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GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS
CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)
VICTOR ANDRÉ COSTA DA SILVA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA: FORMAÇÃO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃO
DOS ESPAÇOS
GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS
CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)
VICTOR ANDRÉ COSTA DA SILVA
NATAL/RN
2020
VICTOR ANDRÉ COSTA DA SILVA
GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS
CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)
Texto apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte como requisito
para Defesa de Dissertação na Área de
Concentração em História e Espaços, vinculado
à Linha de Pesquisa “Formação,
institucionalização e apropriação dos espaços”.
Orientador:
Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia.
NATAL/RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Silva, Victor André Costa da.
Guerra Justa e desterritorialização: os índios e as novas
configurações espaciais na Capitania do Rio Grande (c. 1680-1720)
/ Victor André Costa da Silva. - Natal, 2020. 153f.: il. color.
Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.
Orientador: Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia.
1. Guerra justa - Dissertação. 2. Desterritorialização -
Dissertação. 3. Desnaturalização - Dissertação. 4. Guerra dos
Bárbaros - Dissertação. 5. Sertão do Açu - Dissertação. I. Maia,
Lígio José de Oliveira. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(81)
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710
VICTOR ANDRÉ COSTA DA SILVA
GUERRA JUSTA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: OS ÍNDIOS E AS NOVAS
CONFIGURAÇÕES ESPACIAIS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (C. 1680-1720)
Exame de Defesa da Dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na Área de Concentração em História e Espaços,
vinculado à Linha de Pesquisa “Formação, institucionalização e apropriação dos espaços”, sob
orientação do Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Lígio José de Oliveira Maia (UFRN)
Orientador
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Carmen Margarida Oliveira Alveal (UFRN)
Avaliadora interna
______________________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)
Avaliador externo
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto (UFRN)
Avaliador suplente
NATAL-RN, 21 de maio de 2020.
AGRADECIMENTOS
A construção deste trabalho é produto de uma soma de fatores externos a mim, os quais
tive a sorte de ter como facilitadores durante a trajetória no mestrado: um alicerce familiar
importante; amor e amizades fiéis; e Deus, com quem sempre me apeguei e confiei nos
momentos mais difíceis e com quem posso compartilhar as alegrias e vitórias presentes. Por
mais complicadas que fossem as adversidades da vida, eu sempre soube em quem confiar e que
esses seriam os melhores que estariam ao meu lado. Na escrita da dissertação não foi diferente.
Maria Lucia Costa da Hora, a qual faço questão de deixar registrado o nome completo
neste trabalho, pois não teria conseguido chegar aqui sem essa que sempre foi, sem dúvidas, a
minha maior incentivadora. Esta dissertação também é sua, “mainha”. Você que, mesmo nos
capítulos tristes de sua história, soube acrescentar reviravoltas dignas de roteiros de novela.
Uma mulher que é tão sonhadora quanto eu. Por isso, obrigado por sempre ter apostado nos
meus sonhos também. Obrigado por ter investido nos meus estudos desde pequeno. Obrigado
pelo seu amor de mãe que me acolheu em todos os momentos. Obrigado por todas as vezes que
ao notar que eu estava desanimado, soube estender os braços em minha direção. Sou feliz e
agradecido demais por te ter comigo, pois essa sorte é para poucos.
Meus avôs, in memorian, seu Cícero Luiz e Antônio Menino da Hora, e minhas avós,
Maria do Socorro – mais conhecida como Amparo, e não é à toa – e Terezinha Rodrigues, foram
fundamentais na minha formação pessoal e no desenvolvimento do meu caráter. Exemplos de
hombridade e honestidade, força e determinação. Assim como meu pai, in memorian, que na
sua curta trajetória de vida, conseguiu me dar exemplos importantes, dos quais levarei sempre
comigo, dentre eles, o mais recente foi sua força de vontade em retomar os estudos e se formar
em Educação Física, após seus 45 anos de idade, provando que sempre há tempo para conquistar
o que se almeja. Essa mesma força de vontade reverberou sobre mim, quando já nos momentos
finais dessa dissertação, tive que lidar com a dor de sua precoce partida. Por isso, a realização
desse sonho é tanto minha, quanto sua.
Yuri Fernandes, parceiro que a vida me presenteou pouco antes de entrar no mestrado
e pôde acompanhar todas as minhas inquietações, alegrias e até desânimos com relação à
pesquisa. Fui agraciado com sua companhia pois dividir o fardo com alguém que torceu ao meu
lado tornou o peso da produção desta dissertação um pouco mais leve. As preocupações se
dissolviam por alguns instantes, o desestímulo se esbarrava no seu apoio constante e as
incertezas pareciam pequenas quando eram compartilhadas contigo. Vale salientar que aprendi
com Yuri a ter mais foco e organização nos meus horários de estudo, até nisso ele foi
importante. Sou imensamente grato por você ter entrado na minha história nesse momento tão
especial e por fazer parte dessa jornada.
Amigos mais chegados que irmãos também não poderiam deixar de serem citados
aqui, Renata Paiva, por exemplo, sempre esteve ao meu lado dos melhores aos piores momentos
da minha vida, sendo uma grande amiga e incentivadora. Janaina Galvíncio, que mesmo o
destino a encaminhando para um pouco mais longe, continuo nutrindo o carinho de sempre.
Laura Santos, minha amiga que sempre me apoiou e ofereceu suporte com as melhores palavras
e ações. Taynara Martins também sempre soube ser não apenas amiga, mas ser abraço nos
momentos mais importantes. Ana Cláudia, assim como Josielly Martins, que acompanharam
meu crescimento desde a tenra infância e contribuíram diretamente na formação do meu caráter
com ensinamentos válidos até hoje. E Josemar Martins, que entre desentendimentos e alegrias,
conseguiu ser o irmão que nunca tive. Meu agradecimento a todos eles que estão ao meu lado
há mais de uma década e se alegraram e, quando preciso, sofreram junto comigo.
Acompanharam meu crescimento não só profissional e acadêmico – desde resultado do antigo
vestibular para a graduação em História, em 2013, até a conquista na seleção do mestrado, em
2018 –, como também meu crescimento pessoal. Aqueles que surgiram na minha vida um pouco
mais tarde, parecem que intensificaram a amizade ao ponto de compensarem o tempo perdido,
Adriana Karla e Rebeca Suêz, por exemplo, foram os melhores presentes da graduação e estão
comigo para o que der e vier desde 2013, ambas me conhecem inteiramente e são amigas
verdadeiras em que posso confiar. Já Carlos Silva e Isaque Silva são amigos com os quais pude
construir diversas histórias incríveis. Portanto, serei eternamente grato pela sorte de ter esses
irmãos dados pela vida.
Agradeço aos amigos da pós-graduação com quem pude dividir a caminhada até aqui
e que quero continuar trilhando aventuras, na vida acadêmica e pessoal, pelos próximos anos,
como Luana Ramalho, Eudymara Queiroz, Genilda Neiva, Emanoel Jardel e Danielle Bruna,
minha “URSAL” foi essencial ao trazer leveza para cada dia da jornada do mestrado. Não
poderia deixar de agradecer especialmente à minha amiga e colega de turma do mestrado,
Ristephany Leite, por quem nutri um carinho especial desde 2015, ao dividir diversos sonhos
e, principalmente, a sala da base de pesquisa “Formação dos Espaços Coloniais”. A sala 230 do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) passou a ser uma extensão de nossas
vidas acadêmicas, onde desenvolvi uma relação afetiva desde a construção do meu trabalho
monográfico, finalizado em 2017, até a finalização desta dissertação. Deixo registrado meu
especial agradecimento também a Marcos Arthur Viana, amigo da área de História, que sempre
se mostrou generoso e solícito para ajudar durante a pesquisa, fosse com sugestões de
documentos ou com discussões importantes.
Ao meu orientador, Lígio José de Oliveira Maia, deixo meu agradecimento especial
por ter construído uma relação de cooperação desde a graduação, quando comecei a bolsa de
Iniciação Científica sob sua orientação, em 2015, bem como a conclusão do meu trabalho
monográfico. Hoje, vejo que a oportunidade de uma bolsa como essa foi essencial na minha
formação acadêmica e profissional, pois através dela pude abrir meus horizontes para o
desenvolvimento da pesquisa histórica e, com o auxílio de Lígio Maia, pude galgar passos cada
vez mais largos em direção à tão sonhada dissertação. Junto ao professor, tive, ainda, a
oportunidade de vivenciar a experiência do Estágio à Docência durante um semestre do
mestrado que, sem dúvidas, foi um momento de rica aprendizagem e intenso estímulo de
conhecimento, me motivando ainda mais a ter vontade de ensinar. Portanto, externo aqui minha
gratidão ao professor Lígio Maia e a todos os momentos de orientação e aconselhamentos que
ele dedicou a mim.
Cada professor e cada disciplina, no decorrer da graduação e da pós-graduação, me
deram lições para além das discussões históricas. Devo ao corpo docente que me acompanhou
até aqui os meus agradecimentos pelas contribuições pessoais e acadêmicas, pois se minha visão
de mundo se ampliou e várias desconstruções sociais ocorreram em mim, foram também graças
aos diálogos estabelecidos e os conhecimentos construídos em sala de aula. Carmen Margarida
Oliveira Alveal e Helder Alexandre Medeiros de Macedo são exemplos, mais próximos e
recentes, de contribuição nesta pesquisa. Agradeço a ambos por cada sugestão dirigida ao
trabalho durante a qualificação, pois aprimoraram as discussões levantadas nesta pesquisa até
mesmo antes da qualificação, como se deu nas aulas de Seminário de Linha de Pesquisa,
ministradas pela professora Carmen Alveal, assim como no meu segundo Estágio à Docência
junto a ela. Sendo assim, agradeço-lhes pela sua dedicação ao ofício de professores e
historiadores, os quais executam com exímia maestria. Não poderia deixar de agradecer
especialmente ao Professor Ricardo Pinto de Medeiros, da Universidade Federal de
Pernambuco, que cedeu generosamente parte dos documentos que compuseram esta dissertação
referente à Junta das Missões de Pernambuco. Sem eles a pesquisa, provavelmente, não teria
tomado o rumo desejado.
Por fim, agradeço à CAPES, que mesmo nesses tempos mais incertos nas áreas de
produção do conhecimento e pesquisa das Ciências, possibilitou a minha permanência durante
o mestrado através da concessão da bolsa de incentivo e fomento à pesquisa. Sem essa bolsa, a
conclusão do trabalho, possivelmente, não resultaria no que é hoje, por mais que despendesse
um esforço demasiado. Através da bolsa, tive a chance de vivenciar um momento fundamental
para minha formação como historiador, pois passei uma semana de pesquisa em alguns dos
arquivos da cidade do Rio de Janeiro, como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nos quais pude encontrar alguns documentos que
foram utilizados neste trabalho e outros que pretendo utilizar em pesquisas futuras. Ademais,
agradeço a todos os profissionais dessas instituições pela presteza e bom atendimento,
qualidades essenciais para ajudar aos pesquisadores.
Portanto, só felicidade e gratidão me acompanham ao final deste trajeto, apesar de
todas as dores e perdas, deixo aqui meu muito obrigado a todos. E como disse Clarice Lispector
em A Hora da Estrela: “enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a
escrever”.
“Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou”
Canção das três raças – Clara Nunes
RESUMO
Este trabalho se propõe a analisar a trajetória de utilização do aparato jurídico da Guerra Justa
enquanto um meio que catalisou o processo de desterritorialização da Capitania do Rio Grande,
em especial a área do Açu, nas décadas finais do século XVII e iniciais do século XVIII. Ao
partir dos debates jurídicos e teológicos desde o século XV, pretende-se observar os
desdobramentos dessas discussões na realidade prática dos colonizadores ao se defrontarem
com grupos indígenas diversos, aos quais se propõe um processo de desnaturalização. Aqui,
objetiva-se refletir historicamente de maneira mais específica sobre as discussões que tratam
das guerras justas no Açu, atentando para essa parte da Guerra dos Bárbaros de modo que
privilegie uma perspectiva voltada, apesar da restrição representada pelo caráter burocrático
das fontes, para o protagonismo indígena. Desse modo, pode-se perceber a instrumentalização
desse artificio jurídico não apenas na legislação indigenista, como também nas ações de
autoridades e moradores que, amparados pelo argumento da guerra justa, puderam intensificar
o alastramento de fronteiras institucionais e novas territorializações na América Portuguesa.
Através da análise dos discursos produzidos pelas instituições e autoridades coloniais, como a
Junta das Missões de Pernambuco, e o cruzamento de outras fontes, pôde-se perceber a
proporção da incidência da justiça sobre as guerras contra os índios, entre 1680 e 1720
aproximadamente, no sertão do Açu, período compreendido como a Guerra dos Bárbaros. Os
índios daquela espacialidade, portanto, tiveram de se reorganizar enquanto grupos, num novo
contexto histórico expansionista e em novos espaços, haja vista as apropriações que tinham de
seus territórios e as tentativas de desnaturalização.
Palavras-chave: Guerra justa. Desterritorialização. Desnaturalização. Guerra dos Bárbaros.
Sertão do Açu.
ABSTRACT
This research work proposes to analise the trajectory of use of legal apparatus of Just War while
a way that increased the process of deterritorialization of Capitancy of Rio Grande, especially
the area of Açu, in the late seventeenth century. When starting with the legal and theological
debates since the fifteenth century, it is intended to observe the developments of these
discussions in the pratical reality of colonizers when faced with several indigenous groups, to
whom it proposes a denaturalization’s process. The aim of this work is reflect historically in
the specific way about the discussions that deal of just wars in the Açu, paying attetion to this
part of Guerra dos Bárbaros so that it privileges a perspective turning to indiginous
protagonism, although of restriction represented by the bureaucratic character of the sources.
Thereby, it can perceive a instrumentalization of this legal apparatus, just not in the indigenous
legislation, as also in the actions of authorities and residentes who supported by the argument
of just war, they could intesify the spread of institutional frontiers and new territorializations in
the Portuguese America. Through of the discourse analysis produced by the colonial institutions
and authorities, as Junta das Missões de Pernambuco, and the crossing of sources it could
perceive the proportions of justice’s incidence about the wars against the indians, between 1680
and 1720, in the hinterland of Açu, period that comprised the Guerra dos Bárbaros. So, the
indians that espaciality, had to reorganize while a group, in a new historical and expansionist
context in the new spaces, in view of the apropriations that had with their territories and
denaturalization attempts.
Keywords: Just War. Deterritorialization. Denaturalization. Guerra dos Bárbaros. Hinterland
of Açu.
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 – Limites aproximados da Capitania da Paraíba..........................................................77
Mapa 2 – Extensão territorial do conflito da Guerra dos Bárbaros..........................................79
Mapa 3 – Primeiras frentes de conquista no sertão do Rio Grande (final do século XVII)......97
Mapa 4 – Trajeto de perseguição contra os índios Janduís.....................................................102
Mapa 5 – Recorte do mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju (1944) referente à Capitania do
Rio Grande (1944).........................................................................................................................112
Mapa 6 – Aldeamentos e Vilas da Capitania do Rio Grande..................................................127
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 – Ilustrações dos retratos de Bartolomeu de Las Casas e Juan-Ginés de
Sepúlveda..................................................................................................................................51
Imagem 2 – Argumento pela causa das proposições sugeridas pelo Bispo Dom Frei Bartolomeu
de Las Casas..............................................................................................................................56
LISTA DE QUADROS/TABELA/GRÁFICO
Quadro 1 – Juntas das Missões nas possessões ultramarinas.....................................................81
Gráfico 1 – Termos da Junta das Missões de Pernambuco analisados......................................132
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AHU Arquivo Histórico Ultramarino
BNL Biblioteca Nacional de Lisboa
DHBN Documentos Históricos da Biblioteca Nacional
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IHGRN Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
LCPSCN Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ___________________________________________________________17
2 DEBATES TEÓRICOS E JURÍDICOS EM TORNO DA GUERRA JUSTA _______37
2.1 – Breve histórico da guerra justa ____________________________________________38
2.2 – Valladolid: ponto de encontro e desencontro entre Bartolomeu de Las Casas e Juan-Ginés
Sepúlveda sobre a guerra justa _________________________________________________49
2.3 – A guerra justa na legislação indigenista ______________________________________58
3 GUERRAS (IN)JUSTAS DA BAHIA AO SERTÃO DO
AÇU_____________________________________________________________________72
3.1 – Histórias conectadas entre as realidades das Capitanias do Norte e a guerra justa ____ 73
3.2 – A Guerra Justa no contexto da Guerra dos Bárbaros ___________________________ 84
3.3 – Simultâneos e sobrepostos processos de territorialização e desterritorialização no sertão
do Açu __________________________________________________________________ 100
4 DESNATURALIZAÇÃO INDÍGENA E APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO EM
MEIO ÀS GUERRAS_____________________________________________________ 115
4.1 – Territórios sociais indígenas_____________________________________________ 116
4.2 – Deslocamentos indígenas em tempos de guerra ______________________________ 121
4.3 – Desnaturalização dos índios da Capitania do Rio Grande_______________________ 133
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS_____________________________________________ 141
FONTES _______________________________________________________________ 144
REFERÊNCIAS_________________________________________________________ 149
17
INTRODUÇÃO
A guerra justa foi um artifício jurídico muito utilizado, ao longo da história, como um
meio de eliminar aquele considerado inimigo e como uma das principais justificativas para a
tomada de territórios pois permitia a destruição desse e, consequentemente, a conquista de seu
espaço. Inicialmente, o conceito da guerra justa foi empregado nos conflitos entre cristãos e
mouros, no período das Cruzadas (1095-1492), quando ordens militares marcharam da Europa
Ocidental para a Terra Santa e para a cidade de Jerusalém com o intuito de conquistá-las1. O
empreendimento de uma guerra justa carregava consigo não apenas o caráter bélico da guerra
armada, mas também o simbolismo religioso ao se encarar essa ação como um movimento de
captura e destruição daqueles que não eram adeptos da fé católica2.
Nesse contexto, a Igreja mostrou-se como um reduto de ideólogos e estudiosos que se
dedicaram a tratar da temática da guerra justa e de temas que a tangenciavam, como o ideal do
guerreiro cristão e das Cavalarias, dando legitimidade para a incidência da guerra3. Aponta-se
que a teorização desse conceito contou com autores e abordagens diversas no decorrer do tempo
e sua criação foi atribuída a Agostinho de Hipona (354-430), mais conhecido como Santo
Agostinho. Porém, estudos recentes apontam Agostinho como um herdeiro de uma tradição
cristã, que estava em formação há séculos, na qual a temática da guerra encontrava-se em
constante discussão e polêmica. Fato que aponta isso é que ele nunca teria escrito um tratado
sistemático ou discussão específica sobre a guerra, apenas abordado sobre o tema em diversos
textos quando necessário. No entanto, os ensinamentos agostinianos são peças fundamentais
para a compreensão da origem do pensamento cristão sobre a guerra, pois deixavam clara a
questão da ética da guerra e da tortura, uma vez que, baseada em um mandamento de Deus,
poderia tornar-se um ato louvável. Isso ocorreria ao conceber-se a guerra atrelada à sua ideia
de justa autoridade, da qual o monarca já estaria imbuído pela própria lei da natureza. Ao agir
não por sua vontade pessoal, mas contra determinada nação pagã a serviço da religião, estaria
o rei cumprindo um mandamento divino4.
1 FONTES, João Luís Inglês. Cruzada e expansão: a bula Sane Charissimus. Lusitania Sacra, 1995. p. 403-420. 2 MACEDO, José Rivair. Mouros e cristãos: a ritualização da conquista no velho e no Novo Mundo. Bulletin du
centre d’études médiévales d’Auxerre, 2008. p. 1-12. 3 COSTA, Ricardo da; SANTOS, Armando Alexandre dos. O pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274)
sobre a vida militar, a guerra justa e as ordens militares de cavalaria. In: Mirabilia 10. Jan-jun/ 2010. p. 145-157. 4 Foram nos textos Contra Faustum (398 a.C.) e o livro XIX de Cidade de Deus que Santo Agostinho tratou
inicialmente da questão da guerra justa, porém, não era seu objetivo principal. No primeiro, era sua intenção
responder a Fausto, um maniqueu, que questionou a legitimidade da Igreja com críticas ao Antigo Testamento. Já
no segundo, ele não dedicou um espaço restrito à discussão da temática da guerra justa, aparece apenas no livro
18
Segundo o Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos, a expressão “guerra
justa” diz respeito ao conceito oriundo da Igreja por conta das dificuldades encontradas pela
teologia cristã, durante a Idade Média, cuja primeira teorização adveio de Santo Agostinho
(354-430), bispo da cidade de Hipona, “que, não obstante a condenar a belicosidade, via-se
obrigada a apoiá-la e mesmo a patrociná-la”5, como foi no caso das Cruzadas. Essa
conceituação sofreu diversas reformulações ao longo do tempo e de vários teólogos, porém, foi
na Espanha que ela tomou uma forma definitiva. A guerra justa poderia ser de caráter defensivo
ou ofensivo, porém, em ambos os casos, deveriam obedecer às prerrogativas estabelecidas –
que serão detalhadas a seguir – para a incitação dela.
Os debates acerca da matéria da guerra não cessaram e as teorias receberam revisões
e atualizações durante os anos que se seguiram. Os ensinamentos de Agostinho foram
revisitados e apoiados por nomes como Tomás de Aquino (1225-1274) e, em seguida, o
francisco Álvaro Pais6 (c. 1270-1352). Ambos acreditavam que o papa detinha jurisdição sobre
as coisas espirituais e temporais, além de que seria ele o responsável por concedê-la ao
imperador e demais príncipes, ideia refutada séculos depois por Francisco de Vitória, Suárez,
Molina e mais autores das Escolas Peninsulares7. A essa altura, o conceito da guerra justa
encontrava-se bem delimitado. Segundo Georg Thomas, teria sido Álvaro Pais o responsável
por definir o conceito de guerra justa, em Portugal, no século XIV, fundamentando-se no direito
de guerra medieval8.
Influenciados por essa onda de discussões, no período da Modernidade, percebe-se que
a incidência da guerra justa no caso dos portugueses e espanhóis não representou um fato
isolado, mas se fez presente constantemente como uma alternativa viável de estabelecer os seus
impérios ao minar possíveis obstáculos representados pelas povoações locais de África e
Américas. Não obstante, essa temática permeava os grupos de discussões e gerava distintas
XIX sobre o summum bonum, cujo objetivo era mostrar que a finalidade de se alcançar toda filosofia e prática
humana na “cidade terrena” é fadada ao fracasso. Cf.: SOUSA, Rodrigo Franklin de. A legitimação da guerra no
discurso ético e político de Santo Agostinho. Ciências da Religião – História e Sociedade, São Paulo. v. 9, n. 1,
2011. p. 194-196. 5 AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 225. 6 Pensador galego e bispo de Silves (1334-1352), nascido em 1270, em San Juan del Salnés, Cambados, na
Província de Pontevedra, pertencente à arquidiocese de Santiago de Compostela (Cf: JANEIRO, 1977 apud
SOUZA, 2004). Obteve o grau de doutor em Direito Civil e Canônico, sob a tutela do canonista Guido de Baysio
(1250-1313). 7 CALAFATE, Pedro. A Escola Ibérica da Paz nas universidades de Coimbra e Évora (século XVI).
Teocomunicação, Porto Alegre, v. 44, n. 1, jan.-abr. 2014, p. 86. 8 THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil: 1500-1640. Tradução do Pe. Jesus Hortal.
São Paulo: Loyola, 1981, p. 50-52.
19
ideias que enriqueciam o debate sobre a legitimidade e a justiça da guerra. Fruto desses debates,
portanto, foi a criação da Escola de Salamanca por Francisco de Vitória (1483-1546) em
parceria com Domingo de Soto (1494-1560), na Espanha9.
Os espanhóis contaram com um forte movimento teológico no século XVI que
objetivava uma renovação da Teologia e que motivou a criação de um grupo de três gerações
de teólogos, catedráticos e professores da Faculdade de Teologia de Salamanca. O grupo
contribuiu e inovou com seu estilo próprio ao pensar as problemáticas sociais de seu tempo e
as fontes positivas da teologia de modo histórico-crítico próprio do Humanismo renascentista
à luz dos elementos tradicionais da ciência teológica da Grande Escolástica Medieval,
atribuindo a Francisco de Vitória o papel de artífice principal desse movimento de renovação10.
Dentre as questões sociais que estavam no seio das discussões da Escola de Salamanca, destaca-
se o debate acerca da guerra justa, assim como do domínio de povos indígenas e conquista de
novas terras. O conceito de dominium exposto por Vitória, por exemplo, amalgama tanto a ideia
do divino quanto a ideia do natural e racional, pois para ele havia uma relação imbricada entre
a dominação e o estabelecimento de um poder, no qual a conquista de determinado espaço já
garantiria o usufruto desse11.
Destarte, em se tratando da América portuguesa, deve-se levar em consideração que
as Leis que permitiam a guerra justa sob os povos indígenas sofreram diversas reformulações.
Ora o rei concedia tal permissão, ora a negava, haja vista os excessos cometidos pelos
colonizadores e moradores ao se valerem desse aparato jurídico. Dessa maneira, as leis
representam um processo volitivo da criação do Direito pois, para a organização de uma
sociedade, exige-se a delimitação de certas regras que estabeleçam uma ordem, podendo serem
elas regras religiosas, éticas, de cortesia e/ou jurídicas. Porém, o que se percebe como elemento
diferenciador das regras jurídicas reside na questão da coação aos destinatários delas, tendo em
vista muitas vezes partirem de instituições hierarquicamente superiores. Sobre as normas
jurídicas recaem pelo menos três ordens de problemas, que são: quanto à sua justiça; à sua
validade; e à sua eficácia. O aspecto da justiça, recorrentemente abordado aqui ao se observar
os documentos produzidos pelos ideólogos da guerra justa ou mesmo os documentos que tratam
9 Cf.: PLANS, Juan Belda. La Escuela de Salamanca. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2000. 10 PLANS, Juan Belda. La Escuela de Salamanca. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2000, p. 157. 11 RODRIGUES, Erick Matheus Bezerra Mendonça. Espaços criados, espaços conquistados: relações de
domínio da Espanha imperial com os espaços das Indias Occidentales no século XVI). Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, 2019. p. 9.
20
da guerra justa nos sertões do Rio Grande, está circunscrito entre a norma ideal e a norma real,
entre o que deveria existir e o que de fato existe na realidade prática12.
Através da execução da guerra, os colonos puderam fazer cativos os índios e explorar
terras e minerais. Em 1565, uma decisão da Mesa da Consciência e Ordens13 permitia apenas o
direito de fazer um índio cativo mediante a guerra justa e “seu status sócio-jurídico era
semelhante ao de um escravo negro: sua pessoa era propriedade de outrem”14. Para além da
questão do trabalho indígena, havia outra forte motivação para o empreendimento da guerra
que estava centrada na oportunidade de que os moradores e colonizadores tinham de tomar as
terras pertencentes aos grupos indígenas e utilizá-las em proveito próprio. Sobre isso, Tyego da
Silva atribui o estabelecimento de núcleos populacionais nas principais ribeiras da capitania do
Rio Grande, principalmente aos “‘homens de armas’ que, por meio da guerra justa, adquiriram
mão de obra indígena e ainda concessões de sesmarias para fixarem-se naquelas localidades”15.
Esse movimento de ampliação do território apoiado nas conquistas movidas pelas
guerras configura um novo processo de territorialização de um dado espaço por parte dos
colonizadores. Sobre a noção de território atrelado a suas perdas para uns e conquistas para
outros, deve-se ter em mente que esse conceito pode ser apreendido de diferentes maneiras, seja
pelo viés econômico, político, cultural ou natural. Aqui, o território da Capitania do Rio Grande,
em meados do final do século XVII e início do XVIII, é considerado intrinsecamente ligado às
relações sociais ou culturais, entendendo-as também como consequentes relações territoriais,
principalmente ao partir-se da premissa de que os grupos indígenas desenvolviam uma
aproximação profícua com o território para além de sua utilização no sentido de produção
material. Portanto, durante o processo de conquista, alguns povos sofreram com o fenômeno da
desterritorialização no qual determinados grupos, como é o caso dos indígenas, foram alijados
12 SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2006, p. 21-23. 13 A Mesa da Consciência e Ordens foi criada por D. João III em 1532 e atuou até 1833, surgiu com o intuito de
organizar e solucionar as matérias que tocassem a "obrigação de sua consciência", um dos mecanismos para a
centralização do poder do rei. Com o tempo, suas atribuições foram sendo acrescidas e dizia respeito não apenas
à administração espiritual, mas também temporal das mesmas ordens, sendo assim designada como da Consciência
e Ordens. Cf.: Cruz, Maria. 1993. A Mesa da Consciência e Ordens, o Padroado e as Perspectivas da Missionação.
In Vol. 3 of Actas do Congresso Internacional de História, Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas.
Braga: Faculdade de Teologia, 1993, p. 627-647. 14 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório
pombalino no século XVIII. Rio de Janeiro: PUBLIT, 2015, p. 56. 15 SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na territorialização do
Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal-RN, 2015. p. 71.
21
do acesso ao território, no sentido elementar da terra, ao vivenciar “‘experiências múltiplas’
imprevisíveis em busca da simples sobrevivência física cotidiana”16.
Rogério Haesbaert, em seus estudos sobre o território e suas diferentes dimensões,
destaca a necessidade de, ao se analisar determinado território, não o encarar como um espaço
neutro, ideia similar à de Paul Little que acredita no espaço como mas como lócus de constante
disputa de poder17. Para Haesbaert, deve-se observar esse espaço seja sob uma perspectiva de
terra (territorium), onde predomina o uso dela para fins econômicos, seja sob a ideia de
terror/aterrorizar (terreo/ territor), na qual há a imposição do medo e do terror dos atores
hegemônicos aos atores hegemonizados, servindo de recurso para os primeiros e de abrigo para
os últimos. Quando se detém ao conceito da desterritorialização, o geógrafo o coloca como
uma das faces da moeda da territorialização, enquanto a outra face é a reterritorialização. Desse
modo, os movimentos sociais ou individuais de desterritorialização são seguidos de novos
processos de reterritorialização, pois sempre haverá alguma forma de territorialidade18.
Haesbaert acredita que antes de definir-se como e onde ocorreu a desterritorialização,
é preciso destacar exatamente o tipo de território que se pretende analisar, haja vista o conceito
de território ser amalgamado em diferentes orientações, podendo ser pelo viés simbólico e
cultural, material e econômico ou pelo poder político19. Aqui, ao tratar do território referente
aos índios, tem-se em mente o emaranhado das relações sociais como resultante de uma carga
simbólica e cultural a qual demarca o espaço de convívio dos grupos indígenas. Seguindo essa
linha de pensamento, portanto, caminha-se na direção do que propõe o antropólogo João
Pacheco de Oliveira ao pensar a noção de territorialização, definida como um processo de
reorganização social. Nesse sentido, o processo acarreta alterações diretas no espaço envolvido,
das quais Pacheco de Oliveira elencou: 1) surgimento de uma nova unidade sociocultural
através de uma identidade étnica diferenciadora; 2) elaboração de mecanismos políticos
especializados; 3) atribuição do controle social sobre os recursos ambientais a outro grupo; 4)
16 COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade.
6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 175. 17 Cf.: LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade.
In: Anuário Antropológico/2002-2003. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 251-290. 18 Cf.: COSTA, Rogério Haesbaert da. Da desterritorialização à multiterritorialidade. In: Anais do X Encontro de
Geógrafos da América Latina. São Paulo, Universidade de São Paulo, março de 2005, p. 6774-6792. Disponível
em: <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal10/Teoriaymetodo/Conceptuales/19.pdf>. Acesso
em 10 de julho de 2019. 19 Cf.: COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
22
remodelação da cultura e da relação com o passado20. O antropólogo compreende o conceito de
territorialização como “uma intervenção da esfera política que associa [...] um conjunto de
indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados”21, intervenção da qual muitas
vezes ocorreu de maneira arbitrária.
Desse modo, ao evidenciar os principais focos de desterritorrialização da capitania do
Rio Grande através da execução da guerra justa no período da Guerra dos Bárbaros, pretende-
se elucidar os possíveis rumos tomados pelos índios no sentido de criarem uma nova
territorialização vinculada à sua carga cultural e identitária. Nesse sentido, a presente
dissertação visa tratar das novas configurações espaciais da Capitania do Rio Grande,
envolvendo os grupos indígenas através da incidência da guerra justa no período da Guerra do
Açu (c. 1680-1720). Pretende-se, portanto, responder ao problema da reorganização do espaço,
principalmente dos sertões, pela perspectiva dos índios ao mapear os principais focos de guerra
justa e consequentes pontos de refúgio. Tem-se como ponto de partida as relações sociais dos
índios com o seu território ao sofrer diversos processos de desterritorialização, seguidos de
novas territorializações com suas vivências próprias do espaço, de acordo com sua cultura e do
seu tempo. Portanto, diante dos processos de disputas territoriais da capitania, visa-se
evidenciar as trajetórias tomadas por grupos indígenas que sofreram com o processo de
desterritorialização de seu espaço e se viram na necessidade de territorializar outro. Como
Haesbaert bem explicita, “cada grupo cultural e cada período histórico funda sua própria forma
de vivenciar ‘integralmente o espaço’”22. Essa forma integral de experiência dos povos
indígenas do Rio Grande, por exemplo, pode ser evidenciada através de sua conduta
territorial23, conceito proposto pelo antropólogo Paul Little ao observar as ações e usos
empregados pelos grupos em seus territórios sociais.
Ruy Moreira, ao tratar do sistema de produção agrícola na América portuguesa,
montado em função do modo de produção, o colonial agroexportador, pontua a mão de obra
escrava como essencial para a estruturação e crescimento da empresa agroexportadora. Pois
“sendo a terra um fator de produção abundante e a mão de obra um fator escasso, reside no
controle deste último a base do prestígio e do poder da grande empresa, garantindo-lhe a fruição
20 OLIVEIRA. João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e
fluxos culturais. Mana –Estudos de Antropologia Social, v. 4, n. 1, Rio de Janeiro, 1998. p. 55. 21 OLIVEIRA, Op. Cit., p. 56. 22 COSTA, Rogério Haesbaert da. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade.
6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 67. 23 Cf.: LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no brasil: por uma antropologia da territorialidade.
In: Anuário Antropológico/2002-2003. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004 p. 253.
23
exclusiva dos benefícios, oriundos dos centros de decisão da colônia”24 (grifo meu). Dessa
maneira, pode-se entender a terra – distinta do território – enquanto meio de prestígio e poder
social no período colonial, representando motivação suficiente de interesse para o avanço de
embates cujo objetivo era a posse e domínio das regiões até então pertencentes aos índios.
A Guerra do Açu, composta por diversas guerras justas, representa um momento claro
de interesse dos colonos nas terras dos índios bem como na tentativa de aumento do número de
escravos indígenas. Tal conflito tem sua data de início marcada por volta de 1687 e de término
em 1720, tendo ocorrido na Ribeira do Açu, localizada na Capitania do Rio Grande, e fez parte
de uma série de embates contra indígenas de diferentes etnias, entre elas pode-se citar os
Janduís, Caboré, Capela, Panicuassus – essas são as nações de índios que aparece com maior
recorrência nas fontes. Esse episódio marcou a história colonial na América Portuguesa e é
comumente associado a um dos casos da Guerra dos Bárbaros, evento que compreendeu não
apenas a Guerra do Açu, mas se estendeu desde as Guerras do Recôncavo (1651-1679)25.
A área correspondente ao Açu era repleta de campos que podiam servir para criação
de gado, como ocorreu no período de mais intensa colonização por volta do final da década de
1670 e início de 1680. Quando vaqueiros instalaram currais, aquele local era habitado
inicialmente pelos tapuias26. Segundo Gregório Varela de Berredo Pereira, autor do “Breve
compêndio”27 (1690), o Açu era um lugar de difícil acesso “por estar de distância de trezentas
léguas pelo sertão adentro, em parte com morros de areais e em outras de penedia mui
agreste”28. Foi nesse cenário que os índios presenciaram o avanço e as investidas de
colonizadores e moradores, tendo que responder aos ataques e gerando conflitos ainda mais
sangrentos.
No processo de colonização da capitania do Rio Grande, é possível identificar o litoral
como uma zona de difusão, conceito que Antônio Carlos Robert de Moraes usou ao caracterizá-
24 MOREIRA, Ruy. Formação espacial brasileira: uma contribuição crítica à geografia do Brasil. Rio de Janeiro:
Consequência, 2012. p. 33. 25 PUNTONI, Pedro. A guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-
1720. São Paulo: Hucitec/Edusp, 2002. p. 13. 26 Tapuia foi uma categoria colonial atribuída a determinados grupos indígenas em oposição aos tupis. Os tapuias
seriam os considerados inimigos e “de língua travada”. Cf.: POMPA, Cristina. Religião como tradução:
missionários, tupi e tapuia no Brasil colonial. Bauru-SP: EDUSC, 2003. p. 221-223. 27 Gregório Varela de Berredo Pereira, morador de Pernambuco, nomeado Capitão de Infantaria no Brasil em 1690,
escreveu sobre o curto período de governo de Antônio Luís Gonçalvez da Câmara Coutinho. Neste relato, ao tratar
os esforços e feitos políticos do governador de Pernambuco e suas anexas, Gregório termina por descrever
informações importantes sobre a capitania do Rio Grande, como detalhes dos sertões do Açu. 28 PEREIRA, Gregório Varela de Berredo. Breve compêndio do que vai obrando neste governo de Pernambuco o
senhor Antonio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho. Recife, 1690. In: MELLO, José Antônio Gonçalvez de.
Pernambuco ao tempo do governo de Câmara Coutinho (1689-1690). Revista do Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico de Pernambuco. Vol. LI. Recife: CEPE, 1979. p. 264.
24
la como um centro de assentamento cuja serventia era de base para o alastramento da conquista
da área pretendida. Como possibilidade de expandir territorialmente, os sertões do Açu
representaram o que Moraes convencionou chamar de fundos territoriais, que seriam os
estoques de espaços para futuras apropriações29. O estabelecimento dos colonizadores, tanto na
zona de difusão quanto nos fundos territoriais, configura a região colonial, esse conjunto
territorial sobre o domínio e a jurisdição da Coroa Portuguesa.
No entanto, a pretensão de aqui se estudar a relação dos índios com o seu território,
nos momentos de guerra justa, logo colide com as dificuldades encontradas por meio da análise
do discurso de fontes de cunho burocrático produzidas pelas autoridades coloniais. Entendendo
que uma nova territorialização dos sertões30 do Rio Grande, motivada pela desterritorialização
dos índios durante as guerras, acarretou transformações substanciais nos elementos e nos atores
políticos e sociais daquela área, torna-se dificultoso perceber as movimentações dos grupos
indígenas mediante os relatos lacunares dos agentes detentores dos meios de escrita e registro
no período colonial. Tendo em vista essas limitações, representada também pela intenção de
determinados colonos em documentar ou não certos detalhes à sua época, exige-se um esforço
no sentido de captar as ações dos índios nos meandros da documentação.
Exemplo desse esforço e de certo olhar sensível que se deve ter às fontes para tratar
dos deslocamentos dos índios, em tempos de guerras, pode ser evidenciado ao encontrar um
caso de transferências de presos da etnia Janduí e Caboré, em uma guerra até então indefinida
se justa ou injusta. Através de uma portaria que foi remetida ao provedor da Fazenda Real, em
27 de fevereiro de 1713, sobre a assistência no sustento de uma índia, Dona Catherina31, que
estava presa em Olinda, pôde-se apreender que dessa guerra ocorrida no Rio Grande foram
feitos muitos índios cativos e achou-se mais prudente os remeterem para o forte de Santa Cruz
29 Cf.: MORAES, Antônio Carlos Robert de. Território e história no Brasil. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2005. 30 Na definição de Raphael Bluteau, lexicólogo português, em seu Vocabulário portuguez e latino (1717-1721), o
sertão é considerado como o interior, o coração das terras, que se opõe ao marítimo. Sobre o conceito de sertão,
Janaina Amado disserta que desde o século XIV já era utilizado em Portugal, podendo ser grafado tanto iniciando
com a letra “s” quanto com a letra “c”, e dizia respeito às partes mais distantes de Lisboa. A partir do século XV
é que novos significados foram atribuídos ao termo, fazendo referência aos espaços vastos e interiores localizados
nas possessões recém conquistadas, onde muito pouco se sabia sobre eles. Ao longo do século XVIII, continuou
sendo utilizado pela Coroa portuguesa, contudo, como sinônimo de um espaço desconhecido e misterioso a ser
desbravado. Já no Brasil, apenas no século seguinte foi que se inseriu na língua falada. Cf.: AMADO, Janaína;
FIGUEIREDO, Luiz Carlos. O Brasil no Império português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Coleção Descobrindo
o Brasil, 2001. 31 “Dona” é uma expressão de distinção social utilizada no período colonial, a qual atribui certa diferenciação
hierárquica, assim como o termo “dom”. No entanto, a respeito de Dona Catherina, ainda não se pode afirmar mais
sobre quem ela teria sido ou o que levou à utilização dessa expressão, por ausência de documentos até o momento.
No entanto, em ocasião mais oportuna a frente, esse caso será retomado e melhor tratado, especificamente no
tópico 4.2, que trata sobre os deslocamentos indígenas no contexto das guerras justas.
25
de Itamaracá, em Pernambuco, para lá colaborarem com o trabalho proveniente da
fortificação32.
Nessa ocasião, vale ressaltar que mesmo com a indeterminação sobre a matéria da
guerra, se seria justa ou injusta, diversos índios foram aprisionados. Não achando suficiente,
foram retirados de seu espaço de convívio social e deslocados para um novo território a cerca
de 266 km de distância da atual cidade do Natal, a fortaleza de Itamaracá. Esse processo de
desterritorialização é evidenciado e justificado no documento pelo temor que se tinha de uma
reorganização do grupo para preparação de um motim contra os brancos em consequência do
conflito.
Na historiografia nacional e local, o índio guerreiro que estava fadado ao fracasso –
morte ou escravidão – ou à assimilação colonial foi apresentado recorrentemente. Muitos dos
estudiosos reproduziam de maneira acrítica os discursos presentes nos documentos produzidos
pelas autoridades coloniais, em sua maioria carregados de adjetivos e termos que
caracterizavam negativamente a imagem do índio, como “bárbaros” – marcando fortemente a
própria historiografia que cunhou esse conflito com o termo “Guerra dos Bárbaros” –, além de
“gentio”, “rebelde” ou “revoltoso”. Essas atribuições contribuíram e contribuem para
estigmatizar sobre eles a imagem do índio insolente e que por isso merecia as investidas
violentas da Coroa.
Um dos problemas evidenciados que influenciou na perenidade desse estigma foi o
fato de que a historiografia clássica, tanto no âmbito nacional quanto local, ao tratar dos índios
muitas das vezes se encarregou de reproduzir os discursos dos documentos sem a devida
problematização. Vale salientar que a produção historiográfica se transforma ao longo do
tempo, assim, deve-se ser situada no tempo e no espaço a qual foi construída. Isto posto, ao
deparar-se com essa historiografia, é necessário levar em consideração, além da formação do
historiador, o seu interesse e preocupação, tanto social quanto pessoal, à época da escrita.
Em se tratando da produção historiográfica local, Câmara Cascudo foi o exemplo de
um dos maiores expoentes da história do Rio Grande do Norte no século XX. Ao iniciar o seu
capítulo sobre a fundação da cidade de Natal, lança na primeira sentença a seguinte assertiva:
“o forte construído ficava isolado no seu arrecife cercado pelo mar assim como a guarnição
estava circundada pela indiada furiosa”33. Cascudo concluiu essa ideia afirmando que a
32 Portaria que foi ao provedor da Fazenda Real para assistir à tapuia Dona Catherina com o seu sustento. Biblioteca
Nacional de Lisboa (BNL), Coleção Pombalina (PBA), códice 115, fl. 127. 33 CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 4 ed. Natal: EDUFRN, 2010. p. 47.
26
conquista dos índios seria consolidada pela espada e pela catequese, alegando que “mosquetes,
canhões, lanças, espadas e pelouros nada fariam”34. São afirmações veementes e com ausência
de problematizações como essas que corroboraram com a manutenção de um ideário do índio
insolente, que apenas seria capaz de conhecer a obediência por meio da força das armas e da
missionação. Em contrapartida, ao apresentar figuras como Antônio Vaz Gondim, então
capitão-mor do Rio Grande, de 1654 a 1663 e de 1673 a 1677, Cascudo o classificou como “o
enfermeiro da terra e da gente”35, tendo em vista a necessidade de recuperação da Capitania
diante dos estragos ocasionados pelos índios. Da mesma maneira, Câmara Cascudo exaltou as
atitudes dos capitães-mores Agostinho César de Andrade e Bernardo Vieira de Melo, os quais
lidaram diretamente com os mais intensos embates com os índios durante o período da Guerra
dos Bárbaros, a qual o autor denominou de “Guerra dos Cariris”36. Já ao tratar do início do
conflito, ele faz menção aos ataques que os índios faziam às residências e currais de gado, no
sertão de Açu, destruindo toda coisa viva, e sobre o destino final deles o resume ao seu
desaparecimento.
Ao não relativizar as ações dos índios, Cascudo terminou por ter uma visão
reducionista da história, e em específico do envolvimento deles nas guerras, mesmo que em
algum momento tenha ressaltado a utilização da guerra justa, por parte dos colonos, como uma
manobra para se ludibriar as Leis de liberdade dos índios e conquistar mão de obra escrava37.
Assim, seu pensamento alinhou-se com o de muitos historiadores da época. Vicente de Lemos
foi um deles pois este, ao dedicar seus esforços na construção de dois volumes de livros sobre
os capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte, teceu uma narrativa que privilegiava
a exaltação das iniciativas dessas personalidades em detrimento da problematização de suas
atitudes. Em relação aos índios, nesse período conturbado da história, Lemos os cita
recorrentemente nas suas análises dos perfis dos capitães-mores como aqueles a serem vencidos
ou submetidos à obediência.
No segundo volume de seu livro, Vicente de Lemos debruçou-se sobre as cartas
patentes dos capitães-mores do Rio Grande, entre 1701 e 1822, e dentre todos os citados não há
34 Idem. 35 CASCUDO, Op. Cit., p. 77. 36 Câmara Cascudo denomina a Guerra dos Bárbaros como Guerra dos Cariris pois, segundo sua visão, os cariris
teriam sido as maiores vítimas nos conflitos. Eles correspondiam aos povos Paiacu, Icó, Caratiú, Pega, Caicó,
Panati, Janduí, etc, que atacaram desde o Jaguaribe até o sertão da Paraíba. Na definição de Cascudo, cariris eram
os índios de cabeça chata e silenciosos pois o significado de cariri era “calado” e “taciturno”. Cf.: CASCUDO,
Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 4 ed. Natal: EDUFRN, 2010. p. 79. 37 Cf.: CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 4 ed. Natal: EDUFRN, 2010. p. 78.
27
um sequer que não faça menção à relação deles com os índios, com exceção de Sebastião Nunes
Collares (1705-1708), do qual se comenta apenas sobre doações de sesmarias na ribeira de
Mossoró38. Contudo, em todas as outras citações referentes aos índios, eles são colocados como
um problema que os capitães tinham de enfrentar. André Nogueira da Costa, por exemplo,
governou entre 1708 e 1711 e, ao lidar com a busca de soluções para se resolver o que fazer
com os “silvícolas”, a dúvida pairava entre a catequese e “a espoliação, cativeiro, o massacre”39.
Porém, ao consultar o Senado da Câmara de Natal, decidiu-se pela continuidade da guerra
contra os índios. Em consequência disso, no período de vigência do seu sucessor, Salvador
Alvares da Silva (1711-1715), “houve nas ribeiras do Açu nova revolta dos Cariris no início de
1712, que avançara contra o arraial tudo depredando e matando”40. Assim como Cascudo,
Vicente de Lemos influenciou sobremaneira as produções historiográficas sobre o Rio Grande
do Norte, incorrendo ao risco da manutenção do estigma do índio rebelde que destruía tudo em
derredor ao não se propor a problematizar certas entrelinhas da história, e, apenas, reproduzir o
discurso oriundo das fontes.
Outro nome emblemático da historiografia norte-rio-grandense é o de Tavares de Lyra.
Em 1918, ele publicou o primeiro volume de seu trabalho, intitulado “Notas Históricas sobre o
Rio Grande do Norte”, enquanto a obra “História do Rio Grande do Norte” foi publicada em
1921. Nessa última, o historiador propôs-se a discutir temas importantes que envolveram o Rio
Grande do Norte desde a conquista da Capitania até os fatos ocorridos no início do século XX.
Em um de seus capítulos, nomeado “Início do povoamento dos sertões e revolta dos índios”,
Lyra inicialmente traçou as trajetórias dos capitães-mores, relatando as dificuldades e as
conquistas na gestão deles na Capitania após a expulsão dos holandeses. Ao tratar da Guerra no
Açu, ele ressalta que a incitação de guerras que os colonos faziam com o pretexto de apresar
índios para mão de obra escravizada seria motivo para justificar o levante dos índios, no entanto,
reitera a imagem do índio bárbaro ao comentar que:
Veio um dia em que desapareceu essa fingida paz que existia; os índios
levantaram-se em massas poderosas, assaltaram os moradores, destruíram as
plantações, assolaram as casas, e por tal forma que a 2 de dezembro de 1687,
a Câmara, ponderando que estavam os índios senhores do Açu e a república
em perigo, e ‘vendo o pouco fervor com que se havia o capitão-mor Pascoal
38 Cf.: LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte.
Vol. 2. Natal: Edição do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1980. p. 27. 39 Idem, p. 29. 40 Idem, p. 31.
28
[Gonçalves] acordou na vereação deste dia irem todos os senadores com as
pessoas que os quisessem acompanhar bater os índios levantados41.
Tavares de Lyra, discorrendo sobre os índios envolvidos no conflito, aderiu à
dicotomia Potiguares contra Tapuias, em que os primeiros teriam se aliado aos portugueses
enquanto os outros foram contrários a eles, dentre os quais, as etnias que predominaram teriam
sido as de Janduís e de Caracarás42. Portanto, ele não se detém a identificar os grupos étnicos
que foram vulgarmente categorizados como tapuias, especificando apenas dois povos
diferentes. Porém, diferentemente de Cascudo, em “História da Cidade do Natal”, Lyra inseriu
na discussão sobre a guerra o interesse dos colonos não apenas na mão de obra indígena mas
também na exploração da terra43.
Como cada estudo é produto do seu tempo e espaço específicos, os autores, com seus
objetivos próprios, trataram de temas referentes ao Rio Grande do Norte à sua maneira. Outra
referência importante que, assim como as anteriores, se dedicou a discutir a história do seu
estado no século XX foi Rocha Pombo. Esse autor apresentou fatos desde antes da conquista
lusitana e, para o período da chegada dos portugueses, já naturalizou o uso da terminologia
“bárbaros” ao referir-se aos índios. Tratando da tentativa de fixação de colonos no Rio Grande,
ele comenta que “os bárbaros, porém, não os deixaram tranquillos, depredando-lhes as roças e
incendiando-lhes os engenhos”44. Já a respeito do período da Guerra do Açu, Pombo dissertou
que os “bárbaros” interceptaram o meio entre o Ceará e o Rio Grande, especificamente na
ribeira do Açu, e se utilizando dos relatos de Pedro Carrilho de Andrade45, mesmo trecho que
Tavares de Lyra usou, ele reafirmou a destruição de toda coisa viva naquela área por parte dos
índios46.
Não obstante, na contramão dessas ideias, houve um crescimento vertiginoso de
trabalhos que privilegiaram o viés da História Antropológica sobre os índios desde a década de
41 LYRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3.ed. Natal: EDUFRN – Editora da UFRN, 2008, p.
141-142. 42 LYRA, Op. Cit., p. 143. 43 Cf.: LYRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3.ed. Natal: EDUFRN – Editora da UFRN,
2008, p. 159. 44 POMBO, Rocha. História do estado do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2018, p. 30. 45 Pedro Carrilho de Andrade foi tenente da Fortaleza da Capitania do Rio Grande, assim como Capitão do Terço
de Paulistas na Campanha do Açu, e, por essa relação direta com os índios envolvidos na Guerra do Açu, ele
elaborou relatos carregados de juízo de valor, que a despeito disso permitem dar uma noção sobre detalhes
importantes dos grupos indígenas em sua “Memória sobre os Índios no Brasil”, por exemplo. 46 Cf.: POMBO, Rocha. História do estado do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2018. p. 151.
29
197047. Porém, essas iniciativas não esgotaram as possibilidades de pesquisa que se dedicam a
tratar o passado dos índios com um olhar diferenciado daquele construído pela historiografia
até meados do século XX. Aqui, através da temática da Guerra Justa, tem-se o intuito de ampliar
as discussões que atentem para os índios da Capitania do Rio Grande, não os associando a
papéis secundários48.
No âmbito da historiografia local, no que se tratou dos revisionistas e de uma leva de
historiadores compromissados com o estudo mais direcionado aos índios do Rio Grande,
destaca-se nomes como Olavo de Medeiros Filho. Esse, embora tenha, inicialmente, se proposto
a analisar a genealogia das famílias brancas nos livros Velhas famílias do Seridó e Velhos
inventários do Seridó, lançados respectivamente em 1981 e 1983, tratou de ampliar sua análise
nos anos seguintes. Foi em 1984 que Medeiros Filho lançou Índios do Açu e Seridó, no qual
abordou, exclusivamente, aspectos dos índios dessas regiões até então pouco explorados, como
suas relações amorosas, questões de saúde, costumes, religiosidades e trabalho49. Além disso,
no mesmo livro, versou sobre o contexto da Guerra dos Bárbaros, ao qual se refere como
Levante dos Tapuias, através de temas como a colonização do Rio Açu por meio das concessões
de sesmarias e os consequentes embates entre índios e moradores. No entanto, por vezes, ainda
terminava por não problematizar o aspecto feroz dos índios, categorizando-os como bárbaros.
Já sobre a historiografia produzida a respeito da temática da guerra justa na capitania
do Rio Grande, tem-se observado um crescimento vertiginoso nos estudos, majoritariamente
acadêmicos, que privilegiam de alguma maneira a perspectiva da História Indígena,
acompanhando o crescimento que houvera no âmbito da historiografia nacional. Maria Idalina
Pires, por exemplo, representou os passos iniciais rumo a essa valorização da história pela ótica
dos índios do Rio Grande ao discutir acerca da Guerra dos Bárbaros. Para ela, “o termo ‘Guerra
47 Importantes nomes da historiografia local e nacional como John Monteiro, Maria Regina Celestino de Almeida
e João Pacheco de Oliveira, por exemplo, dedicaram-se a tratar da História do período colonial por um viés que
atenuasse as lacunas referentes aos índios, abordando-os através de um sentido antropológico, em que o conceito
de cultura é entendido por meio de “todos os produtos materiais, espirituais e comportamentais da vida humana,
bem como as dimensões simbólicas da vida social” (ALMEIDA, 2010, p. 21), abandonando a ideia de uma cultura
fixa e imutável para assim valorizar a trajetória histórica de cada povo. 48 Para Maria Regina Celestino de Almeida, desde o começo da História do Brasil por Francisco Adolfo Varnhagen
(1854) até momentos bem avançados do século XX, os índios “pareciam estar no Brasil à disposição dos europeus,
que se serviam deles conforme seus interesses” (ALMEIDA, 2010, p. 13). Por isso, essa vertente da história
antropológica visa, sempre que possível, dar maior visibilidade aos índios como maneira de dirimir a
marginalização histórica deles. Cf.: ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história: dos
bastidores ao palco. In: ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro:
FGV, 2010. p. 13-28. 49MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1981;
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1983;
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1984.
30
dos Bárbaros’ não apenas exprimiu a noção de valentia que estes índios resistiam às incursões
portuguesas, mas transmitiu a ideia de que sua ‘primitividade’ [...] justificava seu extermínio50”.
Na tentativa de dirimir as lacunas historiográficas sobre os índios, Soraya Geronazzo também
trabalhou com a Guerra dos Bárbaros, no entanto, dedicou-se a especificar as etnias indígenas
envolvidas nesse contexto, não as tratando de maneira generalizada, além de atentar para as
experiências desenvolvidas por eles nos conflitos no que tangia às estratégias e uso de armas,
por exemplo51.
Seguindo essa linha de análise, Helder Alexandre Medeiros de Macedo deteve-se em
partes de suas pesquisas a apresentar indivíduos, eventos e ações indígenas, até então
obscurecidos na história, que envolviam o sertão do Rio Grande, colocando-os em vários meios
sociais desde os laços de convívio familiar até a guerra e consequente escravidão52. Júlio César
de Alencar, mais recentemente, realizou seu trabalho de dissertação analisando a Guerra dos
Bárbaros através dos documentos produzidos pelo Senado da Câmara da cidade do Natal. No
trabalho de Alencar, apesar de não se apresentar diretamente o conceito de desterritorialização
do sertão, é possível observar exemplos dessa ação a partir de seu estudo das fontes dos
camarários ao evidenciar a busca para “garantir o acesso aos espaços liberados para a
colonização na capitania do Rio Grande, alegando terem descoberto as terras que requeriam
e/ou terem combatido indígenas, contribuindo para o povoamento desses espaços53”. Em se
tratando das guerras no Rio Grande, Fátima Martins Lopes, ao discorrer sobre a participação
dos índios em tropas coloniais, apresenta que era uma possibilidade de se continuar exercendo
a prática guerreira do ponto de vista dos indígenas tanto Tupis quanto demais etnias54.
Ricardo Pinto de Medeiros, em sua tese de doutorado, realizou sua pesquisa
principalmente através dos relatos dos cronistas, identificando e localizando, na escala espacial,
grande parte dos povos indígenas do sertão nordestino que foram contatados e adquiriram
50 PIRES, Maria Idalina. Guerra dos Bárbaros: resistência indígena e conflito no Nordeste colonial. Recife:
Fundap/CEP, 1990, p. 28-29. 51 Cf.: ARAUJO, Soraya Geronazzo. O muro do demônio: a economia e cultura na Guerra dos Bárbaros no
nordeste colonial do Brasil – séculos XVII e XVIII. 2007. 122f. Dissertação (Mestrado em História Social). Centro
de Humanidades. Universidade Federal do Pará, 2007. 52 Cf.: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte. Natal:
Ed. UFRN, 2011. 53 ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a Câmara de Natal e a Guerra
dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal-RN, 2017. p. 169. 54 Cf.: LOPES, Fátima Martins. Os indígenas aldeados na Capitania do Rio Grande na primeira metade do século
XVIII: Terra e trabalho. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva (orgs.).
Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América Portuguesa. João Pessoa: Ideia; Natal: Edufrn,
2013. p. 73-90.
31
visibilidade não apenas no Rio Grande, mas nas demais capitanias envolvidas na Guerra dos
Bárbaros55. Já Lígio José de Oliveira Maia, ao discutir a relação dos indígenas nas Serras de
Ibiapaba, no Ceará, desde quando essa era aldeia até o momento em que se tornou vila de índios,
reservou um espaço para tratar da força marcial desses povos que chegaram a ser considerados
“o braço forte da capitania”, tendo em vista sua destreza bélica em favor da Coroa portuguesa
nos tempos de guerra56.
Apesar de esses trabalhos recentes apontarem para uma participação mais efetiva dos
grupos indígenas nas guerras, ainda há lacunas a serem aprofundadas e mitigadas,
principalmente no que tange ao estudo da guerra justa como, por exemplo, a análise em
específico dos discursos produzidos pelas autoridades coloniais, atentando para a
ressignificação desse aparato jurídico na prática e a introdução de elementos que fossem
capazes de viabilizar a desterritorialização, seguida da dominação, do sertão do Rio Grande.
Questões importantes que já foram trabalhadas, porém, não se esgotaram, como as agências
indígenas, as resistências, as novas possibilidades de territorialização dos grupos indígenas
alijados de suas terras, entre outras abordagens nesse sentido que foram tratadas aqui.
A relação aqui estabelecida com o objeto de pesquisa e as próprias fontes foi sendo
construída ainda ao longo da graduação, quando sob a orientação do Professor Doutor Lígio
José de Oliveira Maia foi possível iniciar uma bolsa de Iniciação Científica voltada para a
pesquisa referente aos indígenas da Capitania do Rio Grande através da análise do fundo
documental do Arquivo Histórico Ultramarino no ano de 2015. Tal iniciativa resultou, em 2017,
na Monografia de Conclusão de Curso intitulada “História indígena e do indigenismo na
documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa concernente ao Rio Grande
do Norte (AHU-RN) – Século XVIII”. Foi por meio do estudo e análise desses documentos que
se começou a construir um acervo próprio que pudesse dar conta das narrativas das guerras
envolvendo os índios do Rio Grande.
Logo, uma das motivações para construção desta pesquisa baseia-se na tentativa da
reconstrução de parte da história dos índios, além do interesse em contribuir com a produção
historiográfica concernente ao Rio Grande do Norte que, paulatinamente, vem tendo suas
lacunas preenchidas através das recentes pesquisas, principalmente aquelas vinculadas ao
55 Cf.: MEDEIROS, Ricardo Pinto. O descobrimento dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período
colonial. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-graduação
em História, Recife, 2000. p. 114-149. 56 Cf.: MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba, de aldeia à vila de índios: Vassalagem e identidade
no Ceará Colonial–Século XVIII. 2010. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense,
Programa de Pós-graduação em História, Niterói, 2010. p. 200-220.
32
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte57.
Para alcançar esse objetivo será necessário o cruzamento de informações oriundas de fontes
diversas, das quais se pode apreender dados qualitativos e quantitativos que deem conta do
impacto da incidência das guerras justas na capitania, aparato jurídico que condensou os
interesses de moradores intencionados em ganhos de terras e mão de obra indígena e os
interesses da Coroa de alastramento de sua área de domínio.
Para a elaboração deste trabalho, em sua maioria, foram utilizadas fontes legislativas
e administrativas, que, apesar de seu caráter burocrática, permitiram analisar a inserção do
aparato jurídico da guerra justa na produção dos discursos. Portanto, fez-se necessária a
utilização de cartas régias, Leis e Alvarás que tratam da constituição da guerra justa; dos termos
da Junta das Missões de Pernambuco; das cartas, pareceres, bandos e ofícios emitidos e
recebidos pelo Conselho Ultramarino, a maioria já transcrito e lido desde 2015, na bolsa de
Iniciação Científica; além de termos do Livro de Provisões do Senado da Câmara. Através dos
documentos de cunho administrativo e legal, como as Leis e Alvarás, por exemplo, e a devida
análise do discurso desses, é possível encontrar o posicionamento do rei, suas táticas,
estratégias, avanços e recuos em relação à incitação das guerras justas. Contudo, em alguma
medida, também foi preciso recorrer a documentos eclesiásticos, como bulas papais, que
pudessem embasar os debates teológicos em torno da matéria da guerra justa, permitindo
vislumbrar a linha tênue entre a religião e a violência, por exemplo. Através dos meandros
desses documentos, pôde-se conjecturar a respeito das possíveis articulações dos grupos
indígenas em meio às guerras, suas tentativas de resistência, fuga e territorialização.
Os termos da Junta das Missões de Pernambuco, por exemplo, permitem observar os
encaminhamentos e soluções tomadas pelo órgão sobre as situações que envolviam os índios
das Capitanias do Norte do Estado do Brasil, inclusive no tocante à justiça das guerras. A Junta
foi instituída em 1681 e durou até 1759 e foi criada pela necessidade da conquista de novos
territórios nas chamadas “capitanias de fora” do sertão norte do Estado do Brasil bem como
pela necessidade de elaboração de mecanismos eficazes que minassem os obstáculos para o
57 Muitos desses trabalhos recentes vinculados ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte forneceram subsídios para a presente pesquisa, e se já não foram citados até aqui, serão
mais à frente. Dentre eles, pode-se citar as dissertações que contribuíram direta ou indiretamente com as discussões
levantadas aqui a respeito dos índios na Capitania do Rio Grande, tais como a pesquisa de Maiara Silva Araújo,
defendida em 2019, assim como a de Erick Rodrigues; anteriormente, Júlio César de Alencar e Tyego Franklim
da Silva, defenderam suas pesquisas respectivamente em 2017 e 2015, ambas com diferentes e importantes
abordagens sobre a Guerra dos Bárbaros.
33
êxito desse avanço. Como os índios constituíam uma espécie de fronteira58 que dificultava o
acesso ao sertão, a Junta das Missões de Pernambuco obrigatoriamente tratou dessa questão e,
assim, a guerra justa aparecia como uma alternativa viável para atender ao projeto da Coroa
portuguesa. Os termos aqui utilizados fazem parte da Coleção Pombalina da Biblioteca
Nacional de Portugal, estando alguns deles inseridos como anexos da dissertação de Ágatha
Gatti59 – os demais foram cedidos generosamente pelo Professor Ricardo Pinto de Medeiros,
totalizando uma média de 78 termos lidos e fichados.
No que diz respeito às cartas, pareceres, bandos e ofícios do Conselho Ultramarino, é
por meio delas que se consegue perceber as inquietações de moradores e autoridades locais,
como também do rei, sobre as experiências com os índios e a matéria da guerra. O Conselho
Ultramarino foi criado, em 1642, para tentar reestruturar e reorganizar administrativamente o
Brasil. Graças ao Projeto Resgate Barão do Rio Branco foi que o Rio Grande do Norte recebeu
a digitalização e a disponibilização on-line de um montante de 628 conjuntos documentais
oriundos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), acessíveis aos pesquisadores e ao público
em geral. Tais documentos dão conta de vários conflitos que compõem a Guerra do Açu, além
de guerras isoladas que iremos discutir adiante.
Já os termos do Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal
apresentam, além do conteúdo referente à guerra, as tentativas de se firmar a paz com os índios.
Essa documentação encontra-se digitalizada no Laboratório de Imagens do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes (Labim/CCHLA) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Além dos conjuntos documentais supracitados, foram usados os Documentos Históricos da
Biblioteca Nacional (DHBN) pois há, entre eles, informações sobre a Guerra dos Bárbaros e
eventos que se relacionam com as guerras justas nos sertões da capitania. Através da visita à
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro também foi possível encontrar um manuscrito, que ainda
não se encontra digitalizado, que tratava das guerras nas ribeiras do Assu e Jaguaribe, assim
como documentos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que tratavam de guerras justas
58 Hal Langfur atribui a categoria de “fronteiras” aos índios Botocudos da região de Minas Gerais no período
colonial pelo fato de eles representarem uma barreira que dificultava o contrabando de ouro na região (Cf.:
LANGFUR, Hal. The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's eastern
Indians, 1750-1830. Stanford University Press, 2006), assim como na ideia apresentada por Soraya Geronazzo
Araujo, a qual coloca os tapuias do Rio Grande envolvidos na Guerra dos Bárbaros como o “muro do demônio”,
expressão identificada dentre os documentos analisados em sua dissertação, referindo-se também a uma barreira
humana que servia de impedimento para o avanço dos colonos aos sertões da Capitania. 59 GATTI, Ágatha Francesconi. O trâmite da fé: a atuação da Junta das Missões de Pernambuco, 1681-1759.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo. 2011.
34
não apenas na Capitania do Rio Grande, mas também em outras próximas a ela. Há ainda os
Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, organizado pela professora
Virginia Rau e por Maria Fernanda Gomes da Silva. Eles correspondem a cartas, petições,
pareceres e consultas que revelam não só os manuscritos do primeiro Duque de Cadaval, D.
Nuno Álvares Pereira de Melo60 (1638-1725), mas também documentos em geral de meados
do século XVII e o fim do primeiro quartel do século XVIII.
Os documentos foram aqui analisados através dos pressupostos metodológicos da
História qualitativa por meio da análise do discurso histórico61, ao atentar para as nuances e
detalhes informados nos documentos que dizem respeito da relação entre a guerra justa e a
Guerra do Açu. Além disso, em momento oportuno, também se fará uso da História Conectada,
proposta pelo historiador Sanjay Subrahmanyam62. Através dessa metodologia construiu-se
outra parte da pesquisa que se deteve aos estudos dos casos de guerra justa envolvendo as
demais Capitanias do Norte. Em suma, o trabalho ocorreu por meio do cruzamento de fontes
eclesiásticas, administrativas e legislativas, capazes de fornecer informações relevantes a fim
de tecer a narrativa histórica apresentada aqui. Dessa maneira, ao longo do trabalho tentou-se
responder questões tocantes aos usos e as apropriações do discurso jurídico da guerra justa na
Legislação indigenista, e em específico, na Guerra dos Bárbaros, problematizando as
interpretações e as adaptações que foram realizadas para que a norma teórica incidisse naquela
realidade local. Destarte, a análise dos discursos, desde o século V até o século XVIII, gira em
torno da problemática da justiça e sua validade no ultramar, além de tentar perceber de que
maneira a incidência desse aparato jurídico interferiu nas relações estabelecidas nos territórios
60 “D. Nuno Álvares Pereira de Melo foi o primeiro Duque do Conselho do Estado, presidente, respectivamente,
do Conselho Ultramarino, da Junta do Tabaco e do Desembargo do Paço, mestre-de-campo general, etc.” (Cf.:
RAU, Virginia; SILVA, Maria Fernanda Gomes da (Org.). Os manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval
respeitantes ao Brasil. Vol. II. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra: University of Coimbra, 1958. p.
540). 61 Ao tomar como objeto o discurso e sua produção, pretende-se “uma rejeição da noção realista de que a linguagem
é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, e uma convicção da importância central do
discurso na construção da vida social”. Cf.: GILL, R. Análise de Discurso. In: BAUER, MW; GASKELL, G.
Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 3a ed. Vozes: Petrópolis (RJ), 2002, p.
244. 62 Sanjay Subrahmanyam sugeriu que a história comparativa não era, necessariamente, a forma mais fecunda de
prosseguir uma investigação com o objetivo de entender o mundo da época moderna. Sua proposta é observar
fenômenos que articulam histórias para além das tradicionais fronteiras do pensamento, não apenas comparando
um país a outro, por exemplo, mas considerando um o espelho do outro. Assim, pretende-se partir para as análises
de outras capitanias do Norte e suas realidades próprias de guerras justas contra os índios. Cf.:
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia.
In: Modern Asian Studies, Vol. 31, No. 3, Special Issue: The Eurasian Context of the Early Modern History of
Mainland South East Asia, 1400-1800. (Jul., 1997). p. 735-762.
35
sociais dos índios, tendo em vista os sucessivos processos de desterritorialização,
desnaturalização e territorialização ao qual foram submetidos.
***
Através do cruzamento de dados provenientes das fontes citadas acima, construiu-se o
primeiro capítulo da dissertação, intitulado O discurso jurídico da guerra justa: Guerra dos
Bárbaros e desterritorialização. Nele, levantou-se um debate acerca da legitimidade atribuída
à guerra contra os índios e como ela reverberou suas consequências práticas no processo de
desterritorialização do sertão da Capitania do Rio Grande através da Guerra dos Bárbaros. Para
que esse aparato jurídico fosse elaborado, diversas discussões ocorreram por parte de teólogos,
juristas e religiosos que tratavam da natureza da guerra e do dilema de executá-la contra aqueles
que pretendiam cristianizá-los ou torná-los servos do rei. Essas discussões ocorriam em torno
de Portugal e da Espanha, desde meados do século XV, mas seu raio de incidência arrastou-se
por muitos séculos depois por diferentes localidades e atingindo povos distintos. A legislação
indigenista no Brasil absorveu a ideia da guerra justa, e as hostilidades dos índios, agravadas
com a questão da antropofagia, foram tidas como motivos suficientes para que os índios
sofressem com ela. A Guerra dos Bárbaros, portanto, exemplifica vários episódios em que a
guerra justa foi invocada e, como consequência, gerou a desterritorialização dos grupos
indígenas do sertão.
Para o capítulo seguinte, Guerras (in)justas da Bahia ao sertão do Açu, de maneira
mais pragmática, avançou-se na elaboração de uma espécie de análise comparativa ao
apresentar as realidades conectadas de outras Capitanias do Norte, observando as relações que
se estabeleceram entre elas através das dissidências e aproximações no que se refere à
imposição da guerra justa e do movimento de desterritorialização dos índios. Tratando como
uma espécie de colcha de retalhos, ao sinalizar para os pontos em que se intercruzam nas
histórias das Capitanias do Rio Grande, Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Piauí, Bahia e Ceará,
no contexto da utilização do recurso da guerra justa. Apenas após isso foi que se propôs uma
discussão mais aprofundada da incidência da guerra justa no contexto geral da Guerra dos
Bárbaros, possibilitando restringir ainda mais o foco da análise discursiva para a área do sertão
do Açu, partindo do macro ao micro.
Já no terceiro e último capítulo, apresentou-se uma discussão em torno da noção dos
territórios sociais dos índios da Capitania, assim como os movimentos espaciais como
36
alternativas de reterritorialização dos grupos em um novo local. Nesse capítulo, decidiu-se
privilegiar direta e exclusivamente a História Indígena com o foco de endossar as narrativas
historiográficas por esse viés. Para finalizar, expôs-se a força de resistência adaptativa63
indígena, a exemplo das fugas. Em um movimento contrário à fuga dos índios, as autoridades
coloniais impeliam uma tentativa de desnaturalização dos índios pautada no desenraizamento
deles de seus locais de estabelecimento através de deslocamentos compulsórios para outras
localidades, motivados principalmente pelo objetivo de pôr fim ao espaço de sociabilidade dos
índios, visto como sinônimo de sublevação.
63 Para Steve Stern, a resistência adaptativa se configura a partir do momento em que os índios passam a se utilizar
dos meios acessíveis da própria Coroa para garantir melhores condições de sobrevivência. No contexto das guerras
justas aqui apresentado, pode-se pontuar por exemplo a participação de índios no corpo do Terço dos Paulistas ou
os deslocamentos indígenas para além do sertão. Cf.: STERN, Steve. Resistance, rebellion and consciousness in
the Andean Peasant Word, 18th to 20th Centuries. The University of Wisconsin Press, 1987.
37
2 DEBATES TEÓRICOS E JURÍDICOS EM TORNO DA GUERRA JUSTA
Neste primeiro momento da discussão, pretende-se trazer um breve histórico da
constituição da Guerra Justa como um discurso que deu legitimidade para catalisar o processo
de desterritorialização dos grupos indígenas da Capitania do Rio Grande, especialmente no
período dos embates que compuseram a Guerra do Açu64 (c. 1680-1720). Para isso, deseja-se
apresentar os debates que estavam em voga desde o século XV entre teólogos, juristas e as
Escolas da época, tanto em Portugal quanto na Espanha, visando uma interlocução que
materialize o pano de fundo que estava por trás das Leis e Alvarás que determinaram a execução
da guerra justa e seus ditames na colônia.
Como uma espécie de adendo nessa parte do histórico da guerra justa, decidiu-se
reservar o tópico seguinte para tratar do Debate de Valladolid, ocorrido na Espanha em 1550,
evento que marcou o auge do enfrentamento entre Bartolomeu de Las Casas e Juan-Ginés
Sepúlveda. Na ocasião, os dois puderam discorrer a respeito de seus tratados e análises sobre
questões que envolviam as conquistas espanholas, mais especificamente a guerra justa, a
escravidão dos índios e a evangelização deles, cada qual com sua visão. Por conseguinte, foram
analisados os principais tratados e proposições apresentadas pelos dois, pontuando os elementos
de inflexão em seus pontos de vista que vieram a conformar parte de suas obras intelectuais.
Após isso, objetiva-se atentar para a legislação indigenista e destacar, nesse conjunto de
normas e leis que versava sobre a realidade social dos índios na colônia, a presença do discurso
da guerra justa. Assim, dever-se-á levar em consideração o modo como era inserido esse
artifício jurídico diante das demais normas que foram determinadas para os povos indígenas do
atual Brasil, observando as justificativas utilizadas para imposição da guerra, além das
dissonâncias e semelhanças nos discursos jurídicos produzidos desde o Regimento de Tomé de
Sousa até as chamadas Leis de Liberdade dos índios.
64 Como uma maneira de diferenciação da Guerra dos Bárbaros – combates com extensão territorial maior por ter
alcançado as regiões de Pernambuco, Ceará, os sertões do Piauí e Paraíba, além da capitania do Rio Grande –,
pretende-se utilizar o termo Guerra do Açu, situando de maneira mais precisa essa área do sertão que foi norteadora
no trabalho.
38
2.1 – Breve histórico da guerra justa
Antônio Carlos Robert de Moraes, ao levantar uma discussão sobre a conquista do
espaço por meio dos processos de colonização, mostra que se configura uma expansão territorial
ao se incorporar um novo espaço ao anterior, garantido, em alguns casos, pela perenidade e
fixação da presença do conquistador nesse dado território e funcionando como um aditivo
econômico para o país colonizador. De maneira sintética, Moraes destaca que a colonização
“envolve conquista, e esta se objetivava na submissão das populações encontradas, na
apropriação dos lugares, e na subordinação dos poderes eventualmente defrontados”65,
alinhando essas populações à nova ordem seja pela incorporação ou pela destruição de outrem.
Portanto, nesse contexto de avanço de territórios conjugado com o avanço dos poderes
coloniais, exigia-se um elemento difusor desse projeto, possibilitado pelo empreendimento da
guerra justa pois, ao passo que afastavam os povos indígenas de determinado espaço, o
ganhavam para concretização da conquista através da fixação na área.
Diante das situações vivenciadas na colônia, era necessária certa plasticidade e
inventividade por parte dos agentes coloniais para que pudessem lograr êxito na sua instalação
e, por isso, contavam com fatores como a mão de obra bem como com recursos naturais que
poderiam ser apreendidos no local. Moraes destaca que
o sentido da colonização em cada território estabelece uma conjunção entre a
geopolítica metropolitana e as condições locais defrontadas pelo colonizador,
notadamente no que tange aos contingentes demográficos e aos recursos
naturais existentes, num jogo comandado pela lucratividade do capital
mercantil66.
Para fundamentar a discussão inicial acerca da guerra justa, situando-a e definindo-a
historicamente, pretende-se aqui traçar um histórico da constituição dela e, apesar de se tratar
de um recorte temporal muito extenso, este deverá ser feito de maneira sucinta, privilegiando
os principais eventos que circundaram a temática e dando clareza da grande proporção do
debate que o tema sugere. O período mais distante do trabalhado aqui, e que se deve ser
elucidado, remonta a 1099, marco da conquista de Jerusalém com as Cruzadas, um exemplo
comumente associado às guerras contra bárbaros e à anexação de territórios. Sobre esse período,
vale acentuar que ele foi marcado pela constituição de ordens religioso-militares de cavalaria,
sendo as primeiras: a dos Templários, a dos Hospitalários de São João de Jerusalém, a do Santo
65 MORAES, Op. Cit., p. 65. 66 MORAES, Op. Cit., p. 67.
39
Sepulcro, a dos Cavaleiros Teutônicos67. A Igreja, de maneira geral, via com bons olhos a
condição militar, bem como a guerra que a ela estava imbricada, pois o militar que cumpria seu
serviço atrelado à dedicação religiosa o fazia de modo santificado e consagrado. Desse modo,
paulatinamente, a Igreja foi moldando as ideias que compuseram a guerra justa, ensinando o
ideal do guerreiro cristão.
Nessa relação entre a Igreja e o militarismo, a Bíblia Sagrada foi um forte recurso
utilizado por muito tempo para endossar argumentações e justificativas das mais diferentes
causas sociais. Recuando no marco temporal do histórico da guerra justa e adentrando no século
V – período de maior interesse para se entender a noção da guerra justa pelo fato de se teorizar
de maneira pragmática o aparato jurídico –, encontram-se diversos religiosos que elaboraram
tratados e estudos sobre problemas da sociedade apoiados nas suas interpretações dos textos
bíblicos, como por exemplo, Santo Agostinho e Santo Ambrósio. Eles acreditavam que os
ensinamentos de Jesus permitiam e, em alguns casos, incentivavam a prática militar e da guerra.
Na visão tomista – proposta por São Tomás de Aquino, já no século XIII –, a paz era entendida
como “a tranquilidade da ordem”, apresentando-se como sucessor da linha de raciocínio
exposta por Agostinho. Nesses ideais, portanto, não se descartava a hipótese da guerra, mas
almejava-se o objetivo da ordem, visto que a guerra por si só não era um mal, mas poderia ser
boa e até santa, a depender da sua finalidade e de como seria conduzida68.
Marcocci aponta três fatores que teriam desencadeado o nascimento de uma reflexão
sobre a relação entre violência e religião, sendo eles:
a variedade de ambientes e contextos políticos dos territórios atingidos pelo
expansionismo português; as divergências entre os conselheiros de D. João
III, isto é, os membros da alta nobreza e os oficiais imperiais de maior
categoria, acerca das formas concretas que deveria assumir o sistema de
domínio português (sobretudo na Ásia, mas também no Norte da África); e a
progressiva hegemonia cultural dos teólogos da corte, que impuseram uma
nova preocupação pelas ‘obrigações de consciência’ que condicionavam a
ação política69.
Os critérios que estabelecidos para que a guerra fosse considerada santa e justa foram
baseados na Summa contra gentiles70 de Tomás de Aquino e no Decreto de Graciano. Dentre
67 Cf.: COSTA, Ricardo da; SANTOS, Armando Alexandre dos. O pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-
1274) sobre a vida militar, a guerra justa e as ordens militares de cavalaria. In: Mirabilia 10. Jan-jun/ 2010. p.
146. 68 Idem. 69 MARCOCCI, Op. Cit., p. 251. 70 Summae é um gênero textual cuja escrita é contínua e elaborada, com base lógica-formal, ligado a alguma Escola,
mas de caráter pessoal. Consolida-se no século XII como um tipo de literatura jurídica utilizada onde não se havia
40
as premissas para execução da guerra, tornando-a legítima, estavam os seguintes casos: 1º -
deveria ser precedida de alguma ação injusta do inimigo; 2º - teria que ser impelida com
intenções boas; 3º - deveria ser deliberada por alguma autoridade, seja a Igreja ou um príncipe71.
Essas proposições de Tomás de Aquino são um reflexo das ideias que permeavam o século V.
Isto posto, pode-se repensar a relação que se criou entre a negociação e a violência, não as
encarando como opostas, mas interligadas, como lembrado por Aquino: “entre os verdadeiros
adoradores de Deus, até as guerras são pacíficas, pois é o desejo da paz que os move, e não a
cobiça ou a crueldade, para que sejam freados os maus e favorecidos os bons”72.
No que tange à licitude da vida militar atrelada às ordens religiosas, Tomás de Aquino
novamente se vale dos ensinamentos de Santo Agostinho ao rejeitar a ideia de que esse modo
de vida desagradaria a Deus, utilizando o exemplo do rei Davi – militar que ainda assim teria
agradado muito ao Senhor. Aquino afirma que, dentre as funções de uma ordem religiosa, se
poderia avançar para além das obras da vida contemplativa e alcançar as obras da vida ativa,
como o serviço militar, e se embasando em versículos retirados da bíblia acredita que
pode-se convenientemente fundar uma ordem religiosa para a vida militar, não
com um fim mundano, mas para a defesa do culto divino, do bem público, ou
dos pobres e oprimidos, de acordo com o Salmo que diz “Salvai o pobre, livrai
o indigente das mãos do pecador”73.
A discussão acerca da guerra justa dividia opiniões entre apoiadores e contrários. Santo
Agostinho fora um dos expoentes dessa doutrina que, apesar de clamar pelo fim das guerras
várias vezes, deixou exceções que posteriormente foram assumidas por São Tomás de Aquino
na defesa da guerra justa. Santo Agostinho afirmara, portanto, que era melhor que os justos
subjugassem os malfeitores ao invés de os justos serem governados pelos malfeitores.
Consequentemente, uma guerra empreendida por justos lhe parecia um mal necessário ou, como
em suas palavras, “um feliz acontecimento”74 motivado pelas injustiças observadas no lado
oposto. Já os humanistas cristãos criticavam diretamente qualquer tipo de ressalva que
favorecesse a guerra. Erasmo, por exemplo, na oração A lamentação da paz de 1517, opõe a
acesso às glosas ou ao Corpus Iuris, entendendo as glosas como uma explicação gramatical simples e de caráter
exegético. Cf.: SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. 2006. 71 Cf.: ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Linha de Fé: A Companhia de Jesus e a Escravidão no Processo
de Formação da Sociedade Colonial (Brasil, Séculos XVI e XVII). São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2011. 72 De verbis Domin., De civitate Dei, 119, c. 12. Apud. COSTA; SANTOS, Op. Cit., p. 145-157. 73 Suma teológica II-IIae. Apud COSTA; SANTOS, Op. Cit., p. 154. 74 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
p. 264.
41
guerra à irmandade cristã, sendo ainda inimiga de um governo virtuoso, objetivando em sua
oração o fim da guerra e o estabelecimento da paz perpétua e universal75.
A contradição entre religião e violência bélica era geralmente diluída pela perspectiva
da conquista espiritual do outro. Em outro momento, o próprio adágio Dulce bellum inexpertis
(ou seja, a guerra é doce para os que dela não têm experiência), de Erasmo, reconhece que os
impérios só se erigiam na história com derramamento de sangue enquanto César Augusto
colocou que a possibilidade de paz existente nos contextos de conquista era somente a imposta
pelos vencedores aos vencidos. A guerra aos infiéis e inimigos de Cristo era então considerada
justa, sem serem feitos muitos aprofundamentos nos debates acerca da temática. Na bula “De
nobilitate”, de 1542, escrita por Jeronimo Osório, além do espaço reservado à inferiorização da
religião dos romanos, asseverava-se que o ideal da paz devia ser apoiado pelas armas e a força
bélica estaria intrinsicamente ligada ao pressuposto de um Estado sólido. João de Barros76,
inspirado nos escritos de Nicolau Maquiavel, por exemplo, foi um dos que escreveu que “aonde
se trattão bem as couzas de guerra, cumpre que aja boa ordem, [...] onde há boa ordem, não
pode deixar d’aver justiça”77.
Outro período importante a respeito da trajetória da guerra justa ficou evidente através
das instituições de ensino e pesquisa consolidadas nos impérios de Portugal e Espanha.
Destacados mestres de Teologia compuseram as Universidades de Coimbra, Évora, Salamanca
e Alcalá de Henares. Eram homens da Igreja, frades e clérigos, confessores régios, catedráticos,
entre outros, que elaboraram suas opiniões e posicionamentos, uns contrários à ideia que Deus
concordasse com a atitude dos cristãos de avançar e tomar territórios não cristãos, expropriando
e matando seus povos, enquanto outros mostravam-se favoráveis. Para alguns, tais atitudes
eram tidas como contrárias ao evangelho, ao direito divino, natural e humano e da ideia de
liberdade de que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, já outros teciam
reticências e pontos que pudessem legitimar de algum modo o empreendimento da guerra.
75 Idem. 76 João de Barros foi responsável pelo senhorio da “Terra dos Potiguara”, entre 1521 e 1557, capitania donatária
concedida pelo rei D. João III, que viria ser a capitania do Rio Grande. Sobre Barros, Elenize Trindade Pereira
realizou sua pesquisa de dissertação referente à sua trajetória de vida, e, mais especificamente, da relação que se
constituiu desde à concessão da capitania hereditária até o momento de transformação dela em capitania régia..
Cf.: PEREIRA, Elenize Trindade. De capitania donatária à capitania régia: o senhorio de João de Barros na
"Terra dos Potiguara": século XVI. 2018. 159f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018. 77 BARROS, João de. Panegíricos (Panegírico de D. João III e da Infanta D. Maria). Texto restituído, prefaciado
e notas pelo prof. M. Rodrigues Lapa. Lisboa: Sá da Costa, 1943, fol. 10rv (ed. moderna, p. 16).
42
Pedro Calafate destacou nas universidades de Coimbra e Évora o caráter do que
chamou de Escola Ibérica da Paz. Para os mestres que as compuseram era necessário respeitar
a legitimidade das soberanias indígenas, equiparando seu poder político ao poder político dos
príncipes cristãos e concebendo a paz como a caracterização da vida e não como o resultado do
medo da guerra78. Os autores da chamada Escola Ibérica da Paz acreditavam, portanto, que o
papa não podia conceder o direito de conquistar primeiro para evangelizar depois os povos
indígenas, pois Deus não lhes teria dado a espada temporal, muito menos o poder espiritual
sobre os povos do mundo inteiro, apenas sobre os já batizados. Frei António de São Domingos
Francisco Suárez, professor da Universidade de Coimbra entre 1573 e 1593, relata nas suas
lições sobre o direito da guerra:
todavia, e salvo melhor opinião, esta causa não parece suficientemente justa,
e prova-se porque o Senhor quer que o Evangelho seja pregado com mansidão,
e não pela força das armas, como provámos atrás. Em segundo lugar, porque
eles teriam em relação a nós um justo motivo de escândalo, porquanto não
podemos provar-lhes que Cristo pôde conceder este direito.79
No entanto, essa visão de pregação do evangelho com mansidão não foi a única
construída nas instituições, nem muito menos foi a que imperou na prática colonial do além-
mar, haja vista os excessos violentos cometidos contra os índios. Partindo de Portugal para
Espanha, a Escola de Salamanca merece destaque, valendo a pena apontar o pensamento de
alguns teóricos e estudiosos que estavam preocupados com o tema da guerra. Como se estava
em centralidade assuntos relacionados às novas experiências além-mar, a escravidão e a
liberdade foram temáticas que não passaram despercebidas por eles. Assim, elas colocaram em
cheque dissonâncias referentes à doutrina cristã medieval, principalmente no tocante à diferença
existente entre a doutrina tradicional da igualdade e liberdade originária de todos os povos e
àquela proposta pela Igreja, além da falta de um referencial empírico e concreto que pudesse
ser aplicado80.
A Escola de Salamanca durou quase todo o século XVI e primeiros anos do século
XVII, pois se iniciou com a chegada de Francisco de Vitória, em 1523, e se estendeu até a morte
de Domingo Báñez, em 1604, com a queda paulatina das produções da Escola, ao ponto de se
78CALAFATE, Pedro. A Escola Ibérica da Paz nas universidades de Coimbra e Évora (século XVI).
Teocomunicação, Porto Alegre, v. 44, n. 1, jan-abr. 2014. p. 78-96. 79SÃO DOMINGOS, António de de Bello. Biblioteca Nacional de Portugal, fol. 67vº-68, tradução de A.
Guimarães Pinto (no prelo) apud CALAFATE, Op. Cit., p. 78-96. 80Cf.: TOSI, Giuseppe. A doutrina subjetiva dos direitos naturais e a questão indígena na Escuela de Salamanca e
em Bartolomé de Las Casas. Cuadernos salmantinos de filosofía, Salamanca, v. XXX, 2003. p. 577-587.
43
desintegrarem como grupo. Ao estudá-la, deve-se ter em mente dois momentos diferentes:
primeiro, a origem e sua configuração inicial; segundo, a evolução posterior com as mudanças
de elementos importantes do espírito fundacional. Esses momentos distintos foram separados
também a partir dos autores e do que eles estavam produzindo em cada época.
Desse modo, vê-se que o primeiro período é marcado de 1523, por Vitória, e foi até
1576 com Mancio, momento em que a grande maioria dos catedráticos eram dominicanos de
San Esteban, cujo espírito das produções baseavam-se de maneira plena pelo original dado por
Vitória. Já a segunda Escola de Salamanca foi desde Medina e Juan Guevara (c.1570) até Pedro
de Herrera (1604) e Juan Márquez (1600-1607), substitutos de Medina e Guevara. Nessa nova
fase, além dos dominicanos, aparecem em várias cátedras também os agostinianos e,
diferentemente da primeira, desenvolveu uma nova corrente dentro da Escola, para além da
linha vitoriana. De maneira geral, a orientação de Vitória baseava-se na utilização da Summa
de Tomás de Aquino, aliando-a aos elementos humanistas. Em contrapartida, a linha bañeciana
– em referência a Domingo Báñez81 –, seguida no segundo momento da Escola, era também
baseada no tomismo, porém com maior presença do elemento especulativo ou metafísico em
detrimento das abordagens humanistas82.
Atribui-se, portanto, a fundação da Escola de Salamanca a Francisco de Vitória,
auxiliado pelo seu braço direito Domingo de Soto e seu sucessor Melchor Cano. A respeito
dessas personalidades, sabe-se que Francisco de Vitória (1483-1546) contribuiu com as
discussões que envolviam os conceitos de jus e de dominium – noção que deriva da ideia de
justum proposta por Tomás de Aquino e significa tanto “direito” quanto “justo” – pois, para ele,
não havia dúvida quanto aos bárbaros serem destinados ao dominium em detrimento da sua
humanidade. Vitória sempre mostrou preferência pela discussão de temas morais e práticos e
foi quem iniciou a nova orientação da moral com seus comentários sobre a Secunda Secundae
de Tomás de Aquino em suas novas Relecciones, como foi o caso da Releccion De matrimonio
(1531) e suas Relecciones de Indis prior e De Indis posterior seu de iure belli (1539).
81 Teólogo espanhol, nascido em Valladolid em 1528, defensor da doutrina de Tomás de Aquino, obteve a cátedra
na Universidade de Salamanca em abril de 1577, cujos frutos de seus quatro anos de atuação nessa posição podem
ser simbolizados pelas Decissiones de iure et iustitia, comentário presente na II-II da Suma Teológica. Cf.:
CUADRADO, José Ángel García. La obra filosófica y teológica de Domingo Báñez (1528-1604). Anuario de
Historia de la Iglesia, 7, 1998, p. 209-227. 82 PLANS, Juan Belda. La Escuela de Salamanca. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2000. p. 158.
44
Nesses últimos textos, ele aborda o tema da licitude moral da conquista da América,
assim como o tema da guerra justa. Ele considera os índios incapazes de se governarem,
defendendo que se deveria ter uma relação do tipo paternalista em que os índios poderiam ser
favorecidos de alguma maneira, fosse com a educação ou com a evolução do seu estágio de
barbárie – e não apenas dando benefícios ao senhor. Quanto à guerra, ele acreditava que deveria
ser feita e aceita desde que ela assumisse o caráter de guerra defensiva, assim como dizia que
durante uma guerra justa poderia fazer-se tudo que fosse necessário a fim de defender o bem
público. Contudo, ele alertava que nem sempre era suficiente a causa apresentada pelo príncipe
para se ter uma guerra justa, devendo-se examinar com muito cuidado e diligência a justiça da
guerra83.
Domingo de Soto (1494-1560), assim como Melchior Cano (1509-1560), foram
discípulos de Francisco de Vitória. O primeiro propôs a distinção entre o conceito do dominium
e do jus – para ele, o dominium era apenas uma parte que estava inserida no todo representado
pelo jus, e o primeiro corresponderia à relação entre o homem e a propriedade, a qual se dava
como uma característica intrínseca do homem e como condicionante necessária para a
liberdade84. Já Cano diferenciou-se dos demais teólogos por não reconhecer a servidão natural,
apesar de não negar a legitimidade da escravidão. Para ele, a sujeição do homem pelo homem
não se deu por meio do direito natural, mas foi introduzida pelo direito das gentes85.
Nesse contexto, a guerra passou a ser traduzida em política. A proposta de
regulamentação da ideia de uma “guerra defensiva” ganhou êxito e foi por meio dela que os
capitães-mores puderam, portanto, incitar livremente uma guerra, sem muitas vezes analisarem
cuidadosamente as causas que a categorizariam como justa, como proposto por Vitória. Nota-
se, portanto, que, a partir do momento em que se valem da ideia de que o evangelho de Cristo
não pôde ser anunciado em todos os lugares, pois o empecilho era o outro, esse poderia ser
ultrapassado legitimamente enquanto um obstáculo a ser combatido na guerra. A “Guerra
Justa”, portanto, foi um exemplo de discurso jurídico proposto pela Coroa portuguesa que
legitimou o alcance de determinados grupos indígenas que se mostraram contrários à sua
dominação e, consequentemente, possibilitou a tomada de seus respectivos territórios.
83 VITÓRIA, Francisco de. Relecciones sobre los índios y el derecho de guerra. Madrid: ESPASA-CAPLE, S.
A., 3 ed., 1946. p. 108. 84 Cf.: TOSI, Op. Cit., p. 577-587. 85 Cf.: ZERON, Op. Cit.
45
Nos meandros das discussões a respeito da violência e da religião, destaca-se a
existência de diversas nuances nas diferentes possessões ultramarinas, pois em cada novo
território conquistado havia a manifestação de suas especificidades locais, como estruturas
sociais, culturais e, em alguns casos, políticas já estabelecidas, tendo em vista a variedade de
sociedades indígenas presentes. Nesse sentido, a inventividade fazia-se necessária no meio
jurídico português ao se defrontar com as novidades advindas do expansionismo e o uso da
violência era então ponderado já que poderia ser uma alternativa viável de concretização das
conquistas.
No jogo da colonização, e em se tratando da América Portuguesa, a plasticidade e
inventividade dos colonos estendeu-se à legislação indigenista haja vista que os ditos “índios
amigos” receberiam tratamento diferenciado dos índios ditos como “gentio bravo”. Desse
modo, houve leis específicas que atendiam a cada grupo e às suas respectivas demandas86. Com
isso, cabia às autoridades presentes nas conquistas portuguesas uma espécie de adaptação das
leis estabelecidas nos moldes da metrópole. Diferentes dispositivos legais, como a Lei de 20 de
março de 1570; a Lei de 24 de fevereiro de 1587; as Leis de 02 de novembro de 1595 e de 27
de junho de 1596; as Leis de 30 de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611, versavam sobre
a liberdade dos índios e uma possível necessidade de tutela. Essas leis vieram a determinar
ainda a possibilidade de escravidão dos povos indígenas, garantida por meio da conquista na
guerra justa, continuando a condenar a antropofagia e reiterando seu resgate87. Sobre os
Tupinambá e sua relação com a antropofagia, por exemplo, essa foi veemente condenada pela
Coroa, Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro pontuam o sentimento de vingança existente na
cerimônia da morte de um guerreiro capturado, declarando que matar e comer a carne humana
dos seus contrários era um processo único88. Segundo o relato do Frei Vicente de Salvador, o
ritual da antropofagia ocorria da seguinte maneira:
86 Essa distinção entre índios aliados e índios inimigos presente na legislação indigenista é apontada por Beatriz
Perrone-Moisés. Cf.: Cf: PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: Os princípios da legislação
indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 87 Os regates seriam uma forma de aprisionamento dos índios capturados na guerra justa, que legitimava a
utilização desses como mão de obra pelos colonos ou moradores locais. Na década de 20 do século XVIII, na
Amazônia, por exemplo, “a violência passa a ser uma condição quase que necessária para se obrigar os indígenas
a se estabelecerem junto às comunidades ou roças dos moradores. Percebe-se que essa atividade se revestiu quase
que em uma forma velada de se realizar resgates, utilizando-se dessa mão-de-obra como se ela fosse escrava, com
a diferença de que esses índios não seriam passados aos descendentes dos moradores”. Cf. PERRONE-MOISÉS,
Op. Cit., p. 127. 88 Cf.: CUNHA, Manuela Carneiro da; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Vingança e temporalidade: os
Tupinambá. Journal de la Société des Américanistes, v. 71. 1985. p. 129-208.
46
Em morrendo este preso, logo as velhas o despedaçam e lhe tiram as tripas e
forçura, que mal lavadas cozem para comer, e reparte-se a carne por todas as
casas e pelos hóspedes que vieram a esta matança, e dela comem logo assada
e cozida e guardam alguma, muita assada e mirrada, a que chama moquém,
metida em novelos de fio de algodão e posta nos caniços ao fumo, pera depois
renovarem seu ódio e fazerem outras festas, e do caldo fazem grandes
alguidares de migase papas de farinha de carimã, para suprir na falta de carne,
e poder chegar a todos89.
Já o jesuíta Serafim Leite, ao discorrer sobre a antropofagia em Páginas de História
do Brasil, tratou-a como um mal combatido logo nas “primeiras conquistas morais dos
Jesuítas”, atribuindo parte do êxito também a Tomé de Sousa e Mem de Sá:
O combate ao vício de comer carne humana principiou muito antes da
catequese propriamente dita. Os padres chegaram a arrancar, em pleno
terreiro, das mãos das velhas, dispostas já a cozinha-lo para um banquete, o
corpo morto de um índio. Tal audácia ia-lhes custando a vida. Com a ajuda de
Tomé de Sousa saíram felizmente indemnes. E, com o método e com a
cooperação de Mem de Sá, que impôs sanções legais contra esse terrível
costume, a antropofagia desapareceu em breve entre os índios, que se punham
em contato com os Portugueses.90
No entanto, mesmo que as leis ao serem estabelecidas, fossem direcionadas à colônia
de acordo com suas especificidades e demandas locais, gerava-se ainda mais questionamentos
por parte dos colonos ao compararem-nas entre as diferentes áreas do Estado do Brasil. D. João
de Lencastro, Governador-geral do Brasil com patente passada em 22 de fevereiro de 1694,
respondendo ao Capitão das Entradas Bernardo Cardoso de Macedo, em 1704, sobre a
permissão de se aprisionar o gentio do corso91 nas entradas feitas nos sertões do São Francisco,
disse não ser de acordo com o apresamento pois as leis garantiam a liberdade do gentio e as
presas feitas nas guerras do Rio Grande eram um caso particular. Pela análise do documento,
tudo indica que o Capitão de Entradas, em carta anterior, tivesse dado o exemplo dos índios
feitos cativos no Rio Grande, pois a argumentação de Lencastro, na resposta, baseia-se no fato
de que esses cativeiros foram determinados pelo rei especificamente naquela capitania “a fim
de obrigar os paulistas a virem fazer a dita guerra àquele gentio bárbaro, e [esse precedente]
89 SALVADOR, Frei Vicente de. História do Brasil 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1982, p. 87. 90 LEITE, Serafim. Páginas de História do Brasil. São Paulo: Companhia editora nacional, 1937. p. 17. 91 Nas Memórias do Maranhão e Grão-Pará da Coleção Manuel Barata, define-se a existência de três condições de
índios, sendo elas: índio de corso; índios “que contratão com os Portugueses”; e os índios “amigos mais antigos
dos Portugueses”. Quanto à categoria do gentio do corso, utilizada recorrentemente nos documentos coloniais,
segundo a fonte que descreve os três tipos de índios, esse seria aquele que amanhece em uma parte e anoitece em
outra pelo mato, “como bichos, sem domessilio, ou obediencia alguma, bem semelhantes a maldição de Caim
[...]”. In: MORAES, José de. Memórias do Maranhão e Grão-Pará. Coleção Manuel Barata. Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, 1708, Lata 278, livro 3, s.d, p. 105v.
47
não dá faculdade para que se cative, o mais que nos fizer guerra, em outra qualquer parte deste
Estado92”.
Em 1702, D. João de Lencastro emitiu uma carta comentando as proposições que
haviam sido feitas pelos reis sobre a condução das missões. A essa altura, o poder temporal já
estava sob o domínio dos capitães-mores, restando apenas o poder espiritual para os
missionários, pois o rei assim ordenara em 1698. Sobre essa alteração da lei no sentido de
outorgar o domínio do poder temporal para as mãos dos capitães-mores, Lígio Maia acredita
que fora “motivada pela urgência dos conflitos com o intuito de evitar que os missionários
detivessem tempo considerável para dar o aval para a guerra justa, pelo menos na maior parte
dos casos julgados necessários”93. O autor pontua, ainda, a sobreposição de interesse que houve
dos sesmeiros em detrimento dos religiosos, já que os primeiros foram motivados pela tomada
das terras após se livrarem dos índios incitados por meio de ataques indiscriminados. Além
disso, apesar dos missionários representarem um obstáculo a esses tipos de embates nas
missões, nem sempre impediam as invasões que se faziam nelas.
Na dita carta, ao discorrer sobre as premissas relativas às missões, Lencastro comenta
a respeito da relação de punição que estava em voga bem como do medo existente tanto por
parte dos índios como por parte dos missionários por conta da execução da justiça. No terceiro
ponto, ele relata que os missionários não castigavam os índios, pelo fato de serem poucos e com
isso temerem que os índios os matassem, mas, em contrapartida, os índios também temiam os
missionários, principalmente por saberem “que os cabos da milícia, circunvizinhos, tinham
ordem dos governadores para os prender e os remeter à justiça, se desobedecessem aos
religiosos”94 (grifo meu), ficando claro, assim, tanto o temor por parte dos missionários como
por parte dos índios, tendo em vista a execução da justiça.
A justiça, portanto, em determinados momentos, foi considerada algo superior, criada
por Deus, e o maior objetivo de sua execução seria o de lograr a paz social. Nesse caso, as
questões jurídicas e as questões morais se mesclavam, acompanhadas de conceitos como “bem
comum” ou “utilidade pública”; “tutela” ou “domínio”, que soavam um tanto quanto
92 DHBN 40 p. 243, 25/11/1704. 93 MAIA, Lígio de Oliveira. Aldeias e missões nas capitanias do Ceará e Rio Grande: catequese, violência e
rivalidades. Revista Tempo, vol. 19 n. 35, Jul–Dez/2013. p. 14. 94 CÓPIA do papel, com que Dom Joam de Lancastro responde aos 16 pontos, que contem a carta, que Sua
Magestade que Deus guarde lhe escreveu este anno sobre as Missoens. In: RAU, Virgínea (Org.). Os manuscritos
do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. v. II, Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra:
University of Coimbra, 1958, p. 48-53.
48
polissêmicos, apesar do período aqui estudado se tratar de uma época de constante modificação
tanto no direito natural, quanto no direito positivo. Dessa maneira, o direito poderia ser
entendido como aquilo que é justo ou que não é pecado e não era baseado numa conduta prévia,
mas já decorrida. Por isso, a execução da guerra justa assumia uma posição conflitante tendo
em vista que, para alguns, era ela necessária para a manutenção do Estado enquanto para outros
era um meio que ia na contramão dos ideais religiosos. Mas, em grande medida, as regras
jurídicas se sobressaem e se diferem justamente pelo poder coercitivo com a qual as instituições
hierarquicamente superiores as determinam.
O que se sabe e se percebe até aqui em relação à justiça e à utilização do discurso
jurídico da guerra justa é que a construção de sua legitimidade foi apoiada por meio da
utilização dos “justos títulos”, principalmente no século XVI, sendo eles considerados como
“ganchos onde se penduram as teorias”95, ou seja, os justos títulos seriam as justificativas
encontradas na realidade social e utilizadas pelos colonos, através das quais podiam conectar
com os discursos teóricos já produzidos. Carlos Zeron os vê como uma espécie de “lugares de
passagem” pelo fato de confluir o discurso do passado, que legitimaria a escravidão, e a posse
junto com o discurso da realidade presente. Isso poderia, por exemplo, unir a teoria do
dominium às possibilidades atuais de sua execução. Portanto, os justos títulos, nesses casos,
eram as motivações ou argumentos específicos que legitimavam o cativeiro e, mais ainda, a
efetivação da posse sob o outro. Dentre eles, pode-se citar a miséria extrema, condenação à
morte, nascimento de ventre escravo e, finalmente, a própria guerra justa.
Não se restringindo apenas ao século XVI, ficou evidente o uso do recurso dos “justos
títulos” numa das cartas analisadas emitida pelo rei, em 12 de dezembro de 1695, e destinada
ao governador de Pernambuco. O teor da carta tratava das guerras envolvendo as Capitanias de
Pernambuco, do Ceará e do Rio Grande. Nela, o rei determinou que os Paulistas libertassem os
índios aprisionados, pois eles foram cativados “sem justo título no Rio Grande e neste caso se
devem aldear e situar em lugar onde não só estejam seguros de se restituírem para os sertões
mas onde mais facilmente possam receber o pasto espiritual dos missionários96”. O rei
continuou discorrendo que se devia examinar a matéria da guerra para se constatar se realmente
foi justa e, a partir disso, ele tomaria a resolução conveniente, mas, enquanto isso, que se
95 ZERON, Op. Cit., p. 309. 96 CARTA do rei ao governador de Pernambuco sobre a conta que deu através da junta das missões da guerra que
se fez no Ceará, venda e cativeiro de índios. AHU, Cód. 256, fl. 209v/210.
49
restituísse a liberdade dos índios, podendo ser suspendida desde que se tratasse de uma guerra
justa.
Até o presente momento, através de discussões bibliográficas recentes e pertinentes,
tentou-se trazer os principais debates que circundaram o tema da guerra justa. Desse modo,
pôde-se entender, de maneira geral, do que se tratou esse aparato jurídico e como o tema foi
abordado no meio dos estudiosos, religiosos e instituições acadêmicas, e depois recebido e
inserido na sociedade colonial como ferramenta de desenraizamento dos povos de seus locais
de origem. Destarte, uma das maneiras que efetivamente contribuiu no processo de
desterritorialização – ideia que será melhor evidenciada e discutida nos capítulos seguintes –
de diversos grupos indígenas foi a execução da Guerra Justa pelo fato de o empreendimento
dessas guerras, além de conquistar os povos, ter permitido alcançar as terras deles e iniciar um
novo processo de territorialização que visasse atender às necessidades imperiais e
expansionistas da Coroa. A Guerra dos Bárbaros apresenta-se como um exemplo clássico dessa
empreitada, a qual será tratada posteriormente mais a fundo de modo que possibilite relacionar
a série de eventos desse embate com o discurso jurídico e legitimador da guerra justa.
2.2 – Valladolid: ponto de encontro e desencontro entre Bartolomeu de Las Casas e Juan-
Ginés Sepúlveda sobre a guerra justa
Seguindo a discussão na linha de raciocínio anterior, a qual se dedicou a traçar um
histórico da guerra justa, reservou-se este espaço para se aprofundar em um episódio
considerado importante na construção do debate acerca dessa temática. Neste momento,
portanto, será privilegiada a análise do evento que ficou conhecido como o debate de
Valladolid, ocorrido em duas sessões, a primeira em 1550 e a segunda em 1551. Nele, dois
personagens principais, Dom Frei Bartolomeu de Las Casas (1474-1566), bispo de Chiapas, nas
Índias, e Juan-Ginés de Sepúlveda (1490-1573), cronista do rei, protagonizaram um embate
intelectual que enriqueceu o andamento das discussões a respeito dos índios, da guerra justa e
das ideias de Aristóteles sobre esse assunto.
Contudo, antes de partir para o entendimento das linhas de raciocínio defendidas por
Las Casas e Sepúlveda, cabe aqui a elucidação de um breve perfil biográfico deles, a fim de
apresentar a trajetória de cada um, de modo a compreender os principais momentos de suas
vidas que precederam o encontro em Valladolid e corroboraram para os levarem a essa ocasião.
50
Sobre Las Casas, sabe-se que nasceu na cidade de Sevilha, Espanha, no ano de 1474. Seu
primeiro contato com nativos da América foi por intermédio de seu pai, Almirante que
retornava pela segunda vez das “Índias” e levava consigo um jovem índio, de idade aproximada
a de Las Casas, a ser escravizado. Sugere-se que a simpatia dele pelos índios da América surgiu
e se intensificou cada vez mais desde esse primeiro encontro. Quando jovem, decidiu tornar-se
clérigo, e juntamente com seu pai, em 1502, partiu numa embarcação com mais de dois mil
colonos rumo à América. Quando em 1503, começa-se a oficializar a instituição das
encomiendas97, e a essa altura Las Casas passa a ser doctrinero e encomendero, em Concepción
de la Vega. Poucos anos depois, ele é ordenado padre e continua agindo também como
colonizador. No entanto, com a chegada dos dominicanos, por volta de 1510, e especificamente
através das pregações do Frei Antônio de Montesinos, Las Casas começa a se questionar a
respeito do direito e da justiça concedida para o trabalho servil dos índios, tornando-se mais
tarde um missionário dominicano e defensor dos índios, levando-o a criticar veemente as
encomendas e a desqualificação que se fazia dos índios, apesar de segundo ele ter os tratado
bem enquanto era colonizador98.
Já Juan-Ginés de Sepúlveda nasceu em 1490, no município de Pozoblanco na Espanha,
e pela sua familiaridade com o grego e o latim entrou na Universidade Alcalá em 1510, onde
obteve a formação em Filosofia. Quando em 1513, passou entre os trinta alunos bolsistas para
o Colegio de San Antonio de Siguenza, estudando teologia, filosofia e direito canônico. Apenas
em 1515, quando já era clérigo, Sepúlveda entrou no Colégio de São Clemente de Bolonha,
onde consegue o grau de doutor em Filosofia e Teologia. A partir desse momento, ele começou
a realizar importantes traduções das obras de Aristóteles, como “Meteorologia” e “De Ortu et
Interitu”. Seguindo sua carreira eclesiástica, começou a escrever e publicar suas próprias obras,
quando por volta de 1530 foi nomeado como cônego da Catedral de Córdoba. Passados cinco
anos, publicou em Roma o Democrates Primus, no qual defende a licitude da Guerra Justa e a
compatibilidade da milícia com a religião cristã99.
97 As encomiendas se caracterizam pela repartição de terras destinadas à utilização dos índios como mão de obra
no trabalho servil. Cf.: JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Edições
Loyola, 2000, p. 45. 98 JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas: todos os direitos para todos. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 41-62. 99 RODRIGUES, Juan Pablo Martín. Juan Ginés de Sepúlveda: gênese do pensamento imperial. 2010. Tese
(Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de pós-graduação em Letras, Recife,
2010, p. 20-26.
51
Sabe-se que ambas as trajetórias não se limitam aos eventos elencados acima, porém,
decidiu-se pontuar os principais momentos de suas vidas que conformaram o caráter que os
levariam a defender posições divergentes em Valladolid, no ano de 1550. No caso de Las Casas
– lado esquerdo da Imagem 1 a seguir –, por exemplo, houve uma transformação de conduta
com relação ao tratamento destinado aos índios, mesmo que sua experiência tenha sido
construída desde a infância de modo a torná-lo um colonizador, por mais que se inclinasse à
prática do sacerdócio. Em se tratando de Sepúlveda – lado direito da Imagem 1 –, sua erudição
e tendência ao domínio de línguas estrangeiras, como o grego e o latim, permitiram não somente
iniciar sua carreira, como dar continuidade a ela através das traduções de Aristóteles,
possibilitando-o desenvolver argumentos jurídicos e teológicos que validassem sua posição
favorável à guerra justa.
Imagem 1 – Ilustrações dos retratos de Bartolomeu de Las Casas e Juan-Ginés de Sepúlveda
Fonte: Retratos produzidos por artista anônimo, no século XVI100.
100 Disponível em: <https://i1.wp.com/biocultura.prorural.org.bo/wpcontent/uploads/2016/03/
VALLADOLID13.jpg>. Acesso em 16 mai. 2020.
52
A controvérsia dos dois residia, principalmente, no tocante à licitude da guerra, da qual
Bartolomeu de Las Casas posicionava-se de maneira contrária, enquanto Juan-Ginés de
Sepúlveda a exaltava e a legitimava. Fincados em lados opostos, o primeiro deteve-se a ler e
escrever a história dos vencidos e, por isso, tomou partido em defesa dos direitos dos índios, já
o segundo dedicou-se à escrita da história dos poderosos, das guerras e façanhas do reino. Desse
modo, Valladolid, então capital política da Espanha, serviu de palco para o enfrentamento
dessas duas personalidades antagônicas101.
Bartolomeu de Las Casas foi uma das exceções no meio da grande maioria dos
teólogos espanhóis, pois afirmava que quem deveria ser considerado como bárbaros e selvagens
eram, na verdade, os espanhóis por se comportarem pior que animais. Na visão de Las Casas,
acreditava-se que os índios podiam ser conduzidos com amor e suavidade à religião, abrindo
mão da violência, porém sem deixar de lado o caráter universal atribuído ao catolicismo, que
deveria ser o fator de propulsão do projeto evangelizador.
Porém, na contramão dessas ideias, alguns autores passaram a utilizar como referência
a doutrina da escravidão natural proposta por Aristóteles para justificar um fato que se estava
consumando. A fim de justificar a guerra justa contra os povos da América, Juan-Ginés de
Sepúlveda se tornou o maior defensor e um dos mais importantes tradutores de Aristóteles,
portanto, o ponto de partida para elencar os argumentos necessários foi fazer a associação direta
entre os escravos naturais, que Aristóteles comentara, e os índios da América. Ideia que,
inclusive, foi contrariada pelos mestres de Salamanca, pois estes não apenas não concordaram
com essa visão como também propuseram o ponto de vista pelo viés tanto teológico quanto
jurídico, embasado na discussão sobre jus e dominium apresentada anteriormente.
Para entender como ocorreu o debate, precisa-se ter conhecimento de pelo menos dois
pontos principais: primeiro, a estrutura preparada em torno desse evento; e, segundo, talvez
mais importante, os argumentos elencados por eles através de seus Tratados. Portanto, partindo
para a primeira questão, tem-se que a partir de 1542, emergiam com mais força as inquietações
a respeito da apropriação de terras e a submissão dos povos, ações consequentes da conquista.
Justamente meio século após a expedição de Cristóvão Colombo, as dúvidas pululavam quanto
101JOSAPHAT, Frei Carlos. Controvérsia entre Las Casas e Sepúlveda. In: CASAS, Bartolomeu de Las.
Liberdade e Justiça para os povos da América: oito tratados impressos em Sevilha em 1552: obras completas
II. São Paulo: Paulus, 2010. p. 113-117.
53
ao direito absoluto e exclusivo que se exercia sobre as novas terras encontradas e seus
respectivos povos.
De maneira geral, Carlos V, vendo-se sem respostas diante dos conflitos, sugeriu uma
reunião que visasse minimizar as dúvidas: a Junta de Valladolid. A discussão ocorreu num
Colégio dominicano e foi presidida pelo teólogo Frei Domingo de Soto – na época, eminente
professor da Universidade de Salamanca e assessor do Concílio de Trento – acompanhado de
um júri formado por uma dúzia de juízes, teólogos, juristas e políticos102. O debate iniciou-se
com o prólogo de Domingo de Soto, o qual deixou claro a sua não interferência nas arguições
dos oponentes, apesar de ter várias ressalvas que, segundo ele, seriam dadas somente no
momento apropriado em que fossem solicitadas, reafirmando seu papel de reproduzir fielmente
os pareceres e razões de cada um. Além disso, Soto situou os demais presentes quanto ao teor
do assunto que seria tratado na ocasião, dizendo que se pautava no questionamento de:
Se era lícito Sua Majestade fazer guerra àqueles índios antes de pregar-lhes a
fé, para sujeitá-los a seu Império e, depois de sujeitos, possam, mais fácil e
confortavelmente, ser ensinados e iluminados pela doutrina evangélica, e
assim conhecer seus erros e a verdade cristã. O doutor Sepúlveda sustenta a
parte afirmativa, asseverando que tal guerra não somente é lícita, mas
conveniente. O senhor bispo defende a negativa, dizendo que não só não é
conveniente, mas ainda não é lícita, senão iníqua e contrária a nossa
religião103.
Logo, Juan-Ginés Sepúlveda elencou suas doze objeções, assim como Bartolomeu de
Las Casas fez suas doze réplicas. No entanto, sobre os pontos apresentados por eles, o próprio
Domingo de Soto salientou que não se podia ser tão injusto com o primeiro pelo fato de ele não
ter lido o livro de Las Casas, enquanto esse teria lido extensivamente o de Sepúlveda, bem como
o fato de que, por Las Casas não ter ouvido a apresentação do adversário, suas réplicas não
foram feitas na ordem das objeções.
Não obstante, a primeira objeção de Sepúlveda dizia respeito à idolatria como justa
causa da guerra, da qual ele acreditava ser um motivo plausível à luz da bíblia para sujeitar os
índios e retirar os impedimentos para que se pregasse o evangelho a eles. Na segunda, o doutor
referenciou teólogos anteriores, como Santo Agostinho, para afirmar que existia um duplo
sentido na passagem bíblica do livro de Lucas, que tratava do uso da força para se levar ao lado
do bem, podendo ser essa não só espiritual, mas física. Na objeção seguinte, ele propôs oposição
102 JOSAPHAT, Op. Cit., p. 24-30. 103 CASAS, Bartolomeu de Las. Liberdade e Justiça para os povos da América: oito tratados impressos em
Sevilha em 1552: obras completas II. São Paulo: Paulus, 2010, p. 122-123.
54
ao que Las Casas dissera sobre a compulsão corporal ser destinada apenas aos hereges que já
tinham recebido a fé e não contra os pagãos. Já na quarta, o cronista dissertou a respeito da
possibilidade dada aos pontífices de exortar os reis às guerras justas, ofício esse que seria
atribuído aos prelados, especialmente ao Papa.
Na quinta objeção, tratou de justificar a questão dos julgamentos contra os que não
faziam parte do evangelho, acreditando que não se deveria fazê-los, porém, “procurar que se
convertam e pregar-lhes o Evangelho e procurar com todas suas forças todas as coisas que
servem para este fim”104, ideia que se assemelha a de Aristóteles, na qual o fim é o principal,
não importando tanto os meios. É na sexta objeção que Sepúlveda chama a atenção para a
relação de dominação das terras, na qual atribui a Deus “o direito de apascentar, reger e
governar suas ovelhas em toda terra”105, desse modo, abrindo precedente para seus apóstolos
irem por todo o mundo pregar o seu evangelho à toda criatura, inclusive aos infiéis, que são
considerados as ovelhas que não tem aprisco na passagem bíblica de João 10.
As quatro objeções seguintes são as menores dentre as demais e parecem repetir
algumas das ideias anteriores, como na sétima objeção em que se reitera a idolatria como um
símbolo de infidelidade e blasfêmia, portanto, causa de guerra justa; na nona e na décima, sua
argumentação gira novamente em torno da ideia de Aristóteles, expressa acima, que acredita
que “a guerra e os soldados não são para converter nem para pregar, senão para sujeitar os
bárbaros e aplainar e assegurar o caminho da pregação”106, assim como fazer os infiéis ouvirem
à força a comissão de Cristo. Na oitava objeção, ele se dirigiu a definir quem eram os bárbaros,
pois na visão de Las Casas os índios não deveriam encaixar-se nessa categoria, contudo, para
Sepúlveda, os bárbaros eram todos “aqueles que não vivem conforme a razão natural e têm
maus costumes publicamente aprovados entre eles”107, portanto, os índios não apenas seriam
bárbaros, como por essa causa também estariam destinados a obedecer aos prudentes.
A décima primeira e penúltima objeção era sobre o número de inocentes que eram
mortos em uma guerra, mesmo que justa. Sepúlveda, totalmente contrário a Las Casas,
acreditava que nem se comparava o número de inocentes mortos em uma guerra com o número
de mortos em sacrifícios feitos pelos infiéis a cada ano, portanto, “maior mal é que se perca
uma alma que morre sem batismo, do que matar inúmeros homens, mesmo que sejam
104 Idem, p. 152. 105 Idem, p. 153. 106 Idem, p. 157. 107 Idem, p. 156.
55
inocentes”108, seguindo mais uma vez a linha de pensamento de Santo Agostinho. A sua última
objeção às proposições de Las Casas encerrava sua série de argumentação com a afirmação de
que a intenção do Papa Alexandre, em sua bula, era de que se sujeitassem os bárbaros primeiro
aos reis de Castela para, então, ser-lhes pregado o Evangelho.
Fazendo um apanhado geral das objeções feitas por Sepúlveda a Las Casas, percebe-
se que as determinações de Sepúlveda, para além de reafirmar sua expressa posição favorável
à guerra contra os índios, centraram-se em consonância, principalmente, com ideias de teóricos
importantes como Agostinho, Tomás de Aquino e Aristóteles, que serviram de aporte para suas
argumentações. Além disso, percebe-se as repetidas vezes em que afirma determinados
pensamentos a fim de cumprir seu objetivo discurso de convencimento da necessidade da
guerra, como o fim importando mais do que os meios; a idolatria como uma causa de guerra
justa; e a categorização dos índios como bárbaros. As condições para se ter uma guerra justa,
segundo Sepúlveda, também eram similares às de Santo Agostinho, sendo elas: primeira, justa
causa para ser empreendida; segunda, por uma legítima autoridade; terceira, reta intenção de
quem a fez; quarta, reta maneira de fazê-la. Essas causas residiam também em quatro aspectos:
repelir a força com a força; recobrar as coisas injustamente tiradas; impor punição merecida aos
malfeitores não punidos em suas cidades; subjugar pelas armas, quando não houver outro modo,
aqueles que por condição natural deviam obedecer, mas não o faziam109.
Já Las Casas, em suas doze réplicas, teve o objetivo de contrapor todos os argumentos
elencados acima por Sepúlveda, cuja conclusão pautou-se na anunciação do Evangelho, porém,
aos moldes e no ritmo de Deus, grande tema de análise dele. Motivando-o, inclusive, a escrever
o grande Tratado intitulado A única maneira de atrair todos os povos à verdadeira religião,
datado de 1537110, no qual consubstanciava os argumentos propostos por ele em Valladolid. Ele
acreditava, portanto, que de maneira pacífica é que se deveria pregar o evangelho e não por
meio da guerra; “e, se por ela não se converterem os fiéis das Índias neste ano, Deus que por
eles morreu, há de convertê-los, no outro ano, e, se não, daqui a dez anos”111.
108 Idem, p. 158. 109 GUTIÉRREZ, Jorge Luis. A controvérsia de Valladolid (1550): Aristóteles, os índios e a guerra justa. Revista
USP, São Paulo, nº 101, mar-mai, 2014. p. 223-235 110 Cf.: TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1939. 111 CASAS, Bartolomeu de Las. Liberdade e Justiça para os povos da América: oito tratados impressos em
Sevilha em 1552: obras completas II. São Paulo: Paulus, 2010, p. 211.
56
Seu contra-argumento baseou-se em elencar pontos que, para ele, Sepúlveda teria
apresentado de maneira equivocada, como no que se referia à noção de direito, por exemplo.
Las Casas, primeiramente, acreditava que não era correta a associação que se fazia entre o
direito e as armas; em segundo plano, entendia que Sepúlveda se enganava sobre o direito
também quanto à obrigatoriedade dos reis de Castela e Leão investir seus recursos na
conservação do bom governo dos reinos e das gentes, assim como da pregação do Evangelho,
nas Índias, pois na visão de Las Casas era necessário direcionar todas as rendas possíveis, e não
apenas parte dela, para a finalidade da evangelização; já o terceiro e último ponto contrário à
concepção de direito de Sepúlveda tratava-se da ideia que ele fez de subverter a ordem,
colocando o meio como o fim e o acessório como o principal, ideia similar à de Aristóteles.
Imagem 2 – Argumento pela causa das proposições sugeridas pelo Bispo Dom Frei Bartolomeu de Las
Casas
Fonte: Trinta proposições jurídicas elencadas por Bartolomeu de Las Casas, em 1552. Disponível em:
<http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/aqui-se-contienen-treynta-propositiones-muy-juridicas-en-
las-quales-sumaria-y-succintamiente-se-to-0/html/d00386f1-4096-4caf-b430-346858a27bf9_4.htm>.
Acesso em 07 jan. 2019.
57
Na imagem acima, está contido o argumento pelo qual Bartolomeu de Las Casas
elaborou trinta outras proposições jurídicas a respeito do direito que a Igreja e os príncipes
cristãos teriam sobre os infiéis de qualquer espécie que fossem. Nele se justifica a origem de
suas proposições a partir de sua experiência dos anos nas Índias e do conhecimento das
necessidades espirituais dos espanhóis. Outro fruto importante de suas análises e estudos, assim
como de sua experiência pessoal, foi a Brevissima Relación de la Destruición de las Indias
Ocidentales, lançado em 1552, o qual se tornou um dos livros mais vendidos na Holanda,
Inglaterra e Alemanha112. Ao tratar das conquistas espanholas nas possessões das Índias, Las
Casas ressaltou todos os desmandos e violências contra os índios de cada região. De maneira
geral, o bispo caracterizou os povos dessas terras como “cordeiros tão dóceis, tão qualificados
e dotados pelo seu criador”113, enquanto os espanhóis equiparavam-se a lobos “há muito tempo
esfaimados, de quarenta anos para cá, e ainda hoje em dia, outra cousa não fazem ali senão
despedaçar, matar, afligir, atormentar e destruir esse povo por estranhas crueldades”114,
totalizando em suas contas quinze milhões de mortes através de guerras injustas.
Pode-se dizer que o resultado final do Debate de Valladolid tende a caracterizar a
vitória de Las Casas sob Sepúlveda, pelo fato de impedir a publicação das obras do adversário
na Espanha115. Como se poderá observar no próximo tópico, alguns elementos incorporados na
arguição dos debatedores de Valladolid continuaram a ser reproduzidos na legislação
indigenista respeitante ao Brasil, fossem com o propósito de reafirmar ou negar a licitude da
guerra. Diante dos recorrentes recuos e avanços na legislação indigenista quanto à liberdade
dos índios, é possível perceber a evocação de temáticas já discutidas nesse evento, tais como: a
manutenção do estigma do bárbaro que necessitava de domínio; os ideais de Aristóteles,
principalmente, no tocante à servidão natural; além de, em alguns momentos, a proposição da
ideia de conversão à fé católica anteposta à escravização. A seguir, por meio da análise de um
conjunto de leis condizentes ao Brasil, esses temas, que norteiam a noção da guerra justa e da
liberdade dos povos indígenas, serão aprofundados e melhor discutidos.
112 BUENO, Eduardo. Genocídio de ontem e hoje. In: CASAS, Frei Bartolomé de Las. Brevíssima relação da
destruição das Índias. Porto Alegre: L&PM Editores Ltda., 1984. p. 13. 113 CASAS, Frei Bartolomé de Las. Brevíssima relação da destruição das Índias. Porto Alegre: L&PM
Editores Ltda., 1984. p. 28. 114 Idem. 115 JOSAPHAT, Op. Cit., p. 117.
58
2.3 – A guerra justa na legislação indigenista
A preexistência de hostilidades por parte dos índios inimigos fora o argumento central
e motivador que perpassou diversos documentos legais da América portuguesa como forma de
assegurar a execução das guerras justas. Como se sabe, houve certa plasticidade no que se tratou
do momento de instalação dos colonizadores nos novos espaços conquistados e isso não foi
diferente ao se tratar da elaboração e da manutenção da legislação indigenista, pois foi evidente
a manifestação dessa inventividade também nesse âmbito haja vista que as distinções nos
posicionamentos dos índios implicavam diretamente nas leis e no tipo de tratamento
direcionados a eles: se aliados e amigos da Coroa Portuguesa, teriam direitos e mercês
específicas; se rebeldes e inimigos, incidiriam sobre eles punições exemplares116. Contudo, as
leis exprimem-se como elementos volitivos que configuram o Direito117, ou seja, são as leis,
mesmo que oscilantes, que conformam de maneira decisiva o que se concebeu como o Direito
português.
A respeito das diferenciações entre os índios, para além de serem índios amigos ou
inimigos, sabe-se que houve outras categorizações que os distinguiram dentro da sociedade
colonial. Nas Memórias do Maranhão e Grão-Pará, da Coleção Manuel Barata118, por exemplo,
além de definir o índio de corso; apresenta-se duas categorias possíveis aos índios que dizem
respeito à relação desenvolvida com os portugueses, sendo uma a dos índios “que contratão
com os Portugueses”; e outra dos índios “amigos mais antigos dos Portugueses”. Cada uma
dessas especificações é detalhada com informações dos hábitos e costumes dos índios que
pudessem justificar tal tipificação, além de exemplificada à luz de passagens bíblicas que
serviam para endossar a argumentação. Esse recurso discursivo aproxima-se daquele
apresentado anteriormente sobre o uso dos “justos títulos”, uma vez que se utiliza de teorias já
estabelecidas (versículos da Bíblia) conectadas à realidade atual a qual se estava imerso e que
se queria tratar no momento (distinção dos índios).
Nesse documento, iniciam-se as categorizações pelos chamados índios de corso; esses
foram frequentemente associados aos índios não só inimigos, mas considerados selvagens na
116 Cf.: PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do
período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras/FAPESP, 1992. p. 115-131. 117 Cf.: SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2006. p. 23. 118 MORAES, José de. Memórias do Maranhão e Grão-Pará. Coleção Manuel Barata. Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 1708, Lata 278, livro 3, s.d, p. 105-109.
59
sociedade colonial. Quanto a essa categoria, segundo a fonte revela, seria destinada àquele que
amanhece em uma parte e anoitece em outra pelo mato, “como bichos, sem domessilio, ou
obediencia alguma, bem semelhantes a maldição de Caim [...]”. Em seguida, o autor cita o
seguinte trecho em latim: “Vagus et profugus eris super terram”, fazendo referência ao capítulo
4 do livro de Gênesis, que na versão atualizada da Bíblia significa “você será um fugitivo errante
pelo mundo119”. No referido capítulo bíblico, narra-se na íntegra o assassinato de Abel,
cometido pelo próprio irmão Caim. Tal acontecimento teria sido motivado pela inveja e
ambição de Caim que se sentia preterido em relação ao irmão. Como forma de punição, Deus
amaldiçoou a geração de Caim para que essa não tivesse êxito no cultivo de suas terras e
consequentemente viesse a vagar a procura de um local. Sendo assim, ao comparar os índios de
corso com os descendentes amaldiçoados de Caim, denota-se a imprecisão desses índios na
definição de um espaço para seu convívio social, podendo estarem num dia em determinado
lugar e, no dia seguinte, em outro. Pode se pensar ainda que essa definição abre margem para a
provocação de uma guerra justa no momento em que os índios de corso adentrassem ou se
fixassem em espaços de interesse da Coroa portuguesa. Finaliza-se a descrição dos índios do
corso dizendo que eles seriam aqueles que não conhecem vassalagem.
Destarte, segue-se para a descrição da segunda condição dos índios, aqueles que
“contratão com os Portugueses, tem cazas, e vivendaz pellas suas terras, ou matos”, mas
também não tem vassalagem, “gente sem domínio nem Principe a quem uniformemente
obedeção”. Eles se diferem dos índios de corso apenas pelo fato de estarem assentados em um
lugar fixo denominado de “Aldea com seu pedaço deterritorio” e liderado por um principal,
porém, a sua volubilidade para a maldade é pontuada independente disso. Ao tratar da possível
inclinação desses índios para o mal, traz referências bíblicas com relação ao demônio, dizendo
que ele “os toma sugeytando sempre os mais poderosos ao mais fracos, não só pra seservirem
delles mas para os tragarem”. Já os índios da terceira condição, além de serem os amigos mais
antigos dos portugueses, são aqueles que vivem “todos mestiços huns com outros e criados com
a doutrina”120.
Logo, para cada tipo de índio explicitado, incidiu um tratamento específico. A guerra
justa, objeto de análise aqui, portanto, seria destinada para os chamados índios de corso ou
índios inimigos – como vulgarmente aparece nas fontes. Dito isso, decidiu-se reservar um
119 BÍBLIA Sagrada, Gênesis, 4: 12. 120 MORAES, José de. Memórias do Maranhão e Grão-Pará. Coleção Manuel Barata. Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 1708, Lata 278, livro 3, s.d, p. 105-109.
60
momento para discutir e analisar as proposições feitas na legislação indigenista do período
colonial, atentando para a recorrência na utilização do discurso jurídico da guerra justa. Como
ponto de partida, decidiu-se analisar alguma das leis citadas anteriormente que tratavam da
liberdade dos índios e de uma possível tutela deles. Dentre elas, tem-se: a Lei de 20 de março
de 1570; a Lei de 24 de fevereiro de 1587; as Leis de 02 de novembro de 1595 e de 27 de junho
de 1596; as Leis de 30 de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611; a de 17 de outubro de
1680; e, por último, a de 4 de abril de 1755, as quais apresentam em seus meandros, de algum
modo, a justiça da guerra contra os índios.
Após a análise das leis supracitadas, fica evidente os recuos e avanços que se fizeram
na legislação indigenista ao se tratar da questão de sua liberdade. Ora determinado rei concedia
liberdade para todos os índios, ora outro rei elaborava ressalvas que impediam a liberdade total
deles. Através dessas oscilações, pretende-se, aqui, detalhar o que cada lei estabelecia e como
o caráter da guerra justa incidia sobre ela. Iniciando a partir da lei de 1570, promulgada por
Dom Sebastião, então “rei de Portugal e dos Algarves d’aquém e d’além mar em África, Senhor
de Guiné e da conquista, navegação e comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia”121. Era
assim que geralmente se começavam a redigir as leis, como um cabeçalho padrão que dava
conta da extensão do poder territorial e político do atual rei; após isso é que se inseria o teor da
lei, na qual o rei disse se tratar dos modos ilícitos com que vinham sendo feitos cativos os
gentios das partes do Brasil.
Dom Sebastião determinou, portanto, que, a partir do momento da promulgação de sua
lei, não se fizessem mais cativos os índios do Brasil de modo nem maneira alguma, a não ser
aqueles que fossem tomados em guerra justa, “com autoridade e licença minha, ou do meu
Governador das ditas partes”122. Desse modo, a lei de 1570, que confirmava os excessos
cometidos no cativeiro dos índios e se iniciava com uma possibilidade de liberdade irrestrita a
eles, uma vez que defende que não os fizessem cativos de nenhum modo, logo ganhou uma
ressalva destacando a guerra justa como único meio segundo o qual se poderiam cativá-los.
Além desses índios tomados em guerra justa, poderiam ser feitos cativos também aqueles que
costumavam “saltear os portugueses ou a outros gentios para os comerem”. Destarte, as causas
121 LEI sobre a liberdade dos gentios das terras do Brasil, e em que casos se podem ou não podem cativar, de 20
de março de 1570. Legislação Antiga, 1446-1754, Boletim do Conselho Ultramarino, p. 127. In: NAUD, Leda
Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822). Revista de Informação Legislativa, p. 291. 122 Idem.
61
que justificavam o cativeiro dos índios giravam em torno das ações praticadas por eles, como
uma forma de retaliação à prática da antropofagia, aos assaltos e às guerras que eles cometiam.
Sobre a argumentação utilizada para a execução da guerra justa ser baseada nas
hostilidades dos índios, Beatriz Perrone-Moisés comenta que desde o Regimento de Tomé de
Sousa (15/12/1548) tal motivação já era utilizada recorrentemente como justificativa. Mesmo
nas vezes em que o Conselho ou o rei determinaram guerras como injustas, pondo fim ao
cativeiro, em sua maioria, elas tinham sido justificadas a priori pelas hostilidades dos índios.
Para a autora, o caso da antropofagia somava-se aos argumentos das hostilidades prévias como
um agravante, porém, não fora considerado a causa principal para guerra, como sugerido pelo
jesuíta Luis de Molina, que afirmava que se deveria mover a guerra caso houvesse o sacrifício
de inocentes e/ou se alimentassem de suas carnes123.
A Lei de 20 de março de 1570, ao deixar acertada a guerra justa como o único motivo
para o estabelecimento do cativeiro, engendrou uma escravidão limitada e controlada por
administradores locais, fato que abriu margem para um possível exagero dos colonos em
incitarem a guerra, tendo em vista a necessidade de mão de obra que se tinha na época. Como
foi colocado a esse respeito pelo bispo Dom Antonio Barreiros, pelo ouvidor-geral Cosme
Rangel e o reitor do Colégio da Bahia, o padre Gregório Serrão, por volta de 1581-1583, em
uma resolução acerca dos injustos cativeiros dos “Indios do Brasil” sobre o que poderia ser feito
para aumentar o número de convertidos ao catolicismo,
Um dos títulos justos [que autorizam a redução dos índios ao cativeiro] é os
tomados em guerra justa dada, ou mandada pelo Governador geral e capitães
das Capitanias desta costa, com parecer dos Padres da Companhia. E tem a
experiência mostrado que se deram muitas guerras nas quais não houve
nenhuma justiça senão só pretender trazer escravos [...]. E a fim de os trazer
por escravos tomam qualquer ocasião para lhes dar guerra sem jamais
concorrer a solenidade que se deve guardar para que a guerra seja justa. E se
não se tira este título sempre dirão que há justa causa de lhe dar guerra”124.
No caso da Lei de 24 de fevereiro de 1587, sabe-se que ela foi decretada sob o comando
de Felipe II da Espanha pelo fato de ter ocorrido a unificação dos dois reinos ibéricos em 1580
– esse rei mostrava-se contrário aos jesuítas e motivou certas tensões. Nessa lei há a
conformação da lei anterior de tudo que tangia à guerra justa e ao resgate, além de se continuar
123 Cf.: PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do
período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras/FAPESP, 1992. p. 115-131. 124 “Resolução acerca dos injustos cativeiros dos Indios do Brasil e do que poderia ser feito para aumentar o número
de convertidos ao catolicismo” Apud ZERON, Op. Cit., p. 330.
62
condenando a antropofagia. Em virtude do fato de o tráfico negreiro para o Brasil ainda não se
ter desenvolvido tanto nessa época, a mão de obra escrava indígena continuou em ascendência
para que se pudesse impulsionar a produção açucareira inicial na colônia.
As leis seguintes, de 02 de novembro de 1595 e de 27 de julho de 1596, foram
promulgadas novamente por Dom Sebastião, que reassumiu o reinado. Na primeira, o mesmo
Dom Sebastião revogou as leis anteriores em virtude das violações que os colonos estavam
fazendo, principalmente no tocante à autoridade do rei sobre a determinação e a declaração das
guerras justas que não estava sendo respeitada, reservando a ele o direito exclusivo de
proclamação da guerra a partir de então. Enquanto isso, continuava acreditando que a filosofia
da lei era coerente e devia continuar sendo aplicada já que o problema estava apenas no fato da
insubordinação dos súditos da Coroa.
Já a segunda, datada de 1596 e proposta oito meses depois da anterior, vem somente
para ampliar alguns pontos de discussão levantados na lei anterior, como a questão da
sedentarização dos índios retirados do sertão e a incumbência exclusiva dessa atividade para os
padres da Companhia de Jesus, que deveriam buscá-los e convencê-los a estabelecerem-se no
litoral junto aos portugueses, além de serem os responsáveis pelo ensino, catequização e
distribuição dos índios para o trabalho por parte dos empregadores portugueses –
diferentemente do que estava estabelecido na lei de 1587 – sob contrato assalariado de duração
máxima de dois meses. Esse movimento de deslocamento e sedentarização em núcleos de
povoação de grupos de índios motivado pelos jesuítas caracteriza o que se entende por
descimentos. Nessas ações, propunha-se convencer sem violência os índios do sertão a se
estabelecerem e aldearem-se junto aos portugueses sob o argumento de promoção de segurança
e bem-estar dos índios125.
Essa última lei (1596) não surtiu o efeito que os jesuítas esperavam. Segundo Zeron,
eles imaginavam assumir total controle sobre os índios respaldados pela legislação, no entanto,
seu raio de incidência no momento da declaração foi relativamente fraco, pois apenas três anos
depois de declarada pelo rei foi que a lei veio a ser anunciada em São Paulo, gerando um maior
acirramento entre os colonos e jesuítas e findando na expulsão desses religiosos da Capitania.
O descontentamento com a lei em vigor levou à proposição da Lei de 30 de julho de 1609,
125 Cf.: PERRONE-MOISÉS, Op. Cit.
63
assinada por Filipe III, que reconheceu os abusos cometidos sobre os índios por meio da
ilegalidade dada ao cativeiro126.
A Lei de 1609 propôs a liberdade natural e irrestrita dos índios, fossem eles
convertidos ou gentios127, haja vista as capturas indistintas e mortes que aconteceram através
da guerra justa. A própria lei reconhece que os moradores do Brasil usavam a guerra justa como
pretexto para cativar os índios desde a lei de 1570, fato que teria motivado sua revogação pela
de 1595, pois assim não se cessariam os inconvenientes com relação ao cativeiro dos índios.
Filipe III viu-se impelido a assinar uma provisão, em 5 de junho de 1605, determinando que de
nenhum modo dever-se-ia cativar os gentios, visto que “por algumas razões justas de direito se
possa em alguns casos introduzir o dito cativeiro, são de tanto maior consideração as que há em
contrário, principalmente pelo que toca à conversão dos gentios à nossa santa Fé Católica128”.
Dessa maneira, por mais que o Direito garantisse a escravidão em alguns casos, ele também
assegurava a conversão dos gentios ao catolicismo, possibilidade que deveria ser anteposta a
qualquer outra, segundo o então rei. Portanto, visando que se encerrassem os excessos do
cativeiro e “para de todo se cerrar a porta a isto”, declarou-se que fossem feitos “todos os gentios
daquelas partes do Brasil por livres conforme o Direito, e seu nascimento natural, assim os que
já forem batizados, e reduzidos à nossa Santa Fé Católica, como os que ainda viverem como
gentios serão tratados, e havidos por pessoas livres129”.
Posto isso, os índios não poderiam ser induzidos a serviços ou coisa alguma contra sua
vontade, devendo assim receber por qualquer trabalho prestado às pessoas. Além disso,
poderiam, com liberdade e segurança, morar onde quisessem e comercializar com qualquer
morador das capitanias. Nesse contexto de localização espacial, percebe-se que a expressão
“sertão” – conceito utilizado no presente trabalho – é introduzida e passa a ser utilizada pelo rei
ao determinar que “cessem de todo os enganos e violências, com que os capitães e moradores
os traziam [os índios] do sertão”. Mais a frente, o rei cita, ainda, especificamente, as terras de
126 Cf.: ZERON, Op. Cit. 127 Na perspectiva tomista haveria cristãos, gentios e infiéis, entendendo-se que a conversão era o meio pelo qual
se possibilitaria afastar os gentios do paganismo e inseri-los na cristandade e, assim, conseguiriam torná-los fiéis
aos dogmas do catolicismo. 128 Alvará em que se determinou que, por ser contra Direito natural o captiveiro, não pudessem captivar-se os
gentios do Brasil. Legislação Antiga, 1446-1754, Boletim do Conselho Ultramarino, p. 204. In: NAUD, Leda
Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822). Revista de Informação Legislativa, p. 292. 129 Idem.
64
Jaguaribe130 como a principal área em que se cativavam os índios contra a forma das leis até
então estabelecidas.
O rei, ao continuar discorrendo a parte da lei que tratava dos espaços destinados aos
índios, afirmou que os gentios poderiam ser senhores de suas fazendas nas povoações em que
moravam e, a esse respeito, ordenou que essas terras não deviam ser tomadas nem sobre elas se
fazer moléstia ou injustiça alguma bem como seria vetada a mudança de lugar desses índios
sem seu consentimento. No entanto, os processos de desterritorialização e territorialização entre
1680-1720, assim como os deslocamentos compulsórios de grupos indígenas, que serão
evidenciados mais à frente, atestam a fragilidade da perenidade e da validade de uma lei como
essa de maneira prática frente à execução da guerra justa no sertão da Capitania do Rio Grande.
A lei de 1609 estava longe de extinguir totalmente a guerra justa pois, apesar de ter
representado uma mudança significativa nas proposições que estavam sendo elaboradas até
então, uma vez que concedeu de maneira irrestrita a liberdade dos índios, sem abrir precedentes
legais para a sua escravização, ela foi mitigada pouco mais de dois anos depois de sua
promulgação. Aos 10 dias do mês de setembro de 1611, Dom Filipi revogou a lei anterior e
instaurou uma nova, a qual recolocava a guerra justa como única medida possível de se privar
a liberdade dos índios. Nela, ele continuou afirmando a liberdade de todos os gentios do Brasil,
conforme o Direito e seu nascimento natural, porém, salientou que nos casos em que os gentios
movessem guerra, rebelião e levantamento, deveria realizar-se uma Junta local que contaria
com a presença do governador, do bispo, do chanceler e do presidente do Tribunal da Relação,
além do responsável pela ordem religiosa que estava em exercício no local do litígio131.
A partir da reunião da Junta e da devida averiguação da guerra envolvendo os índios,
deveria decidir-se se tal guerra realmente convinha e era necessária ao bem do Estado, ou seja,
se ela seria justa. Caso fosse considerada justa, mesmo que a resposta do rei para confirmação
da guerra demorasse a chegar, ela deveria ser executada e assim proceder o consequente
cativeiro dos índios capturados. Segundo a orientação do rei, os gentios que fossem cativados
deveriam ser assentados em um livro em que constassem seus nomes, lugar de origem, idade,
circunstâncias do cativeiro e as pessoas aos quais os índios seriam pertencentes, devendo ser
130 As terras de Jaguaribe, citadas na Lei de 30 de julho de 1609, faziam referência também às áreas circunvizinhas. 131 Alvará em que se tornou a declarar a mesma liberdade a favor dos gentios do Brasil, exceto no caso de serem
tomados em guerra justa, com outras circunstâncias para a sua educação Civil e Cristã. Legislação Antiga, 1446-
1754, Boletim do Conselho Ultramarino, p. 206. In: NAUD, Leda Maria Cardoso. Documentos sobre o índio
brasileiro (1500-1822). Revista de Informação Legislativa. p. 294.
65
feito cativo no tempo de no máximo dez anos. Além disso, as guerras entre os próprios índios
e a antropofagia foram citadas mais uma vez, possivelmente ratificando a execução do cativeiro
uma vez que reforçou a prática do resgate ao dar legitimidade aos colonos para resgatarem os
índios que estavam condenados à morte nos rituais antropofágicos nas partes do sertão.
Ademais, estabeleceu algumas diretrizes para a gestão dos aldeamentos por parte dos jesuítas
responsáveis apenas pelas questões de ordem espiritual.
Vale lembrar que no início dos Tempos Modernos, apesar de ter sido uma época de
pluralismo jurídico, nota-se que o direito positivo já começava a dar sinais de vigorar maior
veemência em detrimento do direito natural, por mais que os dois fossem percebidos
concomitantemente na sociedade. O direito natural, por exemplo, foi citado nas leis de 1609 e
1611, e sobre ele entendendo-se que é “a doutrina idealista do direito que enxerga ao lado, ou
melhor, acima do direito positivo algumas normas imutáveis e de observância obrigatória,
postas por uma autoridade supra-humana”132, ou seja, o direito dado por natureza. Já o direito
positivo contrapõe-se ao natural ao passo que é aquele posto pelo homem e não mais por uma
divindade superior, sobrepondo-se ao natural, principalmente a partir do surgimento do Estado
e sua consequente posse de todos os poderes existentes, estando a criação de leis inclusa nesses
poderes, acompanhada da “equidade estabelecida” que é proposta pelo juiz, que difere da
“equidade rude” proposta no direito natural.
Isto posto, percebe-se que dentre os argumentos mais utilizados pelos colonizadores
para compor as justificativas de incitação da guerra justa, era mais recorrente o que dizia
respeito às hostilidades dos índios. Houve uma necessidade de criar e manter um inimigo real
na sociedade colonial e aos índios recaíram vários estigmas decorrentes disso, ligados ao caráter
da barbárie, selvageria e ferocidade. Através das guerras justas, portanto, os colonizadores, em
benefício próprio, puderam acrescer braços indígenas como força de trabalho. Por isso, em
alguns momentos da história, a Coroa Portuguesa colocou-se reticente quanto à escravização
dos índios e terminou limitando a incitação da guerra justa como meio de dirimir os excessos
cometidos nesse sentido.
Em geral, quando aprisionados nas guerras justas, os índios assumiam um status sócio-
jurídico similar ao de um negro escravizado, tornavam-se propriedades de outrem e eram
subordinados à autoridade de seus proprietários, aos quais deviam prestar serviço mediante
132 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia do Direito e Justiça na obra de Hans Kelsen. 2. ed.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 191.
66
coação. Caso contrário, esses índios tinham a alternativa de optar por aldearem-se e, apesar de
terem a garantia da liberdade jurídica nesses espaços, deveriam também exercer um trabalho
que era remunerado, mas de caráter compulsório. Nesse panorama geral, percebe-se que a
liberdade dos índios era a todo tempo cerceada e a legislação indigenista, ao longo do período
colonial, funcionou como uma ferramenta efetiva que possibilitava a limitação dessa
liberdade133.
Nesse sentido, a lei de 17 de outubro de 1680 também merece destaque pois é nela que
mais uma vez reafirma-se a liberdade irrestrita dos índios, restando apenas dois casos como
exceção para execução do cativeiro: a guerra justa e o resgate. Contudo, ela também se destaca
por ter sido promulgada exatamente no ano definido como marco temporal da presente
pesquisa. A medida de liberdade irrestrita fora tomada com o propósito de fechar “a porta aos
pretextos, simulações e dolo com que a malícia, abusando dos casos em que os cativeiros são
justos, introduz os injustos”134. Na Carta Régia de 1680, que trata de guerra aos índios das
missões jesuíticas espanholas, há ainda a menção à especificidade do cativeiro para prisioneiros
de guerra que fossem “índios infiéis” pois para o caso de um prisioneiro ser cristão, esse não
deveria ser escravizado.
Já a última Lei de Liberdade dos Índios, a qual aboliu totalmente o cativeiro, foi a de
1755, garantindo aos índios a liberdade de suas pessoas, bens e comércio. Em 4 de abril desse
ano, lançou-se o alvará em forma de Lei que tratava sobre a questão do casamento entre brancos
e índias, visando o incentivo ao maior povoamento e fixação nos domínios portugueses na
América. Dois meses depois, no dia 6 de junho, foi emitida a lei que restituiu aos índios do
Maranhão e Grão-Pará a liberdade de suas pessoas, bens e comércio. Já no dia seguinte, 7 de
junho, um novo Alvará aboliu o poder temporal dos missionários sobre os índios aldeados,
passando essas atribuições aos civis135.
Salienta-se que essas últimas leis (lei de 1609; lei de 1680; lei de 1755) formam um
conjunto dentro da legislação indigenista que considerou mais importante a salvação das almas
em detrimento do direito de guerra, compondo as chamadas leis de liberdade ao reconhecer a
liberdade irrestrita dos índios pelo fato da grande quantidade de denúncias dos abusos e
133 Cf.: LOPES, Op. Cit. 134 LEI de 01/04/1680 apud PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da
legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.).
História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/FAPESP, 1992. p. 126. 135 Cf.: ALMEIDA, Op. Cit.
67
violências cometidos. Porém, como já é de conhecimento, a legislação indigenista era
considerada oscilante, e não foi diferente no caso dessas leis que aboliram o cativeiro dos índios,
pois logo em seguida restauraram tal prática mediante a guerra justa.
Consegue-se observar, ainda, que diversas questões locais que surgiram ao longo da
colonização levaram as autoridades a formularem intervenções viáveis que assegurassem o
estabelecimento tanto do dominium quanto do imperium, exemplo disso foi o caso dos excessos
cometidos no cativeiro dos índios das terras de Jaguaribe, citado na lei de 1609 e 1611. Casos
como esse influenciaram diretamente as tomadas de decisões na metrópole que viriam a incidir
diretamente na colônia a partir da confabulação de novas leis. Ao tratar da ideia de dominium e
imperium, Luiz Felipe de Alencastro comenta que a Igreja ibérica foi quem ajudou “a consolidar
o dominium ao fixar o povoamento colonial nas regiões ultramarinas e fortaleceu o imperium
na medida em que suscita a vassalagem dos povos além-mar ao Reino”136. Para isso, dever-se-
ia pensar em medidas que alcançassem os povos de maneira a torná-los súditos da Coroa e os
mediadores desse intento seriam as autoridades locais, ora representadas pelos capitães-mores,
ora pelos missionários, mas sempre refletindo as intenções do rei. No que diz respeito aos
índios, deve-se levar em consideração que o tipo de organização social no qual eles estavam
inseridos era diferente da lógica de dominação ibérica, fato que de antemão já serviria de choque
entre os índios e as autoridades locais.
No entanto, vale ressaltar que a noção de dominium difere de tutela, sendo categorias
jurídicas distintas. A primeira era o que garantia a legitimidade da escravidão, por exemplo, já
que suprimia a liberdade de culto, os direitos civis ou políticos de modo integral de determinado
indivíduo. Já o conceito do “direito de tutela” foi o que ajudou os missionários a financiarem
suas missões e a colocarem em prática seus projetos de conversão pois, para eles, o dominium
não se inseria na concepção da tutela. De maneira geral, o que se fez de início na sociedade
colonial com relação aos índios foi delegar a alguém a função de administrá-los exclusivamente,
devendo ser alguém de mais cabedal ou que tivesse bom trato com os índios, mas que de todo
modo cumprisse o objetivo de inseri-los no sistema colonial. Para isso, não deveria se lançar
mão dos dogmas religiosos, pois os poderes temporal e espiritual estavam intrinsecamente
ligados, desse modo, além de adequá-los aos padrões de vida do europeu, os índios deveriam
ser catequizados e aderir ao cristianismo.
136 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e
XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 27.
68
Rodrigo Faustinoni Bonciani, em sua pesquisa a respeito da execução do dominium
nas possessões ultramarinas com relação aos africanos e índios, ressalta que no Brasil os
discursos que englobavam o domínio sobre os nativos vinham, geralmente, por parte dos
senhores locais e governadores. Esses, sempre que possível, posicionavam-se contrários à
manutenção da tutela dos índios pelos jesuítas, cujo argumento baseava-se na civilização por
meio da inserção deles aos trabalhos que os afastaria da indolência e rebeldia137. Esse
argumento, por sua vez, endossa a ideia da utilização da guerra justa como ferramenta de
controle do domínio pelos colonos e moradores, à medida que encontraram na guerra justa o
respaldo jurídico necessário para a conquista dos povos através do apresamento.
No que diz respeito a um plano de orientação para tratamento do índio no Brasil, esse
surgiu apenas com a criação do Governo-Geral, em 1549, haja vista as dificuldades geradas nos
primeiros contatos frente à resistência indígena. Foi nesse momento que Tomé de Sousa
solicitou o envio de alguns jesuítas para o Brasil para que pudessem levar adiante o plano de
conversão dos índios, assim, as aldeias missionárias funcionavam como o meio para que esse
objetivo fosse alcançado. Os jesuítas foram então incumbidos de agrupar os índios perto de
povoamentos portugueses a partir do final da década de 1550 sob a influência de Mem de Sá,
que consolidou o projeto de Tomé de Sousa dos aldeamentos. As missões no Brasil iniciaram
com a chegada dos jesuítas, em 1549, seguidos dos carmelitas descalços (1580), dos beneditinos
(1581), dos franciscanos (1584), dos oratorianos (1611), dos mercedários (1640) e dos
capuchinhos (1642).
Em se tratando de Tomé de Sousa e seu Regimento de 1548, até esse momento este
não tinha sido citado pelo fato de não aparecer diretamente a expressão “guerra justa”, porém,
a partir dele, já se poderia considerar as guerras sem autorização do governador geral ou do
capitão-mor da capitania como guerras injustas uma vez que a consequência disso seria a pena
de morte natural e o confisco dos bens, haja vista a designação do que era justo ou injusto partir
de um crivo da moral cristã. Assim, as guerras de conquista, cujo objetivo estava centrado no
enriquecimento rápido, foram condenadas e os portugueses deveriam ser devidamente punidos.
De toda maneira, o documento deixa claro que a motivação para a guerra deveria ser pautada
na ação dos Tupinambás que, caso atacassem os portugueses, devia-se cumprir “[...] a serviço
137 BONCIANI, Rodrigo Faustinoni. O dominium sobre os indígenas e africanos e a especificidade da
soberania régia no Atlântico: da colonização das ilhas à política ultramarina de Felipe III (1493-1615). 2010.
Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em História Social,
São Paulo, 2010, p. 260-261.
69
de Deus e meu, os que assim se alevantaram e fizeram guerra serem castigados com muito rigor
[...]”138. Para o entendimento da cosmovisão jurídica da Primeira Modernidade, Rafael Ruiz
destaca que a principal chave de leitura é a clareza na compreensão de que a cultura jurídica
própria desse período era marcada pela teologia moral e pelo direito canônico139.
Portanto, o Regimento de Tomé de Sousa foi o primeiro texto normativo estabelecido
pela Coroa portuguesa respeitante à administração colonial e especificamente às questões
referentes às relações entre europeus e ameríndios. Da dualidade entre os índios amigos e os
índios inimigos, rendeu nesse Regimento, a orientação de retirada dos Tupinambás de suas
terras para “povoar assim dos cristãos como dos gentios da linhagem dos Tupiniquins que dizem
que é gente pacífica e que se oferecem a os ajudar a lançar fora e a povoar e defender a terra”140.
Por meio do Governo Geral, instituído por D. João III em 1549, e do Regimento de Tomé de
Sousa, estabeleceu-se que para os índios ditos amigos “convém atraí-los à paz para o fim da
propagação da fé, e aumento da povoação e comércio”. Em contrapartida, determinava-se que
se “fizesse guerra aos índios que se mostrassem inimigos, destruindo-lhes as aldeias e
povoações, matando e cativando”141. É nesse documento, ainda, que se abre ao governador-
geral o precedente de incitar a guerra, atributo até então designado ao Príncipe, mas que nem
por isso gerou problemas do ponto de vista jurídico.
Dentre as especificidades do Regimento de Tomé de Sousa, Carlos Zeron assinala que,
apesar de o cerne geral do documento dizer respeito à cristianização dos índios, isso não foi um
fato que impossibilitou a imposição da guerra, nem muito menos da evidenciação dos objetivos
últimos da conquista que estavam pautados na ocupação e fixação duradoura no território com
o intuito de explorar economicamente o espaço, além de frisar a possibilidade de concessão de
perdão para o caso de arrependimento dos índios bem como uma tangível liberdade oriunda da
conversão, mas que, para o autor, seria não uma liberdade física, mas de consciência.
Com isso, percebeu-se até aqui a relação estabelecida entre o aparato jurídico
desenvolvido e debatido pelos portugueses e espanhóis, ou mesmo pelas autoridades locais,
138 Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548. In: Lisboa, AHU, códice
112, fls. 1-9. Disponível em: <http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/2018-
04/Regimento_que_levou_Tome_de_Souza_governador_do_Brasil.pdf>. Acesso em 01 de junho de 2019. 139 RUIZ, Rafael. A Teologia como chave de leitura dos processos judiciais na América espanhola. In: ALVEAL,
Carmen; DIAS, Thiago (org.). Espaços Coloniais: domínios, poderes e representações. São Paulo: Alameda,
2019, p. 314. 140 Idem. 141 Idem.
70
visando o controle dos índios e consequentemente de suas terras. Atentando para forma como
a transição para a supremacia do direito positivo – proposto pelos homens –, nos tempos
modernos, incidiu na formulação leis que objetivavam a integração dos índios à lógica colonial,
fosse por meio das missões ou, de maneira mais agressiva, pelas guerras justas. Logo, a
negociação e a violência interceptavam-se nas tentativas de assimilação total dos grupos
étnicos.
***
Até o presente momento, apresentaram-se os debates que estavam em voga em torno
da matéria da guerra, em especial a guerra justa, nos Tempos Modernos. Para isso, foi
necessário atentar tanto para os discursos produzidos pelos religiosos quanto pelos juristas
desde o século XV. Tentando perceber as dissonâncias e as aproximações existentes em seus
pensamentos, assim como nas produções oriundas da Escola Ibérica da Paz e da Escola de
Salamanca através da apresentação desse pano de fundo que compôs o debate jurídico em
Portugal e na Espanha, pôde-se perceber a tentativa de execução do dominium, a princípio,
sobre os homens e depois sobre suas terras. Essa discussão possibilitou perceber a relação entre
a Igreja e o rei, entre a conversão e a violência, entre a paz e a guerra, enfim, entre a justiça e a
injustiça. Vale salientar que é uma justiça sendo entendida como uma extensão da vontade de
Deus, mas aplicada pelos homens aos povos que não se enquadravam nos moldes cristãos, e
que por isso eram considerados “gentios”.
Para além dos textos bíblicos que apoiaram a construção da ideia da guerra justa ou
dos debates dos juristas nas Escolas, a realidade na colônia obrigou os colonizadores a
repensarem suas estratégias para a conquista dos ameríndios. A antropofagia, por exemplo, foi
um elemento adicional que apareceu para os portugueses julgarem, denotando-a como
selvageria e barbárie e se somando aos demais pontos negativos que justificavam a execução
da guerra justa. Portanto, na legislação indigenista do período colonial no Brasil, a
inventividade fez-se presente. Ora se podia cativar os índios, ora não se podia. Porém, a guerra
justa sempre apareceu de alguma maneira, mesmo com os excessos cometidos pelos moradores,
desde o Regimento de Tomé de Sousa até às chamadas Leis de liberdade dos índios pois,
amparados pelo Direito por meio das normas que estabeleciam a guerra justa, colonos puderam
71
incitar diversos embates, alguns apoiados sob a égide da conversão dos índios gentios, mas em
sua maioria com o propósito maior de conquistar escravos de guerra e a consequente anexação
de territórios desses grupos nativos.
Para elucidar isso de modo mais pragmático, apontou-se alguns casos de
enfrentamento no período da Guerra dos Bárbaros que serão melhor trabalhados mais à frente
junto com outros conflitos específicos da Guerra do Açu. No entanto, até aqui, pôde-se observar
discussões acerca da justiça ou injustiça da guerra, assim como da legitimidade do cativeiro
através da guerra, caso que ficará ainda mais evidente na realidade dos Janduís, Caboré e
Capela, apresentada mais à frente. Por meio desses exemplos, evidencia-se também a
preocupação com o sertão que ainda não tinha a extensão dos tentáculos da Coroa portuguesa,
mas que, para alcançar esse intento, exigia a concretização de uma nova territorialização da
localidade após desterritorializar os grupos indígenas.
Ao avançar na dissertação, almeja-se destinar o próximo momento para uma análise
sincrônica das diferentes experiências da guerra para os índios no Brasil durante o período
colonial. Nessa ocasião, utilizando metodologicamente o viés das Histórias Conectadas,
pretende-se observar a experiência da força marcial dos índios, assim como todos os outros
pontos dissonantes ou consonantes, no momento da expansão territorial das Capitanias do
Norte, Maranhão, Pernambuco, Ceará, Piauí, Paraíba, Bahia, e o próprio Rio Grande, através
da incidência de guerras justas.
72
3 GUERRAS (IN)JUSTAS DA BAHIA AO SERTÃO DO AÇU
Para este capítulo, reservou-se, no primeiro momento, uma discussão que privilegie
conectar as realidades das Capitanias do Norte envolvidas nas guerras justas, dentre elas o
Ceará, Paraíba, Pernambuco, Maranhão, Piauí e Bahia, além do Rio Grande. Propondo uma
discussão bibliográfica com estudos mais recentes sobre esses espaços e a incidência da guerra
justa, pensou-se na construção de um diálogo que privilegie a utilização das Histórias
Conectadas, a fim de estabelecer uma relação entre as dissonâncias e similitudes que
aproximam as realidades dessas Capitanias. A Junta das Missões de Pernambuco, por exemplo,
foi um órgão da Coroa Portuguesa instituído a partir de 1681, e através dos termos elaborados
pela instituição tem-se informações relevantes que subsidiaram a pesquisa, pelo fato da sua
extensão de poder e decisão não se limitar a Pernambuco, mas abranger Capitanias vizinhas,
principalmente em ocasiões de conflitos contra os grupos indígenas.
Após o estabelecimento de pontos de intersecção entre as Capitanias do Norte, a
discussão direciona-se no sentido de tratar especificamente da análise dos discursos de fontes
documentais referentes ao período da Guerra dos Bárbaros. Através da análise do discurso,
sinalizou-se o uso de argumentos, noções e ações que conformavam o caráter da guerra justa:
justificação das guerras fundamentada pelas leis régias; reconsiderações sobre a justiça ou
injustiça da guerra; incitação à violência contra os grupos indígenas; morte e cativeiro de índios;
e expropriação de terras, por exemplo. Em sua maioria, as fontes são oriundas do Arquivo
Histórico Ultramarino (AHU) e Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (DHBN), as
quais possibilitaram a construção do segundo tópico deste capítulo.
Por último, neste segundo capítulo, propõe-se o debate em uma escala espacial menor
que permita atentar-se especificamente para a área do sertão do Açu, na Capitania do Rio
Grande. Essa área foi um dos principais focos de incidência da guerra justa na Capitania durante
a Guerra dos Bárbaros. Desse modo, conseguiu-se, também através das fontes do AHU e
DHBN, identificar a discussão que se fizera em torno do aparato jurídico da guerra justa e suas
consequentes ações ao ser empreendida naquele espaço.
73
3.1 – Histórias conectadas entre as realidades das Capitanias do Norte e a guerra justa
A expressão histórias conectadas foi proposta por Sanjay Subrahmanyam, historiador
indiano, na tentativa de desconstruir o que considerava ser uma visão tradicional da produção
historiográfica da Europa referente ao mundo asiático. Em sua abordagem, Subrahmanyam
tratou a história da Euroásia por meio das suas conexões com a Europa e outras partes do
mundo, sem entendê-la subordinada a outra ou como um mero produto da história europeia.
Por meio dessa perspectiva, o historiador sugeriu um avanço no que se entendia pela história
comparada, principalmente ao dialogar com o debate levantado pelo historiador americano
Victor Lieberman nos volumes intitulados Strange Parallels. Nessas obras, Lieberman abordou
a história da Birmânia, paralela à história da França entre os séculos XVI e XVII, tratando
ambas como reinos com tendências centralizadoras por meio de uma classificação dos poderes
políticos do mundo no respectivo período, criando distinções e semelhanças a fim de valorizar
a história da Birmânia142.
O historiador indiano, no entanto, aprimorou o modelo anterior de análise, que seria
tratar os sistemas de maneira interligada e não fechada, pois assim geraria uma comparação
mecânica, não desprezando totalmente a história comparada. A proposta de Subrahmanyam
baseava-se, portanto, em sair dos impérios em direção ao seu entorno, aproximando objetos que
poderiam estar divididos convencional ou artificialmente por qualquer motivo que fosse. Nesse
sentido, sua sugestão de análise através da História Conectada foi no sentido de contrapor uma
tendência dominante existente. Serge Gruzinski também alertou para o risco dos estudos que se
dedicam à História Comparada, pois muitas vezes poderiam terminar incorrendo em uma visão
eurocêntrica e/ou dicotômica. Sua sugestão incidia na direção de se estabelecerem conexões
partindo para além da análise da nação, por exemplo143.
Recentemente, Giuseppe Marcocci fez um interessante trabalho valendo-se da História
Conectada. Em suas observações, tratou do espaço do império português, em especial a
sociedade colonial brasileira cujo objeto principal era a escravidão e, assim, teceu conexões
entre os escravos ameríndios e os negros africanos. Dentre as naturezas das causas para a
escravização desses sujeitos, dedicou-se a examinar “o juízo acerca da capacidade de trabalho,
142 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia.
In: Modern Asian Studies, Vol. 31, No. 3, Special Issue: The Eurasian Context of the Early Modern History of
Mainland South East Asia, 1400-1800. (Jul., 1997). p. 735-762. 143 GRUZINSKI, Serge, “Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres ‘connected histories’”. Annales
HSS, nº 1, jan-fev, 2001.
74
a influência do paradigma antijudaico e o debate sobre a salvação da alma dos ameríndios e dos
negros africanos”144.
Como uma maneira de introduzir o presente capítulo de maneira a abranger o macro,
destinou-se este espaço para abordar as realidades das Capitanias do Norte, no qual o objeto
unificador, estabelecido aqui, capaz de realizar conexões entre elas foi a Guerra Justa. Logo,
pretende-se elucidar as aproximações e distanciamentos existentes nas realidades das
Capitanias da Bahia, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraíba e Rio Grande, no tocante
às incursões das guerras justas nesses territórios. Por mais que se trate de uma análise dentro da
própria nação, diferentemente do que propôs Gruzinski, deve-se ter em mente a relação de
distinção estabelecida entre as Capitanias do Rio Grande e Pernambuco, tendo em vista que a
primeira foi subordinada administrativamente a segunda, em determinados momentos do
período colonial. Contudo, é possível estabelecer interligações no que diz respeito às vivências
dos grupos indígenas em meio a incidência das guerras justas; e elencar similitudes ou mesmo
dissonâncias que aproximem as capitanias através de seus pontos relacionais. Desse modo,
aproxima-se a realidade da Capitania do Rio Grande às das demais capitanias ao identificar
elementos e ações da Coroa que visavam um objetivo em comum: a dominação dos índios e
das terras, permitindo apresentar um panorama geral da Guerra dos Bárbaros, sobretudo com
base na historiografia recentemente produzida sobre a temática.
Para iniciar a análise das relações entre as Capitanias do Norte estabelecidas pela Coroa
no tratamento das questões tocantes à guerra justa, traz-se, aqui, uma carta do rei emitida para
o governador de Pernambuco, em dezembro de 1695, na qual se aconselhava uma análise do
procedimento realizado na guerra na Capitania do Ceará em comparação com o tratamento
utilizado no Rio Grande. O rei ordenou a restituição da liberdade dos índios que tinham sido
apresados numa guerra do Ceará, em 1695, caso durante o exame da matéria da guerra notassem
que não se tratava de uma guerra justa. No intuito de reafirmar sua posição, o rei relembrou a
decisão tomada anteriormente sobre os paulistas que “cativaram sem justo título no Rio Grande
e neste caso se devem aldear e situar em lugar onde não só estejam seguros de se restituírem
144 MARCOCCI, Giuseppe. Escravos ameríndios e negros africanos: uma história conectada. Teorias e modelos
de discriminação no império português (ca. 1450-1650). Tempo, Niterói, v. 16, n. 30, p. 41-70, 2011. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042011000100003&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 28 jan. 2020.
75
para os sertões, mas onde mais facilmente possam receber o pasto espiritual dos
missionários”145.
Poucos anos depois, uma carta do Governador geral dirigida ao capitão das entradas,
Bernardo Cardoso de Macedo, comparava novamente a situação vivenciada com relação ao
cativeiro dos índios do Rio Grande para dar resposta dos aprisionamentos nos sertões do São
Francisco. Em novembro de 1704, essa carta trazia a discordância frente à proposta do capitão
das entradas, que se dispunha a fazer as entradas ao sertão do Rio São Francisco, combatendo
e aprisionando para si o “gentio do corso”146. Diante da reprovação de tal ato, o Governador
geral frisou que havia leis específicas que garantiam a liberdade dos índios e os cativeiros
realizados pelos paulistas no Rio Grande eram como um caso específico, por ordem do rei,
visando convencer os paulistas a guerrearem. Assim, segundo o Governador, esse “estímulo”
dado aos paulistas pautado no cativeiro após a guerra justa do Rio Grande não deveria ser
estendido às demais partes do Estado. Segundo Ricardo Pinto, os primeiros conflitos
identificados nas margens do Rio São Francisco, mais próximo a Pernambuco, datam por volta
de 1675147.
Nos dois casos supracitados, a Capitania do Rio Grande serviu de referência para a
elaboração da argumentação do que se tratava da guerra justa. Apesar de suas razões
contraporem-se – por ser a primeira afirmando a liberdade dos índios, enquanto a segunda
julgava o cativeiro como um incentivo para os paulistas –, os dois exemplos mostram a
experiência da guerra justa no Rio Grande sendo utilizada como um artifício que respaldasse as
decisões com relação a outras Capitanias, tomadas pelo rei ou pelo Governador-geral.
Ricardo Pinto de Medeiros, quando analisou as guerras ocorridas pelo sertão em sua
dissertação, dividiu as regiões envolvidas em três grandes áreas com base no caráter político-
administrativo delas e na ordem cronológica dos eventos, sendo elas: o sertão do Recôncavo
baiano e a margem baiana do rio São Francisco; o sertão das capitanias de Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande e Ceará; e o sertão das capitanias do Maranhão e do Piauí148. Sobre a área do
Recôncavo baiano, o historiador destaca que, apesar de em alguns momentos citarem as etnias
Topin, Paiaiá e Maracá, na maioria das vezes, predominou a utilização do termo genérico
145 Carta do rei ao governador de Pernambuco sobre a conta que deu através da junta das missões da guerra que se
fez no Ceará, venda e cativeiro de índios. AHU, Cód. 256, fl. 209v/210. 146 DHBN 40 p. 243, 25/11/1704. 147 MEDEIROS, Op. Cit., p. 116. 148 Idem, p. 114.
76
“gentio bárbaro”149. Nas demais Capitanias do Norte não foi diferente, prova disso é o próprio
nome do conflito, que se perpetuou como “Guerra dos Bárbaros”.
A generalização do termo “bárbaro” ocorreu também atrelada à categoria “tapuia”,
denotando os índios de variadas etnias, como por exemplo os Tarairiús, Ariús, Icós, Janduís,
Payayá, Paiacu, Curema, Panicuassu, entre outros. A respeito disso, Cristina Pompa alertou
também para a homogeneização que a própria historiografia perpetuou o uso de terminações
referentes a esse episódio tais como “Levante Geral dos Tapuias” ou “Confederação dos
Kariri”150. Com relação à Capitania do Rio Grande, essa vulgarização de terminologias que
estigmatizaram a imagem do índio violento também foi muito presente tanto nos documentos
quanto na historiografia151.
Não obstante, os conflitos que ocorreram desde o Recôncavo baiano até o Açu não
representam uma unidade, mas foram eventos isolados que tiveram um caráter similar pelo fato
de atenderem ao cumprimento da Coroa no que se tratava do avanço aos sertões. Os pontos em
comum observados por Kalina Vanderlei nas áreas onde os conflitos assolaram o sertão foram
respeitantes ao aspecto político e ao militar régio justamente pelo fato de se configurarem como
um confronto bélico e tático à coletividade indígena, nesse momento vista como uma ameaça à
sociedade colonial152.
Dessa maneira, a Guerra Justa no sertão das Capitanias do Norte soou renitente ao ser
orquestrada pelos colonos e moradores, haja vista a possibilidade de se combater os índios e
avançar às suas terras, justificada pelo impedimento de ataques aos currais de gados e amparada
nessa abertura da legislação. No relato de uma carta de João Antônio Andreoni, datado de
novembro de 1704, identifica-se algumas relações entre as Capitanias do Rio Grande, Ceará e
Paraíba, citadas por ele. Andreoni comentou a respeito das tentativas de estabelecimento dos
índios em espaços para além dos seus: primeiro ter-se-ia retirado os Paiacus da Aldeia do Apodi,
por terem tramado contra os Icós, e enviado para a Aldeia de Avaré a pedido do capitão-mor
do Ceará. Mas, por terem fugido de lá, o capitão-mor da Paraíba designou um sítio ao sul para
serem remetidos, especificamente na Aldeia de Urutaguí153, no sul da Paraíba, onde hoje
149 Idem, p. 115. 150 POMPA, Op. Cit., p. 270. 151 Vide elucidado na introdução dessa dissertação. 152 SILVA, Op. Cit., p. 256. 153 CARTA ânua de João Antônio Andreoni por mandato do Pe. Provincial, 25 de novembro de 1704. ARSI, Bras.
10, ff. 42-43 apud Leite, 1938-50: 543-547.
77
localiza-se o município de Alhandra, na área da Zona da Mata (04) conforme apresentado
abaixo no Mapa 1.
Mapa 1 – Limites aproximados da Capitania da Paraíba.
Fonte: Soares; Moura Filha (2013)154.
Para além dos pontos elencados pela recente historiografia, que permite tecer relações
conectadas entre as Capitanias do Norte, ressalta-se, aqui, a guerra justa como um elemento
unificador entre elas. Através da incidência da guerra justa, pôde-se conduzir o processo
expansionista de conquista dos sertões. Na Capitania do Rio Grande, por exemplo, Rocha
Pombo já havia acentuado a relação entre o uso da violência e da conquista ao escrever que
“penosamente, conquistando a terra pedaço a pedaço, investindo e recuando, cedendo agora
para avançar amanhã, numa dolorosa alternativa de destroço e de sucesso – é assim que se vai
entrando naquela porção de domínio”155. Sobre a Capitania do Ceará, Lígio Maia destacou que
as primeiras vilas foram calcadas com a mesma preocupação da Coroa em ocupar o interior.
Para alcançar essa finalidade, amalgamava-se a ação de expulsão dos índios e a de distribuição
das datas de sesmarias156.
Não diferentemente do ocorrido no Rio Grande e no Ceará, a Paraíba também vivenciou
a experiência de ter seu processo fundacional baseado na guerra justa, inclusive apoiada pelos
missionários como demonstrado no Sumário das Armadas, documento que reunia todas as
154 SOARES, Maria Simone Morais; MOURA FILHA, Maria Berthilde. O sertão da Paraíba no século XVIII:
representações espacial e imagética. InterScientia, João Pessoa, v.1, n.2, maio/ago. 2013, p. 91. 155 POMBO, Op. Cit., p. 36. 156 MAIA, Op. Cit., p. 88-90.
78
ações que os missionários julgavam dignas de honra157. É certo que há vários casos de excessos
de violência contra os índios, que foram denunciados pelos jesuítas, contudo, a linha que dividia
a relação dos missionários com a negociação da violência era tênue e, nesse caso, há o
argumento do jesuíta Serafim Leite que, tratando sobre os cativeiros injustos dos índios, serve
de contraponto ao comentar ter sido um dos alvos de combate dos jesuítas. Sobre a liberdade
dos índios, descreveu ter sido essa “a grande cruz dos Jesuítas no Brasil, e na qual haviam de
ser afinal crucificados”158. No entanto, documentos como o Sumário das Armadas comprovam
a inclinação que os missionários tiveram em alguns casos ao tratar das guerras justas.
Seguindo seu relato sobre os cativeiros injustos, Leite atribuiu o nascimento da ideia do
cativeiro à necessidade de que os colonos construíram em torno da mão de obra indígena,
julgando-a natural, pois não teriam saído de seus locais de origem à toa. Coube, portanto, aos
jesuítas posicionarem-se sobre o caso com base “na moral e na jurisprudência da época, foi
esta: o cativeiro pode ser justo ou injusto”159, sendo justo nos casos em que um índio estava
para morrer nas mãos de uma “tribo, pois entre perder a vida e perder a liberdade, era menos
mal perder a liberdade”. Como, segundo ele, eram poucos os casos em que se aprisionava o
índio nessas condições, os colonos investiram na venda dos índios e no “ciclo da caça ao
índio”160. Sobre a execução dos trabalhos nas capitanias, Stuart Schwartz avaliou que, no final
do século XVI, a população indígena era responsável por ¾ da força de trabalho na Bahia e os
índios seguiram sendo grande maioria da mão de obra ao longo da primeira metade do século
XVII161.
Ao tratar da realidade dos sertões do Maranhão e do Piauí, Vanice Siqueira de Melo
também atribuiu o povoamento e a colonização dessas áreas aos conflitos empreendidos contra
os grupos indígenas. Os índios tidos como hostis teriam “o ‘pronto e eficaz remédio’ da guerra
justa”162. A historiadora aponta que dentre as principais razões para o empreendimento das
guerras justas contra os índios do Maranhão e Piauí estava a espoliação do território, pois
157 BATISTA, Adriel Fontenele. O sumário das armadas: guerras, missões e estratégias discursivas na conquista
do rio Paraíba. Natal: EDUFRN, 2013, p. 49. 158 LEITE, Op. Cit., p. 18. 159 Idem, p. 19-20. 160 Segundo Serafim Leite, o “ciclo da caça ao índio” era como um eufemismo de uma caça aos homens, cuja
finalidade era o domínio deles para serem usados como mão de obra. Cf.: LEITE, Op. Cit., p. 20. 161 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. 162 MELO, Vanice Siqueira de. Cruentas guerras: índios e portugueses nos sertões do Maranhão e Piauí (primeira
metade do século XVIII). 2011. 156f. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia). Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Pará, 2011.
79
imperava a ambição pela exploração das terras para criação de gado, não muito diferente do
ocorrido na Capitania do Rio Grande. Dessa maneira, a extensão territorial da Guerra dos
Bárbaros se estendeu desde o Recôncavo baiano até o sertão do Açu, no Rio Grande, passando
pela ribeira do Jaguaribe, na Capitania do Ceará, como apresentado no Mapa 2, a seguir.
Mapa 2 – Extensão territorial do conflito da Guerra dos Bárbaros.
Fonte: Puntoni (2002).163
Além desses pontos em comum que relacionam o caráter expansionista da Coroa
Portuguesa e o empreendimento da guerra justa nas Capitanias do Norte, a atuação da Junta das
Missões de Pernambuco, que será explorada ainda melhor no capítulo seguinte, também foi um
ponto de conexão entre elas. Na maioria das vezes, as decisões tomadas pela Junta estavam em
consonância com os desejos dos colonos tanto de garantir mão de obra indígena quanto de
conquistar novas terras no sertão. A Junta das Missões de Pernambuco foi uma das instituições
criadas pela Coroa portuguesa a fim de resolver casos contingentes que não estavam previstos
no regimento e, mais ainda, que necessitassem de urgência nas soluções. No fim do século
163 PUNTONI, Op. Cit., p. 23.
80
XVII, o Estado do Brasil era compreendido pelas capitanias de Pernambuco, Rio Grande,
Paraíba, Sergipe, Itamaracá, Ceará, Porto Seguro, Bahia, Cabo Frio, Rio de Janeiro, Espírito
Santo e São Vicente. A Capitania de Pernambuco foi escolhida para ser a sede da Junta por
alguns possíveis motivos, como “a grande abrangência da diocese de Olinda, estendendo-se do
rio São Francisco, limite com a Bahia, até o Ceará, aliada à crescente concentração
administrativa em torno de Pernambuco”164, tendo em vista o seu exercício de jurisdição sobre
as capitanias do Ceará, Alagoas, Paraíba, Itamaracá e Rio Grande. Assim como ela, outras
Juntas também foram criadas ao longo do tempo, como exposto no Quadro 1, a seguir:
164 MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Fé e império: as Juntas da Missões nas conquistas portuguesas.
Manaus: EDUA, 2007, p. 154.
81
Quadro 1 – Juntas das missões nas possessões ultramarinas
Fonte: Elaborado pelo autor com base em Mello (2007).166
165 De início, as Juntas ocorriam onde se encontrava o governador, fosse no Maranhão ou no Pará. Apenas em
1701 as duas passaram a funcionar em consonância; uma Junta sediada em São Luís, no Maranhão, e outra em
Belém, no Pará. O funcionamento simultâneo das duas deixou de vigorar em 1757, após a implementação do
Diretório dos Índios do Pará e Maranhão. Contudo, a Junta do Maranhão prolongou sua atividade até 1777 com
algumas alterações, conforme fora estabelecido no Diretório. Cf.: MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Fé e
império: as Juntas da Missões nas conquistas portuguesas. Manaus: EDUA, 2007, p. 152-153. 166 MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Fé e império: as Juntas da Missões nas conquistas portuguesas.
Manaus: EDUA, 2007.
JUNTA
PERÍODO DE
DURAÇÃO
SEDE
PRINCIPAIS
DEMANDAS
Junta das
Missões do
Estado da Índia
1681-1774
Goa
Defesa do
padroado
português na
região frente ao
avanço das
Companhias
Holandesas e
Inglesas das
Índias Orientais.
Junta das
Missões do
Reino de
Angola
1681-final do
séc. XVIII
Luanda
Catequese e
formação de
missionários
africanos.
Junta das
Missões no
Estado do
Maranhão e
Grão-Pará165
1683-1757
São Luís/
Belém
Catequese e
liberdade dos
índios.
Junta das
Missões do
Estado do
Brasil
1692-1759
Pernambuco
Reestruturação do
trabalho
missionário após a
presença
holandesa e
avanço da
catequese para o
sertão.
82
Após perceber os êxitos que a Junta das Missões estava operando na Índia no sentido de
incentivo à propagação da fé católica, D. Pedro II remeteu uma carta ao Governador do Rio de
Janeiro, Dom Manuel Lobo, em 7 de março de 1681, ordenando a criação da Junta das Missões
no Brasil. Seguindo as orientações de D. Pedro II, com o intuito de promover as missões
presentes no Brasil, a Junta deveria reunir-se na presença do Bispo, que caso não pudesse
comparecer, poderia ser substituído pelo Vigário Geral do Bispado, o Ouvidor Geral e o
Provedor da Fazenda, além do Governador167. Dentre as dez proposições estabelecidas acerca
da Junta das Missões e de suas atribuições, destacam-se as exigências que se fazia para que sua
realização se desse, no mínimo, de quinze em quinze dias; que um secretário ficasse responsável
pela escrita das consultas e resoluções tomadas; e que se deveria manter comunicação com
Lisboa, informando as novidades vivenciadas na colônia168.
Em um registro de concordata sobre as pazes com os índios Caborés, datado de 11 de
novembro de 1716, na presença do capitão-mor Domingos Amado, dos oficias da Câmara de
Natal, do provedor da Fazenda Real e do Sargento-mor do Estado, comentou-se sobre a
necessidade de realização de uma junta a respeito do cativeiro dos Paiacus, pois esses teriam
assassinado alguns dos Caborés, que, por sua vez, tinham acordado a paz com os conquistadores
durante uma das entradas ao sertão do Açu. Ao comentarem sobre os excessos cometidos pelos
Paiacus, percebe-se que a dúvida a respeito do castigo deles circundava entre os presentes na
ocasião, pois escreve-se que “para os que dizia que indevidamente são cativos, lhe ordenava
consultar o dito capitão-mor para que ele determinado tudo com a melhor individuação lhe
desse conta ao dito senhor governador para resolver em junta das missões a providência que se
devia dar nestes particulares”169. Portanto, a fim de sanar as dúvidas tocantes ao cativeiro dos
Paiacus, recomendava-se a execução de uma junta e de um possível veredito que confirmasse
ou não a licitude desse ato. Sabe-se, ainda, que isso não representou um caso isolado na
sociedade colonial, haja vista que a dúvida sobre se fazer ou não cativo determinado grupo
indígena era recorrente, assim como a solução disso ser encaminhada a uma junta, fato que
ficará mais evidente no próximo capítulo.
167 Carta régia ao Governador do Rio de Janeiro sobre a criação da Junta das Missões Ultramarinas. Arquivo
Nacional (Rio de Janeiro), cód. 952, vol. 3, p. 5. Lisboa, 07 de Março de 1681. 168 Carta sobre a instituição da Junta das Missões e do que lhe toca obrar. Biblioteca da Ajuda, cód. 50-V-37, fl.
355-355v. Lisboa, post. 1686. Apud. MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Fé e império: as Juntas da Missões
nas conquistas portuguesas. Manaus: EDUA, 2007. p. 291-292. 169 Registro de um termo de ajuntamento e concordata que fizeram ao capitão-mor Domingos Amado os oficiais
da câmara, provedor da fazenda Real e sargento-mor do Estado sobre as pazes com os Tapuyas Caborés. 11 de
novembro de 1716. Livro 6 de Provisões da Câmara – Fl. 78v-80.
83
Dessa maneira, a Junta deveria reunir-se e deliberar sobre assuntos pertinentes à
vivência na colônia de modo a atender aos interesses dos religiosos e dos demais conquistadores
e moradores. As Capitanias do Norte tiveram suas demandas assistidas pela Junta das Missões
de Pernambuco e, assim, a maioria dos casos que passava pelo cerne da Junta envolviam direta
ou indiretamente os índios, tendo em vista o grande número de casos de guerras e cativeiros,
cabendo à Junta decidir, por exemplo, sobre a justiça ou a injustiça da guerra e a liberdade ou
o apresamento e cativeiro dos índios. Logo, pode-se entender, aqui, a Junta das Missões de
Pernambuco como o elo entre as Capitanias do Norte no que se tratava da guerra justa, capaz
de permitir inferir as conexões e intersecções existentes nelas.
Em uma consulta da Junta Geral das Missões, datada de 1697, discutiu-se sobre a falta
de párocos nas igrejas do sertão noticiada pelo bispo de Pernambuco em maio do mesmo ano.
Nela, apontou-se para a maioria das Capitanias do Norte, principalmente nas áreas envolvidas
na Guerra dos Palmares e na Guerra dos Bárbaros: Alagoas; rio São Francisco; sertão de
Rodelas; Açu, no Rio Grande; e Jaguaribe, no Ceará. Para Rodelas, o Bispo decidiu enviar
quatro clérigos, destinando terras para dois curatos, já para o Açu e Jaguaribe foram enviados
sacerdotes. A demanda dos Paulistas que estavam no sítio dos Palmares era no sentido de
também remeterem sacerdotes para esse local a fim de administrarem os sacramentos. O parecer
do Conselho Ultramarino foi favorável à solicitação e foi feito um adendo quanto à situação no
sertão de Rodelas, informando que deveria ser “o remédio juntamente espiritual e temporal,
espiritual pelo benefício dos párocos e operários, e o temporal pela correção e castigo dos
delitos”170.
Portanto, pululavam questões tocantes à vida social da colônia a serem discutidas nas
reuniões da Junta, principalmente as que envolviam os missionários e o poder espiritual bem
como a possibilidade de avanço da catequese aos sertões, aliada ao povoamento por parte dos
moradores, mesmo que para isso fossem necessárias a correção e o castigo dos índios, como
explicitado na consulta acima. As punições, muitas das vezes, variavam entre o cativeiro, a
morte ou a desnaturalização171.
170 Consulta da Junta Geral das Missões sobre a falta de párocos nas igrejas do sertão. AHU-PE, Papéis avulsos
(Lisboa, 29 de Outubro de 1697). Apud MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Fé e império: as Juntas da
Missões nas conquistas portuguesas. Manaus: EDUA, 2007. p. 298-301. 171 A tentativa de desnaturalização dos índios do Rio Grande aparece em alguns termos da Junta das Missões de
Pernambuco e, em suma, significa o desenraizamento dos índios feitos cativos, ou seja, após o cativeiro, alguns
índios eram indicados a serem levados a Capitanias vizinhas para que se afastassem do seu local de vivência e de
84
Uma portaria do governador de Pernambuco de 1713, por exemplo, solicitava ao
Provedor da Fazenda de Itamaracá o sumário de onze índios “tapuias” que tinham sido presos
na Capitania do Rio Grande e remetidos à fortaleza de lá. Por isso, os índios apresados no Rio
Grande, ao serem feitos cativos e destinados a Itamaracá, ficaram incumbidos pelo trabalho de
retirada de entulhos na dita fortaleza, mas quando encontraram a oportunidade de mudar de
atividade e buscar lenha com mais dois soldados, puseram-se em fuga na ocasião172, ou seja,
assim que os índios atinaram para o fato de que o trabalho laboral de buscar lenha demandava
mais tempo fora da fortaleza, podem ter se disponibilizado para fazê-la ou, ainda que tenham
sido mandados pelos soldados, logo aproveitaram a chance de fugir. Fatos como esse serão
ainda melhor explanados no capítulo seguinte, pois corroboram com a ideia do desenraizamento
dos índios de seu local de fixação, proposta baseada na desnaturalização.
Desse modo, diversos aspectos em comum intercruzam-se e esses pontos montam
relações entre as Capitanias do Norte de modo que suas semelhanças e diferenciações
constroem uma espécie de colcha de retalhos cujo pano de fundo é a guerra justa. Elementos
como a retirada ou a fuga de índios de uma capitania para outra e as ações institucionais da
Junta das Missões de Pernambuco, por exemplo, funcionaram como fios de ligação dessa
tessitura, a qual produz pontos de intersecção entre as Capitanias do Rio Grande, Pernambuco,
Paraíba, Ceará, Maranhão, Piauí e Bahia.
3.2 – A guerra justa no contexto da Guerra dos Bárbaros
A capitania do Rio Grande contava com a presença de certo estoque de espaço
disponível a ser apropriado e incorporado ao sistema colonial, haja vista o processo de
colonização ter sido iniciado pelo litoral, enquanto os sertões deveriam ser paulatinamente
incorporados ao domínio português em determinado momento. Caso semelhante ocorreu no
processo de avanço aos sertões de Minas Gerais, estudado por Hal Langfur, cujo objetivo era a
tomada das terras dos índios para assumirem o controle do ouro que já se encontrava escasso
por volta dos anos finais do século XVIII. Os colonos, portanto, obstinados na corrida do ouro,
invadiram as terras dos Botocudos e de outros grupos indígenas provocando embates violentos.
Por fim, o príncipe regente ainda declarou guerra em 1808. A guerra justa foi a ferramenta
suas relações de sociabilidade, sendo encarados como eminentes perigos aos moradores e colonos. A discussão
mais aprofundada sobre esse conceito e sua tentativa de execução aliada à guerra justa segue no próximo capítulo. 172 Portaria do governador de PE ao provedor da fazenda de Itamaracá, 20/05/1713. BNL, PBA, Cód. 115, p. 154.
85
encontrada pelos colonos para desbaratar os índios e assim romper com essa barreira humana
que impedia o contrabando de ouro na região. Isto posto, tanto no caso da Capitania de Minas
Gerais quanto na Capitania do Rio Grande, mas não sendo exclusivo desses espaços, os índios
representavam uma espécie de muro ao redor da fronteira assim como no Jaguaribe, localizado
na Capitania do Ceará, que foi mencionado nas Leis de 1609 e 1611, comentadas anteriormente,
à essa época já sinalizando um indicativo do uso excessivo do cativeiro dos índios pelos
colonos.
Com isso, a fronteira ganhou uma conotação de barreira a ser transpassada, um limite
que se deseja perpassar e avançar. Era a terra como uma incógnita a ser desvendada pelos
colonos. Diogo de Vasconcelos, considerado o fundador da historiografia moderna do período
colonial de Minas Gerais, escreveu, no início do século XX, que as florestas à leste ainda eram
rigorosamente conservadas e tinham seu acesso impedido e, por isso, são chamadas de “terras
proibidas”, nome dado ao livro de Langfur. Ele coloca, ainda, que as políticas advindas da
Coroa e dirigidas aos índios tinham tanto o papel de escravizar quanto de marginalizar quando
as subjugava a certa adaptação. Como Caio Prado Júnior evidencia, ao diferenciar a colonização
lusitana da norte-americana, aqui se tentou
[...] aproveitar o índio, não apenas para a obtenção dele, pelo tráfico mercantil,
de produtos nativos, ou simplesmente como aliado, mas sim como elemento
participante da colonização. Os colonos viam nele um trabalhador
aproveitável; a metrópole, um povoador para a área imensa que tinha que
ocupar, muito além de sua capacidade demográfica173.
Ao analisar aspectos econômicos e culturais presentes na Guerra dos Bárbaros em sua
dissertação de Mestrado, Soraya Geronazzo Araújo destacou a importância que os tapuias
representaram no impedimento ao avanço da Coroa aos sertões do Recôncavo, fato que a
motivou a considerar os índios como “verdadeiras ‘muralhas do sertão’”174. A guerra dos
Bárbaros, portanto, foi um sangrento embate entre índios e portugueses que teve como um dos
palcos principais os sertões do Açu no Rio Grande, mas se estendeu pelas regiões do sertão de
Rodelas, em Pernambuco, também na Ribeira do Jaguaribe, no Ceará, além dos sertões do Piauí
e Paraíba. Com relação ao período da Guerra dos Bárbaros, Puntoni coloca que a partir de 1661
já ocorriam conflitos, porém, é por volta de 1687 que se nota grande número de documentos
173 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, v. 16, 2000, p.
86-87. 174 ARAUJO, Soraya Geronazzo. O muro do demônio: a economia e cultura na Guerra dos Bárbaros no nordeste
colonial do Brasil – séculos XVII e XVIII. 2007. 122f. Dissertação (Mestrado em História Social). Centro de
Humanidades. Universidade Federal do Pará, 2007, p. 81.
86
dando conta desses levantes. O autor caracteriza o evento como “uma série heterogênea de
conflitos que foram o resultado de diversas situações criadas ao longo da metade do século
XVII”175. No que diz respeito ao sertão do Açu, os documentos analisados até o momento
também apontam o início dos conflitos para o começo de 1687.
Em uma carta que o então Governador Geral do Brasil, Mathias da Cunha, escreveu
para o governador de Pernambuco, João da Cunha de Sotto Maior, “sobre a guerra do gentio
bárbaro do Rio Grande”176, em 1688, já se declarava a justiça desse conflito. Segundo relata-
se, Mathias da Cunha convocou uma junta que acordou em votação, na presença de teólogos,
ministros e oficiais maiores, a uniformidade da guerra contra os índios do Rio Grande, a qual
passou a ser considerada justa, devendo ser de caráter ofensivo com o apresamento dos cativos.
Para a realização do intento, a junta indicou o socorro da capitania através de medidas como o
envio de infantes de praças das cidades de Olinda, Itamaracá e Paraíba, que deveriam ser
sustentados pelas câmaras de cada cidade, assim como 200 infantes do terço de Henrique Dias
e de Filipe Camarão, além de assistência da Fazenda Real com todas as armas, munições e
fardamentos necessários aos índios e soldados pretos que fossem enviados à região dos
conflitos. Em tal carta, ainda, se menciona a obediência do Governador geral à legislação em
vigência, citando que o parecer da Junta, a respeito da guerra justa e do cativeiro dos índios,
alinhava-se em conformidade com a Lei de 1611.
Ao tratar dos grupos sociais, Haesbaert coloca a desterritorialização como uma
precarização territorial, que nada mais é do que a expropriação de dado território, que se
compreende não apenas como meio de subsistência e continuidade da vida humana, mas
também como recurso fundamental para a criação e manutenção de identidades e simbolismos.
Ao citar os indígenas, o geógrafo aponta a terra para além de um meio de produção, mas que
emana de um nível simbólico-cultural na qual determinadas porções do espaço estariam
carregadas de referências simbólicas e seriam consideradas veículos de manutenção da cultura,
podendo ainda ter ligações com o sentido religioso. Cada contexto tem, pois, seus agentes de
desterritorialização, seja o mundo virtual e os meios de comunicação cada vez mais avançados
ou mesmo a tentativa de usurpação de espaços físicos que culminam na desintegração de grupos
175 PUNTONI, Op. Cit., p. 13. 176 Carta que se escreveu ao governador de Pernambuco João da Cunha de Sotto Maior sobre a guerra do gentio
bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 263-267.
87
sociais, formando o que Haesbaert classificou como uma espécie de “aglomerados humanos de
exclusão” haja vista serem retirados de seu território.
Destarte, a guerra justa, de certa maneira, serviu como um dos vetores que impulsionou
o avanço dos empreendimentos colonialistas aos sertões da Capitania do Rio Grande. Ao
avançar para o expoente de terras adentro da capitania, a barreira sociocultural formada pelos
grupos indígenas seria enfrentada diretamente para que o projeto da colonização pudesse ser
concretizado. Guerrear com os índios ditos “bárbaros” ou “rebeldes”, portanto, seria uma
alternativa imperativa, ainda mais ao se utilizarem do aparato jurídico que os permitia declarar
guerra em nome da justiça. Desse modo, a dizimação ou o aprisionamento de índios serviria
aos interesses dos colonos visto que os permitiam adentrar os vastos sertões após vencer essa
fronteira humana.
Nesses espaços, o empreendimento da colonização demandava estratégias que fossem
capazes de dominar os grupos indígenas, ou seja, a povoação do sertão do Açu por parte dos
colonos seria uma opção viável apenas após a dominação dos índios. Como maneira de tornar
o sertão útil de alguém maneira, Salvador Correia de Sá escreveu um parecer para o Conselho
Ultramarino, em 1675, no qual defendeu a dispersão de aldeias missionárias pelos sertões. Elas
funcionariam como um meio de combate contra os negros fugidos e os tapuias que causavam
danos aos moradores, mas também seriam a possibilidade de expandir os domínios portugueses
pela colônia adentro177. Sobre a relação da Coroa Portuguesa com os povos indígenas da área
amazônica, Ângela Domingues declara que ela “visava tornar doméstico, útil e civil não apenas
o solo, como os homens”178.
Ainda nos anos iniciais da Guerra dos Bárbaros, por volta de 1693, o Conselho
Ultramarino emitiu um parecer, após a consulta de diversas cartas recebidas de autoridades
locais, sobre o estado das ruínas em que se encontrava a Capitania do Rio Grande, dando aviso
da falta de meios para sua defesa e das possíveis ações para recuperá-la. Nesse parecer,
assegurava-se o caráter exploratório da Coroa em relação à Capitania ao afirmar que “se acuda
e obre nella tudo o que for necessario, para que estejão com toda a boa prevenção, e segurança,
177 Cf.: PUNTONI, Op. Cit., p. 72. 178 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no norte do Brasil
na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão nacional para as comemorações dos descobrimentos
portugueses, 2000. p. 76.
88
quando se offereça a ocasião de serem invadidas179”, além da ideia de tornar também os índios
úteis e civis, explicitada no trecho acima, declarando que “procurará fazer povoação, a que os
reduza, fazendolhe Regimentos por que se governem assim no político e civil, como na
administração da justiça para que por este meyo se evitem as desordens que costumão suceder
naquelles certões180”. No decorrer do parecer, confirma-se a possibilidade da continuidade de
guerra aos índios caso não se consiga reduzi-los por meio da paz.
Os relatos que levaram o Conselho Ultramarino a emitir tal parecer foram remetidos por
diversos núcleos de poder da Capitania envolvidos na guerra, dentre eles, do próprio capitão-
mor, Sebastião Pimentel, dos oficiais da Câmara de Natal e do governador de São Tomé,
Ambrósio Berredo, além do ouvidor-geral da Paraíba, Diogo Rangel Castel Branco. Em sua
maioria, a narrativa das cartas assemelha-se quanto à descrição do estado da Capitania e da
Fortaleza dos Reis Magos, ambas em ruínas, assim como quanto à urgência de intervenção da
Coroa e de pagamento dos soldados pois, caso contrário, a Capitania seria tomada pelos índios
inimigos, enquanto os moradores abandonariam o local, sem “poder se povoar as terras
melhores que tem, por que de outra sorte nem os moradores podem aturar181”, segundo
Sebastião Pimentel.
Logo no início da guerra, ainda em 1688, o propósito de destruir o índio inimigo através
da guerra já era anunciado. Mathias da Cunha, então Governador geral do Brasil, ao escrever
para o coronel responsável pelo Forte do Cuó, no sertão do Açu, Antônio de Albuquerque da
Câmara, ordenou-o que degolasse os índios até destruir todos, de modo que servisse como um
castigo exemplar para instalar o medo nos demais grupos indígenas182. Para esse intento,
somaram-se esforços de todos os lados possíveis, pois 300 homens brancos e índios marchariam
pelo sertão a partir do Rio São Francisco, com o governador das armas paulista, mais 600
homens que estavam de caminho ao Palmares, a mando do Governador de Pernambuco, além
de terem o auxílio financeiro de 100$000 réis dado pelo Senado da Câmara de Olinda e as armas
179 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II sobre diversas cartas recebidas acerca do estado de ruínas
da Capitania do Rio Grande do Norte e da Fortaleza dos Reis Magos por causa da Guerra dos Bárbaros. Anexo:
aviso, parecer do Conselho Ultramarino (minuta); cartas do ouvidor-geral da Paraíba, Diogo Rangel Castel Branco,
do capitão-mor da capitania do Rio Grande do Norte, Sebastião Pimentel, dos oficiais da Câmara de Natal e do
governador de São Tomé, Ambrósio Pereira de Berredo. In: AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 35 (1693,
Novembro, 23, Lisboa). 180 Idem. 181 Idem. 182 Carta que se escreveu ao governador de Pernambuco, João da Cunha de Sotto Maior, sobre a guerra do gentio
bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 263-267.
89
e munições concedidas pela Fazenda Real. Desse modo, almejava-se a invasão e destruição dos
índios, especialmente os Janduís, nas campanhas interiores da Paraíba, Rio Grande e Ceará183.
Porém, seis dias antes do envio dessa carta, especificamente no dia 08 de março de
1688, Mathias da Cunha já escrevera ao capitão-mor dos paulistas Domingos Jorge Velho,
dando as ordens para socorrer a Capitania do Rio Grande por todos os meios possíveis. Ele
disserta que, além de esperar que se degolassem os bárbaros, como reafirmado na carta anterior,
esperava-se que também os aprisionassem “por a guerra ser justa resolvi em Conselho de
Estado, que para isso se fez que fossem cativos todos os bárbaros que nela se aprisionassem na
forma do Regimento de Sua Majestade de 1611184”. O sucesso dessa missão foi comemorado
em carta do Governador geral ao bispo de Pernambuco, seis meses depois, e, apesar de não
detalhar o número de apresamentos ou mortes de índios, garante que o primeiro embate com os
bárbaros durou quatro dias pelo sertão interior185.
A Guerra Justa, portanto, apresentou-se como uma alternativa de subordinação e
submissão e, quando possível, também de destruição dos grupos indígenas insurgentes, que se
colocavam contrários ao projeto civilizatório da Coroa e da Igreja. Mathias da Cunha, como
Governador geral, foi um exemplo dos colonos que incorporaram a Lei de 1611 e,
especificamente, no que tangia à guerra justa, solicitou o aprisionamento dos índios. Após
torná-los cativos mediante a justiça da guerra, facilitou o acesso dos moradores aos sertões,
povoando as melhores porções de terra, antes ocupadas pelos índios, como sugerido pelo
capitão-mor Sebastião Pimentel em 1693.
Marcocci, ao estudar a estruturação do Império ultramarino português, colocou que
Portugal inspirava-se tanto na Roma sacra quanto na Roma profana e isso colocava a questão
moral em xeque, inclusive na legislação desenvolvida. Para ele, na verdade, a legislação
espelhava o clima geral em que o interesse dos colonos pela exploração de mão de obra indígena
encontrava apoio na difundida opinião de que os índios não eram seres humanos de pleno direito
por serem desprovidos de alma186.
183 Idem. 184 Carta para o capitão-mor Domingos Jorge Velho sobre partir com a gente que tiver sobre os bárbaros do Rio
Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 293-295. 185 Carta que se escreveu ao bispo de Pernambuco sobre o sucesso da guerra do Rio Grande [1688]. Documentos
Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, p. 306-308. 186 Cf.: MARCOCCI, Op. Cit.
90
Sabe-se que a Guerra dos Bárbaros arrastou-se por longos anos, no entanto, logo dois
anos após a comemoração de Mathias Cardoso ao suposto sucesso na guerra, falava-se da
necessidade que se tinha da continuidade da ação dos paulistas, os quais seriam os únicos
capazes de dar o último fim à guerra dos bárbaros do Rio Grande, segundo o Arcebispo e
Governador da Bahia187. Ele assegurou suas esperanças nos paulistas, mas também em uma
nova forma de guerra sugerida por ele, na qual se contava com o maior número de homens para
guerrear contra os índios e cuja conclusão seria dada após a destruição de todos. Mesmo com o
extermínio dos índios sendo o lema que guiava essa guerra, o Arcebispo fez uma ressalva
quanto à sua escravização, pois para ele devia-se aguardar a resolução direta do rei. No entanto,
o sargento mor, Manuel Álvares de Moraes Navarro, já tinha assumido a responsabilidade sobre
a questão e vinha declarando cativo os índios presos na guerra.
Diante da profícua relação entre os clérigos e a vida política e do reino, desenvolveu-
se o que Marcocci chamou de “teologia política”, evidenciada em atos teóricos produzidos pelos
teólogos ou fossem em comparações entre as principais instituições do reino e da Igreja. Para
conquistar e efetivar o domínio sob as possessões, os portugueses encontraram apoio e
legitimidade também nas bulas papais, sendo o período entre a década de 20 e início da década
de 30 do século XVI o momento em que se desenvolveram posições acerca de fatos mais
complexos que giravam em torno do império, tal como a guerra. As bulas redigidas por
Alexandre VI em 1503, por exemplo, conferia aos espanhóis poderes para dominar os povos
indígenas da América, como no caso das ideias expressas na Inter coetera 188.
Dessa maneira, os interesses do Estado moderno estavam pautando suas justificações
e limites através das tradicionais doutrinas cristãs que versavam tanto sobre a guerra quanto
sobre o comércio, elaboradas ainda na Idade Média, mas contendo assuntos de extrema
pertinência para a efetivação do Império como conquistador e detentor de povos e riquezas. Os
próprios soldados, por exemplo, que personificaram os ideais de conquista e defesa militar,
eram atravessados pelos preceitos da fé. Assim, a virtude militar e a religião cristã formavam o
pacote de elementos essenciais para o soldado da Península Ibérica das primeiras décadas de
Quinhentos.
187 Carta para o senhor almotacé-mor do reino e governador de Pernambuco [1690]. Documentos Históricos da
Biblioteca Nacional, Volume 10, p. 388-393. 188JIMÉNEZ FERNÁNDEZ, Manuel. Las bulas alejandrinas de 1493 referentes a las Índias. Nuevas
consideraciones sobre la historia, sentido y valor de las bulas alejandrinas en 1493 referentes a las Índias. Sevilla:
Anuario de Estudios Americanos, 1944.
91
Dentre as observações de Marcocci acerca do Império e suas possessões, ele ressalta a
associação da violência e da conversão no momento em que apresenta as atividades
concernentes aos missionários no contexto das regiões da Índia. Percebe-se mais claramente a
questão da utilização da força militar nas conquistas territoriais justificada pelos religiosos
como meio de conquista dos povos e das almas. Para Marcocci,
guerra, resistências locais (não raramente armadas) e outros episódios de
violência constituíram o contexto constante das estratégias de conversão
empreendidas pelos inacianos e missionários das outras ordens que agiam na
sombra do extenso, mas frágil, império português189.
O objetivo principal das atividades incumbidas aos missionários estava centrado na
edificação de uma fé que se pretendia monolítica, sem dúvidas ou incertezas por parte dos povos
recém cristianizados, porém, na realidade, os missionários eram surpreendidos com abjurações
da nova fé e fugas para além das fronteiras.
Tomé de Sousa, já citado aqui, com o primeiro texto normativo da Coroa sobre as
relações entre europeus e ameríndios, o Regimento Geral do Governador Tomé de Sousa de 17
de dezembro de 1548, fez menção a nuances da noção da Guerra Justa da seguinte maneira:
Eu sou informado que os gentios que habitam ao longo da costa da capitania
de Jorge de Figueiredo, da vila de São Jorge até a dita Bahia de Todos os
Santos, são da linhagem dos Tupinambás e se alevantaram já por vezes contra
os cristãos e lhes fizeram muitos danos e que ora estão ainda alevantados e
fazem guerra e que será muito serviço de Deus e meu serem lançados fora
dessa terra para se poder povoar assim dos cristãos como dos gentios da
linhagem dos Tupiniquins que dizem que é gente pacífica e que se oferecem
a os ajudar a lançar fora e a povoar e defender a terra190.
Sendo justificado pelo serviço de Deus, portanto, o ideal seria despovoar as terras
ocupadas pelos índios não cristãos, retomando a ideia empregada nas Cruzadas para a
desapropriação de um território repleto de infiéis em nome da Igreja. No corpo do texto do
Regimento, ao tratar da guerra, observa-se o contexto local sendo explicitado primeiramente,
para só então reafirmar os ideais da doutrina, legitimando as investidas de guerra que viessem
a ser sucedidas, abrindo, ainda, ao governador-geral, o precedente de incitar a guerra, ação até
então designada ao Príncipe. Tal alteração não surtiu nenhum sinal de problemas do ponto de
vista jurídico, pois se determinou ao governador-geral que:
189 MARCOCCI, Op. Cit., p. 376. 190 REGIMENTO que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548. In: Lisboa, AHU, códice
112, fls. 1-9. Disponível em: <http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/2018-
04/Regimento_que_levou_Tome_de_Souza_governador_do_Brasil.pdf>. Acesso em 01 jun. 2019.
92
trabalhareis porque se conserve e sustente para que nas terras que habitam
possam seguramente estar cristãos e aproveitá-las, e quando suceder algum
levantamento acudireis a isso e trabalhareis por pacificar tudo o melhor que
puderes castigando os culpados191.
Através do Regimento é estabelecida a concessão de perdão para o caso de
arrependimento dos índios por seus intentos e ainda uma condição de liberdade por meio da
conversão, mas que seria manifesta apenas na consciência e não numa liberdade física, ou seja,
a definição do que seria justo não passava pelo viés da moral cristã. No entanto, muitos dos
conflitos envolvendo os índios eram motivados por ações iniciais dos colonos, que incitavam
atritos até mesmo entre os próprios índios. Mesmo levando em consideração que o Regimento
de Tomé de Sousa seja ideal para se analisar as visões em torno da justiça da guerra, vale
salientar que esse dispositivo jurídico foi proposto ainda no início da colonização e, de lá até o
período da Guerra do Açu, muitas coisas foram alterando-se através dos novos contextos
históricos que surgiam; a dispensa dos quintos reais pode ser um exemplo dessa mudança.
Contudo, a respeito das causas motivadoras para as guerras ao longo da colonização do sertão
do Rio Grande, percebe-se a ambição pela tomada de terras dos índios como uma das principais
motivações que se manteve como uma constante, ainda que na parte do Regimento direcionada
ao Governador geral se indicasse a ele o trabalho de pacificação de qualquer levantamento,
como evidenciado no trecho acima.
Portanto, revoltas envolvendo a questão de terras dos índios e a distribuição desigual
delas, ou mesmo sua apropriação, foram muito comuns. É possível evidenciar relatos de
inquietações envolvendo os índios das aldeias de tapuias do Siará Grande, em 1713, na
Capitania do Ceará, ao saberem que as terras dos índios da Aldeia de Mipibu, na Capitania do
Rio Grande, tinham sido doadas pelo Capitão-mor Salvador Álvares da Silva (1711-1715), uma
ao Padre Manuel Rodrigues Pereira e outra a Baltasar Gonçalves192. Por isso, segundo consta
no documento, três aldeias de tapuias do Seará Grande teriam se levantado e matado os
moradores dessa localidade.
Em resposta a essa carta enviada pelo Desembargador Cristóvão Soares Reimão, o rei
pronunciou-se dizendo que estranhava a doação dessas terras aos ditos padres, tendo em vista
191 Idem. 192 Carta do desembargador Cristóvão Soares Reimão ao rei [D. João V] informando que o Capitão– mor do Rio
Grande do Norte, Salvador Álvares da Silva, havia dado terras dos índios da Aldeia de Mipibu ao padre Manuel
Rodrigues Pereira e a Baltasar Gonçalves, causando conflitos com os índios. In: AHU-RN, papéis avulsos, Caixa
1, Doc. 75 (1713, Outubro, 11, Recife).
93
já terem sido demarcadas para os índios da Aldeia de Mipibu. No entanto, pela situação ocorrida
da doação das terras, leva-se a crer aqui que possivelmente a Aldeia não estivesse de fato
demarcada. Assim, o rei ordenou que os restituíssem com a sua devida porção de terra. Na carta
de resposta do rei é que se infere a respeito da relação desses índios de Mipibu com os do Ceará
pois se comenta que as três aldeias de tapuias que se levantaram tinham sido as mesmas que
colaboraram com a defesa da fortaleza e conquista da Capitania do Ceará anteriormente. Após
a retirada de suas terras do Mipibu para os padres, gerou-se uma inquietação geral que culminou
na revolta contra o capitão-mor do Ceará, Francisco Duarte de Vasconcelos (1710-1715), e na
morte de moradores193.
As inquietações dos índios por conta da apropriação de seus territórios foram
intensificadas por meio do recurso jurídico da guerra justa. Em uma ata datada de 05 de
setembro de 1712, da Junta das Missões de Pernambuco, período ainda referente à Guerra do
Açu, colocou-se em cheque a justiça da guerra ocorrida contra os índios Janduís, Caboré e
Capela. No decorrer da ata, apresentou-se que mesmo diante da dúvida pela justiça da guerra,
o resgate consequente da guerra justa já tinha sido executado pois, de toda maneira, os índios
já
estavão legitimamente captivos todos os que forão presionados na dita guerra,
sem embargo das duvidas que se prepuserão em Rezão de algumas vexações,
e emjustiças que havião feyto, a hum Rancho do dito Tapuya, captivandolhe
o mulherio que levarão para as minas194.
A referida guerra ocorreu pelo fato de os índios “Caboré-Açu” terem-se vingado de
um ataque que sofreram por parte de alguns vaqueiros na Ribeira do Açu. Esses vaqueiros foram
considerados de “cidiozos mal advertidos” pelo Capitão-mor Salvador Álvares da Silva por
terem ido “dar no Resto dos tapuias matando a mayor parte dos que havião ficado [...]”, além
de terem feito cativos as mulheres e filhos. Como expresso no documento em questão, os
tapuias se vingaram “matando gente, cavallos, e gados”195, levando o Capitão-mor da Capitania
do Rio Grande a acreditar que, caso continuassem assim, iriam “dispovoar os Certons destas
193 AHU, Cód. 258, f. 40/40v. 194 Termo sobre fazerse guerra aos Ianduins. Termo 31, 12 de setembro de 1712. Biblioteca Nacional de Portugal,
Coleção Pombalina, Cód. 115, “Livro dos assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que
se escreveram em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado”, fl. 35v. Apud. GATTI, Op. Cit, p.
185. 195 Carta do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], Salvador Álvares da Silva, ao rei [D. João V], sobre a
destruição que os índios “Caboré-Açu” fizeram na Ribeira do Açu, como vingança do ataque que sofreram dos
vaqueiros. In: AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 68 [post. 1711, Novembro, 30, Natal].
94
partes e perder todas as fazendas”196, prejudicando não apenas os moradores como também as
finanças da Coroa. Isso evidencia, assim, a preocupação que se havia em manter os sertões
ocupados por conquistadores e, principalmente, que os moradores pudessem aumentar os
ganhos da Fazenda real. Além disso, pelo reforço dado na narrativa à parte referente à
“vingança” dos índios, pode-se apreender a intenção de manutenção do estigma selvagem do
índio, contudo, é notória a resistência dos índios, nessa ocasião, em virtude das investidas do
capitão-mor, quanto à guerra e à escravização.
As dissidências quanto à justiça ou injustiça da guerra e quanto à legitimidade do
consequente cativeiro foram sanadas com a decisão apresentada na Ata da Junta das Missões
de Pernambuco do dia 03 de abril de 1713, sete meses após a ata que colocou em dúvida essa
questão e indicou tirar-se devassa do caso para apurar os detalhes que envolveram a situação.
A decisão, portanto, foi emitida por meio de um bando declarando que “os Indios Tapuyas que
fizerão guerra aos brancos, e forão prezioneyros, havendo dúvida se havião de seguir as
mulheres o mesmo extriminio, se rezolveo que assim se devia executar, e que só devião ficar
na terra, os de idade de sete annos”197.
Na avaliação dos edis da Câmara de Natal, o lançamento desse bando teria levado mais
dano do que benefício “porque so servio, de avizo para os mais delles se aColherem, a sua
antiga vivenda, donde os tinha tirado puder daz armas”198 (grifo meu). “Os mais delles”,
destacado no trecho anterior, faz alusão aos índios que teriam retornado à sua antiga vivenda,
localizada no que disseram ser uma ilha por trás da Aldeia de Guajiru, atual município de
Extremoz, no Rio Grande do Norte. Percebe-se, com isso, a dimensão do poder de propagação
da notícia no meio dos índios como também a consequente atuação deles no sentido de
articulação e organização em grupo para retornar imediato ao seu espaço de convívio anterior.
196 Idem. 197 Termo sobre humas Aldeas que seachão sem missionarios sobre os cabos do Siry, e Arataguy nam terem muita
fidelidade, sobre os Tapuyas hirem para fora da terra. Sobre querer o Provedor do Rio Grande quintar huns Tapuyas
que tinham ajustado paz. Sobre os Tapuyas da Capella não terem Aldea separada, nem postos. Sobre matarem-se
em uma marcha 14 Tapuyas da Capella por desconfiança; sobre marchar o Terço do Assú para sua conquista.
Sobre pagarse aos Indios a 80 reis e de comer. Sobre os Tapuyas Anasses matarem ao Mestre de campo Antônio
da Cunha Solto Mayor. Termo 32, 03 de abril de 1713. Biblioteca Nacional de Portugal, Coleção Pombalina, Cód.
115, “Livro dos assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se escreveram em
Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado”, fl.36v. Apud. GATTI, Op. Cit, p. 187. 198 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [D. João V] sobre as dificuldades que os moradores enfrentam por
causa de um bando que o governador de Pernambuco, Felix José Machado, mandou lançar para que todos os
tapuias cativos de sete anos para cima fossem remetidos a Pernambuco para serem vendidos no Rio de Janeiro.
Anexo: carta dos oficiais da Câmara de Natal ao governador de Pernambuco (treslado) e resposta. In: AHU-RN,
Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 71 (1713, Julho, 29, Natal).
95
Diante das investidas dos moradores e dos oficiais militares e paulistas, os índios
encontravam maneiras de sobrevivência e, de acordo com as atitudes dos luso-brasileiros, os
nativos tomavam certos posicionamentos como lhes parecessem mais favoráveis. As revoltas e
conflitos dos índios contra os colonos era uma alternativa para a contestação e rejeição dos
ordenamentos da Coroa, porém, a resistência poderia ocorrer de outras maneiras. Inclusive,
valendo-se de meios oriundos dos próprios luso-brasileiros ao incorporar elementos da cultura
política do grupo oposto.
Steve Stern considera como resistência adaptativa outras formas de resistir, não
diretamente ligadas ao confronto bélico, que foram sendo construídas na história diante do
contato entre povos indígenas e europeus. Sem negar a ordem colonial, mas não a aceitando
plenamente, os índios utilizavam-se dos meios acessíveis da própria Coroa para garantir
melhores condições de sobrevivência199. No contexto das guerras que aqui se estuda, observar-
se-á a participação de índios no corpo do Terço dos Paulistas, o que poderia ser levado em conta
como uma possível representação desse tipo de resistência visto que os índios encontraram
nessa lógica europeia uma alternativa de sobrevivência em meio aos inúmeros confrontos. A
inserção dos índios aldeados na cultura política portuguesa através, por exemplo, da apropriação
dos ofícios militares e da colaboração com os poderes colonialistas foi uma constante observada
na aldeia de Ibiapaba na capitania do Ceará na primeira metade do século XVIII200.
Pelo fato de os índios serem portadores de uma importante força marcial, além do
conhecimento das terras da Capitania do Rio Grande, sua participação em atividades como a
do Terço era considerada importante para os portugueses. Puntoni acredita que “a presença do
indígena era constante e acabava pela sua adequação ao meio e às técnicas necessárias,
conferindo o caráter das atividades militares”201. Desde o século XVI, existiam as alianças entre
indígenas e colonos com fins militares, sendo um caso particular ocorrido em 1614 quando o
chefe potiguara Potiguaçu chegou a deslocar seu grupo do Rio Grande para o Maranhão em
virtude do combate a ser travado contra os franceses202. O terço de Camarão pode ser apontado
199 STERN, Steve. Resistance, rebellion and consciousness in the Andean Peasant Word, 18th to 20th
Centuries. The University of Wisconsin Press, 1987. 200 MAIA, Lígio de Oliveira. Honras, Mercês e Prestígio Social: a inserção da família indígena Sousa e Castro nas
redes de poder do antigo regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais, v. 43, n. 2, p. 9-23, jul/dez,
2012. 201 PUNTONI, Op. Cit., p. 188. 202 Cf.: SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas
vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Cepe Editora, 2010.
96
como outro exemplo de integração e articulação dos povos indígenas e suas técnicas militares
aos moldes portugueses203.
Apesar da importância dos índios inseridos no meio militar, encontram-se certas
distinções acerca do serviço militar dos índios e dos brancos no Terço que valem ser ressaltadas,
a começar pela matrícula para a participação do efetivo. Em uma minuta do rei, a ordem era
que, ao abrir novos títulos na Companhia do Terço, matriculassem-se “os brancos na forma do
Regimento e os Indios so pelos nomes e nações de q forem”204. Isso aconteceu possivelmente
pelo fato de eles julgarem ser impossível matricular os índios no Terço já que eles tinham
“variede na sua prezistencia” e abandonavam a qualquer tempo o serviço, repercutindo não
apenas na matrícula mas também no pagamento deles, que levaria à outra diferenciação, pois
se sugeria que só os brancos recebessem o soldo enquanto “os Indios serem socorridos com
farinha e a farda de q usão estes gentios”205.
Os índios que surgem na documentação analisada fazem utilização de armas de fogo
provenientes dos brancos, como se evidencia, por exemplo, em um tratado de paz entre
Bernardo Vieira e os “Tapuyas Ariûs piquenos” anexo a uma carta do próprio capitão-mor para
o rei D. Pedro II com a ideia de criação de um presídio no sertão do Açu, assinado no dia 20 de
março de 1697206. Em uma das cláusulas para o estabelecimento da paz, exigia-se a não
utilização de armas de fogo pelos índios. Com isso, não necessariamente os índios
abandonavam suas técnicas e armas próprias de guerra, mas as incrementavam e
complementavam seu arsenal, tendo em vista as pesadas investidas que sofriam pelos
adversários. De acordo com Maria Regina Celestino de Almeida,
Houve diversas formas do que Steve Stern chamou de resistência adaptativa,
através das quais os índios encontravam formas de sobreviver e garantir
melhores condições de vida na nova situação em que se encontravam.
Colaboraram com os europeus, integraram-se à colonização, aprenderam
novas práticas culturais e políticas e souberem utilizá-las para a obtenção das
possíveis vantagens que a nova condição permitia. Perderam muito, não resta
dúvida, mas nem por isso deixaram de agir207.
203 Cf.: ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na Capitania de Pernambuco no século XVII: caso
Camarão. 2005. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-
graduação em História, Recife, 2005. 204 Carta (minuta) ao rei [D. Pedro II] sobre os índios agregados ao Terço dos Paulistas no Açu. In: AHU-RN,
Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 55 [post. 1700]. 205 Idem. 206 Carta do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira de Melo, ao rei [D. Pedro II] sobre decisão dos
oficiais da Câmara e moradores de Natal de se fazer um presídio no sertão do Açu, que seria sustentado por seis
meses pelas farinhas dadas pelos moradores. In: AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 42 (1697, Abril, 25,
Natal). 207 STEVE, Stern. Apud. ALMEIDA, Op. Cit., p. 23.
97
Fossem envolvidos como aliados ou inimigos, os índios participaram efetivamente dos
conflitos que compuseram a Guerra dos Bárbaros. A maioria dos eventos que compuseram a
Guerra do Açu podem ser caracterizados como guerras justas, tal como no exemplo supracitado
dos índios Janduís, Caboré e Capela. Já próximo ao fim da Guerra dos Palmares, o mestre de
campo responsável pela guerra e o seu terço solicitavam as mercês, principalmente as
concessões de sesmarias, em retribuição às suas ações208. Nessa ocasião, compararam o conflito
dos Palmares com a guerra nos sertões do Açu, Piranhas, e Rio Grande, de importância igual
ou maior, segundo eles, pois nessas áreas conseguiu-se deter o gentio levantado tornando-os
escravos que pudessem suprir as perdas que a guerra levou mesmo com o impedimento inicial
dos padres, que logo teriam se arrependido de suas intervenções a respeito do cativeiro. No
Mapa 3, abaixo, é possível perceber as primeiras frentes de conquista do sertão do Rio Grande,
quando ainda existiam apenas as missões do Apodi, Guajiru e Guaraíras.
Mapa 3 – Primeiras frentes de conquista no sertão do Rio Grande (final do século XVII).
Fonte: Santos Júnior (2008)209.
208 Requerimento que – aos pés de Vossa Majestade humildemente prostrado – faz em seu nome e nome de todos
os oficiais e soldados do terço de Infantaria São Paulista de que é mestre de campo, Domingos Jorge Velho que
atualmente serve à Vossa Majestade na guerra dos Palmares contra os negros rebelados nas capitanias de
Pernambuco. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Portugal, Lisboa) transcrito e
publicado por Ernesto Ennes, pp. 316-344. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e
fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 421-422. 209 SANTOS JÚNIOR, Valdeci dos. Os índios tapuias do Rio Grande do Norte: antepassados esquecidos.
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, 2008, p. 78.
98
A conquista do interior, não apenas da Capitania do Rio Grande, mas de maneira geral
das Capitanias do Norte do Estado do Brasil, interferia na vida de vários setores da sociedade
colonial. Primeiro, a própria Coroa que visava a expansão territorial a fim de avançar com a
empresa pastoril; em seguida, as elites coloniais poderiam galgar novos títulos ou adquirir novas
terras; já a Igreja, além das terras, alastraria o campo de alcance da catequese e os povos
indígenas sofreriam as diversas tentativas de desterritorialização seguidos de suas ações de
resistências e enfrentamentos. Esse interior a ser conquistado é o que recebe a denominação de
sertão, possivelmente advinda do termo “desertão” ou “deserto”, no século XV, já que se tratava
de um espaço ausente da presença da Coroa e de seus súditos210.
Gabriel Soares de Souza, sertanista do século XVI, deixou suas impressões a respeito
das terras que correspondiam aos sertões e seus habitantes:
Este gentio senhoreia esta costa do Rio Grande até a Paraíba, onde se
confinaram antigamente com outro gentio, que chamam os Caités, que são
seus contrários, e se faziam cruelíssima guerra uns aos outros, e se fazem ainda
agora pela banda do sertão onde agora vivem os Caités, e pela banda do Rio
Grande são fronteiros dos Tapuias, que é gente mais doméstica, com que estão
às vezes de guerra e às vezes de paz, e se ajudam uns aos outros contra os
Tabajaras, que vizinham com eles pela parte do sertão211.
Observa-se, portanto, que o sertão era visto pela Coroa como um espaço amplo que se
encontrava sem sua extensão de poder e leis, mas que poderia ser ultrapassado ao se romper a
barreira formada pelos grupos indígenas, sempre associados aos selvagens e incivilizados. Foi
apenas no século XVIII, próximo do fim da Guerra dos Bárbaros, que o sertão ganhou também
o significado de estrada ou caminho de acesso. Nesse caso, seria a possibilidade de entrada a
uma área ora desconhecida, mas possível de tornar-se produtiva após sua conquista212.
Em uma carta de Domingos Afonso Sertão para D. João de Lencastro, datada de
janeiro de 1702, em que dava conta ao governador-geral do Brasil dos caminhos e povoações
que distavam da Bahia até o último povoado da parte Norte, ele comentou acerca de uma estrada
que partia de uma povoação e se conseguiria alcançar o Ceará, Rio Grande, Paraíba e
Pernambuco. A partir dessa estrada foi possível “ir socorros sempre que fosse preciso, em carros
e cavalos, porque por todas aquelas paragens havia muitos currais de gados e farinhas para
210 Cf.: LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas – índios, colonos e missionários na colonização do Rio Grande
do Norte. 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife. 211 SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Recife: Ed. Massangana. 2000. p. 16-17. 212 Cf.: SILVA, Op. Cit.
99
sustento desses comboios213”. Isso estabeleceu, assim, a relação que se existia para auxiliar os
comboios que estavam presentes em outras regiões, sempre que necessário, e principalmente
no caso de ataques dos índios já que um outro caminho que existia tivera sido destruído pelo
gentio bravo.
Nesse sentido, dialoga-se com Domingos Loreto Couto (1700-1757), que foi um
cronista e religioso da Ordem de São Bento que também deixou suas impressões acerca dos
sertões após a Guerra dos Bárbaros:
Livres os moradores destes certões das hostilidades, que experimentavão no
furor dos Indios, se vião combatidos de grande chusma de gente atrevida, e
dissoluta, que procurando naquellas terras huã vida livre, e licenciosa,
cometião roubos, homicidios, e outros enormes peccados, porque não havia
Tribunal, onde pedissem satisfação dos agravos, nem Justiça que castigasse os
seus insultos. O comercio era a medida de suas vontades, e dividas só as paga
quem queria, e muitas vezes o pagamento era huã balla, porque matar e ferir
mais que culpa, era bizarria.214
Entendendo os sertões como fronteiras, percebe-se que os processos de transformações
territoriais no que hoje é o Brasil, e mais especificamente na Capitania do Rio Grande, estão
relacionadas com a efetiva expansão dos domínios do império ultramarino português. É nesse
contexto de avanços dos colonizadores pela colônia que há choques entre os grupos sociais,
tendo em vista que cada grupo vivencia sua territorialidade ao seu próprio modo, configurando
o que Paul Little chamou de “conduta territorial”215.
Em uma consulta do Conselho Ultramarino sobre a nomeação de alguém para uma
vaga na companhia de Infantaria, no lugar de Luís da Silveira Pimentel, falecido após ter
servido vinte anos como soldado, alferes, ajudante e capitão de Infantaria do Terço dos
Paulistas, encontra-se a folha de serviços de Luís Pimentel na qual cita sua atuação na Guerra
dos Bárbaros e comenta justamente das entradas feitas ao sertão. Para o socorro da Capitania
do Rio Grande, portanto, diz-se que se penetrou “cem léguas do sertão, sendo mandado por
cabo de 250 homens das Guaraíras a buscar o inimigo no meio da capitania216”. A missão
213 Carta de Domingos Afonso Certão para D. João de Lencastre, governador e capitão-geral do Brasil, dando-lhe
conta, a seu pedido, dos caminhos, povoações e distâncias da Baia ao último povoado para a parte do Norte [...].
In: RAU, Op. Cit., p. 34-36. 214 COUTO, Domingos Loreto. Desagravos do Brasil e Glória de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. vols. 24 e 25. Rio de Janeiro: Oficina Tipográfica da Biblioteca Nacional, 1904, p. 33.
Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasgerais/drg177349/drg177349.pdf>. Acesso em 02
de junho de 2019. 215 LITTLE, Op. Cit. 216 CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a nomeação do terço do mestre de campo, Manoel Lopes para a
companhia de Infantaria, posto vago quando do falecimento de Luís V. S. da Costa [1697]. DOCUMENTO
original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p.
100
religiosa de Guaraíras era localizada no litoral da Capitania do Rio Grande, e, nessa ocasião,
propôs-se o confronto entre os 250 índios dessa localidade e os índios sitiados no “meio da
capitania”, possivelmente referindo-se aos grupos étnicos presentes na passagem para o sertão.
Nesse sentido, compreende-se a resistência adaptativa indígena também presente na aliança
estabelecida com os “250 homens das Guaraíras” e os portugueses, que para além de se
manterem circunscritos pela missão religiosa, lutaram a favor da Coroa portuguesa e contra os
índios, como um claro exemplo de negociação e agenciamento.
Durante a Guerra dos Bárbaros, fica evidente esse choque entre diferentes grupos
sociais e o estabelecimento de simultâneos e sobrepostos processos de territorialização e
desterritorialização. Assim, em contextos de conflitos entre sociedades distintas no momento
de disputas pela posse das terras é gerada a desterritorialização dos grupos indígenas, até então
presentes no território. Através da invasão às terras desses grupos, a defesa pelo território
pareceu ser um elemento recorrente entre eles, gerando uma nova conduta territorial baseada
na proteção ou na territorialização de outro espaço.
3.3 – Simultâneos e sobrepostos processos de territorialização e desterritorialização no
sertão do Açu
Ao detalhar o conflito que teve como um dos palcos principais o sertão do Açu, Luís
da Câmara Cascudo, apesar de inicialmente atribuir a causa dele aos índios e a sua ferocidade
comentando acerca dos assaltos cometidos aos currais de gado e aos moradores daquela área,
munidos de mosquetes e armas tradicionais, faz um adendo ao tratar dos interesses dos
conquistadores. Cascudo ressalta que pelo fato de as cartas régias proibirem a escravidão
deliberada dos índios, os conquistadores ludibriavam a lei com “fórmulas jurídicas e
capciosas”217, que era o apresamento de índios em guerras que se diziam ser justas para
consequente escravização. Assim, na intenção de remediarem a escassez de mão de obra,
“excitavam, riscavam, estimulavam o indígena até que perdesse a calma e atacasse”218. Embora
Cascudo tenha pontuado esse caráter da guerra justa e da artimanha dos colonos, ele terminou
por se focar apenas na questão da necessidade da mão de obra quando, na verdade, o interesse
276. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro:
7Letras, 2010, p. 390. 217 CASCUDO, Op. Cit., p. 79. 218 Idem.
101
na tomada de terras dos índios também representou um fator decisivo para a incidência da
guerra por se pretender desenvolver o criatório de fazenda de gado e o complexo pastoril.
O início dos conflitos no sertão do Açu, por volta de fevereiro de 1687, foi marcado
quando os índios Janduís teriam matado 46 vaqueiros. No entanto, um parente desses índios
teria sido assassinado por soldados, anteriormente. Se comparados, o número de apenas um
índio morto frente aos 46 vaqueiros, pode-se parecer desproporcional e impressionante, por isso
precisaria se levar em consideração que nesse caso, talvez não se tratasse de um membro
qualquer do grupo indígena que tivera sido assassinado, mas possivelmente uma liderança
daquele povo. Contudo, por motivo de ausência de mais detalhes oriundos da fonte, não se pode
afirmar categoricamente quem de fato era esse parente dos Janduís, o que se sabe é que a
retaliação da Coroa portuguesa diante do ocorrido já estava confabulada na Consulta do
Conselho Ultramarino. Sugeriu-se por parte do Conselho que, caso não se destruísse totalmente
o índio na guerra ou os reduzisse à paz, eles continuariam com repetidos assaltos. Dito de outro
modo, as alternativas propostas para os índios limitavam-se entre a guerra ou a redução.219
Nessa consulta, o caráter da guerra, além de corresponder com o esperado para uma
guerra justa com relação ao apresamento e cativeiro, determinou também a destruição total dos
índios ditos tapuias. Pelas décadas seguintes, continuou-se a combater os índios, fosse por meio
da possibilidade legítima de uma guerra justa ou pela sua redução. Tendo em vista as amplas
discussões que recentemente foram desenvolvidas acerca da Guerra no Açu, será privilegiado,
neste momento, um diálogo entre os documentos analisados e uma bibliografia atual que
evidencie possíveis estratégias de que os índios valeram-se direta ou indiretamente da guerra
justa. Destarte, a guerra do Açu e Piranhas contra os índios tapuias contou com gente experiente
e versada na espécie de guerra regular220, segundo o procurador dos Paulistas Bento Sorriel
Camiglio221.
219 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre carta do capitão-mor do Rio Grande do Norte,
Pascoal Gonçalves de Carvalho, acerca das hostilidades que os índios tapuias Janduí faziam na capitania. AHU-
RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 27 (1688, Fevereiro, 6, Lisboa). 220 Cf. ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas pagas e ordenanças: perfil social dos militares da capitania do Rio Grande
(séculos XVII-XIX). 2019. 235f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019. 221 Condições que os paulistas do terço de Infantaria de que é mestre de campo Domingos Jorge Velho pede que
se lhe concedam para poder continuar nos Palmares [1694]. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p. 212-221. In: GOMES, Flávio (org.).
Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. p. 332-337.
102
Dentre as folhas de serviços de pessoas que se candidataram ao posto de capitão de
infantaria na praça de Pernambuco222, em maio de 1698, destaca-se a de Manoel da Rocha Lima
em meio à consulta do Conselho Ultramarino que, além de ter servido como soldado na Guerra
dos Palmares, teria servido também no Açu. Ao discorrer sobre sua atuação e a de mais de 200
homens, em 1689, por terem sido mandados pelo governador de Pernambuco, Antônio Luis
Gonçalves, comentava-se que a perseguição contra os índios Janduís começou na Ribeira do
Açu, avançando pela Ribeira do Piató, travessia do rio Paneminha, Panema Grande, Ribeira de
Mossoró até à Lagoa do Apodi, no decurso de cinco meses, trajeto destacado em vermelho no
Mapa 4. Segundo o relato, o resultado dessa empreitada foi a morte de quatros índios, além do
principal Jacaré-açu, e o aprisionamento de suas mulheres e filhos.
Mapa 4 – Trajeto de perseguição contra os índios Janduís.
Fonte: Editado pelo autor com base em Silva (2015)223.
222 Consulta do Conselho Ultramarino de 22 de maio de 1698, sobre a nomeação de pessoas para o posto de capitão
de infantaria que vagou na praça de Pernambuco pela promoção de Manoel Pinto ao posto de ajudante de tentente
[1698]. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado
por Ernesto Ennes, p. 297-301. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc.
XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. p. 425-428. 223 SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia: terras, homens e relações de poder na territorialização do
Assú colonial (1680-1720). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Gtande do Norte,
Natal-RN, 2015, p. 32.
103
Como comentado anteriormente, em março de 1688, a ordem do Governador Geral
Mathias da Cunha era de que o paulista Domingos Jorge Velho deixasse a ida para os Palmares,
e partisse rumo à Ribeira do Açu, a fim de combater os índios. Mathias da Cunha esperava não
apenas que se degolassem os “bárbaros”, mas também “a utilidade dos que aprisionarem,
porque por a guerra ser justa resolvi em Conselho de Estado, que para isso se fez, que fossem
cativos todos os bárbaros que nela se aprisionarem na forma do Regimento de Sua Majestade
de 611”224.
Pedro Carrilho, anos depois, escreveu ao rei dando conta da guerra ofensiva ou
defensiva que estava se sucedendo na Ribeira do Açu e Jaguaribe contra o “gentio bárbaro de
Corso: jandois, urius, piacus, caretius, ycos e outros”225. Nessa carta, logo de início deixava-se
claro as perdas e os danos que os moradores enfrentaram em virtude dos roubos e mortes que
os índios estariam realizando. No intuito de reforçar ao rei o caráter belicoso dos índios,
Carrilho propôs dissertar primeiro sobre quem eram “estes bárbaros homens ou homens
bárbaros”226, afirmando que eles não tinham fé, lei, nem piedade.
Contudo, a sua descrição a respeito dos índios não se limitou apenas a defini-los no
âmbito das guerras, adentrou também aos costumes e à religiosidade deles, por exemplo.
Detalhou-se a crença que os índios tinham nos feiticeiros e agoureiros, sem os quais não faziam
nada antes de solicitar informações sobre o futuro. Além disso, eles tinham uma relação
profícua com a natureza, a exemplo da lua, na qual se orientavam para contar o tempo, do canto
das aves e grunhir dos bichos que inspiravam os seus agouros e da alimentação baseada em
raízes e frutas. Quanto aos seus costumes, destacaram-se os furos que realizavam pelo corpo
desde pequenos, assim como os exercícios, a luta, as corridas, os saltos e a nudez. Sobre a
questão da moradia, reforçava-se a ideia de serem realmente índios do corso, pois se afirmou
que eles eram espíritos ambulantes que andam pelos montes e vales, sem casas, aldeias, jazigo
ou lugar certo para dormir.
Após as quatro primeiras folhas da carta dedicadas aos detalhes expostos acima, Pedro
Carrilho retoma os adjetivos que categorizam esses índios como ferozes, comparando-os a
animais. Para ele, os índios eram brutos e irracionais pelo fato de comerem uns aos outros, seres
da mesma espécie. Consequentemente, para além das ações empreendidas na guerra, pontuou-
224 Carta para o capitão-mor Domingos Jorge Velho sobre partir com a gente que tiver sobre os bárbaros do Rio
Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10. p. 293-295. 225 ANDRADE, Pedro Carrilho de. Memória sobre os índios do Brazil. Revista do IHGRN. Vol. 7, nº 1 e 2,
1909. 226 Idem.
104
se a antropofagia como elemento que reforçasse o estado de barbárie presente nos índios. Dessa
maneira, o cerne principal da carta girava em torno de descrevê-los de modo a dar conhecimento
ao rei da figura de um índio que naturalmente mereceria a guerra. Assim, a guerra seria
considerada justa pois todos os aspectos descritos, desde a religião até a alimentação, colaboram
para estigmatizar a imagem de animalidade e brutalidade.
Com a finalidade de aclarar a visão do rei, tendendo mais para a tomada de decisão de
se fazer e continuar a guerra do que se manter a paz com os índios, Carrilho começou a
apresentar casos em que eles estariam de pazes feitas e não teriam sido leais. A exemplo dos
Paiacus, citou-se o ocorrido de quando teriam matado um religioso que ia do Açu para o
Jaguaribe, especificamente no caminho do Apodi. Já os Janduís levantaram-se nas Ribeiras do
Açu, Mossoró e Apodi, entre 1687 e 1688, matando e queimando tudo pela frente. Em ambas
as situações, os índios teriam realizado pazes com os portugueses previamente. No entanto, em
determinado momento, voltaram atrás e realizaram ataques. Destarte, conformou-se a ideia de
vulnerabilidade e inconstância dos índios com relação às leis e acordos estabelecidos, mais um
atributo negativo que corroborava para não se firmar acordos com eles, mas impelir a guerra
justa.
A respeito da guerra e da ação das autoridades, Carrilho comentou do investimento
que se fizera para que as infantarias pudessem assistir a Capitania do Rio Grande mesmo com
a dificuldade que se tinha pelo fato de a guerra dos índios ser toda de ciladas e assaltos, como
um raio que passa. Ainda segundo Carrilho, os índios eram sabidos pois, ao perceberem alguma
movimentação que indicasse um confronto, eles entravam nas missões para se protegerem e
evitar a guerra justa quando, na verdade, a Igreja não deveria protegê-los, pois se tratavam de
hereges e tiranos, de acordo com sua visão. Nesse caso, Pedro Carrilho, assim como a grande
maioria dos colonos e proprietários de terras, se posicionou contrário à proteção concedida aos
índios nas missões. Os índios, por sua vez, valendo-se da prerrogativa da paz nesses espaços,
costumavam se acolherem a fim de refugiarem-se e livrarem-se dos conflitos, característica que
também conforma uma face da resistência adaptativa.
Na tentativa de solicitar medidas enérgicas em prol do socorro da Capitania do Rio
Grande e, especificamente, o sertão do Açu, Pedro Carrilho não poupou o uso de atribuições
negativas aos índios, contribuindo para o argumento da destruição deles, tendo em vista serem
equiparados a animais. A antropofagia, por exemplo, realizada muitas vezes de maneira
ritualística por parte dos índios quando capturavam um inimigo na guerra, passava
incompreendida pelo olhar dos colonos e se tornava uma razão de intervenção das autoridades.
105
Tzvetan Todorov, ao analisar o comportamento dos colonos espanhóis na convivência
com os índios, apontava justamente para essa falta de compreensão em suas relações. Não se
havia um interesse em falar com o outro para conhecê-lo, bastava apenas falar dele. Isto é, “se
a compreensão não for acompanhada de um reconhecimento pleno do outro como sujeito, então
essa compreensão corre o risco de ser utilizada com vista à exploração, ao ‘tomar’; o saber será
subordinado ao poder”227. Desse modo, o vício pelo poder de subjugar e dominar o outro era
acompanhado de agressividade e se materializava nos massacres.
No caso dos índios do Rio Grande não foi diferente: reconhece-se a proposta dos
conquistadores em animalizar ou desumanizar os índios por razões não declaradas, enquanto a
conformação da guerra justa mostrou-se como um regulador da escravidão e da tomada de terras
no Açu, assim ilustrando a materialização desse vício pelo poder de dominação. É notório, na
grande maioria dos relatos coloniais, a falta de esforços para reconhecer a alteridade ao índio.
Antes soava mais fácil a utilização da força e da violência como maneira de se tratar aquele a
quem não se pretendia tomar muito conhecimento, apenas explorar. Sobre o poder de castigar
e premiar os índios quando necessário, por exemplo, Pedro Carrilho foi um dos que sugeriu a
escolha de um administrador que seria responsável por eles na Ribeira do Açu pois, para ele,
ninguém era bom se não fosse por meio do temor.
Confiando no temor como ferramenta de sujeição do outro, Carrilho baseou-se em
trechos da Bíblia, no direito natural e em doutores, como São Tomás de Aquino, para elaborar
sua arguição e afirmar as leis régias que garantiam o cativeiro àqueles que movessem ou
provocassem guerra. Assim, de acordo com seu relato, poderia ser justa e lícita a guerra que
visasse conservar o bem comum; aquela que recuperasse bens injustamente usurpados; e, por
último, que defendesse o inocente. Para ele, todas as condições anteriores estavam sendo
violadas pelos índios da Ribeira do Açu e, por isso, tinha-se a necessidade de incidência da
guerra e do cativeiro. Ideias, inclusive, similares às de Juan Ginés Sepúlveda expressas no
debate de Valladolid como causas motivadoras de uma guerra justa.
No mesmo viés de desumanização do índio com o pretexto de reduzi-lo, Domingos
Jorge Velho o fez ao narrar as ações realizadas pelos paulistas. Domingos Jorge Velho escreveu
que na “conquista do gentio brabo deste vastíssimo sertão”, cativá-lo não seria o objetivo deles,
mas, antes, adquirir “o Tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para reduzi-lo ao
227 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1939, p. 128.
106
conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade a associação racional”228. Jorge
Velho tentou mascarar a real intenção dos paulistas com relação ao cativeiro, sendo uma das
ambições deles. Desse modo, seu relato não corresponderia totalmente à realidade, tanto que há
diversos momentos em que o rei ou o governador de Pernambuco solicitavam a liberdade de
índios que tinham sido apresados por eles em guerras que, de início, pareciam ser justas, mas,
após devassarem o caso, tratavam-se de guerras injustas. Contudo, o que se percebe em suas
opiniões, além da desumanização do índio, é uma estratégia de manipulação, tratando o
cativeiro de forma velada ao utilizar sinônimos que não diretamente caracterizam o cativeiro,
como “adquirir” e “reduzir” os índios, para depois se servirem deles nas lavouras. Os dois
termos, na verdade, corroboraram a ideia de cativeiro dos índios, apesar de Jorge Velho
continuar em estado de negação sobre essa conduta dos paulistas, pois, para ele, esses atos
estariam bem longe de cativá-los, “antes se lhes faz um irremunerável serviço em ensiná-los a
saberem lavrar, plantar, colher e trabalhar para seu sustento”229.
Portanto, não sendo suficiente tratar os índios tais quais animais ou bestialidades, haja
vista comerem carne humana, Jorge Velho propôs uma suavização de como ocorria a guerra
justa e o consequente cativeiro. De maneira eufemística, Jorge Velho normatizava a forma de
se “adquirir” os índios, como se fosse um bem semovente, tais quais os escravos ou animais de
tração, disponível e necessitado de aperfeiçoamento através da instrução de modo a torná-los
“racionais” e úteis para suas lavouras. Como Fátima Martins Lopes já tinha apontado, a prática
da guerra justa “continuou a alimentar um constante mercado de índios, para servirem aos
colonos como escravos, e à colonização nas guerras contra outros índios”230. Portanto, mesmo
com a proibição da escravidão dos índios, os resgates e os prisioneiros de guerra supriam a
demanda de mão de obra dos colonos através do cativeiro feito com licença oficial.
Ao combater o gentio bárbaro, as terras do sertão do Açu avolumavam-se como
possibilidades de recompensas aos envolvidos nos conflitos favoráveis à Coroa portuguesa. Em
2 de julho de 1689, os oficiais do Senado da Câmara de Natal assinaram uma carta escrita pelo
tenente-coronel João de Barros Coutinho, a qual foi remetida a Lisboa por meio de um
representante, o capitão Gonçalo da Costa Faleiro. Nesse momento, eles também davam
228 Carta autografada de Domingos Jorge Velho, escrita do Outeiro do Barriga, campanha dos Palmares em que
narra os trabalhos e sacrifícios que passou e acompanha a exposição de Bento Sorriel Camiglio procurador dos
Paulistas [1694]. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio
de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 342. 229 Idem. 230 LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas – índios, colonos e missionários na colonização do Rio Grande
do Norte. 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, p. 331.
107
informações sobre o estado da Capitania do Rio Grande e de seus moradores, além da urgência
de socorro por meio da ação dos paulistas, dos índios de Pernambuco e dos pretos de Henrique
Dias, os quais poderiam ser capazes de “destruir e arruinar todo o gentio, ficando estes sertões
livres para se colonizarem”231. Segundo Júlio César de Alencar, o interesse dos camarários na
integração do sertão e consequente colonização era notório pela proporção com que davam ao
combate aos índios, evidente tanto no momento que solicitavam a participação de tropas de
outras partes da colônia quanto no extenso volume de documentação produzida pela Câmara de
Natal.232
Solicitava-se, na carta emitida pelos camarários em 1689, um reforço para a fortaleza
dos Reis Magos e, mais ainda, o estabelecimento de uma fortificação na Ribeira do Açu com
pelo menos trinta homens que pudessem garantir a segurança dos moradores locais. Sobre o
sertão, comentaram que
Nos limites desta capitania se tem descoberto mais de trezentas léguas de terra
pela costa do mar e para o sertão, todas estas mui capazes para criar gados e
fazer muitas lavouras, todas estas dadas a quem as quiser pedir das mais
capitanias e desta; há sujeito que possui vinte e trinta léguas, sem ter cabedal
para as povoar.233
Logo, as terras do sertão do Açu foram colocadas à disposição dos colonos que tivessem
interesse em povoá-la – sem se levar em consideração os índios daquela área nem sequer ser
necessário cabedal para tal, contradizendo o que se esperava quando eram concedidas
sesmarias. Desse mesmo sertão, os camarários do Senado da Câmara de Natal diziam haver
uma confusão justamente na demarcação e no domínio possivelmente porque o governo e a
justiça eram distantes de lá. Porém, mesmo com as incertezas que permeavam o pouco
conhecido sertão, foi sugerido pelos camarários que, ao fim da guerra contra os bárbaros e
derramamento de sangue continuado com as armas em mãos, fossem dadas as terras como
forma de premiação àqueles que lutassem ao lado dos portugueses.
A respeito da criação de um presídio no Açu, Bernardo Vieira de Melo, então capitão-
mor do Rio Grande, escreveu, ainda em 1697, ao rei D. Pedro II comunicando da decisão
tomada junta aos oficiais da Câmara e dos moradores de Natal, favoráveis à construção desse
231 MEMORIAL que a Câmara de Natal escreveu para ser levado à Sua Majestade. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65,
Livro 2, fls. 129, 02/07/1689.. 232 ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a Câmara de Natal e a Guerra
dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal-RN, 2017, p. 75-76. 233 MEMORIAL que a Câmara de Natal escreveu para ser levado à Sua Majestade. IHGRN, LCPSCN, Caixa 65,
Livro 2, fls. 129, 02/07/1689.
108
presídio distante 40 léguas do sertão do Açu com o objetivo de “refrear qualquer impulso dos
Bárbaros”.234 Alegando falta de recursos da Real Fazenda, o capitão-mor pediu aos que estavam
de acordo com o estabelecimento do presídio que colaborassem com farinhas. Logo, os
envolvidos concordaram com a concessão do auxílio e se comprometeram a sustentar os que
iriam assistir o presídio com as farinhas durante seis meses enquanto se aguardava uma resposta
do Governador-geral e/ou do rei.
A construção de um presídio no sertão do Açu colaborava para o novo processo de
territorialização, impulsionado pela Coroa portuguesa, visando uma expansão territorial do seu
poder de modo a tomar controle daquela área, haja vista que os próprios camarários, desde
1689, já tinham comentado que se tratava de um espaço distante do domínio e da justiça. O
desejo pela fixação do poder no espaço do sertão também foi endossado na gestão do capitão-
mor Agostinho César de Andrade quando, em 1690, este tomou a medida de conservar na
Ribeira do Açu dois quarteis com 150 homens, 40 infantes e alguns índios domésticos235. Assim
como na gestão seguinte, de Sebastião Pimentel, em 4 de agosto de 1693, também se propôs
não apenas dar assistência e socorro advindos de dois arraias de paulistas no Açu, mas
incentivar o povoamento dessa área, a qual ele se obrigava “a deixar tudo povoado, e que de
outra sorte, as campanhas são abertas”236, possivelmente fazendo referência às vastas
possibilidades de campos e terras a serem povoadas, haja vista esse pronunciamento ter sido
dado nos anos iniciais dos conflitos na área do Açu, ainda ocupada majoritariamente por povos
indígenas.
No processo de dominação do sertão, os índios tinham opções de lugar pré-definidos
onde se poderiam encaixar, de acordo com a concepção da Coroa: o cativeiro, mediante a guerra
justa; as missões, depois de reduzidos; ou “outros sertões remotos em que vivam sem prejudicar
234 CARTA do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira de Melo, ao rei [D. Pedro II] sobre decisão
dos oficiais da Câmara e moradores de Natal de se fazer um presídio no sertão do Açu, que seria sustentado por
seis meses pelas farinhas dadas pelos moradores. AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 42 (1697, Abril, 25,
Natal). 235 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre carta do capitão-mor do Rio Grande do Norte,
Agostinho César de Andrade, acerca da destruição da capitania com os ataques dos tapuias e sobre a falta de
mantimentos para os soldados aquartelados na Ribeira do Açu, o que os obrigava a abandonar o posto. AHU-RN,
Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 31 (1690, Novembro, 10, Lisboa). 236 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre diversas cartas recebidas acerca do estado de ruínas
da Capitania do Rio Grande do Norte e da Fortaleza dos Reis Magos por causa da Guerra dos Bárbaros. Anexo:
aviso, parecer do Conselho Ultramarino (minuta); cartas do ouvidor-geral da Paraíba, Diogo Rangel Castel Branco,
do capitão-mor da capitania do Rio Grande do Norte, Sebastião Pimentel, dos oficiais da Câmara de Natal e do
governador de São Tomé, Ambrósio Pereira de Berredo. AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 35 (1693,
Novembro, 23, Lisboa).
109
os moradores”237. Dom João de Lencastro, à época em que era Governador Geral do Brasil,
especificamente em junho de 1694, escreveu uma carta ao Governador de Pernambuco, com
cópia a Agostinho Cesar de Andrade, informando a proposta de se criar novas povoações de
aldeias no Açu, Jaguaribe e Piranhas. Nesse contexto, portanto, o Governador-geral afirmou
que, diante da não aceitação da redução através de uma “paz fixa” por parte dos índios e da
impossibilidade de colaboração no povoamento daquelas áreas, pelas forças das armas eles a
aceitassem ou buscassem os “outros sertões remotos”. Isto posto, os índios deveriam se deslocar
para áreas além do povoamento do sertão do Açu, sendo destinados a outros espaços que não
os seus.
Os índios do sertão do Açu, já associados aqui como “barreiras humanas” ou
“fronteiras”, quando se colocavam contrários ao projeto expansionista da Coroa como
resistência, eram impelidos pelas armas lusas a fim de “limpar” o território e montar as bases
de fixação no local. A guerra justa, como se vem percebendo até o momento, foi uma das
maneiras mais eficazes de se alcançar esse intento no Açu pois unia a legitimidade dada pelas
leis oriundas do Rei com o cumprimento do propósito de espoliação dos espaços desejados, ou
seja, do modo considerado lícito e justo diante da Coroa, os colonos e os moradores do Rio
Grande tiveram em suas mãos a possibilidade de avançar com a colonização para os sertões e,
se necessário, retirar do caminho qualquer impedimento.
Logo que Domingos Jorge Velho e os paulistas chegaram “nas províncias das Piranhas
e Açu”, teriam encontrado o capitão-mor daquela guerra, Constantino de Oliveira, preso num
cerco montado pelos índios, por volta de 1698. Em forma de represália, os paulistas
desestruturam o cerco e puseram em fuga o grupo indígena. No entanto, chegaram a matar
“grande quantidade deles até chegar a uma sua grande povoação, que destruiu e queimou,
degolando os quantos achou nela: tirando com isso aquele grande obstáculo que impedia a
passagem aos gados [...] para Pernambuco”238 (grifo meu), deixando-se clara a representação
dos índios como obstáculos que precisavam ser ultrapassados a fim de garantir o êxito da
colonização.
237 Carta para o governador de Pernambuco [1694]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. 38, pp.
314-315. 238 Requerimento que – aos pés de Vossa Majestade humildemente prostrado – faz em seu nome e nome de todos
os oficiais e soldados do terço de Infantaria São Paulista de que é mestre de campo, Domingos Jorge Velho, que,
atualmente, serve à Vossa Majestade na guerra dos Palmares contra os negros rebelados nas capitanias de
Pernambuco. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Portugal, Lisboa) transcrito e
publicado por Ernesto Ennes, pp. 316-344. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e
fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 408.
110
Maria Hilda Paraíso categorizou essa relação que envolvia a guerra em uma ponta e a
escravidão em outra como “círculo de ação-reação-repressão”239 em seu estudo envolvendo a
Bahia na década de 1650. Esse círculo “girava”, inicialmente, quando a ação de interiorização
dos colonos era posta em prática. Logo depois, os índios responderiam ao avanço de forma
bélica na tentativa de impedi-lo e, por fim, o poder lusitano articularia uma forma de reprimi-
los. Vale ressaltar que, apesar de ilustrar de maneira mais prática como uma espécie de ciclo,
essa visão pode ser um pouco reducionista do ponto de vista da História Indígena ao pensar-se
que termina por limitar os acontecimentos que envolviam os índios – caso venha a se tratar esse
ciclo de maneira engessada e generalizada pelo fato de ser um movimento iniciado pelos
conquistadores e findado pelos índios.
Tendo em vista que nos meandros desse ciclo poderiam surgir diversas oportunidades
de resistência dos índios, algumas já mencionadas aqui, como os casos de índios adentrando as
missões pois sabiam que lá poderiam livrar-se da guerra; ou de acordos de paz estabelecidos
com os portugueses240, por exemplo, as adaptações e reflexões indígenas assemelham-se ao que
Steve Stern apresentou em relação aos desejos dos espanhóis no momento da conquista. Nesse
sentido, “quando a adaptação e a reflexão indígena saíram à luz, as utopias se desvaneceram”241,
sendo essas utopias baseadas nos anseios que os espanhóis tinham de enriquecer, ascender
socialmente ou cristianizar os índios mediante a colonização.
Dessa maneira, por mais que os colonos tivessem planos traçados ou arquitetassem suas
formas de repressão, as adaptações dos índios poderiam sobrepor-se e surpreender o que se
tinha idealizado. Com isso, a ideia de se tratar a guerra e a escravidão em um ciclo fechado
incorre o risco de reduzir os movimentos indígenas e tende a tratá-los de modo vulgar. Os
tratados de paz dos Arius pequenos e dos Janduís na Ribeira do Açu242, por exemplo, são
ilustrações de reflexão e adaptação dos índios visto que se valeram de um aparato legal dos
239 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. De como se obter mão-de-obra indígena na Bahia entre os séculos XVI e
XVII. Revista de História, São Paulo, n. 119-131, p. 179-208, ago./dez. 1993; ago./dez. 1994. 240 Cf.: ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a Câmara de Natal e a
Guerra dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal-RN, 2017. p. 113. 241 Versão original: “Cuando la adaptación y la reflexión indígena salió a luz, las utopias se desvanecieron”. Cf.:
STERN, Steve J. Paradigmas de la conquista: historia, historiografía y política. Boletín del Instituto de História
Argentina y Americana “Dr. E. Ravignami”. Tercera serie, núm. 6, 2do. Semestre de 1992, p. 27. 242 Carta do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira de Melo, ao rei [D. Pedro II] sobre decisão dos
oficiais da Câmara e moradores de Natal de se fazer um presídio no sertão do Açu, que seria sustentado por seis
meses pelas farinhas dadas pelos moradores. Anexo: termo de obrigação entre os oficiais da Câmara de Natal e os
moradores (cópia); tratado de paz com os tapuias Jandui, da Ribeira do Açu (cópia); certidão do rendimento dos
contratos do Rio Grande do Norte, de 1695 a 1697. AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 42 (1697, Abril, 25,
Natal).
111
próprios colonizadores para evitarem a continuidade dos confrontos. O acordo de paz com o
“Rei Canindé”, em 1692, foi tema de uma consulta do Conselho Ultramarino no ano seguinte.
Como era de se esperar, pelo fato de repetidas vezes depreciarem a imagem dos índios,
comentou-se da volatilidade deles no que se tratava de manter sua palavra, dizendo serem eles
muito inconstantes e, por isso, o Conselho já deixava determinado que a qualquer momento que
a paz fosse descumprida, devia-se fazer, após a aprovação da junta das principais pessoas
declaradas no regimento243, a guerra defensiva.
No entanto, a ambição por aprisionar os índios tornou-se tão grande ao ponto de os
próprios moradores tramarem junto com os capitães do Terço dos Paulistas para incitar um
conflito entre os índios Paiacu e os Panucuguassu, em 1710, que visasse capturar as mulheres
e seus filhos. Mesmo com os Panucuguassu já tendo aceito a redução diante da ameaça de
guerra e do cativeiro pelos paulistas e convivendo no arraial determinado pelo mestre-de-campo
Manuel Álvares Navarro, alguns oficiais do terço aliaram-se aos moradores e com os Paiacus
do Apodi para matarem os Panucuguassu e que eles pudessem ficar apenas com as mulheres e
filhos. A trama não deu certo somente porque o mestre-de-campo tinha sido avisado por um
soldado, que teve tempo de informar aos Panucuguassu para que eles fugissem antes244. Tal
atitude de Navarro levanta dúvida quanto à sua motivação e o real interesse por trás dela, tendo
em vista ele se tratar de um dos principais responsáveis por comandar diversas tropas de ataque
aos índios245. A seguir, no Mapa 5, é possível identificar algumas das etnias indígenas presentes
na Capitania do Rio Grande e que foram apresentadas no mapa etno-histórico produzido por
Curt Nimuendaju em 1944.
243 Consulta do Conselho Ultramarino sobre o que escreve o governador-geral acerca das pazes que lhe mandarão
pedir os Tapuias dos campos do Açu em nome do Rei Canindé [1693]. Documento original no Arquivo Histórico
Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p. 472-474. In: GOMES, Flávio
(org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 327-328. 244 Carta do [sargento-mor do Terço dos Paulistas] José de Morais Navarro ao rei [D. João V] sobre uma trama
entre capitães do Terço dos Paulistas e moradores da Ribeira do Açu para incitar os índios Paiacu contra os
“Panucuguassu”, aldeados pelo mestre-de-campo Manuel Álvares de Novais Navarro, a fim de conseguirem
aprisionar as suas mulheres e filhos. AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 65 (1710, Maio, 27, Açu). 245 DIAS, Patrícia de Oliveira. Gentes de conquista: famílias, poder e pecuária na Ribeira do Apodi-Mossoró
(1676-1725). Anais Eletrônicos do XVII Encontro Estadual de História ANPUH-PB. v. 17, n. 1, 2016, p. 436-
446.
112
Mapa 5 – Recorte do mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju referente à Capitania do Rio Grande (1944).
Fonte: Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes por Curt Nimuendajú, 1944246.
Apesar desse último caso referir-se ao Apodi, a maioria dos casos de guerra justa e
cativeiro dos índios ocorriam pelo sertão do Açu. Em uma carta régia, de 1703, destinada aos
oficiais da Câmara de Natal, tratando dos índios Janduís, recomenda-se reunir a Junta e
“achando-se justificada, faça-se a guerra”. No mesmo documento, comenta-se ainda que no
trato com os índios tem-se experimentado a pouca fidelidade deles. Infere-se, então, que
possivelmente por esse motivo, baseado na desconfiança dos laços estabelecidos com os índios,
deveria discutir-se sobre a incidência de uma guerra justa247.
Em outro documento, uma portaria do governador de Pernambuco ao Desembargador
geral, fez uma denúncia do mau procedimento executado pelos oficiais do Terço dos Paulistas
no que se tratava do cativeiro dos índios do Açu. Dez anos após a data da fonte anterior,
especificamente em 03 de agosto de 1713, sobre a Guerra do Açu, o governador de Pernambuco
expôs a contradição que se estava fazendo com relação ao “capítulo 82 do Regimento das
Fronteiras: nenhum oficial de guerra, soldado e fazenda comprará por si nem por interposta
246 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Mapa%20Nimuendaju%202017%2
0versão%20Jorge%2004092017.pdf>. Acesso em: 16 de maio de 2020. 247 Carta régia aos oficiais da Câmara de Natal sobre se fazer junta acerca da guerra contra os índios Janduís. AHU,
Cd. 257 f. 121v e 122v.
113
pessoa coisa alguma das presas que se tomarem”248. Segundo o relato do governador, os oficiais
da infantaria tinham comprado “presas” tomadas na capitania do Rio Grande, acarretando nas
penas de privação dos cargos e no pagamento dobrado do valor dado pelo índio cativo à
Fazenda.
Através dessa fonte não se pôde inferir se houve o cumprimento de tais penalidades
aos oficiais do Terço dos Paulistas, contudo, o alerta foi dado por parte do governador de
Pernambuco diante do descumprimento de regras que diziam respeito ao procedimento com os
índios cativos da Guerra no Açu. A esse respeito, Lopes assinala que os paulistas que já tinham
ampla experiência com a guerra e com o apresamento de índios na região do sul colonial viram
uma boa oportunidade nas guerras justas do Rio Grande, e em específico no Açu, por garantir
a possibilidade do envio de presas para venda nas cidades249.
Logo, a incidência da guerra justa no sertão do Açu serviu para balizar entre o cativeiro
e a venda de índios, o que seria mais conveniente para os conquistadores e moradores naquele
momento. Dessa maneira, decidir pela justiça ou injustiça da guerra contra os grupos indígenas
acarretava não apenas em consequências aos próprios índios, como também em vantagens aos
conquistadores pois, além da espoliação do território do sertão do Açu, objetivo que parece se
sobrepor nas ações de guerra, era possível garantir mão de obra cativa e, em algumas situações,
a venda dos índios, como feita pelos paulistas. Assim, o sertão do Açu representou um local de
ambição e disputa de poder cuja finalidade da Coroa se apoiava no domínio dos homens e das
terras por meio da apropriação dos espaços.
***
Neste capítulo, pretendeu-se partir do macro para adentrar à realidade do micro, ou seja,
no primeiro momento foram apresentadas as teias que conectavam algumas das Capitanias do
Norte, cujo fio condutor era o empreendimento da guerra justa e as autoridades e instituições
que orbitavam em torno de sua execução nesses espaços. Feito isso, caminhou-se em direção a
uma análise discursiva dos documentos que tratam da Guerra dos Bárbaros, apontando as
248 Portaria do gov. de PE ao desembargador geral ouvidor e auditor geral para proceder contra os oficiais da
infantaria do 3 º do Açu. BNL PBA Cd. 115 p. 184/185. 249 LOPES, Op. Cit., p. 289-290.
114
discussões que permeavam a justiça ou injustiça da guerra, a legalidade do cativeiro e as ações
de conquista dos espaços pretendidos pela Coroa Portuguesa.
Após estabelecer o macro, através da análise da Guerra dos Bárbaros, propôs-se reduzir
a lente de observação para enxergar em específico as peculiaridades da incidência da guerra
justa no sertão do Açu. Por meio disso, perceberam-se os excessos cometidos, fosse pelos
capitães-mores, governadores ou mesmo oficiais de infantaria, assim como o jogo de interesses
baseado na justificativa das guerras para que pudessem gerar benefícios próprios às autoridades
ou à Coroa Portuguesa de modo a ampliar seu espaço de poder para os sertões, até então
“cercados” pelos índios.
Por outro lado, como se viu, os índios aceitaram acordos de paz, refugiaram-se nas
aldeias cristãs ou fugiram com destino a outros espaços onde pudessem ser reterritorializados.
Logo, nota-se que ora recorrendo às possibilidades disponibilizadas pela Coroa Portuguesa, ora
se valendo dos meios mais próximos ao seu alcance, os índios agiram de modo a exercer as
alternativas viáveis pretendendo resistir diante das investidas das autoridades coloniais e
moradores locais. Portanto, as formas de resistência adaptativa utilizadas pelos índios visavam
dirimir as ações que o sistema colonial os impunha, desde a proposição de uma guerra justa até
à consequente espoliação dos territórios nos sertões.
115
4 DESNATURALIZAÇÃO INDÍGENA E APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO EM
MEIO ÀS GUERRAS
No último capítulo, designou-se um momento de análise, em sua maioria, com base
nos Termos da Junta das Missões de Pernambuco, entendendo que esses documentos revelam
as estratégias discursivas referentes à guerra justa, assim como as ordens práticas da Junta
contra os índios inimigos. Assim, é possível não apenas entender a organicidade da instituição,
como também a sua relação com a justiça sobre os índios e a aplicabilidade dela na realidade
da Capitania do Rio Grande. Contudo, para iniciar a discussão, tratou-se de pensar
primeiramente nos territórios sociais – noção conceituada e discutida no próximo tópico deste
capítulo – dos índios nesse espaço colonial, na intenção de situar esse conceito de maneira
pragmática para a área do sertão do Açu, espaço até então habitado predominantemente por
índios, elencando elementos que o designam como tal.
Após discutir, inicialmente, de modo mais teórico, pretende-se abordar as razões e os
encaminhamentos tomados pelos índios quando defrontados pelas guerras justas no Rio
Grande. Apontando os acontecimentos que antecediam e que sucediam a declaração de uma
guerra justa nesse espaço, contudo, destacando os possíveis trajetos tomados pelos grupos
indígenas em meio a esse evento, fossem resistindo por meio da fuga ou sendo impelidos a um
deslocamento compulsório. Portanto, os deslocamentos dos índios, principalmente após a
chegada dos conquistadores, estavam condicionados à guerra, ora como resistência, ora como
punição. Dessa maneira, durante o processo de conquista do sertão, alguns povos sofreram com
o fenômeno da desterritorialização, que muitas vezes os levava a recorrer aos deslocamentos
espaciais durante a Guerra do Açu pois esse território foi tido como uma projeção espacial de
relações de poder, tendo em vista as sucessivas tentativas de controle e dominação da região e
de seus povos250, em específico a ribeira do Açu, área de maior foco de incidência da guerra na
Capitania.
Para encerrar as análises e reflexões estabelecidas aqui, dedicou-se a última discussão
baseada em um desdobramento dos deslocamentos compulsórios evidenciado durante o estudo
de alguns dos Termos da Junta das Missões de Pernambuco: a desnaturalização. Essa noção
começou a aparecer em alguns termos e associava essa ação ao deslocamento dos índios cativos
de guerra, motivados principalmente pelo desejo de desenraizá-los do local que estavam
250 Cf.: LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no brasil: por uma antropologia da territorialidade.
In: Anuário Antropológico/2002-2003. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 251-290.
116
estabelecidos, possivelmente a fim de distanciar os laços de sociabilidade e comunicação, que
podiam ser ameaçadoras à continuidade do processo de conquista do sertão por parte da Coroa.
4.1 – Territórios sociais indígenas
Até aqui se tem falado acerca do território e das sucessivas tentativas de apropriação
por parte dos colonos e moradores que se valiam da guerra justa, contudo, cabe, agora, pensar
exatamente que tipo de território é esse de que se pretendia tomar posse. Tendo em vista que
cada grupo da sociedade vivencia uma dada territorialidade ao seu próprio modo, conforma-se
a ideia de “conduta territorial” proposta por Paul Little, ou seja, por meio dos esforços coletivos
configura-se a conduta territorial de determinado grupo, no qual a noção de territorialidade é
percebida pragmaticamente por meio de suas ações no sentido de “ocupar, usar, controlar e se
identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
‘território’ ou homeland”251. Dessa maneira, o antropólogo termina por associar a constituição
do território ao processo histórico no qual ele está imerso, determinando que “precisa-se de uma
abordagem histórica que trate do contexto específico em que surgiu e dos contextos em que foi
definido e/ou reafirmado”252.
Tomando conhecimento do tipo de território em questão, deve-se atentar que, aqui, se
considera o território do sertão do Açu também a partir da trajetória histórica à qual esse espaço
foi submetido, principalmente no que se refere ao processo de avanço para essa área e
consequente desterritorialização dos índios através da proposição da guerra justa. Destarte, o
sertão do Açu assume a posição de um território social. Essa noção de territorialidade ligada
aos processos históricos e sociais permite perceber a expansão das fronteiras como uma história
territorial formada pelo choque entre a conduta territorial do grupo que pretende avançar com
a conduta territorial do grupo já residente naquele espaço. Logo, a conduta territorial dos índios
do Açu foi confrontada pelos colonos e moradores que se valeram da guerra justa com o intuito
de tornar aquelas terras disponíveis para os seus projetos colonizadores.
Em meio aos conflitos e à espoliação dos territórios, os povos indígenas que conviviam
nesses espaços precisavam encontrar novos destinos a serem reterritorializados e,
consequentemente, elaborar uma nova conduta territorial. Caso contrário, alimentariam o
251 LITTLE, Op. cit., p. 253. 252 Idem, p. 254.
117
desejo pelo retorno aos seus locais de origem, mesmo depois de terem sido desterritorializados,
assim como ocorreu com os Janduís. Dentre as condições de paz estabelecidas por Canindé, o
principal dos Janduís, em 1692, no tratado mencionado no capítulo anterior, solicitava-se o
reestabelecimento das terras deles no Rio Grande, as quais tinham sido perdidas durante a
guerra. O principal dos índios afirmou não só a necessidade que eles tinham de retornar, como
também a felicidade que teriam em repovoar suas terras, assim como recuperar seus currais
para que plantassem seus mantimentos e realizassem suas pescas nos rios e praias onde
geralmente o faziam253.
Através desse trecho das capitulações acordadas entre o “Rei Canindé” e o
Governador-geral, Antônio Luís Gonçalves de Câmara, consegue-se ter uma mínima noção da
relação que os Janduís estabeleceram com o seu território. Mesmo a terra sendo colocada por
eles como um bem necessário para a sua subsistência, por meio da pesca e das plantações, não
a restringiam a uma relação baseada na exploração, ao passo que não descartavam o fato de
esse retorno torná-los contentes. Essa felicidade, portanto, para além de ser vinculada ao uso da
terra, poderia ser baseada também no reestabelecimento de outros elementos da conduta
territorial deles, outrora abalada com a guerra.
Por meio das pazes que se ajustavam com os índios inimigos, é possível identificar
alguns dos elementos que comporiam a sua conduta territorial pelo fato de esses tratados
trazerem, de certa maneira, o que se poderia chamar de uma versão dos eventos mais
aproximada da ótica dos índios no momento em que eles estabeleciam suas condições para
realização das pazes. Em um registro de pazes feito com “alguns tapuias que foram da missão
da Capelinha”, localizada entre o Rio Ceará-mirim e o Rio Maxaranguape – é possível
identificá-la no Mapa 6 da página 126 –, em 28 de julho de 1713, explicitava-se que esses índios
eram cativos, mas fugiram de seus senhores e se reestabeleceram pelos sertões do Ceará-mirim,
onde estavam fazendo rancho. No documento, pôde-se inferir a resistência deles em manter as
vivências coletivas e recuperar a conduta territorial ao reterritorializarem o espaço com o rancho
253 Cópias das capitulações realizadas entre o governador-geral do Brasil Antônio Luís Gonçalves de Câmara e
Canindé, Rei dos Janduís [1692]. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal)
transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p. 422-426. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares:
histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 323.
118
e ao manterem suas trilhas “muito escuras e encobertas”, por exemplo, por mais que não
passassem do número de dez índios254.
Em outro registro de paz, quatro anos após o supracitado, dessa vez realizado com os
índios da etnia Panicuassu, no qual se discorreu sobre as condições propostas para que eles
fossem assistidos por uma missão, faz-se menção à notícia que tivera sido dada pelo governador
de Pernambuco, informando que o capitão-mor do Rio Grande, Domingos Amado, deveria
estabelecer o aldeamento desses índios em uma missão e que, para tanto, deveria determinar
um “sítio conveniente em que eles se perpetuassem e porque queriam viver sossegados com
suas pessoas e famílias, fazendo plantas e lavouras para seu sustento”255 (grifo meu). Portanto,
além das condições de se tornarem súditos da Coroa, prestarem serviço aos moradores e não
portarem armas de fogo, por exemplo, há uma certa reticência quanto ao local de agrupamento
desses índios, que lhes garantisse a plantação e a colheita, possivelmente por pretenderem a
fixação deles nesse devido espaço.
Vale salientar que a escolha de determinado território para o estabelecimento dessa
missão, apesar de no excerto acima poder levar a inferir a respeito de uma provável preocupação
com os interesses dos índios, diz mais ainda sobre o interesse dos conquistadores pois, do ponto
de vista econômico, os colonizadores eram beneficiados através da facilidade de acesso aos
índios nesses agrupamentos para serem utilizados como mão de obra, bem como a liberação de
terras anteriormente ocupadas pelos índios, visando a apropriação e a ocupação desses
espaços256. Contudo, assim como fica claro nos dois acordos de paz acima, percebe-se a
necessidade de se fazer uma escolha de um “sítio conveniente” para construção de um rancho
e de lavouras, ou seja, uma conveniência no que tangia aos índios a partir do momento que se
colocava em questão o interesse dos índios com relação a determinado sítio.
Apesar de as missões tratarem-se de um tipo de territorialização tal qual João Pacheco
de Oliveira caracteriza, por meio de uma intervenção institucional e não unicamente por meio
da iniciativa dos grupos indígenas pois, segundo o antropólogo, esse fenômeno ocorre, muitas
vezes, através de “uma intervenção da esfera política que associa [...] um conjunto de indivíduos
254 Registro de um papel de pazes que se fizeram com os tapuias ajudado delas o capitão Teodósio da Rocha. Livro
6 de Provisões do Senado da Câmara – Fl. 8v. 255 Registro de um termo de obrigação que fizeram os tapuias Panicus-Assús e condições que se lhe foram
propostas para ire assistir na missão. Livro 6 de Provisões da Câmara – Fl. 81v. 256 Cf.: LOPES, 1999, Op. Cit., p. 343-344.
119
e grupos a limites geográficos bem determinados”257, corroborando para o surgimento de uma
nova unidade sociocultural por meio de suas identidades étnicas diferenciadoras, sinais como
os da escolha de um local ideal para o estabelecimento deles reforçam a ideia que se pretende
elucidar aqui, tendo em vista que, ao decidirem pelo espaço mais adequado de acordo com o
interesse dos índios, seria possível criar um lugar que se assemelharia, de alguma maneira, ao
território social deles e permitiria reelaborar sua conduta territorial.
A conveniência na escolha do sítio mais apropriado para os índios implicava, além da
garantia de fixação por meio das plantações, na integridade de sua saúde. Na ocasião do pedido
de paz com o “Rei Canindé” em 1692, no sertão do Açu, analisado no capítulo anterior,
identificou-se por meio de uma consulta posterior o destino dele e de seu grupo. Nessa consulta,
feita por Bernardo Vieira de Melo, então capitão-mor do Rio Grande, em 1699, dava-se conta
da morte do principal Canindé e de mais sete ou oito crianças por causa de um “achaque de
maleitas”, motivado possivelmente “pelo sítio ser menos conveniente ou pela sua natureza se
não acomodar viver fora do sertão”258, tendo em vista estarem sitiados no litoral sul da Capitania
do Rio Grande259. Para indignação do capitão-mor, esses índios não tinham sido batizados
ainda, mesmo sendo assistidos espiritualmente por um clérigo chamado Manuel Serrão de
Oliveira260. Quanto aos demais índios do grupo que sobreviveram, logo se retiraram desse local,
“buscando o seu centro que é o sertão”261. Indo o capitão-mor ao encontro do restante do grupo,
conseguiu convencê-los temporariamente a se aldearem em um lugar mais próximo ao sertão
257 OLIVEIRA. João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e
fluxos culturais. Mana – Estudos de Antropologia Social, v. 4, n. 1, Rio de Janeiro, 1998, p. 56. 258 Consulta de Bernardo Vieira de Melo – da capitania do Rio Grande – em que dá conta de se haver ausentado o
gentio Canindé do sítio em que estava, e de lhe haver morrido o seu principal e sete crianças sem as batizar o
clérigo que lhes assistia [1699]. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal)
transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p. 420-421. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares:
histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 432-433. 259 Cf.: POMPA, Op. Cit., p. 284. 260 A respeito do batismo de índios no contexto da Guerra dos Bárbaros, especificamente na Capitania do Rio
Grande, Carmen Alveal e Dayane Dias analisaram 957 registros de batismos, datados entre 1681 e 1714. Desses,
36% (342) correspondiam a escravos, enquanto 64% (615) eram de pessoas livres, nesse caso tanto negros quanto
indígenas. Especificamente sobre os escravos indígenas, o número era de 79, sendo 32 do sexo masculino e 39 do
sexo feminino. Além disso, o local onde comumente eram realizados os batismos dos índios era a Igreja Matriz de
Nossa Senhora da Apresentação, em Natal (20); seguido pela Capela de Santo Antônio, onde atualmente é o
município de São Gonçalo do Amarante (18); e pela Capela de São Gonçalo do Potengi (9); além das Aldeias de
Guajiru, atual Extremoz (5) e de Mipibu, atual São José de Mipibu (3), assim como no Oratório de Jundiaí (3), já
os demais batismos teriam ocorrido em locais desconhecidos. Cf.: DIAS, Dayane Julia Carvalho; ALVEAL,
Carmen Margarida Oliveira. Um estudo sobre a população da Capitania do Rio Grande com ênfase na escravidão
negra e indígena no contexto da Guerra dos Bárbaros (1681-1714). Resgate - Rev. Interdisciplinar, Campinas,
v. 25, n. 2 [34], jul./dez. 2017, p. 57-80. 261 POMPA, Op. Cit, p. 284.
120
pelo fato de o clima assemelhar-se ao qual eles estavam acostumados. Contudo, eles logo
tornaram a abandonar o local à procura de um novo.
Dessa maneira, tanto pelas evasões consecutivas dos índios aos locais escolhidos
quanto pelas tentativas de negociação do capitão-mor para determinação do espaço mais
“conveniente”, fica evidente mais uma vez a importância atribuída ao território destinado aos
indígenas, de modo que não impedisse os planos dos conquistadores de avanço ao sertão, mas
também satisfizesse os índios de alguma maneira262. Com relação a esse aspecto, é possível,
ainda, inferir a respeito da relação estabelecida entre os índios Canindé e o sertão. Para eles,
esse espaço poderia significar muito mais do que a terra como provedora de seu sustento, quiçá
representasse um laço afetivo com seu local de estabelecimento, ou um costume ao clima local,
como sugerido por Bernardo Vieira de Melo. Têm-se, aqui, claramente, desde o início deste
trabalho, que o território pode ser encarado de diferentes maneiras, seja simbólico e cultural,
material e econômico ou mesmo pelo poder político263. No entanto, esse território social dos
índios que se vem tratando diz mais respeito ao seu viés cultural e simbólico, tendo em vista as
diversas relações sociais construídas coletivamente, capazes de demarcar seus espaços de
convívio.
Situação parecida, envolvendo a questão das doenças pelo sertão, fez com que os
índios Paiacus, que sofreram também com a guerra justa, alimentassem a vontade de mudar de
território. Os Paiacus, que após serem surpreendidos e terem alguns dos seus índios mortos
pelos Icós, outro grupo indígena, recolherem-se na Lagoa do Apodi, logo tentaram vingar-se
dos inimigos e foram reestabelecidos na aldeia de Urutaguí, no sul da Paraíba, em 1704264.
Contudo, com o passar do tempo, especificamente em 1711, o novo lugar não parecia satisfazer
mais os Paiacus, principalmente após a morte de muitos índios atingidos por doenças naquela
área, despertando neles o desejo de retornar ao sertão. Porém, foram convencidos pelos
missionários a não regressarem. Nesse momento, os missionários informaram aos índios da
epidemia de morbilo265, que estava acometendo a Lagoa do Apodi e a Serra de Ibiapaba, na
262 No que diz respeito à relação estabelecida entre os índios e a terra, Cristina Pompa faz uma análise sobre o mito
da “Terra sem mal”, que apesar de ser típico da cultura tupi-guarani, denota o misticismo imbricado às terras
indígenas. Cf.: POMPA, Cristina. O mito ‘mito da terra sem mal’: a literatura “clássica” sobre o profetismo tupi-
guarani. Revista de Ciências Sociais, v. 29, n. 1/2, 1998, p. 44-72. 263 Cf.: COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. 264 Carta ânua de João Antônio Andreoni por mandato do Pe. Provincial, 25 de novembro de 1704. ARSI, Bras.
10, ff. 42-43 apud Leite, 1938-50. p. 543-547. 265 Segundo Cristina Pompa, tratava-se de sarampo. Cf.: POMPA, Op. Cit., p. 290.
121
Capitania do Rio Grande e Ceará, respectivamente. Por isso, achavam por bem que os índios
não fizessem o caminho de volta para que se evitasse maior número de mortes266.
Destarte, o que é possível apreender do documento acima é que mesmo os Paiacus
tendo vivenciado sucessivos processos de desterritorialização/territorialização, o desejo de
retorno ao local que estavam anteriormente ou àquele que consideravam melhor parecia
adormecido. No entanto, tornou-se visível após as mortes dos seus índios. De imediato, os
índios que estavam, de 1704 a 1711, situados no sul da Capitania da Paraíba, articularam-se
para voltar à Lagoa do Apodi, possivelmente por esse ter sido o local que para eles serviu de
refúgio na ocasião da guerra contra os Icós em 1704. Assim, pela decisão tomada de
abandonarem o espaço, levanta-se a dúvida se de fato podia-se considerá-lo já territorializado,
pois, por mais que tivessem convivido naquele espaço há um bom tempo, ali trazia doenças e
mortes, ou seja, não se apresentava como a opção mais viável para o seu estabelecimento,
ascendendo o anseio pelo retorno ao sertão e pela sua reterritorialização.
De maneira geral, percebe-se que a terra posta em disputa através da guerra justa, para
os índios tratava-se de um território social diferente daquele pretendido pelos conquistadores e
moradores, pois, por mais que fosse o mesmo dito espaço do sertão, a conduta territorial de
cada grupo implicaria em uma determinada ressignificação do território. Esse território social,
o qual se atribuiu aos índios, vinha carregado de cultura, simbolismo, identidade, sociabilidade
e costumes próprios, enquanto, para os conquistadores, o sertão que era visto como o
desconhecido, paralelamente representava a possibilidade de expansão territorial, de posse e de
lucro. A guerra justa, portanto, funcionou como uma ferramenta de propulsão para retirada dos
índios de seus territórios sociais, as barreiras do sertão, a fim de aplainar o terreno rumo à
conquista da Coroa e da empresa pastoril.
4.2 – Deslocamentos indígenas em tempos de guerra
Durante o período colonial, a história dos índios chocou-se com uma série de embates
consequente do contato com o europeu, fossem portugueses ou holandeses. Na Capitania do
Rio Grande não fora diferente. No entanto, longe dos índios entregarem-se facilmente ou
estarem destinados diretamente à morte, houve alternativas estratégicas de sobrevivência e,
dentre elas, a fuga será destacada aqui. Aos grupos indígenas, em sua maioria das etnias Caboré,
Capela, Janduí e Panicuassu, restaram algumas possibilidades de reinvenção no sentido de se
266 Carta de Mattheus de Moura ao Padre Geral, 31 de dezembro de 1711. ARSI, Bras, 10. f. 78. Apud. POMPA,
Op. Cit., p. 290.
122
adaptarem e se integrarem socialmente que, em suma, se configuraram como alternativas de
sobrevivência nos tempos de guerra. Aqui, serão destacados os deslocamentos desses índios,
fossem compulsórios ou fossem fugas livres, como uma das possibilidades viáveis para
execução da resistência adaptativa.
Em uma carta, José Lopes de Ulhoa, filho do Provedor Mor da Bahia que serviu na
Capitania do Rio Grande no período dos conflitos, declarou ao rei de Portugal, sobre as fugas
dos índios quando eram ameaçados de serem castigados, que era
quasi impossível porque logo que tiverem notícia que os vão buscar para
castigar se hão de por em fugida, e com muitos cuidadosos e diligentes que
sejão os que forem em seu seguimento os não poderão alcansar pela ligeireza
com que este gentio marcha267.
Como percebe-se pelo trecho exposto acima, era sabido do potencial dos índios para
fugas, tanto por serem cuidadosos quanto por se movimentarem rapidamente, dificultando o
encontro deles, e, por conseguinte, evitando que fossem castigados. Ao se deslocarem, os índios
teriam novos destinos em vista, provavelmente já conhecidos por eles de alguma maneira,
possibilitando, assim, a recriação de novos espaços para suas vivendas e suas relações sociais,
ideia que comunga com a noção de territorialização do antropólogo João Pacheco de Oliveira,
definida como um processo de reorganização social. A maior parte dos documentos que compõe
o presente tópico foi de termos268 da Junta das Missões de Pernambuco. No entanto,
metodologicamente, faz-se necessário o cruzamento de informações oriundas de outros fundos
documentais, como os do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os Documentos
Históricos da Biblioteca Nacional, que corroboram na análise e problematização das
informações.
Sobre a Junta das Missões de Pernambuco, sabe-se que ela foi instituída por um
decreto de D. Pedro II, em março de 1681, porém iniciou suas atividades apenas por volta de
1692 e ficou ativa até 1759. A instituição nasceu no contexto de consolidação da pecuária e do
aumento do número de ordens religiosas no processo de missionação, imbuída das necessidades
do momento como a efetivação da conquista de novos territórios e o consequente povoamento
267 Carta de Joseph Lopes de Ulhoa ao rei de Portugal. AHU-RN, Caixa 1. 268 Boa parte dos termos da Junta das Missões de Pernambuco, a qual tenho acesso, foi gentilmente cedida pelo
Professor Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE), que realizou pesquisas anteriores na Biblioteca Nacional de Lisboa,
na qual se encontram os documentos referentes à Junta, na Coleção Pombalina, códice 115, intitulado “Livro dos
assentos da Junta das Missões, ordens e bandos que se escreveram em Pernambuco de 1712 a 1715”.
123
da área269. A Junta das Missões exercia jurisdição sobre as chamadas capitanias de fora do
sertão norte do Estado do Brasil, mas estava subordinada à Junta das Missões do Reino, em
Portugal, devendo funcionar através de encontros periódicos, pelo menos duas vezes por
semana, com a presença do governador de Pernambuco, seu secretário, o procurador dos índios,
dois prelados das religiões e o bispo270.
Como a Capitania do Rio Grande tornou-se anexa à Capitania de Pernambuco a partir
de 1701, questões que diziam respeito à administração do Rio Grande e problemas relativos a
ela, como a legitimidade das guerras ocorridas no sertão do Açu e demais áreas circunvizinhas,
passaram a ser um tema recorrente de discussão na Junta. Soraya Geronazzo atribuiu ainda
como motivação de criação da Junta a necessidade de se fazer frente ao “muro do demônio”271,
representado pelos tapuias que se colocavam como impedimento para o avanço dos colonos aos
sertões. Portanto, através da Junta, poderia decidir-se sobre as guerras justas de maneira mais
rápida. Representação semelhante também é atribuída aos índios Botocudos da capitania de
Minas Gerais, que durante o período colonial personificaram uma espécie de barreira que
dificultava o contrabando de ouro na região272.
Dito isso, as fontes oriundas da Junta das Missões de Pernambuco cooperaram
sobremaneira para o estudo da guerra justa na Capitania do Rio Grande, pois no cerne do
funcionamento da instituição essa temática fez-se recorrente e, assim, possibilitou a análise
qualitativa e quantitativa desse discurso jurídico. Foi possível analisar um total de 78 termos,
notando-se a presença desse aparato legal como um recurso de empreendimento da guerra e
consequente tomada de territórios e mão de obra indígena no Rio Grande em cerca de 28% do
total, ou seja, 22 termos. No entanto, deve-se atentar para as peculiaridades com relação às
269 Segundo Lígio Maia, “no contexto de conflito aberto que marcou a Guerra do Açu, o missionário, enquanto
agente do império português, sem dúvida, era uma personagem da maior relevância tanto quanto oficiais militares
e autoridades coloniais. Seu emprego se devia fazer em áreas de disputa direta, onde religiosos, sesmeiros e tropas
de paulistas, cada um a seu modo, disputavam palmo a palmo a conquista de terras, o controle da mão-de-obra
indígena e a conversão de neófitos para a Igreja”. Cf.: MAIA, Lígio de Oliveira. Aldeias e missões nas capitanias
do Ceará e Rio Grande: catequese, violência e rivalidades. Revista Tempo, vol. 19 n. 35, Jul–Dez/2013. p. 9. 270 GATTI, Ágatha Francesconi. O trâmite da fé: a atuação da Junta das Missões de Pernambuco, 1681-1759.
2011. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo. 271 Soraya Geronazzo Araujo atribui a expressão “muro do demônio” aos tapuias que fizeram frente ao avanço dos
conquistadores nos sertões, através do levantamento documental que resultou em sua dissertação. Cf.: ARAUJO,
Soraya Geronazzo. O muro do demônio: a economia e cultura na Guerra dos Bárbaros no nordeste colonial do
Brasil – séculos XVII e XVIII. 2007. 122f. Dissertação (Mestrado em História Social). Centro de Humanidades.
Universidade Federal do Pará, 2007, p. 77. 272 Cf.: LANGFUR, Hal. The forbidden lands: colonial identity, frontier violence, and the persistence of Brazil's
eastern Indians, 1750-1830. Stanford University Press, 2006.
124
fontes e não apenas aos números, haja vista elas serem produtos de uma instituição que tinha
também o propósito de julgar as guerras como justas ou injustas, isto é, determinar quais os
enfretamentos bélicos contra os índios teriam o respaldo jurídico da Coroa portuguesa e,
portanto, poderiam ser executados com o apoio das autoridades coloniais, legitimando o
consequente cativeiro e resgate dos índios, além de ser uma instituição formada
majoritariamente por brancos alinhados com o projeto expansionista da Coroa.
Desses 22 documentos que recorrem às premissas da guerra justa ou a citam como
forma de legitimar os confrontos bélicos, há um assento da Junta das Missões que não questiona
a justiça da guerra – questionamento comumente realizado nos termos observados –, mas põe-
se em dúvida a “desconfiança” dos soldados, pois, por supostamente estarem desconfiados dos
índios, mataram quatorze deles da etnia Capela. A Junta decidiu, portanto, que “assentou-se
tirar devassa para saber se houve justa desconfiança”273. No dia seguinte, 04 de abril de 1713,
o Governador de Pernambuco, Félix José Machado, emitiu uma ordem ao Juiz Ordinário da
Capitania do Rio Grande “para averiguar se foi justa ou não a desconfiança”274. Dentre os tais
termos analisados não se observa nenhuma menção à resolução desse caso, apenas a inquietação
do Governador de Pernambuco em definir a legitimidade da desconfiança, logo, a legitimidade
da morte dos índios. Contudo, casos desse tipo que fossem considerados injustos deveriam
acarretar em punições exemplares aos envolvidos no ato, inclusive no mesmo termo abre-se
precedente para se pensar nos castigos destinados aos soldados no momento em que citaram
que “era necessário saber o procedimento a ter com os ditos soldados”275.
Segundo os termos analisados, o episódio teria ocorrido pelo fato de quinze índios da
etnia Capela terem se rendido e se agregado como cativos, porém, durante o trajeto de
descimento do grupo de índios, os soldados desconfiaram da real intenção deles e, com o
pretexto de se salvarem, mataram quatorze desses índios. Através da argumentação dos
soldados, pode-se perceber certo reflexo do discurso jurídico da guerra justa pois, ao
justificarem o ato de ataque aos índios como uma forma de defesa e proteção de suas vidas,
encaixam sua arguição no preceito de que sua ação fora precedida de alguma atitude injusta do
inimigo. Ou seja, por meio da utilização de um discurso muito próximo ao que se estabelece a
273 Ata da Junta da Missões de Pernambuco, 27 de fevereiro de 1713. Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleção
Pombalina, Cód. 115, “Livro dos assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se
escreveram em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado”, fl. 36/38v. 274 Idem, fl. 135. 275 Idem, fl. 36/38v.
125
guerra justa, pode-se legitimar a morte dos índios e figurar esse acontecimento como uma
guerra justa, configurando o que Beatriz Perrone-Moisés veio a chamar de guerra defensiva276.
Como comentado anteriormente, a capitania do Rio Grande contava com a presença
de certo estoque de espaço disponível a ser apropriado e incorporado ao sistema colonial, haja
vista o processo de colonização ter sido iniciado pelo litoral, enquanto os sertões deveriam ser
paulatinamente anexados ao domínio português; a guerra justa pôde ser a ferramenta que
amalgamou esses desejos, mesmo com a presença de uma muralha formada pelos índios.
Portanto, a fuga foi uma alternativa viável para os índios resistirem e os deslocamentos
espaciais deles ou a possibilidade de realizá-los, dentro e fora da Capitania do Rio Grande,
aparecem constantemente nos termos da Junta das Missões.
Há casos de índios aldeados que abandonaram sua aldeia, há também casos de índios
presos que fugiram da prisão, como há, ainda, casos de deslocamentos compulsórios ou
tentativas deles, à força da Coroa. Todos esses movimentos possibilitaram aos índios a
oportunidade de vivenciar a resistência adaptativa, em que não necessariamente o índio
resistiria por meio de confrontos bélicos, mas ao se verem imersos no sistema colonial puderam
recriar modos de sobrevivência e reinserção na sociedade. Mesmo com os deslocamentos
compulsórios, esses ainda podem ser considerados meios de impulsão à resistência adaptativa
dos índios caso se leve em consideração, por exemplo, a territorialização deles nos novos
destinos imputados pela Coroa, pois eles poderiam, a partir de suas identidades, elaborar
mecanismos políticos especializados; assumir o controle social sobre os recursos ambientais do
novo local; remodelar sua cultura e sua relação com o passado de maneira adaptativa277.
Em um termo da Junta das Missões de Pernambuco, datado de 31 de janeiro de 1715,
por exemplo, há o relato de que alguns índios que estavam na Aldeia do Apodi teriam se retirado
dela e ido para o mato em virtude dos excessos cometidos pelo então missionário dela, fato que
motivou a Junta a assentar o pedido de mais informações advindas do dito missionário a respeito
de seu procedimento para que então se tomassem as providências cabíveis278. Alguns meses
antes, especificamente em 14 de setembro de 1714, em outro termo, relatou-se que houvera
276 Cf.: PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do
período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras/FAPESP, 1992, p. 115-131. 277 Cf.: OLIVEIRA. João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização
e fluxos culturais. Mana – Estudos de Antropologia Social, v. 4, n. 1, Rio de Janeiro, 1998. 278 Ata da Junta da Missões de Pernambuco, 27 de fevereiro de 1713. Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleção
Pombalina, Cód. 115, “Livro dos assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se
escreveram em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado”, fl. 61v/62.
126
uma fuga de cinco índios da prisão da Fortaleza de Itamaracá, em Pernambuco, e que eles
poderiam ser os mesmos que se encontravam agora presos na Fortaleza do Rio Grande. Eles
teriam fugido “da fortaleza que se achavam presos nela debaixo de chave e que abriram a porta
da prisão em que estavam e se botaram com uma corda da muralha abaixo”279. Portanto,
segundo posto em dúvida pela Junta se seriam os mesmos índios de Itamaracá, até aquele
momento presos no Rio Grande, denota-se o longo trajeto de deslocamento desses índios que
teriam saído da Capitania de Pernambuco e percorrido cerca de 266 quilômetros de distância
até chegar à atual cidade do Natal, onde se localiza a Fortaleza. Caso fossem os mesmos índios,
a Junta determinou ainda que o então capitão mor do Rio Grande, Salvador Álvares da Silva,
soltasse-os, atendendo a um assento anterior da Junta emitido em 25 de agosto280.
Esse assento de 25 de agosto de 1714 também tem uma cópia registrada dentre os
documentos do Conselho Ultramarino e apresenta o desfecho desses índios fugidos281. No
assento consta que os índios das etnias Caboré e Capela recolheram-se na Aldeia do Guajiru,
onde teriam recebido as pazes do Capitão-mor do Rio Grande e do missionário responsável pela
aldeia que, com efeito, os reduziram nela, pois nem sequer tinham clareza das causas que os
tinham levado a serem presos na Fortaleza de Itamaracá. Como se percebe aqui, há dois
exemplos contrapostos que, apesar de configurarem os movimentos de deslocamentos dos
índios em meio às guerras justas, sinalizam dois pontos de destinos opostos. Um desses destinos
seria o dos índios fugidos de Itamaracá que encontraram refúgio na Aldeia de Guajiru, enquanto
os índios citados acima do termo da Junta de 31 de janeiro de 1715 fizeram o movimento
reverso, largando a Aldeia do Apodi e adentrando os matos.
Logo, no primeiro movimento, os índios, apesar de terem recorrido à fuga,
continuaram circundados por uma territorialização advinda da Coroa no momento em que se
refugiaram em uma Aldeia; já no segundo deslocamento, ao adentrar os matos, surgia a
possibilidade de reconstruir uma territorialização própria baseada em sua própria conduta
territorial. De todo modo vale ressaltar que, mesmo que circundados por territorializações da
Coroa – Fortaleza de Itamaracá, Aldeia de Guajiru e Aldeia do Apodi, estando as duas últimas
destacadas no mapa a seguir (Mapa 6) –, esses índios articularam-se em um movimento de fuga
279 Idem, fl. 58v/59v. 280 Idem, fl. 55/58. 281 Assento (cópia) da Junta das Missões sobre o extermínio e pazes feitas com os índios tapuias Caboré e Capela
que estavam reunidos na aldeia Guajiru (Lisboa, 25 de agosto de 1714). AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc.
78.
127
cujo destino lhes possibilitasse a sobrevivência, fossem retornando aos matos ou a uma aldeia
em que lhes propusessem as pazes diante da guerra. Já no que se refere às motivações para a
concessão das pazes aos índios acolhidos em Guajiru, comenta-se sobre a vantagem de se evitar
mais despesas da Fazenda Real com as tropas envolvidas na guerra, além da possível ameaça à
Capitania por se acharem as estradas impedidas e o gado não poderia passar do sertão para
baixo. Apesar da inclusão desses índios à Aldeia de Guajiru levantar dúvidas quanto aos
possíveis conflitos interétnicos com os índios aldeados anteriormente nesse espaço, não se pode
inferir mais a respeito por ausência de informações nas fontes analisadas.
Mapa 6 – Aldeamentos e Vilas da Capitania do Rio Grande
Fonte: Lopes (1999)282.
Alguns desses movimentos dos índios dentro da própria Capitania do Rio Grande,
foram pontuados por Júlio César de Alencar, e mostram, inclusive, o medo que se construiu em
torno da figura dos “bárbaros” por parte dos moradores e autoridades locais, desde 1665. Desse
modo, o clima de insegurança somava-se às dificuldades desse período, como poucos
moradores com cabedal, além da carência de munições e de infantaria. Quase uma década
282 LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do
Norte. Mossoró: Fundação Vingt-um Rosado; Coleção Mossoroense. Edição Especial para o Acervo Virtual
Oswaldo Lamartine de Faria, 2003, p. 463.
128
depois, especificamente em 1674, por exemplo, Alencar destaca cartas dos oficiais do Senado
da Câmara de Natal e do capitão mor, então Antônio Vaz Gondim, remetidas ao príncipe
regente, D. Pedro, nas quais narravam o estado da Capitania do Rio Grande de maneira similar,
acentuado pelo problema de ela ser “metida entre os gentios alarves”283, que costumavam
“descer” à faixa litorânea. A respeito da expressão “alarves”, Júlio César Alencar comenta que
se fazia referência aos índios do sertão, e tal terminação procedia de grupos árabes que tinham
um estilo de vida nômade, reforçando, assim, a ideia desses índios que “desciam” do sertão ao
litoral, termo evidente em algumas das fontes analisadas por ele284. Contudo, cabe aqui ressaltar
que, em alguns documentos, esse último termo pode referir-se aos descimentos indígenas
realizados de modo compulsório, ocorrido no momento em que determinado grupo de índios
era apresado e o faziam forçadamente, muitas vezes amarrados, a se transferirem para outra
localidade.
Caso similar de fuga de índios, em meio ao período turbulento das guerras justas na
Capitania do Rio Grande, foi evidenciado em uma carta de Mathias da Cunha, então
governador-geral, endereçada ao coronel Antônio de Albuquerque, responsável pelo Forte do
Cuó, em 1688. Nela, dava-se ordem para que, dos 80 infantes que foram remetidos de
Pernambuco para a fortaleza do Rio Grande, 50 fossem enviados para reconduzir todos os
índios que saíram das Aldeias de Mipibu, Cunhaú e Guaraíras, localizadas no Rio Grande, em
fuga rumo à Aldeia da Preguiça, na Paraíba. Vale salientar que o teor dessa carta repetiu-se em
mais outras duas com destinatários diferentes, sendo eles o governador de Pernambuco, João
da Cunha de Sotto Maior285, e o capitão-mor do Rio Grande, Paschoal Gonçalves de Oliveira286,
informou da fuga e da união desses índios ao somarem suas forças, levando-se a inferir aqui a
possibilidade deles serem do mesmo grupo étnico. Sobre esses índios, o Governador geral
discorreu que havia muitos deles “homiziados sem partes e degredados em todas as capitanias
desde a Bahia até essa287” e, como solução encontrada por ele, para incentivar o retorno desses
índios aos seus locais de origem, sugeria-se que eles receberiam perdão por seus crimes desde
283 Apud. ALENCAR, Op. Cit., p. 93. 284 ALENCAR, Op. Cit., p. 91-93. 285 Carta que se escreveu ao governador de Pernambuco João da Cunha de Sotto Maior sobre a guerra do gentio
bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 263-267. 286 Carta que se escreveu para o capitão-mor da capitania do Rio Grande Paschoal Gonçalves de Oliveira sobre a
guerra do gentio bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp.
270-272. 287 Carta que se escreveu ao coronel Antônio de Albuquerque da Câmara sobre a guerra do gentio bárbaro do Rio
Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 276-280.
129
que se alistassem no Regimento até o fim da guerra, servindo de força marcial para continuidade
dos embates.
Tanto o caso dos índios que migraram das Aldeias de Mipibu, Cunhaú e Guaraíras, no
Rio Grande, para a Aldeia da Preguiça, na Paraíba, em 1688, quanto o caso dos índios das etnias
Caboré e Capela que foram recolhidos na Aldeia de Guajiru, em 1714, desperta a reflexão a
respeito das relações interétnicas desenvolvidas por esses grupos indígenas. Por não se ter
maiores informações nas fontes consultadas, não se sabe ao certo se de fato esses índios
pertenciam aos mesmos grupos étnicos, no entanto, a união entre os índios de diferentes aldeias
do litoral, mencionada pelo capitão-mor Paschoal Gonçalves de Oliveira, pode caminhar em
sentido à noção de comunhão étnica. Para Max Weber, as relações de sangue não se
caracterizam como suficientes para a conformação de um grupo étnico, mas sim o sentimento
de comunhão étnica, em geral advindo de alguma ação política288. Essa espécie de consciência
comunitária tende a ser construída ainda mais facilmente em situações de ameaça de guerra,
com o intuito de somarem forças diante das investidas dos inimigos, fato que poderia explicar
essa movimentação entre diferentes aldeias, dentro e fora da Capitania do Rio Grande.
Além disso, durante o período colonial é possível perceber, não somente na Capitania
do Rio Grande, diferentes jogos de interesse entre os próprios índios envolvendo sua
classificação étnica. Maria Regina Celestino de Almeida destacou algumas situações de conflito
entre índios da Aldeia de Mangaratiba, no Rio de Janeiro, em meados do século XVIII, em que
um dos índios, Pedro Alexandre Galvão289, ora se declarava como liderança indígena, ora como
morador, categoria contrária ao aldeado, de modo que lhe fosse mais conveniente nos processos
de contestação de terras. A esse respeito, Almeida conclui que:
A classificação étnica se apresenta, pois, como importante instrumento de
reinvindicação não só para pedir terras, mas também para destituir líderes
acusados de introduzir brancos nas terras dos índios e negociar com elas. [...]
ser índio e identificar-se com os interesses coletivos da aldeia era importante
para ganhar suas terras ou conquistar sua liderança.290
288 WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB, v. 1, 1999, p. 270. 289 Esse caso envolvendo Pedro Alexandre Galvão e o conflito de terras no interior da Aldeia, foi discutido
amplamente na dissertação de Carmen Alveal. Cf.: ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. História e direito:
sesmarias e conflito de terras entre índios em freguesias extramuros do Rio de Janeiro (século XVIII). 2002.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em
História Social, Rio de Janeiro, 2002. 290 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Quando é preciso ser índio: identidade étnica como força política nas
aldeias do Rio de Janeiro. Tradições e modernidades. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010, p. 51-52.
130
Desse modo, coloca-se em cheque as relações interétnicas no sentido de entendê-las
não como bloco monolíticos, mas passível de mudanças, de acordo com os interesses
envolvidos. Essas oscilações podem ocorrer tanto nas formações de alianças, como pode ter
sido no caso do acolhimento de diferentes etnias na Aldeia do Guajiru, em 1714, quanto nas
classificações étnicas, como no caso de Pedro Galvão, e por que não se pensar em uma situação
semelhante no caso da união das diferentes Aldeias de Mipibu, Cunhaú e Guaraíras rumo à
Aldeia da Preguiça, na Capitania da Paraíba.
De maneira geral, os casos referentes à Capitania do Rio Grande, apresentados acima,
representam fugas indígenas, um tipo de deslocamento de iniciativa livre dos índios, apesar de
serem, em sua maioria, motivadas por possíveis ataques de inimigos. Nessas ocasiões, muitas
vezes os índios percorriam distâncias longínquas, entre Pernambuco e Rio Grande, para poder
escapar da guerra e do cativeiro. Em 1647, já próximo ao fim do trajeto da viagem de Roulox
Baro, intérprete e embaixador ordinário da Companhia das Índias Ocidentais, ao país dos
tapuias, ele encontrou-se com o principal de um grupo de índios Janduís localizados na atual
Serra de Santana, no Rio Grande do Norte, ao qual comentou que aquele espaço não era ainda
seguro suficiente para o grupo, fator que motivava a fuga do local, pois “ao primeiro ruído de
guerra, abandona-o e foge para o mato”291. O local atual que estavam, por sua vez, já era fruto
de uma fuga anterior, fato que levou Baro a questionar a falta de vergonha deles em abandonar
os demais membros do grupo, sendo surpreendido pela resposta do principal ao dizer que não
era uma questão de vergonha, pois “não tendo recorrido aos seus inimigos, aos quais não
podiam resistir, era prudente fugir; oprimidos pela fome em sua aldeia. Sem isso, sentir-se-iam
felizes vivendo em paz”292 naquela ocasião. Em outro momento da trajetória, Baro deparou-se
com outro grupo de tapuias e lhes questionou o porquê de estarem tão afastados, em meio às
matas e distante do seu povo, e, novamente, o tópico da guerra surge na resposta dos índios.
Eles alegaram que por conta da guerra, preferiam ficar naquele espaço convivendo em paz com
outros tapuias vizinhos293.
Apesar do relato de viagem de Roulox Baro tratar-se de uma produção realizada em
um período anterior ao definido para ser estudado aqui e em outro contexto, serve para endossar
a importância atribuída à fuga pelos grupos indígenas em busca de paz, e encontrando nos
matos, por mais distante que fosse dos demais parentes de seus grupos, uma alternativa de
291 BARO, Roulox. Relação da Viagem ao país dos Tapuias. São Paulo/ Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1979. 292 Idem. 293 Idem.
131
verem-se livres das guerras. Nesses novos espaços, como no caso dos matos, portanto, tinha-se
a possibilidade de reterritorialização, fosse por meio da afirmação étnica; relação com outros
grupos indígenas; e estabelecimento da paz e dos costumes próprios.
No entanto, o movimento reverso entre as Capitanias também pôde ser evidenciado
nas fontes da Junta. Em um dos termos, encontra-se um caso de transferências de índios Janduí
e Caboré, apresados em uma guerra que até então estava indefinida se justa ou injusta, retirados
da Capitania do Rio Grande para a Fortaleza de Itamaracá em Pernambuco. Através de uma
portaria que foi remetida ao provedor da Fazenda Real, em 27 de fevereiro de 1713, sobre a
assistência no sustento de uma índia, Dona Catherina – citada anteriormente – que estava presa
em Olinda, pôde-se apreender que dessa guerra ocorrida no Rio Grande foram feitos muitos
índios cativos e achou-se mais prudente os remeterem para Pernambuco para lá colaborarem
com o trabalho na fortificação294. Nessa ocasião, vale ressaltar que mesmo com a
indeterminação sobre a matéria da guerra, se seria justa ou injusta, diversos índios foram
aprisionados. Não obstante, foram retirados de seu espaço de convívio social e deslocados para
um novo território. Esse processo de retirada dos índios do local que estavam fixados é
evidenciado e justificado no documento pelo temor que se tinha de uma reorganização do grupo
para preparação de um motim contra os brancos em consequência do conflito.
Numericamente falando, do total dos 22 termos da Junta das Missões que tratam da
temática da guerra justa no Rio Grande, mais da metade dão conta dos deslocamentos dos índios
pela Capitania do Rio Grande, sendo 5 (22,7%) considerados de inciativa livre dos índios,
enquanto 11 (50%) representam os deslocamentos compulsórios, somando 16 termos no total,
como exposto no Gráfico 1. Além dos destinos comentados acima, os outros possíveis locais
de territorialização dos índios evidenciados na documentação foram a Aldeia de Guajiru na
própria Capitania do Rio Grande.
294 Ata da Junta da Missões de Pernambuco, 27 de fevereiro de 1713. Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleção
Pombalina, Cód. 115, “Livro dos assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se
escreveram em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado”, fl. 127.
132
Gráfico 1 – Termos da Junta das Missões de Pernambuco analisados (1712-1715)
Fonte: Elaborado pelo autor com base nos 78 termos analisados (Silva, 2020).
É possível identificar as fugas dos índios em diversos documentos que fazem
referência aos momentos das guerras e perseguições contra eles. Em uma carta régia ao
Governador do Maranhão, de 1695295, o rei autorizou a guerra ao “gentio brabo” para que se
defendesse os moradores da Capitania do Rio Grande das hostilidades dele. Contudo, fazia-se
necessário não apenas combatê-lo na própria Capitania, como também que se encontrassem
tropas compostas pelos moradores e índios guerreiros na Serra do Guepeba296, local no qual os
índios ameaçados teriam escolhido para fugir das armas. Apesar de não se saber ao certo onde
especificamente se localiza a Serra do Guepeba, por motivo de falta de detalhes na fonte, o rei
comenta apenas que seria fora da jurisdição do Estado. A escolha desse refúgio, possivelmente
distante da Capitania do Rio Grande, mas principalmente fora de sua jurisdição, pode indicar a
estratégia de articulação dos índios em fugirem para um novo espaço, ou mesmo um espaço já
295 Carta régia ao governador do Maranhão sobre se ter resoluto fazer-se guerra ao gentio brabo em defesa das
hostilidades que fazem aos moradores do Rio Grande. Lisboa, 10 de março de 1695. Conselho Ultramarino – Tomo
V – PE. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arq. 1. 2. 24, fl. 112.
296 Pela leitura e transcrição do manuscrito, identificou-se o destino da “Serra do Guepeba” como um local para
refúgio dos índios. Pode-se inferir a respeito desse espaço que se trate da Serra de Ibiapaba, pois como explicitado
na fonte, ela também não faz parte da jurisdição do Estado do Maranhão.
s
133
conhecido por eles anteriormente, para que se reterritorializassem afastados do raio de alcance
do controle da Coroa portuguesa e de suas ações.
Em uma parte da crônica de João Andreoni de 1704, mencionada no capítulo anterior,
quando ele discorreu sobre a situação a qual os índios do Rio Grande, Ceará e Paraíba foram
submetidos para serem reduzidos em aldeias distantes de seus locais de origem, pode-se ter uma
noção de como esses índios reagiam a isso pois se declara que:
Como a transmigração se fazia do solo pátrio ou do sertão, começaram uns a
dizer que iam como escravos, outros que iam a ser mortos pelos Paulistas,
outros olhavam entre lágrimas o sertão que iam deixar, outros que não se
poderiam defender dos contrários se fossem assaltados pelo caminho.297
Desse modo, pelas palavras de João Andreoni, consegue-se perceber que no início do
século XVIII, os índios poderiam compartilhar um sentimento em comum advindo da
transmigração. O solo pátrio associado por ele ao sertão, e entendido aqui como um território
social dos índios, era desvinculado de seu grupo, que apesar de carregar consigo sua conduta
territorial própria, via-se confrontado à diversas situações possíveis, desde a sua retirada do
sertão, passando pela trajetória conduzida pelos Paulistas, até a chegada – se chegassem vivos,
pois eles também temiam a morte no caminho – ao novo local designado pelos colonos. Essa
retirada do solo pátrio ganhará ainda uma nova denotação, a da desnaturalização, como será
possível evidenciar no tópico a seguir.
4.3 – Desnaturalização dos índios da Capitania do Rio Grande
Atrelada aos movimentos dos deslocamentos compulsórios, evidenciou-se na
documentação a ideia de desnaturalização dos índios. Ao ler os termos da Junta das Missões de
Pernambuco, nota-se repetidas vezes a menção a essa noção que, de maneira geral, se contrapõe
aos projetos assimilacionistas298 propostos pela Coroa portuguesa de integração dos índios ao
meio social dos brancos, salientando-se a especificidade desse período de caráter conquistador.
Pelo que se pôde observar das fontes até aqui analisadas, no que diz respeito ao discurso jurídico
da guerra justa e às consequências oriundas dela, houve esse incremento no aparato legal pois,
297 Carta ânua de João Antônio Andreoni por mandato do Pe. Provincial, 25 de novembro de 1704. ARSI, Bras.
10, ff. 42-43 apud Leite, 1938-50: 543-547. 298 A ideia de assimilação dos índios estava vinculada aos projetos da Coroa portuguesa destinados aos índios
amigos, a exemplo de ações desse caráter pode-se destacar, tanto as Missões Jesuíticas como o Diretório
Pombalino (1755) e o estabelecimento das vilas de índios, que visavam a integração social deles no meio dos
brancos, ao assimilá-los e torná-los adeptos da fé católica, além de súditos do rei.
134
até então, a partir da execução de uma guerra desse tipo, era garantido aos conquistadores o
apresamento dos índios e a conquista do território deles.
Em um dos termos da Junta das Missões fica claro que, após a conquista de um dado
espaço por meio da guerra justa, o próximo passo deveria ser a retirada dos grupos indígenas
locais para que houvesse o estabelecimento efetivo do poder da Coroa, fazendo-se necessário,
portanto, a aplicabilidade da desnaturalização dos índios. A noção de desnaturalização aparece
em um termo de assento299, datado de 23 de setembro de 1713, no qual faz referência aos grupos
Janduís, Caboré e Capela, os quais não deveriam ser feitos apenas cativos, após o
empreendimento da guerra justa, mas se sugere serem também desnaturalizados. Ao continuar
discorrendo o termo, a Junta propõe que, para efetivar a “desnaturalização” dos índios, eles
teriam que ser retirados da jurisdição do governo de Pernambuco, ao qual o Rio Grande estava
submetido, e serem remetidos ao Rio de Janeiro. Tal iniciativa fora motivada pelo fato de que
esses povos eram considerados rebeldes e estavam praticando roubos e mortes constantemente.
Nesse mesmo termo, a Junta comentou de uma índia tapuia cativa de guerra que se teria casado
com um negro da Capitania do Ceará e que, portanto, ela se encaixaria no perfil destinado à
desnaturalização, pelo fato de também ter participado da guerra, sugerindo-se ser remetida a
partir de então à jurisdição do Ceará. Porém, pelo fato de o casal ter seguido o rito matrimonial
do casamento sem que houvesse dolo, a índia fora absolvida da pena.
Nos dois casos acima, os índios envolvidos configuraram perfis semelhantes no
sentido de terem participado de conflitos, especificamente guerras justas na Capitania do Rio
Grande, no entanto, o perfil que se sobressaía para a execução da desnaturalização era dos
grupos étnicos Janduís, Caboré e Capela. De início, pode-se levantar algumas hipóteses a
respeito da indicação desse perfil à desnaturalização, infere-se aqui, por exemplo, o fato desses
grupos serem numericamente maior, se comparado apenas à tapuia cativa, além disso, por conta
de a índia já encontrar-se casada em outra Capitania, não mais no Rio Grande, portanto, não se
fazia necessário remetê-la a outra jurisdição.
Segundo o termo mencionado acima, essa mesma determinação já havia sido tomada
nas juntas anteriores de 03 de abril e 08 de julho do mesmo ano. No entanto, dentre os termos
analisados, encontra-se apenas o do mês de abril, no qual se solucionou a dúvida com relação
299 Ata da Junta da Missões de Pernambuco, 23 de setembro de 1713. Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleção
Pombalina, Cód. 115 “Livro dos assentos da Junta das Missões, cartas ordinárias, ordens e bandos que se
escreveram em Pernambuco no tempo do governador Félix José Machado”, fl. 41/43v.
135
ao envio também das mulheres para o Rio de Janeiro, determinando que ficasse na terra apenas
os índios de sete anos de idade300. Sobre esse caso, há ainda um bando301, datado de 24 de maio
desse ano, em que se ordena que os moradores da Capitania do Rio Grande que tiverem em seu
poder índios das etnias Janduí, Capela e Caboré, fossem entregá-los na Capitania de
Pernambuco para serem remetidos ao Rio de Janeiro ou os remetessem diretamente para o Rio
de Janeiro, caso quisessem. A respeito desse caso, questiona-se aqui o porquê da escolha desse
possível destino dos índios ser especificamente o Rio de Janeiro, e não outra Capitania, contudo,
apenas o que se pode inferir através das fontes é que o processo de desnaturalização estava
vinculado à retirada de determinados índios da jurisdição à qual faziam parte e, por conseguinte,
das suas terras de origem, fosse remetendo-os ao Rio de Janeiro, fosse atribuindo-os à Capitania
do Ceará, como no caso da índia da tapuia.
Outro termo302, referindo-se aos mesmos grupos étnicos de índios Janduí, Caboré e
Capela e suas guerras, emitido um ano antes do citado acima, propôs que eles fossem
legitimamente feitos cativos através da guerra justa e que de modo nenhum convinha deixá-los
na sua terra, corroborando a ideia da guerra justa ligada à desnaturalização. Assim, era
necessário dissociar o índio de seu território social, ao qual competia tanto o sentido físico
quanto o sentido espiritual, ao considerar os índios intrinsicamente ligado às suas terras de
origem e elas como parte elementar de sua constituição como grupo social.
Segundo Rafael Bluteau, lexicólogo português, o termo “desnaturalisação” foi
apresentado em seu dicionário e definido como o ato de desnaturalizar, que por sua vez
significava “privar dos direitos de natural, ou nacional de alguma nação, reino”303. Enquanto
que os termos “naturalizar” e “naturalidade” diziam respeito à relação do indivíduo com a sua
pátria e seus direitos de cidadão. A “pátria”, por sua vez, era entendida como “a terra onde
alguém he natural”304. Logo, pode-se compreender que essas noções já estavam consolidadas e
bem estabelecidas, tanto epistemologicamente quanto pragmaticamente, à medida que o
degredo dos índios era estimulado e vinculado ao argumento jurídico da guerra justa. Não se
sabe ao certo se o intento de degredar os índios da Capitania do Rio Grande para o Rio de
300 Idem, fl.36/38v. 301 Idem, fl. 163/164. 302 Idem, fl.35. 303 BLUTEAU, Rafael. Dicionário da língua portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado,
e acrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo
Ferreira, 1789. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5413. Acesso em: 08 de novembro de 2019. 304 Idem.
136
Janeiro logrou êxito. Não obstante, o fato que mais interessa aqui é o de que o projeto de
desnaturalização dos índios associou-se a uma das consequências das guerras julgadas como
justas pela Junta das Missões para além das consequentes mortes a sangue frio e venda de índios
como peças de guerra.
Através de uma carta dos oficiais da Câmara de Natal remetida ao rei D. João V305,
externando sua consternação com o bando lançado pelo Governador de Pernambuco para
desnaturalizar os índios do Rio Grande, assim como o descontentamento dos moradores,
levanta-se aqui a dúvida sobre a efetivação do degredo, visto que os oficiais comentaram que
os índios já estavam feitos cativos por terem sido apanhados em guerra viva306 – terminação
utilizada por eles para denotar a guerra que estava em execução no momento – e,
consequentemente, uns foram comprados e alguns capturados pelos moradores, enquanto
outros foram arrematados em praça pelo Provedor da Fazenda Real, motivo que justificaria a
petição dos moradores e oficiais para não remeterem os índios ao Rio de Janeiro.
Contudo, relata-se, no mesmo documento, que o lançamento do bando teria levado
mais dano do que benefício para a Coroa, uma vez que serviu para que os índios se recolhessem
à sua antiga vivenda, de onde tinham sido tirados pela força das armas. Questionando até que
ponto é verossímil esse relato de deslocamento livre dos índios para seu antigo local de convívio
social, situada numa ilha por trás da Aldeia de Guajiru, por motivo de poder ter sido uma
informação manipulada pelos oficiais da Câmara para não os entregar ao Governador de
Pernambuco, poderia levar-se a crer no poder de articulação desses grupos indígenas que
refizeram determinada territorialidade ao retornar para o seu lugar de origem e, assim, impedir
a sua desnaturalização. No entanto, tudo leva a crer que o cumprimento do bando não chegou
a ser realizado pois Domingos Amado, Capitão-mor Rio Grande entre 1715 e 1718, teria
conseguido estabelecer a paz na região ao suspender o bando de Félix José Machado, impedindo
que se remetessem os tapuias para serem vendidos no Rio de Janeiro307.
No entanto, essa não teria sido a primeira vez em que o Governador de Pernambuco
emitiu um bando determinando que todos os moradores do Rio Grande que tivessem a posse de
305 Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [D. João V], sobre as dificuldades que os moradores enfrentam
por causa de um bando que o governador de Pernambuco, Felix José Machado, mandou lançar para que todos os
tapuias cativos de sete anos para cima fossem remetidos para Pernambuco, para serem vendidos no Rio de Janeiro.
AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 71 (1713, Julho, 29, Natal). 306 Cf.: BICALHO, M. Fernanda. Conquista, mercês e Poder local: a nobreza da terra na América portuguesa e a
cultura política do Antigo Regime. Almanack Braziliense. São Paulo, USP, n. 2, p. 21-34, nov., 2005. 307 LEMOS, Vicente de; MEDEIROS, Tarcísio. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte. Vol.
2. Natal: Edição do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1980, p. 34.
137
índios fossem devolvê-los. Em julho de 1691, o governador ordenou que os moradores dessa
praça deveriam ir à presença dos paulistas, aos quais tinham vendido esses índios, para, após
entregá-los, serem restituídos do valor da compra no prazo de 15 dias após a data de publicação
do bando. Porém, diferentemente do bando de 1713 ao qual propôs-se a emissão e venda dos
índios no Rio de Janeiro, os outros seriam libertos, seguindo-se a ordem de 1691308. Um mês
após o lançamento do bando, especificamente no dia 30 de agosto de 1691, o mesmo
governador de Pernambuco escreveu diretamente a Domingos Jorge Velho confirmando a
liberdade de 100 índios machos e fêmeas que tinham sido tomados na guerra do Rio Grande,
na gestão do seu antecessor, declarando que não eram mais cativos309.
Um dos motivos para se tentar desassociar os grupos indígenas poderia ser o de
desarticular suas ações de guerra, pois, como se sabe, os índios dominavam técnicas marciais
que, muitas vezes, surpreendiam os pressupostos dos colonos. Em uma consulta do Conselho
Ultramarino, datada de dezembro de 1699, comunicava-se dos ataques que os índios faziam
tanto pela vanguarda quanto pela retaguarda dos inimigos, fazendo uso de flechas
envenenadas310. Além disso, diferentemente dos parâmetros de guerra estabelecidos pelos
corpos militares luso-brasileiros, os índios pareciam não seguir uma organização pois numa
carta endereçada aos mestres de campo, Antônio de Albuquerque da Câmara e Domingos Jorge
Velho, em novembro de 1688, já se comentava da irregularidade e diversidade da guerra desses
índios311, contudo, vale salientar que diversas táticas de guerra desenvolvidas pelos índios
foram incorporadas e utilizadas não só pelos portugueses, como também pelos holandeses.
Segundo o relato, a irregularidade ficava evidente por não formarem exércitos nem batalhas na
campanha, “antes são de salto as suas investidas, ora em uma, ora em outra parte, já juntos, já
divididos”312. Ademais, a força marcial indígena exercida nas guerras era, geralmente, através
da união de grupos étnicos diferentes, fator que os fortaleciam e favoreciam diante dos colonos
pois era “tão considerável o poder com que juntas se acham”313, mas também que veio a servir
como prerrogativa para diversas guerras justas.
308 BNL PBA Cód. 239, fl. 124/125. 309 BNL PBA Cód. 239, fl. 357/358. 310 Consulta ao Conselho Ultramarino. DPH/UFPE, AHU, fL. 164-165v. 311 Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Vol X, 1929, p. 348. 312 Idem. 313 Carta que se escreveu ao governador de Pernambuco João da Cunha de Sotto Maior sobre a guerra do gentio
bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 263-267.
138
Dentre os documentos do Conselho Ultramarino, também foi possível identificar uma
consulta que deixou um rastro de que a prática da desnaturalização dos índios poderia ser
comumente realizada. A dita consulta foi feita para a nomeação de pessoas para a companhia
de Infantaria de Pernambuco que vagou no Terço do mestre de campo Zenóbio Acioly de
Vasconcelos e nela se trazia a folha de serviços de Francisco Gil Ribeiro como um dos possíveis
a assumir o cargo. Francisco Ribeiro teria servido tanto na Guerra dos Palmares quanto na
Guerra dos Bárbaros e, nesse último conflito, ao comentar de sua participação em socorro à
Capitania do Rio Grande, afirma-se a perseguição que fizera ao Tapuia inimigo, marchando
desde Ceará-mirim até o sítio da Capelinha, localizado a 18 léguas, em 1688. No ano seguinte,
esse candidato à vaga da companhia de Infantaria, além de ter seguido sua marcha em
perseguição aos índios nas ribeiras de Utinga, Camaragibe e Pedra Branca, se propôs a
“desalojar o Tapuia que andara por aquelas partes”314. Apesar de não aparecer explicitamente
o termo “desnaturalizar”, a ação de desalojá-los de sua terra configura-se como tal, pois mesmo
que não se tenha comentado da retirada desses índios da jurisdição do Rio Grande, como nos
casos anteriores, é possível afirmar que quando desalojados, esses índios viram-se privados do
acesso à terra onde eram naturais, em consonância com o significado de “desnaturalização”
proposto por Bluteau.
Apesar das inferências feitas aqui, o tema da desnaturalização no âmago da Guerra dos
Bárbaros ainda é pouco presente nas análises historiográficas, aparecendo quase sempre apenas
na forma de dados e informações e não como o próprio objeto de pesquisa. Em outros contextos
de guerra também foi dificultoso encontrar elementos correspondentes à desnaturalização
evidenciada para os índios da Capitania do Rio Grande. Contudo, observou-se um caso de
desnaturalização com os índios da Argentina nos anos finais do século XVII, mesmo que se
tratando de uma realidade e contexto diferentes, vale a pena elucidar aqui. Virginia Zelada, ao
discutir sobre a entrega e distribuição de índios desnaturalizados em Córdoba, na Argentina,
comprovou que grande parte dos índios de lá foram desnaturalizados pois antes eram residentes
do Chaco e do Valle Calchaquí, cerca de 830 quilômetros e 655 quilômetros de distância da
atual cidade de Córdoba, respectivamente. No momento em que o ouvidor Antonio Martínez
Luján de Vargas visitou Tucumán, entre 1692 e 1694, propondo-se elaborar o registro da
jurisdição de Córdoba, identificou que das 36 unidades de encomendas existentes, 11 eram
314 Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado por
Ernesto Ennes, p. 276. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX).
Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 394.
139
compostas por índios desnaturalizados, tanto do Chaco quanto do Valle Calchaquí, levando-os
a refletir sobre as leis e os problemas que teriam resultado nesse movimento315.
Pelo que se pôde observar, a implantação dessa nova consequência na prática da guerra
justa, no contexto da Guerra do Açu, quando junta às demais, visava contribuir com o propósito
de aniquilamento das raízes identitárias, as quais eram associadas aos territórios sociais dos
índios, possivelmente motivada pelo desejo de desmobilização dos grupos indígenas nas
guerras, e, consequente conquista de territórios. Pois, como citado anteriormente, para os
conquistadores e autoridades, não bastava apenas apresar os índios, mas a partir de então devia-
se desnaturalizá-los. Ao pôr em prática tal ação, os colonos terminavam por minar o poder de
articulação dos grupos naquele local no qual estavam inseridos, na tentativa de desestruturar as
bases sociais deles e consequentemente diminuir as chances de possíveis vinganças. Porém,
essa iniciativa não limitava os índios de recriarem tanto um novo espaço social quanto sua
organização política através da territorialização de outro espaço, motivada pela retirada de seu
território e consequente envio a outro316.
*****
Principalmente por meio dos documentos oriundos da Junta das Missões de
Pernambuco, foi possível elaborar neste último capítulo uma discussão que primasse mais
diretamente pela História Indígena na Capitania do Rio Grande. Visando contribuir com as
discussões referentes aos índios desse espaço colonial no sertão do Açu, foco de maior
incidência das guerras justas, pensou-se em tratar primeiramente sobre qual seria o território
deles e como se poderia caracterizá-lo e defini-lo. Portanto, ao partir da noção dos territórios
sociais, conseguiu-se materializar, por meio de fontes documentais e relatos, a maior parte pelos
tratados de paz, em que se deixavam escapar elementos que conformavam uma conduta
territorial específica aos índios. Pode-se citar, como exemplo dessa conduta, os laços afetivos
e sociais estabelecidos coletivamente em seu território social, a preferência pelo clima do sertão,
além das relações de uso e produção desse espaço ao modo deles para sustento do grupo. Dessa
maneira, o sertão do Açu, que tanto se abordou nesse trabalho, assume a posição de um território
315 ZELADA, Virginia. Entrega y distribución de indios desnaturalizados en córdoba. Promesas, normativas y
disposiciones de gobierno en torno al “problema” calchaquí, 1659-1693. Andes, vol. 29, núm. 2, 2018. 316 Portanto, essa hipótese precisa ser ainda melhor investigada para dar conta da experiência social dos índios,
tanto no Rio de Janeiro quanto em Pernambuco, atentando para se de fato as tentativas de desnaturalização ao
serem concretizadas, foram seguidas de uma nova territorialização no momento em que os índios foram inseridos
em uma nova jurisdição.
140
social visto pelo ângulo dos índios, que mesmo após a guerra justa e a consequente
reterritorialização de outro espaço por meio de novas condutas territoriais nutrem o desejo de
retorno para o sertão.
Depois de designar o Açu como um território social, envolvido em diversas disputas
de poder, pretendeu-se mapear de alguma maneira os rumos tomados pelos índios envolvidos
nos conflitos das guerras justas. Sabendo que esses índios viam-se impelidos a reterritorializar
um novo espaço de acordo com sua conduta territorial, tentou-se elencar os principais destinos
tomados por eles após os embates com os colonos e moradores. É certo que nem todos os
destinos foram decididos por livre e espontânea vontade dos índios, muitos deles foram
remetidos a outras localidades de modo compulsório pelos conquistadores, cujas principais
finalidades eram, principalmente: primeiro, desterritorializar os índios para assumir o controle
do sertão; e, segundo, para desarticular os grupos indígenas e as possíveis ações deles contra o
processo de avanço territorial da Coroa portuguesa.
De maneira geral, o processo de desterritorialização apresentou outro vetor baseado na
condição de desnaturalizar os índios e, por meio dos termos da Junta das Missões de
Pernambuco, começou-se a notar a inciativa das autoridades coloniais em desnaturalizar os
índios. Na prática, os dois termos parecem assemelhar-se, uma vez que ambos dão conta de um
desenraizamento de determinado grupo do seu local atual por fatores externos, geralmente
ligados a instituições e/ou autoridades superiores. Contudo, a desnaturalização por si só parece
realizar-se em um nível não apenas físico, de retirada da terra, mas também simbólico, uma vez
que se pretendia a dissociação dos grupos indígenas. Logo, a terra que era tida como “pátria” e,
mais ainda, como um território social para os índios, especificamente o Açu, ao se tornar alvo
das investidas expansionistas, terminou por viabilizar um projeto de desterritorialização dos
índios, que viria a suprir tanto o desejo de retirada deles do sertão quanto a ambição pela
conquista desse espaço.
141
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, abordou-se a temática da guerra justa, porém, tentando ao máximo
privilegiar as problemáticas das discussões pelo viés da História Indígena, tendo em vista que
grande parte das produções em torno da temática da chamada Guerra dos Bárbaros, em especial
no sertão do Açu, nem sempre se detém a essa face. No entanto, para adentrar nessa seara, foi
necessário, a princípio, estabelecer um debate de cunho teórico que atentasse para as produções
teóricas, teológicas e jurídicas que davam conta da guerra justa, propondo um balanço geral da
constituição desse aparato da legislação que colocava em consonância o projeto de expansão
territorial da Coroa portuguesa e o interesse dos moradores e colonos pela tomada das terras.
Nesse sentido, propôs-se um diálogo não somente entre fontes que abordavam questões da
América portuguesa, mas também a respeito da América espanhola, servindo, inclusive, como
um ponto de encontro dos consensos e discordâncias no tocantes à liberdade, cativeiro e guerra
dos índios.
Através deste estudo, pôde-se perceber os limites e os contornos tomados durante os
debates, como o ocorrido em Valladolid, ao pôr em cheque estudiosos e teólogos do século
anterior que já estavam tratando da relação entre a matéria da guerra e a Igreja, entre a violência
e a catequização dos índios, entre o cativeiro e a liberdade. Portanto, os ditames que
conformaram o que veio a ser o conceito jurídico da guerra justa passaram por diversas
abordagens, por supressão de elementos e incremento de outros, desde as primeiras teorizações
com Santo Agostinho, no século V, até a incidência dessa prática nas possessões coloniais.
Desse modo, os índios personificaram os mais diferentes estigmas negativos a fim de construir
o alvo ideal para se guerrear.
A legislação indigenista no Brasil foi um reflexo do intenso debate que permeou a
temática da guerra justa. O conjunto de leis conhecido como Leis de Liberdade dos Índios –
sancionadas nos anos de 1609; 1680; e 1755 –, por exemplo, ilustram as idas e vindas nas ideias
que estabeleciam as leis ao tratar da guerra e consequente cativeiro dos índios. Ora se
determinava uma liberdade irrestrita, ora a restringiam, contudo, o elemento que parecia
cristalizar as discussões era a guerra justa pois através dela, e apenas por ela, é que se fariam
cativos os índios. Sendo assim, amparados juridicamente pela legislação, conquistadores e
moradores poderiam atender às suas necessidades não apenas com a mão de obra indígena, mas
com o domínio das terras no momento em que esses índios combatidos e cativos eram retirados
do seu território social.
142
Foi com a chamada Guerra dos Bárbaros que as guerras justas se avolumaram em
grande quantidade nas Capitanias do Norte. A começar pelo uso e solidificação da expressão
“bárbaros”, tem-se que esse conflito tratar-se-ia de um conflito aos índios estigmatizados como
rebeldes e insolentes, portanto, aptos para serem combatidos e feitos cativos. Como se notou,
as guerras (in)justas que assolaram os índios, da Bahia ao Açu, tiveram um crescimento
vertiginoso e, apesar de não se deterem a uma análise quantitativa, percebe-se qualitativamente
que os discursos produzidos pelas autoridades ou moradores faziam uso do recurso jurídico da
guerra justa constantemente, a fim de tomar posse dos territórios dos índios. A Guerra do Açu,
especificamente, materializou a ambição pelos sertões e, mais ainda, pelo que aqui se entendeu
como territórios sociais dos índios.
Também se apresentou aqui, apesar das limitações e dificuldades com relação à
especificidade e o caráter das fontes oriundas da Junta das Missões de Pernambuco, do
Conselho Ultramarino e demais instituições vinculadas à Coroa Portuguesa, o resultado da
pesquisa construído por meio da análise do discurso jurídico por um prisma que viabiliza o
enriquecimento da narrativa historiográfica do Rio Grande do Norte condizente aos índios.
Dessa maneira, pôde-se identificar a utilização do aparato legal da guerra justa na capitania do
Rio Grande, entre os séculos XVII e XVIII, como um argumento justificador para o
estabelecimento de guerras contra os índios, comumente das etnias Janduí, Caboré, Capela e
Panicuassu, vistas como ameaças, em especial, quando se uniam.
Notou-se a recorrência na utilização desse argumento jurídico sobre os povos
indígenas, principalmente pelos termos da Junta das Missões de Pernambuco, fato que os levou
a recriarem estratégias de sobrevivência em meio ao jugo da Coroa no período colonial. Mesmo
sabendo dos diferentes meios possíveis de articulação dos grupos indígenas que podem ser
caracterizados como resistências adaptativas, decidiu-se pontuar aqui apenas os deslocamentos
dos grupos indígenas como uma das alternativas possíveis de se resistir. Tanto por meio da fuga
quanto pelos deslocamentos compulsórios, conjectura-se que os índios viam-se impelidos a
estabelecerem um novo espaço de sociabilidade por meio do resgate e afirmação de suas
identidades e, portanto, tinham de criar mecanismos capazes de garantir a territorialização de
dado local, muitas vezes para além do sertão da Capitania do Rio Grande.
No entanto, vale salientar que o caráter dos deslocamentos compulsórios vinha a
cumprir um objetivo próprio das autoridades coloniais pois, valendo-se do movimento de
retirada e desarraigamento dos índios do seu local de sociabilidade, intentou-se desnaturalizá-
143
los. Tendo isso em vista, o discurso jurídico da guerra justa ganhou esse complemento,
introduzido como mais uma das consequências possíveis de ser direcionada aos índios inimigos.
Em decorrência disso, os colonos teriam a chance de povoar e dominar os sertões mais
livremente em nome da Coroa Portuguesa pois os índios que se apresentavam como fronteiras,
impedindo esse movimento, seriam retirados da jurisdição da Capitania do Rio Grande e
remetidos a um novo espaço, aqui evidenciado como o Rio de Janeiro, assim como a Capitania
de Itamaracá ou de Pernambuco, por exemplo.
Enfim, a desnaturalização incidiria diretamente no processo de desterritorialização dos
índios, enquanto uma nova territorialização ganharia maior força no formato desejado pela
Coroa portuguesa. Tendo-se como ponto de partida as relações sociais dos índios com o seu
território ao sofrer diversos processos de desterritorialização, seguidos de novas
territorializações com suas vivências próprias do espaço, de acordo com sua cultura e do seu
tempo, pretendeu-se, aqui, evidenciar as possíveis trajetórias tomadas por esses grupos, haja
vista que “cada grupo cultural e cada período histórico funda sua própria forma de vivenciar
‘integralmente o espaço’”317. Portanto, para concretização do projeto de domínio do sertão nos
moldes lusitanos, fazia-se necessário o rompimento das relações sociais dos índios entre eles
mesmos e com o ambiente ao qual estavam originariamente inseridos. Logo, desnaturalizar os
índios assumia um caráter de desenraizá-los de seu espaço de sociabilidade ou de seus territórios
sociais.
317 HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 67.
144
FONTES
FONTES MANUSCRITAS
Assento (cópia) da Junta das Missões sobre o extermínio e pazes feitas com os índios tapuias
Caboré e Capela que estavam reunidos na aldeia Guajiru. In: AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa
1, Doc. 78 (Lisboa, 25 de agosto de 1714).
Carta régia ao Governador do Rio de Janeiro sobre a criação da Junta das Missões Ultramarinas.
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), cód. 952, vol. 3, p. 5. Lisboa, 07 de Março de 1681.
Carta régia aos oficiais da Câmara de Natal sobre se fazer junta acerca da guerra contra os
índios Janduís. AHU, Cd. 257 f. 121v e 122v.
Carta régia ao governador do Maranhão sobre se ter resoluto fazer-se guerra ao gentio brabo
em defesa das hostilidades que fazem aos moradores do Rio Grande. Lisboa, 10 de março de
1695. Conselho Ultramarino – Tomo V – PE. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Arq. 1. 2. 24, fl. 112.
Carta para o governador de Pernambuco [1694]. Documentos Históricos da Biblioteca
Nacional, Volume 38, pp. 314-315.
Carta para o capitão-mor Domingos Jorge Velho sobre partir com a gente que tiver sobre os
bárbaros do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10,
pp. 293-295.
Carta que se escreveu ao governador de Pernambuco João da Cunha de Sotto Maior sobre a
guerra do gentio bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional,
Volume 10, pp. 263-267.
Carta que se escreveu para o capitão-mor da capitania do Rio Grande Paschoal Gonçalves de
Oliveira sobre a guerra do gentio bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da
Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 270-272.
Carta que se escreveu ao coronel Antônio de Albuquerque da Câmara sobre a guerra do gentio
bárbaro do Rio Grande [1668]. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp.
276-280.
Carta que se escreveu ao bispo de Pernambuco sobre o sucesso da guerra do Rio Grande [1688].
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 306-308.
Carta para o senhor almotacé-mor do reino e governador de Pernambuco [1690]. Documentos
Históricos da Biblioteca Nacional, Volume 10, pp. 388-393.
Carta do capitão-mor do Rio Grande do Norte, Bernardo Vieira de Melo, ao rei [D. Pedro II]
sobre decisão dos oficiais da Câmara e moradores de Natal de se fazer um presídio no sertão
do Açu, que seria sustentado por seis meses pelas farinhas dadas pelos moradores. In: AHU-
RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 42 (1697, Abril, 25, Natal).
Carta (minuta) ao rei [D. Pedro II] sobre os índios agregados ao Terço dos Paulistas, no Açu.
In: AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 55 [post. 1700].
145
Carta do [sargento-mor do Terço dos Paulistas] José de Morais Navarro ao rei [D. João V] sobre
uma trama entre capitães do Terço dos Paulistas e moradores da Ribeira do Açu para incitar os
índios Paiacu contra os “Panucuguassu”, aldeados pelo mestre-de-campo Manuel Álvares de
Novais Navarro, a fim de conseguirem aprisionar as suas mulheres e filhos. AHU-RN, Papéis
Avulsos, Caixa 1, Doc. 65 (1710, Maio, 27, Açu).
Carta do [capitão-mor do Rio Grande do Norte], Salvador Álvares da Silva, ao rei [D. João V],
sobre a destruição que os índios “Caboré-Açu” fizeram na Ribeira do Açu, como vingança do
ataque que sofreram dos vaqueiros. In: AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 1, Doc. 68 [post. 1711,
Novembro, 30, Natal].
Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei [D. João V], sobre as dificuldades que os moradores
enfrentam por causa de um bando que o governador de Pernambuco, Felix José Machado,
mandou lançar para que todos os tapuias cativos de sete anos para cima fossem remetidos para
Pernambuco, para serem vendidos no Rio de Janeiro. Anexo: carta dos oficiais da Câmara de
Natal ao governador de Pernambuco (treslado) e resposta. In: AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa
1, Doc. 71 (1713, Julho, 29, Natal).
Carta do desembargador Cristóvão Soares Reimão ao rei [D. João V] informando que o
Capitão-mor do Rio Grande do Norte, Salvador Álvares da Silva, havia dado terras dos índios
da Aldeia de Mipibu ao padre Manuel Rodrigues Pereira e a Baltasar Gonçalves, causando
conflitos com os índios. In: AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 75 (1713, Outubro, 11,
Recife).
Carta autografada de Domingos Jorge Velho, escrita do Outeiro do Barriga, campanha dos
Palmares em que narra os trabalhos e sacrifícios que passou e acompanha a exposição de Bento
Sorriel Camiglio procurador dos Paulistas [1694]. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos
Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 342.
Consulta de Bernardo Vieira de Melo – da capitania do Rio Grande – em que dá conta de se
haver ausentado o gentio Canindé do sítio em que estava, e de lhe haver morrido o seu principal
e sete crianças sem as batizar o clérigo que lhes assistia [1699]. Documento original no Arquivo
Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p.
420-421. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-
XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 432-433.
Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre carta do capitão-mor do Rio Grande
do Norte, Pascoal Gonçalves de Carvalho, acerca das hostilidades que os índios tapuias Janduí
faziam na capitania. AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 27 (1688, Fevereiro, 6, Lisboa).
Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre carta do capitão-mor do Rio Grande
do Norte, Agostinho César de Andrade, acerca da destruição da capitania com os ataques dos
tapuias e sobre a falta de mantimentos para os soldados aquartelados na Ribeira do Açu, o que
os obrigava a abandonar o posto. AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 31 (1690, Novembro,
10, Lisboa).
Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre diversas cartas recebidas acerca do
estado de ruínas da Capitania do Rio Grande do Norte e da Fortaleza dos Reis Magos por causa
da Guerra dos Bárbaros. Anexo: aviso, parecer do Conselho Ultramarino (minuta); cartas do
ouvidor-geral da Paraíba, Diogo Rangel Castel Branco, do capitão-mor da capitania do Rio
Grande do Norte, Sebastião Pimentel, dos oficiais da Câmara de Natal e do governador de São
Tomé, Ambrósio Pereira de Berredo. AHU-RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 35 (1693,
Novembro, 23, Lisboa).
146
FONTES IMPRESSAS
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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p.
185.
Termo sobre humas Aldeas que seachão sem missionarios sobre os cabos do Siry, e Arataguy
nam terem muita fidelidade, sobre os Tapuyas hirem para fora da terra. Sobre querer o Provedor
do Rio Grande quintar huns Tapuyas que tinham ajustado paz. Sobre os Tapuyas da Capella
não terem Aldea separada, nem postos. Sobre matarem-se em uma marcha 14 Tapuyas da
Capella por desconfiança; sobre marchar o Terço do Assú para sua conquista. Sobre pagarse
aos Indios a 80 reis e de comer. Sobre os Tapuyas Anasses matarem ao Mestre de campo
Antônio da Cunha Solto Mayor. Termo 32, 03 de abril de 1713. Biblioteca Nacional de
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