memória eletronica e a desterritorialização

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    Memria eletrnica e desterritorializao

    Jonatas Ferreira *

    Acio Amaral **

    Se a memria pode se industrializar, isso se deve ao fato de que ela tecno-logicamente sintetizada, e se essa sntese originria, porque aquilo quedefine oquem sua finitude retencional: sendo sua memria limitada, essen-cialmente faltante, radicalmente desmemoriada [...], ela deve ser suplemen-tada por suportes que no sejam apenas os meios de a conservar, mas asprprias condies de sua elaborao (Stiegler, 1996, vol. 2: 16)

    Os suportes de memria no so apenas meios de conserva-o, mas as prprias condies de sua elaborao. Essa pro-posio, cuja orientao derridiana parece evidente, deve ser recu-perada em uma tradio bastante antiga. J Plato oferece umareflexo bastante elaborada acerca da relao que existe entre su-porte e memria. Segundo ele argumenta, pensada como suportemnemotcnico, a escrita alfabtica no apenas um instrumentoservil do pensamento, mas uma estrutura sobre a qual as possibi-lidades especficas do pensar so estabelecidas. Por perceber a serie-dade dessa constatao, ele questiona a convenincia de se proce-der ao registro escrito da reflexo filosfica. Suspenso do contextode sua produo, o saber, paralisado na memria escrita, seria in-capaz de responder s demandas dinmicas e sempre localizadasda vida (Ferreira, 2003). O saber verdadeiro demandaria a presenade interlocutores ativamente envolvidos no desvelamento do real.Talvez por esse motivo Santo Agostinho estranhe o hbito de seumestre, Santo Ambrsio, de ler em silncio: [...] na Numdia, ele

    redigiria suasConfisses e ainda o inquietaria aquele singular es-petculo: um homem em um aposento, com um livro, lendo sem

    * Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade Federal dePernambuco (UFPE).

    ** Professor do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal daParaba (UFPB).

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    articular palavras (Borges, 1999, vol. 2: 100-101). A leitura p-blica sempre uma experincia menos radical de acesso pala- vra escrita que a leitura solitria do texto. essa experincia radi-cal da escrita, de uma portabilidade semelhante quela que expe-rimentamos quando escutamos uma orquestra sinfnica atravsde walkman, que parece espantar Santo Agostinho.

    Sculos depois, Maurice Halbwachs comentaria a respeitodo registro histrico que apenas em sociedades onde a memriacoletiva, a fora orientadora da tradio tiver perdido sua tenso,onde a prpria idia de comunidade ameaar perder-se no esque-cimento, a histria escrita ganha importncia1. Essa desconfian-a com relao escrita, prtese, faz-nos pressentir algo funda-mental acerca da relao entre memria e suporte tcnico. Trata-se de decidir se a boa educao deve ou no se apoiar no registroescrito, sobre uma muleta tcnica. De modo sub-reptcio, entre-tanto, insinua-se na realidade a necessidade de decidir entredois

    padres de suporte de memria , e no mais entre tcnica ou li-berdade. Um padro tcnico oral e presencial e outro escrito enmade. Diferentes suportes mnemotcnicos geram possibilida-

    des existenciais e sociais distintas. revelia de sua preocupao terica central, nomeadamen-te, afirmar um campo no-tcnico, no-prottico, como con-dio de existncia de uma memria e um agir legitimamentehumanos, o pensamento metafsico inevitavelmente se deparacom a perspectiva de uma concluso inesperada. H em seu argu-mento um passo no dado; uma concluso de implicaes pode-rosas permanece sufocada. A memria no pode existir sem osuporte tcnico, como algo puramente cerebral; o passado nopode sobreviver sem os suportes tcnicos que nos inscrevem numadeterminada cultura, tradio. Posto que a memria no poss- vel sem artifcios como a linguagem, a escrita, falar da memria falar do esquecimento. falar daquilo que no podemos reter erecuperar, por certo. Mas tambm daquilo que suprimimos, su-blimamos de nossos arquivos de memria para que o prprio

    1 que em geral a histria comea apenas no ponto onde termina a tradio, momen-to onde se apaga ou se decompe a memria social (Halbwachs, 1950: 68).

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    arquivamento seja poltica e epistemologicamente possvel. A partir de Freud, j sabemos que a experincia da memria asso-ciada ao reprimido, quilo que precisa ficar oculto para que umadeterminada estrutura de rememorao possa ser legitimada. Ea mesmo reside seu elemento poltico. Falar de memria falarde uma certa estrutura de arquivamento que nos permite expe-rincias socialmente significativas do passado, do nosso presente ede nossa percepo do futuro. Se isso verdade, como acredita-mos, a digitalizao da memria, a constituio de uma memriaeletrnica, instantaneamente acessvel, deve ser entendida comoum acontecimento maior de nossa histria recente. Quando nada,tomam pela prpria oportunidade de acessar instantaneamenteuma quantidade colossal de memria escrita, fotografada, grava-da fato tanto celebrado por uns, Pierre Lvy e sua intelignciacoletiva, por exemplo, como lamentado por outros. O que deveficar nas sombras para que um tal arquivo seja produzido? A instantaneidade de acesso informao, para Virilio, deve serpensada dentro de um contexto tecnolgico em que a informa-o no pode mais viabilizar a reflexo. Isso se deve, em primeirolugar, ao fato de, numa sociedade global, o volume de informa-o relevante para decidirmos acerca de nossas vidas ser extre-mamente elevado - donde um certo pnico em lidar com umaquantidade sobre-humana de memria. Quem no se recordadaquele conto to citado de Borges em que um determinado im-perador se empenha numa cartografia absolutamente intil pre-cisamente por ser excessiva? A memria deve alimentar a deciso .

    Em segundo lugar, e sobretudo, porque a informao con-cebida como mercadoria estabelece um paradoxo: seu valor estassociado sua capacidade de se desvalorizar rapidamente. A sociedade de informao tambm e necessariamente a socieda-

    de da inovao; inovao que viabiliza e solicita a velocidade, otempo real, que, por seu turno, elimina o retardo reflexivo que amemria deveria propiciar.

    Uma vez que avelocidade garante o segredo e portanto ovalor de todainformao, libertar a fora dos meios de comunicao no [...] simples-mente aniquilar a durao da informao, da imagem e de seu trajetomas, juntamente com elas, tudo o que dura e persiste (Virilio, 1996: 52).

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    Para que nos servem nossas lembranas, nossa memria? Co-mentando oMatria e memria de Bergson, Gilles Deleuze responde:

    Elas nos servem para compensar nossa superioridade-inferioridade.Nossa superioridade sobre as coisas que nossas aes no se enca-deiam imediatamente com as excitaes recebidas. Isso de umacerta maneira aquilo que Bergson chama escolha. Ns temos um cer-to tempo para reagir, ou ento ns no temos este tempo, o pnico, a imagem-afeco. [...] Mas h tambm o aspecto inferioridade, asaber, minha ao no dispe mais da facilidade de uma simples con-

    seqncia [...] da excitao recebida (Deleuze, Gilles, aula de 7 de junho de 1983. In: www.webdeleuze.com)2.

    Dada uma excitao recebida do mundo exterior, nossaslembranas nos auxiliariam na escolha da melhor ao a tomar.Sem elas, no h conscincia.

    Mas, se, considerada sua volatilidade, a informao digital j no gera memria cultural capaz de auxiliar a deciso, o queprecisamente geraria evento poltico na sociedade de informa-o? Tanto Virilio como Bernard Stiegler responderiam:

    O sensacional se imprime na memria pblica, e este sensacionalismoestando ligado eliminao doaprs-coup, do retardamento que a mar-ca de todareflexividade no-reflexa, tudo parece acontecer como se umamemria sensitiva se impusesse, memria que viria esconder, apagar, ouseja, tornar impossvel as inscries noticas (Stiegler, 1996, vol. 2: 145).

    Ambos acrescentariam que o sensacionalismo miditicoalimenta uma acepo do poltico em que prevaleceriam o pni-co e o terror. O terror nos apresenta uma contingncia polticaabsoluta diante da qual impossvel estabelecer estratgias mi-nimamente reflexivas. Em que outra sociedade uma catstrofe

    como o 11 de setembro de 2001 poderia ter sido concebida erealizada como fato poltico?

    2 Viver no presente puro, responder a uma excitao atravs de uma reao imediataque prolonga, prprio de um animal inferior: o homem que procede assim umimpulsivo. Mas no est melhor adaptado ao aquele que vive no passado por meroprazer, e no qual as lembranas emergem luz da conscincia sem proveito para asituao atual: este no mais um impulsivo, mas um sonhador (Bergson, 1990: 126).

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    A memria eletrnica radicaliza um trao intrnseco a todosuporte de memria: a capacidade de promover a desterritorializa-o dos eventos no prprio ato de sua recuperao. A fixidez, ano mobilidade de uma igreja, por exemplo, um dado bviopara seus fiis ou para o olhar pouco familiarizado do turista queprocura pontos de referncia na cidade. Como memria, todavia,ela mvel. O registro escrito de leis, de maneira semelhante,pode ser encontrado em locais determinados, como bibliotecaspblicas, mas o seu destino a rua e o mundo. A materialidadedo livro, por outro lado, permite novas inscries, novas mem-rias que se somam quilo que o texto fixa. Mais que isso, certa-mente este livro contm em si citaes de outros textos, assimcomo se abre em novos textos que o citam, que o recuperam.Todo texto hipertextual e, por este motivo, nmade. Aquilo queele nos apresenta sempre nos remete para mais alm e maisaqum: de onde partiu? Para onde se dirige?

    Dessa maneira especfica, um corpo tambm pode ser com-preendido como hipertexto. O corpo lugar de inscrio de ru-gas, marcas adquiridas ou inatas, cicatrizes, incrustaes, de

    memria cujo significado e produo cultural expande, de modoigualmente hipertextual, o espao por onde ele transita. O corpodo turista europeu em praias tropicais, por exemplo, radical-mente hipertextual: pela cor que ostenta, por sua forma de se vestir e ocupar o espao. O mesmo pode ser dito do corpo doemigrante nos aeroportos europeus, ou dos meninos e meninasesfomeados nas ruas de grande trfego do Recife.

    Ocorre, entretanto, que o ato de inscrio da memria emum meio eletrnico se opera em um no-lugar, como observariaPaul Virilio. Olugar , de modo diferente da idia de espao, sexiste para eventos cuja materialidade esteja associada a signifi-cados culturais especficos, a uma etnicidade. A desmaterializaoda memria na sociedade de informao se opera fundamental-mente em oposio a esses significados. Podemos dizer que acidade antiga um lugar por ser simbolicamente significativa3. A

    3 Que a relao entre memria e lugar estreita pode ser ilustrada, ademais,pela prpria importncia que a mnemotcnica confere possibilidade de associar

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    biologia molecular, no entanto, produz uma cartografia peculiar.No mapa gentico do ser humano encontramos citaes de se-qncias genticas de outras espcies (Ferreira, 2002: 221). A per-cepo desse rastro nos remete a uma errncia qualitativamentedistinta daquela que experimentamos quando percebemos nocorpo coberto de cicatrizes de uma criana a citao da violnciae da misria ou quando, nas mos de um campons, somos re-metidos a um determinado tipo de trabalho manual. O ciberes-pao e o corpo digital radicalizam a transitividade, a permuta-bilidade, o esvaziamento axiolgico que caracterizam a ocupa-o moderna do espao. Onde antes havia uma igreja, a Moder-nidade ergue um arranha-cu; onde antes havia o dorso de umrato, a engenharia gentica faz crescer uma orelha humana. A errncia mnemotcnica que essas tecnologias promovem , emprincpio, profundamente desorientadora.

    Se a inscrio eletrnica da memria se opera em um no-lugar, e se nossa hiptese central est correta, qual seja, o supor-te de memria fundamental sua elaborao, teramos nestasltimas observaes uma informao a ser cuidadosamente con-

    siderada. A prpria possibilidade de narrativa, onde se alinhari-am uma origem, um presente e um futuro possvel, no estariasendo lanada no abismo com o arquivamento eletrnico damemria? Desde que tenhamos dinheiro suficiente, tudo pareceestar igualmente disponvel. Interessa-nos saber de que modo oarquivamento eletrnico pode acenar com esse tipo de promes-sa. Ocorre-nos como ilustrao de nosso argumento um conto dePhillip K. Dick, cujo trabalho gerou roteiros de filmes to popula-res quanto Blade Runner, Total Recall e Inteligncia Artifi-cial. No seu conto I hope I shall arrive soon (Gray et al., 1995)ele nos remete longa viagem intergalctica de um certo Victor

    Kemmings ao Sistema LR4. Posto em estado de suspenso

    aquilo que se deseja memorizar experincia de lugares significativos. O artistada memria, que segue o exemplo de Simnides, percebe em primeiro lugar paraseus fins [...] uma constelao fixa de lugares (em grego,topoi, latim,loci) bemfamiliares, sua residncia, o frum. Nesses lugares ele testemunha em seqnciaordenada os contedos isolados da memria, depois de primeiro os ter transfor-mado em imagens [...], se j no o forem por natureza (Weinrich, 2001: 31).

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    criognica defeituosa, ele ganha parte de sua conscincia dez anosantes de chegar ao seu destino. O que fazer com este tempo deespera se, no dispondo a nave de oxignio, gua ou alimento,ele no pode ser reconduzido plena conscincia e ao controlede seu corpo? O computador responsvel pela nave lhe properecuperar em seu banco de dados a memria dos melhores mo-mentos da vida de Kemmings e reproduzi-los durante o temporestante de viagem. Desconsidera em sua lgica o fato de nenhu-ma memria de felicidade poder existir sem que outros senti-mentos como ansiedade, medo de fracasso, desamparo sejam tam-bm invocados. Tomemos suas lembranas da aquisio de umquadro valioso: mas ser ele realmenteum original ou uma falsifica-o sem valor ? Recordaes da vida feliz com Martine: por quantotempo ela ficar ao meu lado? Quando ela partir? Uma dose cava-lar dos melhores momentos tambm a multiplicao da carga dedesastres emocionais que estes momentos represam ou sobre osquais repousam. O computador, todavia, s pode processar infor-maes no ambguas, ligado ou desligado, zero ou um, felicidadeou tristeza, incapaz de perceber a tensa relao que existe entre oregistro digital e a pluralidade e ambigidade da memria vivida.

    Uma questo terica se impe a esta altura: estaramos ope-rando a partir da mesma oposio que caracteriza a apreciao pla-tnica da memria, ou seja, opondo a voz da experincia vivida reduo e ao empobrecimento da prtica hipomnsica, ao registroem suporte tcnico? Haveria alguma verdade importante na apreci-ao platnica da memria que retornaria mesmo quando no acei-tamos seus pressupostos metafsicos? Uma resposta a essas ques-tes ter de aguardar um maior desenvolvimento do tema.

    Modernidade e memriaSob diversos aspectos, a Modernidade torna a experincia

    da memria um problema. A dinmica industrial produtora decontingncia e, portanto, de esquecimento. Lembrar valorizar, recuperar e preservar da aniquilao um evento, imagem, som,cheiro. A lgica do mercado, por outro lado, nada pe a salvo.Todas as coisas so passveis de equivalncia, todas as coisas se

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    substituem. Podemos retomar esse tema de um outro ngulo.Para o pensamento moderno, nada deve ganhar legitimidade semo crivo da razo. Onde no houver a luz da experincia, a com-provao prtica, no h conhecimento. De acordo com Heidegger,a essncia desse tipo de conhecimento o matemtico, ou seja,um saber de antemo que permite o controle do real. O mate-mtico na Fsica, por exemplo, d a Newton a possibilidade deentender o movimento dos corpos como materializao de prin-cpios elementares passveis de serem conhecidos antecipada-mente. O presente aqui j no assusta tudo pode ser deduzi-do e comprovado aqui e agora. NoCurso de Filosofia Positiva ,Comte j dizia que o conhecimento cientfico nos livra do es-panto provocado pela contingncia do real. O matemtico noconhecimento cientfico busca produzir o cancelamento do tem-po vivo, dadure, diria Bergson, porque precisamente o tem-po vivo que nos d a possibilidade do novo e inesperado. Naconcepo matemtica do tempo o novo j no possvel, e o j dito, a memria do passado, passa a ser redutvel ao princ-pio. Passado, presente e futuro so apenas pontos em uma retaou curva cuja equao poderamos determinar.

    No fortuito que durante o sculo XVII o conhecimentorigoroso da histria seja um problema terico. Sobre quais bases possvel pensar a histria cientificamente, libertando-a do mito,do compromisso com uma narrativa religiosa, com algum tipo deteodicia, ou seja, com a tradio? Todadimenso do histrico fica[...] excluda do crculo do ideal cientfico cartesiano; nenhum sa-ber de fatos pode conduzir-nos autntica sapientia universa-lis(Cassirer, 1997: 227). No h uma nica resposta a esse proble-ma. Na percepo de Cassirer, um certo empirismo que orienta acompreenso de histria em Bayle um passo na direo de uma

    compreenso tipicamente moderna da histria. Ali prevalece umaperspectiva cosmopolita segundo a qual seria, em princpio, poss- vel cancelar os pressupostos culturais, polticos, morais do histori-ador, para que se chegasse de modo objetivo ao fato histrico.

    No existe uma hierarquia de conceitos, mas uma simples coexistn-cia de materiais, igualmente significativos, que participam num mes-mo grau da pretenso a uma exposio completa e exaustiva.

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    Tampouco no modo como vai abordando os materiais procede Baylecom critrio seletivo. No o afeta nenhum escrpulo, nenhuma d- vida, nem procede de acordo com um plano metdico que fixe seuslimites e separe o importante do secundrio, o principal do acess-rio (Cassirer, 1997: 227-228).

    O cosmopolitanismo empirista em toda a Europa - o enciclo-pedismo francs e o historicismo so exemplos desta postura -est associado a uma nova cultura de arquivamento, uma culturapreocupada com o detalhe. Foucault avalia em diversos dos seustrabalhos o sentido poltico dessa ateno com o aparentementeinsignificante. Trata-se, para ele, de um passo seguro em direoao controle e disciplina do quotidiano. Em seu ensaio Culturasde arquivo Mike Featherstone relata este novo impulso culturalem que a figura mtica do grande heri sai de cena em benefciode um zelo pela vida comum. Os arquivos pblicos,a constituiode uma memria nacional so elementos importantes de um pro-cesso de reencaixe dentro dos limites da sociedade industrial.

    A razo de arquivo um tipo de razo preocupada com o detalhe, elanos afasta constantemente da grande generalizao, descendo at aparticularidade e singularidade do evento. Contudo, esta singularida-de ela prpria produzida por meio de um olhar discriminador eimplica uma esttica da percepo para permitir que o significanteseja retirado da massa de detalhes. Dado que o detalhe pode signifi-car exatamente qualquer coisa, o foco move-se para o mundano e a vida cotidiana; como Osborne (1999: 59) afirma: Se a memria realera uma memria do soberano e dos grandes atos, a memria arquivalem suas formas modernas uma memria mesmo quando enfocaos grandes e os poderosos do detalhe cotidiano. De Tocqueville emdiante, o interesse tem sido focalizar no s a singularidade dos gran-des eventos, mas o cotidiano, que um efeito do ato de colecionar ainformao mundana (Featherstone, 2003).

    Visto dessa perspectiva, Halbwachs estava certo ao afirmarque a historiografia prospera onde a memria viva, sob a formade tradio oral, mostra sinais de extenuao. O arquivo, a preo-cupao de estocar informaes, de preservar o passado acess- vel marca uma mudana de mentalidade poltica e jurdica emque a fragmentao, a contingncia e o desencaixe da vida urba-

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    na so percebidos como obstculos memria. Tudo deve serarquivado porque, em princpio, tudo passvel de controle po-ltico, tcnico. Esta compulso pelo arquivamento denuncia, naprpria escala em que a estocagem de informaes se opera,uma fora arquivioltica que tudo desencaixa e, ao faz-lo, dis-ponibiliza. Porm, h outro sentido a partir do qual podemosdizer que uma fora arquivioltica opera no arquivo moderno:[...] diretamente naquilo que permite e condiciona o arquiva-mento s encontrareis aquilo que expe destruio e, na ver-dade, ameaa de destruio, introduzindoa priori o esqueci-mento no corao do monumento. No prprio saber de cor. Oarquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo (Derrida,1997). Em ltima instncia, esta fora que abre o espaoepistemolgico para que se possa perguntar: como o ser huma-no pode rememorar? Como a memria opera? a pulso demorte operando na prpria estrutura de arquivamento moder-na que produz este impulso epistemolgico. Do ponto de vistasociolgico, entendemos, este tipo de reflexo est associada auma certa perplexidade com o significado cultural especfico quea memria passa a ter na Modernidade.

    Uma primeira resposta: Bergson

    Existem, para Bergson, dois tipos de memria e no ape-nas um. O primeiro tipo corresponderia lio que se aprende decor, ao hbito sensrio-motor que determina, atravs de um cer-to condicionamento, uma prtica de percepo, de ao.

    Como todo exerccio habitual do corpo, enfim, ela armazenou-se nummecanismo que estimula por inteiro um impulso inicial, num sistema

    fechado de movimentos automticos que se sucedem na mesma or-dem e ocupam o mesmo tempo (1990: 61).

    Andar de bicicleta ou tocar um instrumento o resultadode condicionamento, de acmulo de experincia, de memriacorporal. Tanto numa como na outra atividade, todavia, no nosdetemos na recuperao desta ou daquela lio particular; a me-mria acumulada em um saber-fazer simplesmente desfaz enquan-

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    to tal a srie discreta de experincias e conserva apenas uma dis-posio determinada do corpo para agir de acordo com um pa-dro de movimentos determinados. A memria est inscrita demodo prtico em nosso corpo. Isso no impede de nos lembrar-mos daquela aula particular de clarinete em que nos foi ensinadaa execuo de um dado ornamento. Aqui temos uma experinciaqualitativamente distinta de nossa capacidade de rememorar. Estesegundo tipo de memria diz respeito possibilidade de recupe-rar no tempo a experincia singular: [...] a lembrana de tal lei-tura particular, a segunda ou a terceira por exemplo, no temnenhuma das caractersticas do hbito. Sua imagem imprimiu-senecessariamente de imediato na memria (Ibid., p. 61).

    H entre os dois tipos de memria no apenas uma dife-rena de grau, mas de natureza. Uma forma de memria consi-derada espontnea e imediatamente perfeita; o tempo no po-der acrescentar nada sua imagem sem desnatur-la; ela con-servar para a memria seu lugar e sua data. Ao contrrio, a lem-brana aprendida sair do tempo medida que a lio for melhorsabida. Por este motivo, embora til e disponvel aos apelos da

    vontade consciente, esta memria tcnica em que aprendemosa saber-fazer, a saber-executar, torna-se [...] cada vez maisimpessoal, cada vez mais estranha nossa vida passada (Ibid.,64) medida em que se desenvolve. De acordo com Bergson,apenas o primeiro tipo de memria pode ser considerado mem-ria por excelncia. A memria-hbito garante ao ser humano oaprendizado necessrio execuo adequada de suas tarefas di-rias, o condicionamento e um certo esquecimento necessrio sua execuo (pois quem se detm naanlise do modo correto deexecutar um dado ornamento musical, a forma adequada de ope-rar um determinado equipamento, certamente no o far com com-

    petncia). O segundo tipo de memria, por sua espontaneidade,constituiria para Bergson um espao de liberdade subjetiva.

    Um ser humano que sonhasse sua existncia ao invs de viv-la mante-ria certamente sob seu olhar, a todo momento, a multido infinita dosdetalhes de sua histria passada. E aquele que, ao contrrio, repudi-asse essa memria com tudo o que ela engendra,encenaria sem cessarsua existncia ao invs de represent-la verdadeiramente: autmato

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    consciente, seguiria a encosta dos hbitos teis que prolongam aexcitao em reao apropriada. O primeiro no sairia jamais do par-ticular, e mesmo do individual. [...] O outro, ao contrrio, sempreconduzido pelo hbito, s distinguiria numa situao o lado por ondeela se assemelha praticamente a situaes anteriores (Ibid.: 127-128).

    necessrio observar que essa oposio no pode deter-minar a excluso de um dos plos. Sem um elemento de esponta-neidade e individualidade a memria seria vazia; sem o hbitoa memria involuntariamente acessvel seria cega. A oposioentre memria voluntria e memria involuntria, como sabi-do, bastante influente no pensamento europeu da primeirametade do sculo XX. Os ecos da teoria da memria de Bergsonso encontrados, por exemplo, em Proust. Ali no apenas se pri- vilegia a memria involuntria como terreno tpico da realizaoartstica, como se enaltecem outros sentidos que no o da visocomo vias mais adequadas de acesso a este tipo de experincia. Antes de Proust, de suas consideraes acerca da forma como oolfato ou uma determinada postura corporal traz tona a mem-ria involuntria, Bergson j nos falava de uma memria total-

    mente corporal. Na base do reconhecimento haveria, portanto,efetivamente, um fenmeno de ordem motora. Reconhecer umobjeto usual consiste sobretudo em saber servir-se dele (Ibid.,p. 73)4. Se o reconhecimento, ato em que percepo e memriase fundem, entendido como um fenmeno de ordem motora,no se pode aceitar que a mente seja um banco de dados, deinformaes discretas. O que a memria armazena so movimen-tos, aes ou, diramos, disposies corporais a fenomenologia,menos corporal e mais abstrata, talvez chamasse isso deintenciona-lidade. Segundo o argumento que aqui procuramos desenvolver,parece evidente que aquilo que um banco de dados armazenano apenas a informao instantnea, mas a prpria lgica dearquivamento que a preside. Esta lgica de arquivamento tam-bm uma lgica de disposies que reconhece ou rejeita deter-minados movimentos e entradas de dados.

    4 Para uma crtica a este tipo de compreenso da memria, ver os conceitos derepresentaes individuais e representaes coletivas na obra de Durkheim.

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    Algo distingue profundamente e manifesta claramente os sistemas demovimento consolidados no organismo. sobretudo esta, acredita-mos, a dificuldade de modificar sua ordem. Da tambm a pr-forma-o dos movimentos que se seguem nos movimentos que precedem,como acontece quando cada nota de uma melodia aprendida, porexemplo, permanea inclinada sobre a seguinte para vigiar sua exe-cuo. Se, portanto, toda percepo usual tem seu acompanhamentomotor organizado, o sentimento de reconhecimento usual tem suaraiz na conscincia dessa organizao (Ibid.: 74-75).

    O que acontece, porm, quando as condies tcnicas de com-posio desta melodia j no so tonais, j no nos proporcionam asegurana de uma narrativa com comeo, meio e fim? Para Bergson, preciso compreender o presente como durao e no como mo-mento instantneo, ou seja, preciso reconhec-lo como produto deuma disposio, de um movimento instaurado necessariamente pelamemria, pelo passado. Por isso mesmo o presente j memria.

    A sua percepo, por mais instantnea, consiste numa incalculvel quan-tidade de elementos rememorados, e, para falar a verdade, toda percep-o j memria. Ns percebemos, praticamente, o passado , o presente puro

    sendo o inapreensvel avano do passado a roer o futuro (Ibid.: 123). A importncia de Bergson para que o pensamento ocidental

    tivesse a oportunidade de superar uma compreenso instantneado presente, o presente como ponto, como Augenblick bastanteconhecida. [O presente] evidentemente estar aqum e alm aomesmo tempo, e o que chamo meu presente estende-se ao mes-mo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro (Ibid.: 113).

    Percepo do presente e memria esto intimamente rela-cionados. A percepo uma experincia prtica e no apenascontemplativa. A prpria base da conscincia seria a existnciade um hiato reflexivo, de memria, a partir do qual o ser humanopode decidir. Tambm por este motivo, o trabalho da memria tambm um trabalho de esquecimento, pois s a partir da apa-rncia de destruio completa, para posterior ressurreio, a cons-cincia capaz de rejeitar momentaneamente o suprfluo e re-cuperar aquilo que seja til. Sempre voltada para a ao, ela s capaz de materializar, de nossas antigas percepes, aquelas

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    que se organizam com a percepo presente para concorrer deciso final (Ibid.: 120)5. Para que nos servem nossas lembran-as, nossa memria? A memria deve auxiliar-nos a decidir livre-mente. E enquanto a memria tcnica, aquela associada ao movi-mento condicionado, a um saber de cor que abstrai o movimentodo fluxo temporal e da possibilidade de realizar o novo, consi-derada um tipo auxiliar de memria, a liberdade estaria associa-da experincia de uma memria acabada, original qual a ex-perincia condicionante da tcnica nada pode acrescentar. Pode-mos dizer que a resposta terica bergsoniana para o problema damemria na Modernidade estaria disposta nos termos definidospela metafsica platnica, embora ela tambm nos ajude a enten-der que a forma como percebemos o mundo o resultado deuma disposio motora instalada pela memria ou que deveser entendido como a prpria memria.

    Benjamin: a possibilidade de memria sem origem

    Vejamos, todavia, uma viso alternativa, menos tecnofbica,

    acerca das possibilidades de experincia da memria na socieda-de industrial. Walter Benjamin no hesita em conceder ao supor-te tcnico o estatuto de condio de elaborao da memria, eno apenas de ser um veculo de sua conservao. Por esse moti- vo, no poderamos deixar de considerar sua contribuio, nestesentido, pioneira. Benjamin est interessado numa gama com-pletamente nova de experincias da memria, na qual no have-

    5 Bergson nos fornece elementos para pensar que uma certa acdia necessariamen-te haveria de acometer aqueles que armazenassem memria em demasia, aque-les que arquivassem demasiado. No toa que Borges imagina Funes comosendo um homem paraltico, incapaz de dormir, de conceituar pois o que signi-fica o conceito cachorro diante da diversidade concreta dos inmeros cachorrosque ele j viu? Sua paralisia e sua incapacidade esto relacionadas a uma atividadehipermntica que o impede de esquecer e, portanto, de propriamente lembrarpara poder decidir. O excesso de memria, a pane motora e a incapacidade dedecidir estariam, desse modo, fortemente associados. Funes, entretanto, umhomem sem outros equipamentos alm da linguagem. Mesmo a linguagem h delhe ser intil. No apenas paraltico, ele dever findar por desistir da fala, poisnomear pressupe esquecer a infinita diversidade de um objeto.

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    ria possibilidade de qualquer recolhimento, qualquer retardo re-flexivo capaz de atualizar os eventos passados em sua originali-dade. O terreno sobre o qual a tradio se inscreveu como formade organizao social, a etnicidade da memria ancestral com-partilhada, torna-se, na era da reprodutibilidade tcnica, um terre-no movedio. Em questo est a possibilidade da origem e, porextenso, qualquer reivindicao de autenticidade, de um momen-to fundador sobre a qual a ordem se legitimaria. Como se orientarna contingncia? Suas consideraes acerca da crise de autoridadena Modernidade so bem conhecidas e significativas tambm des-sa perspectiva. J noDrama barroco alemo , trata-se de refletiracerca da acdia, da impossibilidade de deciso poltica que aco-mete o soberano, da impossibilidade de decretar a exceo. Pode-ramos dizer que no drama barroco a autoridade do soberano cam-baleia porque ele tem memria demais; ele retm e considera al-ternativas demais para ser capaz de decidir e, assim, exercer o atopoltico propriamente soberano. A reprodutibilidade tcnica sinali-za para o fim de uma experincia poltica assentada sobre umalgica da recuperao de uma presena ancestral e fundamental.

    Se, por um lado, a tecnologia moderna nos priva da ilusode uma experincia fundada na autenticidade de um momentooriginal, ela oferece um horizonte diferenciado de experinciasacerca do qual seria necessrio refletir. Com a cultura de massas,os processos de recolhimento, contemplao e reflexo cedemlugar ao sensorialismo da indstria cultural, e esse fenmeno in-dica uma transformao importante na estruturao da memria.Consideremos as observaes de Benjamin acerca da desaurati-zao da obra de arte, ou seja, da perda de um lugar de inscriooriginal que pudesse ser recuperado pela contemplao.

    Mas a litografia ainda estava em seus primrdios, quando foi ultrapassa-da pela fotografia. Pela primeira vez no processo de reproduo da ima-gem, a mo foi libertada das responsabilidades artsticas mais importan-tes, que agora cabiam unicamente ao olho (Benjamin, 1994: 167).

    A reprodutibilidade tcnica desocupa a mo, e a mo quetrabalha sinnimo da presena produtiva em operao . Sem ela,como reivindicar um momento fundador, uma origem? Mesmo

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    na reproduo mais perfeita, um elemento est ausente: o aqui eagora da obra de arte, sua existncia nica no lugar onde ela seencontra (Ibid.: 167). Na reproduo encontram-se silenciadas agenialidade e a presena autoral6.

    Na sociedade de massas, a distncia e a singularidade queseparam o objeto reproduzido do original so abolidas. Sem essadistncia e essa singularidade a tradio perde sua legitimidade, j que seu trabalho depende essencialmente destes dois plos(reproduo vs. original , ausncia vs. presena) para argumentar emfavor da existncia de algum sentido subjacente, ainda que re-moto, a ser atualizado (cf. Caygill, 1997). A apreciao que Benja-min faz deste fenmeno , via de regra7, pouco nostlgica. Aarte contempornea ser tanto mais eficaz quanto mais se orientar em

    funo da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seucentro a obra original (Benjamin, Ibid.: 180). A reprodutibilidadetcnica destruiu a tradio, retirou-lhe o cho fundador. Sem essecho, como possvel uma memria? O que passvel de re-memorao, de re-apresentao no presente se o original desqua-lificado com a prpria idia de reprodutibilidade?

    O cinema a forma de arte correspondente aos perigos existenciaismais intensos com os quais se confronta o homem contemporneo.Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo,como as que experimenta o passante numa escala individual, quandoenfrenta o trfego, e como as experimenta, numa escala histrica,todo aquele que combate a ordem social vigente (Ibid.: 192).

    Enfatizemos esse momento importante. Para Benjamin, alterao do modo de produo da vida material seguem-se alte-raes das formas de percepo (cf. Benjamin, 1994: 169). A tc-

    6 O aqui e agora do original constitui o contedo da sua autenticidade, e nela seenraza uma tradio que identifica este objeto, at os nossos dias, como sendoaquele objeto, sempre igual e idntico a si mesmo (Ibid.).

    7 Mesmo quando lamenta o declnio da experincia na era moderna sobretudo aexperincia transmitida oralmente Benjamin no oferece a possibilidade deretorno origem como fundamento da ao poltica legtima. Nesse contexto, instrutivo perceber o sentido de emancipao por ele atribudo noo de barbrieno conhecido ensaio Experincia e pobreza (Benjamin,1994a).

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    nica reconfigura a possibilidade de experincia, mas no a tornainvivel. Em seuObra de arte na poca de sua reprodutibilidadepercebemos como ele procura situar esse conjunto de transfor-maes como sendo uma substituio paulatina de um modelotcnico baseado no sensorialismo tico por um padro de repro-dutibilidade tcnica assentado no sensorialismo ttil 8. Na prticaesta passagem envolve o seguinte problema: como consagrar al-gum tempo ao recolhimento contemplativo em meio a uma cul-tura de massas que constantemente estimulada a desfrutar adistrao, a competio catica entre estmulos de diversas or-dens e magnitudes? Todo frankfurtiano que se preze teve ou temde pegar da pena para tratar da oposio entre recolhimentocontemplativo e distrao, atitude crtica e fruio. Convm, en-tretanto, situar a especificidade da contribuio benjaminiana emrelao ao pessimismo de outros tericos da Escola de Frankfurt no que concerne tcnica e indstria cultural.

    Jeanne Marie Gagnebin, em seu ensaio Do conceito demmesis no pensamento crtico de Adorno e Benjamin observaa esse respeito:

    Poderamos afirmar que prevalece, no pensamento de Adorno (e deHorkheimer), na poca daDialtica do esclarecimento , uma condena-o dammesis, descrita antes de tudo como um processo social de iden-tificao perversa. Trata-se de uma censura parecida com a censura pla-tnica, a respeito da perda de distncia crtica que ocorre no processomimtico entre o sujeito e aquilo a que se identifica (1997: 93).

    Contra a equivalncia geral entre todas as coisas na socie-dade de massas que estabelece um processo perverso de repeti-o, Horkheimer, Adorno e Marcuse se insurgem. Para Marcuse,por exemplo, a indstria cultural propiciaria uma falsa sensaode fruio ao escamotear a unidimensionalidade sensorial e

    8 O dadasmo colocou em circulao a frmula bsica da percepo onrica, quedescreve ao mesmo tempo o lado ttil da percepo artstica: tudo o que percebido e tem carter sensvel e nos atinge. Com isso, favoreceu a demandapelo cinema, cujo valor dedistrao fundamentalmente de ordem ttil, isto ,baseia-se na mudana de lugares e ngulos, que golpeiam imediatamente oespectador (Benjamin, 1994: 191-192).

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    perceptiva que estaria por trs da cultura de massas. Sua noode dessublimao repressiva procura exatamente definir o fato deque a indstria cultural, ao propiciar a diverso e a liberao denossa energia pulsional, estaria na verdade privando-nos de todaatitude crtica (cf. Marcuse, 1973). Acreditamos ser legtimo di-zer que o terreno terico em que esta crtica opera ainda algica da presena. A errncia da tcnica, a reproduo rf deum logos fundador, era vista como uma ameaa possibilidadedo retardo reflexivo necessrio afirmao de uma conscinciaautnoma. Contra a memria viva, estaria se impondo a repeti-o, o peso da lgica matemtica.

    Com Benjamin, a relao entre tcnica e memria ganhariaoutro tratamento. Ao invs de lamentar a cultura sensorial instau-rada pela reprodutibilidade tcnica, ele via ali a possibilidade deuma reconfigurao de nossas perspectivas polticas e existenciais.Seu comentrio acerca do cinema, citado acima, ilustrativo. Aoeleger o cinema como a tcnica reprodutiva que sintetiza o novoaparato sensorial dominante na Modernidade, Benjamin percebeque a percepo visual, ao invs de propiciar o recolhimento,

    agora absorvida pela percepo ttil, promotora da distrao. Maisque um apelo ocular, a imagem cinematogrfica apela ao tato, mo que busca atravs do zoom o detalhe, apela ao corpo atingidopelo impacto da narrativa que tal imagem produz. Atravs da per-cepo ttil promove-se com mais intensidade a fruio; e o gran-de desafio de Benjamin era exatamente encontrar nessa nova cul-tura sensorial um equilbrio entre fruio e atitude crtica.

    O que pode resultar desse descompromisso com a origem a possibilidade de fundar a poltica sob novas bases, o queexige umesquecimento estratgico dos contedos tradicionais,que malograram em oferecer humanidade uma existncia maisdigna. Quanto mais a tecnologia controla a vida humana, maisfica claro que nenhum sentido originrio subjaz experincia eque a memria no assegura a redeno de uma cronologia li-near e asseguradora. Recorramos mais uma vez ao argumentode Jeanne Marie Gagnebin para sugerir o contedo poltico dosensorialismo benjaminiano. Discorrendo acerca da defesa dammesis em Benjamin, ela observa:

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    A atividade mimtica sempre uma mediao simblica, ela nunca sereduz a uma imitao. Em vo procurar-se-ia uma similitude entre apalavra e a coisa baseada na imitao. Saber ler o futuro nas entra-nhas do animal sacrificado ou saber ler uma histria nos caracteresescritos significa reconhecer no uma relao de causa e efeito entrea coisa e as palavras ou as vsceras, mas uma relao comum deconfigurao (Gagnebin, 1997: 98-99).

    Rejeitada esta relao de causa e efeito, rejeita-se tam-bm a possibilidade de uma experincia fundada numa hierar-quia temporal entre um passado ao qual a prpria experinciaestaria subordinada:

    Esta relao entre passado e presente no pode ser pensada, segundoBenjamin, no modelo de uma cronologia linear, sucesso contnua depontos homogneos, orientados ou no para um fim feliz, pois nessecaso passado e presente no entreteriam nenhuma ligao mais consis-tente; mas tampouco pode essa relao ser pensada como uma retoma-da do passado no presente no modo da simples repetio, pois nessecaso tambm no haveria essa transformao do passado na qual a aopoltica tambm consiste. O ressurgimento do passado no presente, asua reatualizao salvadora ocorre no momento favorvel, nokairos his-trico em que semelhanas entre passado e presente afloram e possibili-tam uma nova configurao de ambos (Gagnebin, 1997: 101-102).

    A mmesis no nos atira numa dinmica autnoma dossignos nem nos condena a fazer do presente uma mera repeti-o do passado. A tecnologia contempornea j no nos podeoferecer a segurana de uma narrativa na qual se alinhariampassado, presente e futuro a partir de um princpio qualquer.Pelo contrrio, a temporalidade que ela determina promove afratura deste alinhamento. Em Benjamin, todavia, teramos aesperana de que a tecnologia no cancelaria necessariamentea poltica. Retornaremos a esse ponto.

    A memria digital e a deciso possvel

    Em nossa exposio, oferecemos algumas imagens popula-res acerca da relao memria-esquecimento em meios digitaisde armazenamento de informao. Uma dessas imagens diz res-

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    peito a certo sentimento de estarmos sendo confrontados porum excesso de informao. H um sabor kantiano nesse tipo deabordagem. Para Kant, o ser humano constitudo de modo aoperar cortes cognitivos que lhe possibilitam o conhecimento li-mitado, parcial, de uma realidade infinita tanto intensiva quantoextensivamente. A relao entre finito e infinito no projeto crticono necessariamente harmoniosa. Por vezes nossa imaginaose defronta com o desejo frustrado de sintetizar num instante, numaimagem, a compreenso racional que temos de um espao infini-to, por exemplo. No entanto, em nossa prpria incapacidade deproduzir imagens sensveis do absolutamente vasto, absolutamentepoderoso, encontraramos a evidncia de um poder subjetivo detranscendncia, evidncia de nossa capacidade moral. Esse seria olado positivo e prazeroso na vivncia deste sentimento angustian-te. A esta sensao Kant chamava de sentimento do sublime9. Umcurto circuito produzido pelo confronto imediato entre finito e in-finito geraria a centelha, de colorao algo calvinista, que animade uma perspectiva moral o projeto crtico kantiano.

    No mbito das Cincias Sociais, e no terreno definido pela

    tradio crtica, Lask, Windelband e Rickert procuraram afirmar atranscendncia de seus prprios valores culturais (cientficos) di-ante da constatao de que a realidade histrica ou natural infinita. Para eles, apenas um corte epistemolgico cientificamentelegitimado poderia ser base de um conhecimento objetivo. Umego transcendente em Kant e nos neokantianos a oferta irrecu-svel que se faz diante do irremedivel caos que decorreria determos diante de ns, afinal, uma realidade em si, um absoluto.Tanto a estratgia kantiana quanto a neokantiana devem ser re-metidas sua historicidade. Elas depem acerca de um desejo decontrole da diversidade. Lembremos, a propsito, que, se o sen-

    timento do sublime era em Kant evidncia de uma aptido moralem cada indivduo humano, outras interpretaes do mesmo

    9 However, in what we usually call sublime in nature there is such an utter lack of anything leading to particular objective principles and to forms of nature conformingto them, that it is rather in its chaos that nature most arouses our ideas of thesublime, or in its wildest and most ruleless disarray and devastation, provided it displays magnitude and might (Kant, 1987: 99).

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    sentimento podem ser oferecidas. Assim, pois, que EdmundBurke, em seu A philosophical enquiry into our ideas of the sublimeand the beautiful , falava do sublime como base, no de um sen-timento moral de respeito, mas de um sentimento de terror.Transcender a diversidade, a fragmentao pelo ego trans-cendental ou atravs do monarca absoluto, essa seria a diver-gncia profunda dos dois autores. No que concerne ao nossoproblema, o ego transcendental apenas uma metfora parafalar acerca de estratgias de reencaixe, quer estas se fundemno Estado-nao, quer na comunidade cientfica.

    H uma lgica similar orientando algumas produes socio-lgicas e filosficas acerca das tecnologias de informao. Quan-do Paul Virilio afirma que as novas tecnologias digitais condu-zem inapelavelmente a uma pane reflexiva, seu depoimento deveser interpretado no como evidncia do fim da poltica, mas comodefesa algo nostlgica de uma determinada lgica poltica conce-bida a partir da idia de um ego reflexivo. No de espantar quea preocupao com o excesso, com o caos informacional, sejacompartilhada por instituies disciplinares, vocacionadas para

    o exerccio do controle da informao. A proliferao de informa-es, o excesso de detalhe, a duplicao de informao por faltade coordenao informacional hoje uma preocupao de gover-nos de todo o mundo. Acreditamos que o clamor pela definiode uma arquitetura centralizada de acesso e controle de informa-es, estratgia de reencaixe em meio contingncia e dester-ritorializao criadas pela escrita eletrnica, ganha sentido nostermos de uma poltica estruturada em torno da idia de um egotranscendente, na suposio de um desequilbrio entre realida-de objetiva e realidade subjetiva.

    Em maio de 2003, sob encomenda do Congresso dos EUA,o General Accounting Office (GAO) publicou um relatrio intituladoBioterrorismo: tecnologia de informao pode fortalecer habili-dades das agncias federais para responder a emergncias de sa-de. O relatrio identificava falhas na estratgia informacional dogoverno norte-americano diante da possibilidade de eventuaisataques biolgicos lanados por terroristas. Entre os problemasapontados estava a pulverizao dos esforos de seis agncias

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    estatais10 em 72 sistemas de deteco, viglia, diagnstico egerenciamento clnico, comunicaes e tecnologias de apoio.De acordo com o relatrio, haveria pouca coordenao entreesses sistemas; um padro unificado de coleta e tratamento dedados at a data no existia.

    A imagem de um excesso catico de informao , nestecomo em outros casos, uma metfora que busca mobilizar e legi-timar um exerccio centralizado de controle. A padronizao deinformaes entre os diversos sistemas, cujo resultado seria mai-or agilidade num eventual combate a ataques bioterroristas, sig-nifica muito claramente transferncia de poder poltico pulveri-zado entre as diversas agncias para o governo federal norte-americano. Do mesmo modo, sugerir que as diversas agnciasque lidam com a preveno ao bioterror evitem a duplicao deinformaes significa retirar de algumas delas parcela de seu po-der de controlar elementos estratgicos em benefcio da funcio-nalidade de um sistema centralizado. Na prpria medida em quea informao uma mercadoria valiosa, ela tende a estimular oprocesso de sua multiplicao. Por isso mesmo, embora as seis

    agncias acima mencionadas tenham concordado com o relat-rio do GAO no que tange ao seu diagnstico, preferiram no co-mentar se as recomendaes tcnicas sugeridas (que reforam aestratgia centralizadora) eram ou no apropriadas.

    A imagem de um ser humano paralisado pelo excesso deinformao abstrata. Do mesmo modo que Marx j chamava aateno para a falcia epistemolgica de conceber a relao sujei-to-objeto como uma relao imediata, abstrada de sua inscriohistrica e tcnica, diramos que o ser humano tampouco se con-fronta com aparatos tecnolgicos de uma forma imediata, isto ,sem a mediao e a resistncia de outros aparatos tcnicos. A mediao tecno-poltico-cultural elemento substantivo de qual-quer inovao ou mudana tecnolgica. Mesmo em ambientestecnolgicos dinmicos, como em certos setores da produo in-

    10 Departamento de Defesa, Departamento de Sade e Servios Humanos, Depar-tamento de Energia, Agncia de Proteo Ambiental, Departamento de Agricul-tura, Departamento de Assuntos dos Veteranos.

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    dustrial contempornea, processos de inovao tecnolgica nodeterminam simplesmente o cancelamento do mundo da vidaem benefcio do sistema, da razo instrumental. O mundo da vida subsiste como condio de operacionalizao do prpriosistema11. No caso acima, o fantasma do descontrole, do excessoque produz o caos s faz sentido dentro dos limites da perspecti- va do controle centralizador.

    Posto que a estruturao do arquivo digital poltica, ao seinstituir ela age de modo a produzir uma reconfigurao arcntica.Essa reconfigurao o espao da vivncia de resistncias mais oumenos intensas. No estamos advogando uma tenso entre culturae desenvolvimento tecnolgico como cerne de tal processo. Muitomais especificamente, defendemos que a inovao se opera numhorizonte tcnico em que diversos padres de arquivamento se apro-priam, resistem-se, produzem novos padres. Apenas atravs desseprocesso estratgias de hegemonia podem ser implementadas. Lem-bremos: toda cultura tcnica, assim como todo logos fala acerca eatravs de um suplemento. A poltica americana antiterror evidenciao fato de a tecnologia de informao e comunicao no poder ser

    tomada de modo abstrato. O erro simtrico tambm deve ser evita-do, ou seja, eventuais apropriaes centralizadoras desse horizontetcnico no devem ser entendidas como algo inevitvel.

    Tomemos a elaborao de uma legislao de combate aobioterror nos EUA como ilustrao do que acabamos de propor.De acordo com especialistas, ela envolveria o controle digital deinformaes em dois nveis:o controle de movimentao de cargasagrcolas em solo norte-americano e ocontrole do fluxo do consumode alimentos. Ocorre, porm, que

    A indstria de alimentos j expressou oposio s mudanas nas re-

    gras de comunicao desses fluxos ao Governo Federal, mencionan-do o custo de implementar os novos requisitos. Alm disso, o setorprivado expressou preocupaes acerca de a FDA obter informaesde seus clientes como parte de um sistema de rastreamento alimentar(Bio-IT World, 7 de agosto de 2003).

    11 Isto o que nos lembra Thomas Leithuser (2003) em artigo acerca da maneiracomo trabalhadores industriais apropriam inovaes tcnicas.

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    A apropriao do efeito desterritorializador, da portabilidadeproporcionada pela tecnologia de comunicao e informao tcnica em um sentido bastante especfico. Para alm de suas pro-messas liberais de uma topografia sem centro e absolutamenteplana, o ciberespao pode ser configurado por alternativas tecno-polticas bastante conservadoras. Em termos de uma poltica doarquivo e da memria, temos aqui a reedio de um dilema queremonta mais uma vez a Plato. O arquivo pode tanto ser vistocomo uma instncia que promove associaes no hierrquicasentre objetos do conhecimento como pode, inversamente, refor-ar as hierarquias de acesso ao conhecimento. Howard Caygill(2003: 48) sinaliza para essa ambigidade nos seguintes termos:

    O conjunto de tcnicas que constituem a WWW e sua basetecnolgica nos computadores interligados da Internet parecemprometer uma nova arte da memria, na qual o conhecimento pen-sado como inveno tecnolgica substitui o conhecimento comorecordao, e na qual o arquivo figura como um efeito das cone-xes possibilitadas pelo trabalho tecnolgico de memria, ao invsde um dado (e cuidadosamente policiado) estoque de informao.No entanto, tambm se poderia argumentar que, longe de superar a verso clssica da memria, a WWW representa sua apoteose. Tal- vez a WWW, longe de representar um desafio popular s hierarquiasclssicas de recuperao do conhecimento, na verdade obtenhasua popularidade ao confirmar estas hierarquias.

    Na rea da genmica, a retrica da Babel informacional temlevado a concluses bastante semelhantes quelas que orientamo governo George W. Bush em sua poltica de combate ao bioterror.Em artigo revistaBio-It World , Elizabeth Gardner defende anecessidade de formao de uma repblica de bancos de genomacomo forma de responder ao [...] dilvio de dados que acompa-

    nha a proliferao de bancos de dados. Comentando acerca docaos de padres e interfaces com os quais se deparam os pesqui-sadores ao realizar investigaes mais abrangentes em algunsdos 350 bancos de dados com recursos de bioinformtica, Gardnerconclui: GenBank um dos poucos bancos de dados com sufici-ente pegada [clout ] na comunidade para forar os pesquisadoresa submeter seus dados a ele. Sublinhemos a palavra subme-

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    ter. A Universidade de Manchester, no Reino Unido, foi recente-mente nomeada sede de um projeto de US$ 80 milhes, cujopropsito armazenar informaes genticas, mdicas e de esti-lo de vida de meio milho de britnicos. O propsito do BioBank constituir-se em fonte de estudos da relao existente entre variao gentica e a ocorrncia de doenas especficas. Os pro-blemas de implementao do BioBank so previsveis: a diversi-dade de padres de coleta e registro12 de informaes existentese a possibilidade de se tornarem pblicas, ou de serem utilizadascom finalidades escusas informaes privadas de pacientes.

    J tivemos oportunidade de falar acerca do significado daMatemtica na Biotecnologia contempornea em outro artigo(Ferreira, 2003). Ali se enfatizou, talvez em demasia, o horizontetcnico aberto pela ciberntica e pela Biologia molecular comosendo determinado por fatores tais como: unificao e transitivi-dade perfeita entre os viventes, uma linguagem exclusivamentedeterminada pelo saber antecipado e pelo impulso instrumen-talizador. Nada foi dito acerca do fato de a inovao promovidapelas tcnicas de DNA recombinante no se instituir a partir de

    uma tabula rasa . Aquilo que na ciberntica promove a transiti- vidade entre os viventes (sua busca por uma lngua universalque falasse em nome do operar, do funcionar com perfeio)desencadeia de igual modo o conflito entre padres tecnocul-turais diversos. E este um aspecto do problema que merecereflexo. A fora que opera a desterritorializao promove igual-mente a aproximao entre horizontes tecnoculturais divergen-tes, ou entre espcies diferentes. Ao faz-lo, todavia, produz igual-mente o choque e a radicalizao do espao mnimo, molecular comombito da poltica . Por isso mesmo, ver nos laboratrios con-temporneos um espao genrico, hipermoderno (afinal to-

    dos falam ingls, usam jalecos brancos etc.) ver apenas umaparte do que est envolvido no carter nmade das [...] formastecnolgicas da vida (Cf. Lash, 2003).

    12 Mesmo num pas com o nvel de difuso de tecnologia de informao e comuni-cao como os EUA, estima-se que 90% das estimadas 30 bilhes de transaesrelacionadas sade no gerem registros digitais (Bio-IT World , 10/7/2003).

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    Retomemos um segundo ponto. Existe uma outra imagemassociada ao excesso de informao. Esta imagem a da parali-sia, a impossibilidade de agir a partir de qualquer princpio re-flexivo. Diante da contingncia absoluta a que a velocidade e areprodutibilidade nos condenam, ficaramos privados do exerc-cio de qualquer tipo de agncia poltica. Por tudo que acaba-mos de dizer, a reprodutibilidade da tcnica deve ser entendidacomo mmesis num sentido benjaminiano. No existiria, toda- via, um paradoxo intrnseco num tipo de estrutura mnemo-tcnica incapaz de acenar com uma origem, um ponto privilegi-ado a partir do qual o real ganharia perspectiva? Digamos quepropostas de reencaixe, ncoras culturais como a idia de na-o, esto disponveis. Como vimos nos exemplos acima, essasalternativas podem constituir uma fora de configurao pode-rosa. Fukuyama, o liberal da dcada de 90, surpreendeu recen-temente com uma defesa calorosa da interveno estatal naregulao dos limites em que deve ser conduzida a pesquisagentica. Os critrios que deveriam orientar esta intervenoso para ele facilmente identificveis:

    Um meio bvio de estabelecer limites distinguir entre terapia emelhoramento, dirigindo a pesquisa para a primeira possibilidadee colocando restries segunda. O propsito original da medici-na , afinal, curar os doentes e no transformar pessoas saudveisem deuses (2002:15).

    Como distinguir entre terapia e melhoramento? Fcil, su-gere Fukuyama. O corpo apresenta um modo natural de funcio-namento que torna a tarefa de saber o que saudvel e o que patolgico trivial. Essa defesa do estabelecimento de limites paraa pesquisa gentica pressupe muito claramente a democracianorte-americana e a idia de sade da cultura que ela representa.

    Apesar dessa possibilidade, estratgias polticas contingen-tes tampouco devem ser negligenciadas. Elas nos acenam com apossibilidade de que a antinomia ou bem ns procuramos umagrande narrativa que nos oferea um mnimo de ordem ou es-taramos paralisados pelo excesso no seja inevitvel. O princ-pio matemtico que orienta a ciberntica arquivioltico tam-

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    bm neste outro sentido: tanto mais ele procure controlar, maisele ter diante de si o problema de sua prpria reconfigurao por mais autoritria que seja sua prtica.

    Concluses

    Perguntvamo-nos no comeo deste ensaio em que medi-da as possibilidades de formular uma narrativa, na qual a consci-ncia pudesse operar um alinhamento do passado, do presente edo futuro, no estariam sendo lanadas no abismo com o arqui- vamento eletrnico da memria. Em julho de 2003, a revista bri-tnica NewScientist anunciava o feito de um time de cientistasisraelenses: O tecido do ovrio de fetos abortados foi mantido vivo em laboratrio. Algumas clulas mostram sinais rudimenta-res de maturao e a possibilidade de formao de vulos perfei-tamente funcionais. O ttulo da matria chamava ateno para oaspecto culturalmente controverso do experimento: Fetos abor-tados podem se tornar mes no nascidas. Diante da escassezde doadores de vulos, a possibilidade terica de amadurecer

    clulas ovarianas at o ponto em que elas se constitussem emvulos prontos para a fecundao apontada como uma alterna-tiva de concepo para mulheres estreis. Uma das dificuldadestcnicas da experincia parece estar sendo superada. Em agostode 2003, cientistas japoneses da Universidade de Gunma conse-guiram maturar em laboratrio vulos de ratas a partir de seusprimeiros estgios de desenvolvimento. O arquivo digital tendea barrar a possibilidade de uma narrativa linear: sua lgica descontnua; ele opera por saltos espaciais e temporais. Quando Joo nasceu, sua me estava morta. Na verdade a situao podeser colocada de uma maneira mais contundente: Joo, querido,no sei bem como te dizer, mas tua me nunca nasceu. Joo,todavia, no apenas um fenmeno tcnico, como outrora diri-am alguns acerca das crianas nascidas de fertilizaoin vitro.Bebs de proveta, dizia-se, e acreditamos que ainda se diga.Ele se desenvolver dentro de, ser amamentado por, aprenderas primeiras palavras com uma mulher viva e histrica. Sua exis-tncia o lugar de convergncia de diversos padres de saber-

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    fazer e de poder-fazer, ou seja, de diversos horizontes tcnicos.Isso no tornar sua existncia necessariamente mais amena.Se uma bela noite Joo cair bbado numa rua de Braslia, pode,quem sabe, ser queimado por um grupo de jovens. Se Joo for Joana, pode ser currada ao sair de uma festa e, talvez, assassi-nada. Nada disso, todavia, inevitvel.

    Neste artigo, partindo das reflexes derridianas sobre a re-lao entre memria e suplemento, indagamos acerca dos princ-pios polticos que estruturariam o arquivo digital. Em vriosmomentos nos pareceu tentador o aceno platnico que reduzia ammesis, a reproduo a que o arquivo d origem como runa dohumanismo. No ltimo tpico procuramos nos afastar da idiade que a configurao da sociedade de informao se opere ex-clusivamente a partir da lgica matemtica e antecipadora. Pro-curamos oferecer a idia de reconfigurao como abertura produ-zida pela prpria ambio totalizadora do arquivo digital. Se essearquivo estiver verdadeiramente sendo produzido, ele descont-nuo, ele o lugar e o no-lugar da confluncia e do conflito. Nose trata aqui de negar a fora hegemnica deste processo de ar-

    quivamento. Pelo contrrio, propomos apenas que essa tcnicaapenas se viabiliza abrindo-se diversidade das tcnicas. Essaabertura o espao indefinido tanto do exerccio poltico numsentido mais plural como do poder que refora hegemonias ehierarquias prestabelecidas. Se a concluso a que chegamos no exatamente otimista, ajuda a seguir em frente a possibilidadede que a histria tampouco esteja tecnicamente fechada.

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