Para analis-los, buscamos compreender as
relaes que os engendram na produo de sentidos.
No caso em que se puder descrever, entre um certo
nmero de enunciados, semelhante sistema de
disperso, e no caso em que entre os objetos, os tipos
de enunciao, os conceitos, as escolhas temticas,
se puder definir uma regularidade (uma ordem,
correlaes, posies e funcionamentos,
transformaes), diremos, por conveno, que se
trata de uma formao discursiva (Foucault,1995,
p. 43) (Grifo nosso).
Os objetos, os tipos de enunciao, os conceitos e os
temas obedecem a regras de formao que refletem as
condies de existncia (mas tambm de coexistncia, de
manuteno, de modificao e de desaparecimento) em
determinada formao discursiva, historicamente marcada.
Uma formao discursiva caracteriza-se pela existncia de
um conjunto semelhante de objetos e enunciados que os
descrevem, pela possibilidade de explicitar como cada
objeto do discurso tem, nela, o seu lugar e sua regra de
apario, e como as estratgias que a engendram derivam de
um mesmo jogo de relaes. Trata-se, como observa Robin
-
(1973), de compreender as condies de possibilidade do
discurso, como um dizer tem espao em um lugar e em uma
poca especfica. Uma formao discursiva resulta de um
campo de configuraes que coloca em emergncia os
dizeres e os sujeitos socialmente organizados em um
momento histrico especfico. Porm, uma formao
discursiva no se limita a uma poca apenas; em seu
interior, encontramos elementos que tiveram existncia em
diferentes espaos sociais, em outros momentos histricos,
mas que se fazem presentes sob novas condies de
produo, integrando novo contexto histrico, e,
conseqentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
Como argumenta Gregolin (1997, p. 56), a
interpretao de temas re-significados mostra que o discurso,
a Histria e a memria constrem movimentos de sentidos, e
analisar o discurso implica fazer aparecer objetos e
enunciaes que aparecem e desaparecem, coexistem e
transformam-se em um espao discursivo e possibilitam,
ainda, verificar a presena de certos temas em dada formao
discursiva.
A noo de memria discursiva, cunhada
inicialmente por Courtine (1981), no se refere a lembranas
que temos do passado, a recordaes que um indivduo tem
do que j passou. Como atesta Pcheux (1999a, p. 11): a
estruturao do discursivo vai constituir a materialidade de
uma certa memria social. Esse espao de memria como
condio do funcionamento discursivo constitui um corpo
scio-histrico-cultural. Os discursos exprimem uma
memria coletiva na qual os sujeitos esto inscritos. uma
memria coletiva, at mesmo porque a existncia de
diferentes tipos de discurso implica a existncia de
diferentes grupos sociais, sem, contudo, implicar
-
equivalncia. Um discurso engloba a coletividade dos
sujeitos que compartilham aspectos socioculturais e
ideolgicos, e mantm-se em contraposio a outros
discursos. Trata-se de acontecimentos exteriores e anteriores
ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo
materialidades que intervm na sua construo.
A ttulo de ilustrao, voltemos aos sentidos do
lexema terra na formao discursiva do Sem-Terra. Em
estudos especficos sobre essa formao discursiva,
verificamos que os sujeitos denominados Sem-Terra
pautam-se em experincias vividas no passado, que lhes
possibilitaram formaes socioculturais as quais procuram
reconstruir. Os sentidos de terra implicam um espao
sociocultural rural que se ope s condies socioculturais
vividas por eles nas cidades, que so recusadas pelos
sujeitos em questo que priorizam a vida buclica j
experimentada, portanto, sabida em tempos passados. Em se
tratando de memria discursiva, no esto em questo as
lembranas que cada sujeito tem do passado, mas sim a
existncia de um mundo sociocultural, com formas de
trabalho, de lazer, etc., especficas.
Isto posto, diferentes discursos coexistem e
materializam-se, s vezes, por meio de enunciados
estruturalmente semelhantes, mas tm sua unidade pelos
efeitos de sentido decorrentes da inscrio ideolgica desses
enunciados. Para Robin (1973, p. 107), os discursos so
governados por formaes ideolgicas. Como formao
discursiva reflete, tambm, formao social, retoma-se uma
heterogeneidade prpria coexistncia e miscigenao das diferentes foras sociais.
Conforme assinalamos em relao aos discursos dos
Sem-Terra, se a dominncia de um modo de produo
-
representa o primado da vida econmica, a pobreza, por sua
vez, implica formao social e todas as outras formaes e
transformaes at ento assinaladas, porque na pobreza
tambm h lutas econmicas e polticas. Tais lutas tm seus
impactos em diferentes lugares sociais.
Os aspectos ideolgicos e polticos, no discurso,
apresentam-se semanticamente relevantes, pois refletem, na
interao entre os sujeitos, o lugar histrico-social de onde o
discurso produzido. A ao poltica, em forma de discurso,
apresenta valores ideolgicos na construo de
determinados espaos sociais. Nessa perspectiva, as relaes
de poder se constroem, e as representaes de poder
confrontam e alteram-se, mudando, conseqentemente o
lugar de onde vozes produzem enunciaes, de onde os
discursos so produzidos. As relaes de poder so
preenchidas politicamente por ideologia e, em conformidade
com as mudanas que sofrem, diferentes vozes ideolgicas
enunciam construindo diferentes rumos na Histria. As
alteraes poltico-ideolgicas nos discursos decorrem da
mudana de sujeitos em cena, ou da transformao dos
sujeitos na linha do tempo, o que implica mudanas no
espao social. Na verdade, novas perspectivas polticas e
ideolgicas, que provocam o surgimento de um novo
cenrio sociocultural, so aspectos inerentes formao de
um discurso.
Ao efetuarmos referncia s prticas discursivas,
referimos, tambm, a prticas sociais, visto que o discurso
envolve condies histrico-sociais de produo. Essa
observao torna oportuno refletir sobre as condies de
produo dos discursos que incluem o contexto scio-
histrico e ideolgico, incluindo, igualmente, as condies
-
de produo de bens materiais e a (re)produo das prprias
condies de produo.
A inter-relao do discurso com suas condies de
produo envolve tudo o que est no campo da enunciao,
isto , o contexto histrico-social inerente produo de
sentidos.
A recorrncia Histria faz-se presente na anlise do
discurso, pois trata-se dos sentidos produzidos no discurso,
de acordo com as condies de produo histrico-sociais
peculiares existncia dos sujeitos. Evita-se, assim,
possveis crticas como a que Pcheux (1999b, p. 11) atribui
Psicologia Social:
a psicologia social entende fazer experimentos (em
laboratrio ou em campo) sobre
construes/manipulaes da interao, e em
particular da interao verbal. Nesse quadro, a
situao experimental construda em laboratrio ou provocada em campo uma cena fechada, a-histrica, na qual a linguagem (falas, textos ou
discursos) imediatamente identificada a seqncias
observveis de aes (condutas, comportamentos) de trocas entre os protagonistas da interao.
Contrapondo-se a essa abordagem a-histrica, a
Anlise do Discurso, ao refletir sobre as condies
histrico-sociais que envolvem a produo do discurso,
recorre Histria visando a analisar o material em termos de
produes localizveis em um lugar scio-histrico (lugar
de produo socioeconmico, poltico-ideolgico e
cultural). Essa perspectiva foi explicitada ao refletirmos
sobre a noo de formao discursiva e outros conceitos da
decorrentes, conforme sntese apresentada a seguir.
-
- Formao discursiva: refere-se ao que se pode dizer
somente em determinada poca e espao social, ao
que tem lugar e realizao a partir de condies de
produo especficas, historicamente definidas; trata-
se da possibilidade de explicitar como cada
enunciado tem o seu lugar e sua regra de apario, e
como as estratgias que o engendram derivam de um
mesmo jogo de relaes, como um dizer tem espao
em um lugar e em uma poca especfica.
- Formao ideolgica: conjunto complexo de
atividades e de representaes que no so nem
individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente s posies de classes
em conflito umas com as outras (Pcheux & Fuchs,
1990, p. 166). segundo as posies dos sujeitos
que os sentidos se manifestam, em relao s
formaes ideolgicas nas quais essas posies se
inscrevem.
- Memria discursiva: espao de memria como
condio do funcionamento discursivo constitui um
corpo-scio-histrico-cultural. Os discursos
exprimem uma memria coletiva na qual os sujeitos
esto inscritos. Trata-se de acontecimentos exteriores
e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade,
refletindo materialidades que intervm na sua
construo.
- Interdiscurso: presena de diferentes discursos,
oriundos de diferentes momentos na histria e de
-
diferentes lugares sociais, entrelaados no interior de
uma formao discursiva. Diferentes discursos
entrecruzados constitutivos de uma formao
discursiva dada; de um complexo com dominante.
Reiteramos, com o at ento exposto, que a Anlise
do Discurso resulta de uma interdisciplinaridade que
envolve a Lingstica, a Histria e tambm a Psicanlise.
Para melhor compreenso das bases fundadoras dessa
disciplina, apresentaremos o captulo seguinte.
-
Anlise do Discurso: entrecruzamento de
diferentes campos disciplinares
-
Conforme mostramos nos captulos anteriores, pela
inter-relao Lingstica e Histria e pela recorrncia
Psicanlise para a conceituao do sujeito discursivo, a
Anlise do Discurso uma disciplina de carter
transdisciplinar. Sua constituio na Lingstica, como
discutiremos a seguir, decorre do entrecruzamento de teorias
de diferentes campos do saber. Assim, como pontua Orlandi
(1986, p. 119), temos:
a) o materialismo histrico: compreendido como teoria das formaes e transformaes sociais.
na/pela histria que observamos as condies de
produo do discurso, ou seja, o porqu da
apario de um enunciado em dado momento e
lugar e no outro em seu lugar.
b) a Lingstica: tomada como teoria dos mecanismos sintticos e dos processos de
enunciao. Para a Anlise do Discurso, trabalha-
se com elementos lingsticos que possibilitam a
-
materializao dos discursos; observa-se no
material de anlise a inter-relao constitutiva da
linguagem face sua exterioridade.
c) a teoria do discurso: trata da determinao histrica dos processos semnticos. Refere-se
produo dos sentidos decorrentes dos
fenmenos histricos.
Diante dessa enumerao, vemos como um
enunciado, definido sob seus aspectos formais, tem sentidos
diferentes ao ser produzido em diferentes momentos
histricos, e/ou ideolgicos; dessa forma, um enunciado
torna-se outro. (Aspecto exemplificado nas reflexes
anteriores pela observao do emprego do lexema terra em
diferentes discursos).
As referncias fundadoras da AD so precisadas
tambm por Gregolin (2003), a quem recorremos para
reiterar alguns elementos que possibilitam a compreenso da
constituio terica dessa disciplina. A saber:
a) o atravessamento da Lingstica pelo Marxismo, prprio explicitao do objeto da Anlise do
Discurso o discurso , que resulta da articulao entre o lingstico e o histrico;
b) uma constante problematizao das bases epistemolgicas da AD, at mesmo pela
pluralidade e especificidades dos objetos;
c) o discurso como objeto de estudo apresenta-se tambm como um lugar de enfrentamento
-
terico. (Cada objeto tomado para anlise
apresenta, por exemplo, elementos da histria
que lhes so peculiares, o que implica uma volta
teoria);
d) a Anlise do Discurso implica apreender a lngua, o sujeito e a histria, em funcionamento,
uma vez que a prpria teoria do discurso revela
uma determinao histrica dos processos
semnticos, e, com isso, uma disperso dos
sentidos.
Consoante com a autora em questo, tem-se a
constituio de um campo disciplinar na Lingstica,
voltado para as condies de produo do dizer, cuja
histria pode ser visualizada a partir dos anos 1960. Desta
feita, a episteme da Anlise do Discurso origina-se,
prioritariamente, do entrecruzamento das trs reas do
conhecimento cientfico supracitadas (materialismo
histrico, lingstica, e teoria do discurso). Como atesta,
ainda, Gregolin (2003), esses campos disciplinares
articulados para a constituio terica da AD so
atravessados por uma teoria subjetiva de ordem
psicanaltica, que traz o inconsciente para o interior de suas
reflexes. O lugar da Psicanlise notrio no que concerne
s noes de sujeito discursivo e de discurso, conforme
mostramos.
Em leitura da bibliografia da Anlise do Discurso
visando compreenso de sua constituio terica,
pensamo-la no interior de uma Lingstica que toma a
linguagem em uma relao constitutiva com sua
-
exterioridade. Diante desse apontamento, destacamos a
seguinte afirmao de Michel Pcheux:
se a Lingstica solicitada a respeito destes ou
daqueles pontos exteriores a seu domnio, porque,
no prprio interior de seu domnio (em sua prtica
especfica), ela encontra, de um certo modo, essas
questes sob a forma de questes que lhe dizem
respeito (Pcheux, 1997b, p. 88).
A partir dessa observao, podemos refletir sobre a
presena de uma exterioridade, aqui denominada
Materialismo Histrico, que atravessa a Lingstica
resultando na constituio da Anlise do Discurso como
uma de suas ramificaes, pois no interior de problemas
colocados pela linguagem que essa exterioridade tem eco.
No mesmo texto em que buscamos a citao acima
apresentada, Michel Pcheux lembra-nos as seguintes
palavras de Lnin: a lngua sempre vai onde o dente di. Se podem ser muitas as dores, precisam ser muitos, tambm,
os alvios, portanto, necessitamos, de fato, romper os limites
discursivos prprios a uma disciplina, como adverte
Foucault (2000), os quais, muitas vezes, representam-lhe
limitaes, e recorrermos a outros domnios que o
atravessam para ento compreendermos a constituio
disciplinar da Anlise do Discurso.
Cientificamente, consideramos a Lingstica como
uma disciplina acadmica devidamente constituda (C.f.
Lyons, 1981), porm, muitas vezes atravessada por outros
campos disciplinares. Esse atravessamento, como adverte o
referido autor, longe de ameaar o seu status de cincia, faz
com os pesquisadores no aceitem, unanimemente, a
existncia de um nico mtodo de investigao para todos
-
os ramos da Lingstica, e possibilita a existncia, em seus
domnios, de diferentes subreas, como a Psicolingstica, a
Geolingstica, a Sociolingstica, entre tantas outras. Se os
estudos da linguagem, de uma maneira geral, voltam-se para
a descrio ou anlise da sua natureza, da sua realidade
interna (aspectos formais e estruturais) e do seu
funcionamento, ressaltamos que cada ramificao interna
Lingstica postula, a partir de um constructo terico
prprio, o objetivo a ser perseguido na investigao dos
dados. O constructo terico e o objetivo, por sua vez,
impem a necessidade de um mtodo especfico. Assim, em
tempos passados, contrastaram-se o empirismo, que
considera todo conhecimento como advindo da experincia,
e o racionalismo, que enfatiza o papel da mente no
conhecimento. A partir dessa observao de carter
genrico, poder-se-ia discorrer sobre o carter de
cientificidade da Lingstica, explicitando, inclusive, que
no h homogeneidade, haja vista a diversidade de mtodos
prprios a cada ramificao, conforme assinalamos.
Entretanto, no escopo dessas questes, interessa-nos
focalizar a constituio da Anlise do Discurso a partir de
um atravessamento terico, conforme pontuamos.
Para atender tal proposio, o analista deve reportar-
se a uma materialidade lingstica, compreendida como
materializao de discursos, cuja compreenso e/ou
explicao faz com que recorramos a aparatos tericos fora
da Lingstica e tragamo-los para seu interior. Noutros
termos, tratamos de problemas de linguagem humana,
objeto de investigao cientfica prprio da Lingstica, que
impem uma reviso terica para que sua interpretao seja
alcanada.
-
Em toda e qualquer formao discursiva, as
contradies representam uma coerncia visto que desvelam
elementos exteriores materialidade lingstica, mas
inerentes constitutividade dos discursos e dos sujeitos. Os
sujeitos so marcados por inscries ideolgicas e so
atravessados por discursos de outros sujeitos, com os quais
se unem, e dos quais se diferenciam.
A ttulo de ilustrao, podemos nos remeter a uma
pesquisa que realizamos sobre a formao discursiva do
Sem-Terra. Em entrevistas realizadas com sujeitos
acampados, quando interrogados sobre a forma de
realizao do trabalho, encontramos afirmaes valorativas
do trabalho coletivo em que os integrantes de um acampamento trabalham juntos e dividem igualmente os
frutos obtidos seguidas da sua negao (o trabalho coletivo muito bo [...] quando eu tiv minha terrinha,
quero viv do que eu plant). Essa ocorrncia demonstra, no mnimo, dois sujeitos socioideolgicos apreendidos em
um mesmo sujeito enunciador: de um lado, o Sem-Terra de
origem rural busca uma reintegrao sociocultural, um
espao no qual possa ter uma produo material para a auto-
sustentao; de outro, os lderes do movimento visam a uma
transformao do sistema poltico brasileiro. So diferentes
posies sujeito entrecruzadas nessa formao discursiva.
Dessa maneira, notam-se duas instncias distintas, mas
inseparveis: uma composta de trabalhadores situados nas
propriedades que ocuparam, cuidando, prioritariamente, da
plantao e produo agrcola naquele espao; outra
composta de lideranas polticas, atuando como as maiores
responsveis pelas direes da luta. Esta conta com a
participao efetiva de alguns lavradores acampados e com
os representantes das entidades de apoio atuantes frente a
-
vrios segmentos sociais, engendrando e subsidiando
material e ideologicamente a luta. O carter de
inseparabilidade e separabilidade dessas instncias no
representa uma mera contradio, revela elementos
lingstico-discursivos prprios formao discursiva do
Sem-Terra. Por uma relao de complementaridade e de co-
dependncia, de um lado, encontram-se os lavradores
plantando e cultivando a terra; de outro, as lideranas de
carter poltico tambm em atuao. A contradio revela o
lugar do sujeito enunciador e as vozes constitutivas de sua
voz, de uma formao discursiva na qual se inscreve.
Nos discursos, a ambigidade tem uma aparncia
fugidia, pois cumpre a finalidade de refletir uma tenso
entre descrio e interpretao no interior da Anlise do
Discurso. Assim, enunciados que poderiam ser considerados
como agramaticais, em conformidade com determinadas
perspectivas tericas, em especial aquelas voltadas para a
descrio da lngua(gem), ao se inscreverem em
determinadas formaes discursivas, asseguram coerncia
ao seu funcionamento. No exemplo acima, a contradio
revela a unidade do sujeito, o seu lugar.
O objeto da Lingstica aparece [...] assim
atravessado por uma diviso discursiva entre dois
espaos: o da manipulao de significaes
estabilizadas, normatizadas por uma higiene
pedaggica do pensamento, e o das transformaes
do sentido, escapando toda norma a priori, de um
trabalho do sentido sobre o sentido, tomado no lance
indefinido das interpretaes. (Pcheux, 1998, p. 25).
Usando, ainda, palavras de Pcheux, elimina-se,
desta feita, o efeito mortal atribudo ambigidade.
-
As reflexes at ento arroladas acerca da natureza
constitutiva do objeto discursivo e sua relao com a teoria
reiteram que as contradies funcionam como regularidades
nas formaes discursivas. Isto posto, analisar o discurso
implica fazer aparecer e desaparecer as contradies que
asseguram a coerncia das aes sociais que preenchem o
cotidiano dos sujeitos. Como assegura Foucault (1995, p.
173-174),
a contradio funciona, ento, ao longo do discurso,
como o princpio de sua historicidade [...] O discurso
o caminho de uma contradio a outra: se d lugar
s que vemos, que obedece que oculta. Analisar o
discurso fazer com que desapaream e reapaream
as contradies; mostrar o jogo que nele elas
desempenham; manifestar como ele pode exprimi-
las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia
aparncia.
Esse entrecruzamento conclamado pela
interioridade da linguagem, revelando a constituio de um
lugar terico na Lingstica. Referimo-nos a uma
formulao terica que engloba, de maneira indissocivel,
sujeito, histria, ideologia e discurso. Noutras palavras, a
transdisciplinaridade constitutiva da Anlise do Discurso
deve-se a problemas encontrados no seio da linguagem.
Trata-se, por um lado, de questes de linguagem que no
encontram em outros campos da Lingstica possibilidades
de interpretao, cujas explicaes remetem-nos s teorias
do materialismo histrico, compreendidas como teorias da
formao e transformao histrico-social; e por outro, de
uma possibilidade de leitura e interpretao de toda e
qualquer materialidade lingstica, tendo em vista a natureza
-
essencialmente ideolgica do signo, que nega a imanncia
do significado e aponta uma possvel crise da lingstica
imanente (referimo-nos a estudos lingsticos que focalizam
a linguagem sem se preocupar com sua exterioridade).
Nesse sentido, ressaltamos que quando recorremos a um
dicionrio, fazemo-lo para verificar o significado de dada
palavra, pois o significado j est posto, imanente; porm,
em se tratando de Anlise do Discurso, nega-se a imanncia
do significado uma vez que interessam os sentidos
produzidos em decorrncia da inscrio socioideolgica e
histrica dos sujeitos envolvidos.
Ao lado das noes de lngua, linguagem e fala,
acrescenta-se a noo de discurso, como um objeto
especfico, de difcil apreenso, cuja natureza constitutiva
traz em si contradies que funcionam como regularidades,
como coerncia, como estrutura argumentativa, aspectos que
rompem a perspectiva da anlise textual e/ou
comunicacional.
Entretanto, para alm de um modismo relacionado
Anlise do Discurso, comum encontrarmos o uso de
discurso referido como o objeto de estudo de outras
subreas da Lingstica. Discurso, desprovido de um
cuidado terico, considerado por vezes como equivalente a
texto, outras vezes a fala, etc. Observe-se a esse respeito que
a noo de disciplina, enquanto cincia, e os
atravessamentos constitutivos das ramificaes da
Lingstica tm implicaes no tratamento do objeto.
A Anlise do Discurso implica operaes de leitura e
interpretao que envolvem campos e problemticas dos
domnios scio-histricos, uma vez que focaliza campos e
problemticas encontrados no interior do domnio da
Lingstica, e no em seu exterior. Mediante a concepo de
-
lngua predominante na Lingstica por longas dcadas, a
concepo de linguagem (apreendida sempre em
funcionamento) e a concepo de sujeito prprias Anlise
do Discurso implicam uma ruptura de paradigmas, pois seu
objeto encontra-se constantemente em movimento, no
esttico, e, no o sendo, implica movncia de sentidos e
deslocamentos.
Embasado por esse vis terico, todo e qualquer
corpus tomado para anlise apresenta-se-nos como um
universo discursivo marcado por instabilidade, que explicita
as movncias e a inquietude dos sujeitos.
Para a anlise e interpretao de um corpus nessa
perspectiva terica, considerando a prpria natureza do
objeto, precisamos sair da materialidade lingstica em
questo para compreend-la em sua exterioridade, no social,
espao em que o lingstico, o histrico e o ideolgico
coexistem em uma relao de implicncia, compreendidos
como discursos (exterioridade langue e parole).
Entretanto, trata-se de problemas encontrados na linguagem
em funcionamento, que apontam a constituio de uma
subrea da Lingstica, concomitante com tantas outras, das
quais se diferencia pelo vis epistemolgico que orienta a
maneira de focalizar o objeto.
-
Metodologia em Anlise do Discurso
-
Em Anlise do Discurso, h, conforme aponta
Pcheux (1997a), um batimento entre teoria e interpretao.
A partir desta considerao, apresentaremos algumas
possibilidades metodolgicas de abordagem de corpora para
anlise, tendo em vista que, neste campo disciplinar, teoria e
metodologia so indissociveis, ou seja, s possvel se
falar em metodologia envolvendo elementos tericos, a
partir de alguns conceitos prprios Anlise do Discurso.
Alm disso, conforme j assinalamos, o objeto tomado para
anlise tambm pede a teoria, faz com que o analista recorra
a conceitos ou busque esclarecimentos tericos para sua
compreenso e anlise.
Visando exposio de alguns aspectos
metodolgicos para a anlise de discursos, apresentaremos
as noes de recorte, conforme encontramos em Orlandi
(1984); enunciado, segundo Foucault (1995); e trajeto
temtico, como prope Guilhaumou (2002). Esses conceitos
-
contribuem para a sustentao terica de um trabalho de
anlise e, ao mesmo, fornecem ao analista procedimentos
metodolgicos para a seleo e organizao do corpus.
1 A Noo de Recorte
A noo de recorte apresentada por Orlandi (1984,
p. 14) como unidade discursiva [...] fragmentos
correlacionados de linguagem [...] um fragmento da
situao discursiva, definido por associaes semnticas,
acrescenta Voese (1998).
Trata-se da seleo de fragmentos do corpus para
anlise; ou seja, quando o analista escolhe seu objeto de
anlise, ele precisa ainda selecionar pequenas partes,
escolhidas por relaes semnticas, tendo em vista os
objetivos do estudo. Se se prope analisar, por exemplo, a
presena de discursos religiosos em determinado discurso
poltico, o material tomado para anlise pode ser bastante
amplo (entrevistas, pronunciamentos de determinados
polticos, etc.), ento, o analista dever recortar, desse
material mais amplo, fragmentos nos quais se encontram
manifestaes de discursos religiosos. Entretanto, para
proceder anlise, esses recortes devem ser considerados na
inter-relao como o todo que constitui o corpus.
O recorte pode atender tambm uma necessidade de
delimitao do material, dada a sua extenso, pella
focalizao de enunciados especficos, mas sua natureza e
seleo so possveis somente mediante os objetivos da
pesquisa.
2 A Noo de Enunciado
-
A discusso / exposio da noo de enunciado
empreendida por Foucault (1995) e sua articulao na
Anlise do Discurso explicita a eficcia terico-
metodolgica desse conceito para esse campo disciplinar.
Como prprio da Anlise do Discurso, no se pensa teoria
sem pensar metodologia, assim, a teorizao desse conceito
possibilita tambm refletir sobre a constituio de corpus.
Acerca da noo de enunciado em Foucault (1995),
destacamos, inicialmente, que o enunciado se distingue de
frase, proposio, ato de fala, porque: a) est no plano do
discurso; b) no est submetido a uma estrutura lingstica
cannica (no se encontra o enunciado encontrando-se os
constituintes da frase); c) no se trata do ato material (falar
e/ou escrever), nem da inteno do indivduo que o realiza,
nem do resultado alcanado: trata-se da operao efetuada
[...] pelo que se produziu pelo prprio fato de ter sido
enunciado (Foucault, 1995, p. 94).
Acerca desse conceito, Orlandi (1987, p. 17) reitera
que o enunciado no est escondido, mas no visvel. Em
suas palavras, a descrio almejada deve ser capaz de se
mover com o seguinte paradoxo: o enunciado ao mesmo
tempo no visvel e no escondido. Com Foucault, devemos
compreender a existncia do enunciado em decorrncia da
funo enunciativa. Por conseguinte, a compreenso do
enunciado implica explicitar o exerccio dessa funo, suas
condies de produo, o campo em que se realiza. Diante
dessa problematizao, Foucault (1995, p. 100) coloca a
seguinte interrogao: o que ocorreu para que houvesse
enunciado? Trata-se de buscar na exterioridade de um
enunciado determinado, as regras de sua apario; a relao
que mantm com o que enuncia; aquilo a que se refere, o
-
que posto em jogo por ele. Afinal, como afirma o autor:
por que esse enunciado e no outro em seu lugar? Nesse
nterim, h uma relao que envolve os sujeitos, passa pela
histria, implica um campo correlato, e envolve a
materialidade do enunciado. Todos esses aspectos, de certa
forma, j foram apontados por ns quando recorremos aos
enunciados ocupao e invaso, e mencionados sua
emergncia na histria, as posies sujeito que apontam e os
discursos que se opem, os quais esses enunciados integram.
Concernente relao sujeito e enunciado, sempre
h um sujeito, um autor, ou uma instncia produtora. No
enunciado h sempre uma posio-sujeito, ou uma funo
que pode ser exercida por vrios sujeitos. A anlise do
enunciado na Anlise do Discurso deve investigar qual
essa posio-sujeito, que se inscreve na histria, lugar em
que deve ser analisado. A historicidade do enunciado
apresenta suas margens povoadas por outros enunciados,
mostra-o correlacionado a um campo adjacente, um campo
associativo constitudo por uma srie de outras formulaes,
e um conjunto de formulaes a que se refere. Face
historicidade prpria existncia do enunciado, a produo
de sentidos vincula-se memria e reatualiza outros
enunciados. Como atesta Foucault (1995, p. 114), no h
enunciado que no suponha outros; no h nenhum que no
tenha em torno de si, um campo de coexistncias. Dada a
relao intrnseca com a histria, um enunciado torna-se
sempre outro, mesmo havendo um regime de materialidade
repetvel. A propsito, h sempre uma espessura material
que constitui o enunciado, que compreende substncia,
suporte, lugar, data. A mudana desses elementos revela a
multiplicidade das enunciaes, a alterao de identidade do
enunciado, caracterizado por mutabilidade (Esses aspectos
-
tambm j foram exemplificados com o enunciado terra e
sua ocorrncia em diferentes discursos: religioso, do Sem-
terra, da UDR, etc.).
As caractersticas da funo enunciativa, conforme
exposto funo referencial do enunciado, posio-sujeito, campo associativo, materialidade lingstica corroboram a interrogar a linguagem, no na direo a que ela remete,
mas na dimenso que a produz (Foucault, 1995, p. 129), ou
seja, quais so os aspectos histricos, sociais, ideolgicos
que determinam tal produo? A proposta de anlise ento
se volta para a descrio dos enunciados visando a explicitar
suas condies de produo e as posies dos sujeitos a ele
vinculadas.
A evidncia primeira de um enunciado a sua forma
material, materialidade lingstica verbal e/ou no-verbal,
uma vez que o enunciado pode ser tambm uma imagem, ou
o uso de cores, bandeiras, como a do Sem-Terra, por
exemplo, etc. Ao discuti-lo no interior da Anlise do
Discurso, Pcheux (1997a, p. 53) considera:
Todo enunciado intrinsecamente suscetvel de
tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar
discursivamente de seu sentido para derivar para um
outro... Todo enunciado, toda seqncia de
enunciados , pois, lingisticamente descritvel como
uma srie [...] de pontos de deriva possveis,
oferecendo lugar interpretao.
Essa observao reitera a importncia da
historicidade do enunciado para a Anlise do Discurso,
disciplina assim apontada por Pcheux (1997a, p. 60), j no
contexto dos anos 1980: a Anlise de Discurso, tal como ela
se desenvolve atualmente [...] se d precisamente como
-
objeto expl
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