feminismo emancipacionista parte i
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Pequena Contribuição Metodológica Ao Feminismo Emancipacionista
Milton B. de Almeida Filho
O objetivo deste trabalho é discutir as
bases filosóficas do feminismo emancipacionista.
Entendemos como base filosófica um conjunto de
perguntas e respostas cruciais sobre a condição de
existência da mulher. As perguntas são
relativamente fáceis de serem feitas mesmo que
sejam embaraçosas; já as respostas estão
necessariamente em construção, pois fazem parte
do próprio processo de emancipação da mulher
que é inexoravelmente coletivo. As perguntas são:
O que é ser Mulher? Como é possível conhecer a
Mulher? Que modo de vida propõem as
Mulheres?
A primeira pergunta, de caráter
ontológico, demandará respostas da segunda,
afinal, só podemos saber o que ser mulher se
encontrarmos um modo adequado de conhecê-las.
A terceira pergunta dependerá de que mulher
estamos falando, a qual classe social ela se
vincula, que interesses ela defende.
Durante um tempo demasiadamente longo
e enfadonho a filosofia e a ciência, com seus mais
ilustres e melhores representantes,
desqualificaram a mulher tornando-a uma
obviedade desinteressante para a investigação
racional. Mais do que isso, a apropriação privada
pré-capitalista e capitalista que inicialmente
aprisionou-as à vida doméstica impedindo-nas de
desenvolver uma visão ampla da sua existência e
de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje
as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino
um meio de acesso à vida publica para eternizá-la
como objeto de desejo dos machos, velhos e
novos. A situação de silencio, obscuridade e
banalidade na qual foram colocadas as mulheres
impõe como desafio político estratégico a tarefa
de trazer à luz suas vozes, suas mentes, sua
condição humana.
Estamos convencidos de que o processo
de conhecimento sobre as mulheres é parte
indispensável do processo de libertação de
mulheres e homens do jugo do capital.
Começamos então por antecipar um conceito que
ficará mais claro e preciso apenas ao final do
trabalho, mas que orientará as nossas
investigações desde o inicio. À pergunta “o que é
ser mulher” responderemos que, em principio, ser
mulher é existir na condição feminina que será
denominada de feminilidade.
Feminilidade ou Condição Feminina de
Existência é o modo de viver próprio das
mulheres ou o conjunto das condições
socioeconômicas, ambientais e corporais
(condições materiais de vida), hábitos, rotinas e
tradições (estilo de vida), conceitos, princípios e
valores (concepção de vida) que formam o modo
de vida das mulheres.
Na historia concreta da espécie humana, a
condição feminina se expressa positivamente em
diferentes dimensões de existência. Essas
dimensões são as mesmas nas quais se realizam a
condição humana em geral e, portanto, são validas
para homens e mulheres. Elas reúnem um
conjunto diverso de propriedades, atributos e
processos denominados de sócio-culturais,
psicológicos e biológicos. Por sua vez, os aspectos
culturais, psicológicos e biológicos que
caracterizam a condição feminina são gerados
através da mediação com seu oposto imediato e
negativo, a masculinidade, como mostra a Figura
1.
Homens e mulheres, mesmo sendo tão
diferentes como são, formam uma unidade
dinâmica indissolúvel responsável pela
sobrevivência e desenvolvimento da espécie
1
humana. Essa unidade é dinâmica porque homens
e mulheres são, simultaneamente, opostos que se
distinguem um do outro por possuírem diferentes
propriedades e atributos construídos numa história
biológica, psicológica e social, e são
complementares, já que a história a que acabamos
de nos referir é compartilhada durante todo o
processo evolutivo da espécie, o que viabiliza, a
interpenetração sistemática e a conseqüente
modificação mútua entre o conjunto das
características biopsicossociais que identificam
homens e mulheres.
Figura 1: A menor unidade de analise da Feminilidade é uma tríade dialética complexa.
Para continuar o raciocínio tomemos a
feminilidade como um ente real e concreto e não
apenas como um conceito. A ontologia dialética
demonstra que todos os entes existentes no
universo estão direta ou indiretamente
interconectados uns com os outros. Ora, se todos
os fenômenos são determinados por sua conexão
universal como investigá-los sem conhecer a
totalidade? Para responder a esta questão é
necessário deduzir da proposição ontológica
acima suas implicações epistemológicas. Afirmar
a conexão universal implica dizer também que
todos os fenômenos são multideterminados e que
é impossível se aproximar da verdade dos fatos
isolando-os uns dos outros. Além disso, é
necessário identificar a conexão mínima, que
torna um ser existente na rede da conexão
universal passível de ser conhecido. Como
afirmaram Marx (2004, 1978) e Lenin (1975,
1989) a objetividade de qualquer ente é garantida
quando, simultaneamente, esse ente toma para si,
como seu objeto, a sua própria negatividade e, por
outro lado, é tomado como objeto por outro(s)
ente(s), cuja existência lhe é independente. Só
dessa forma é possível “reter no positivo a
negatividade” e com isso revelar a essência
objetiva do fenômeno que se quer compreender. A
aplicação deste princípio metodológico permite
explicitar a menor unidade de analise que pode se
propor para compreender a feminilidade. Ela
contém necessariamente três componentes que
interagem dialeticamente: O Ser Feminino (1) –
uma totalidade – que se expressa positivamente
nas dimensões biopsicossociais (2) pela mediação
do seu negativo, o Ser Masculino (3). Neste
sentido, não se pode entender cientificamente a
complexidade da condição feminina e masculina
simplesmente separando-os como dois opostos
nem subsumindo um ao outro, como
tradicionalmente é feito ao se tomar como modelo
para a compreensão do que é ser mulher a
condição de existência dos homens ou vice-versa.
No paradigma cientifico dominante,
entretanto, as teorias explicam a condição
feminina reduzindo-a a um das dimensões de
existência da feminilidade. Isso acontece porque a
identificação dos determinantes que explicam a
feminilidade é feita com base em regras de
simplificação e redução que resultam na perda ou
no escamoteamento da complexidade e, portanto,
da multideterminação dos objetos, característica
ontológica dos fenômenos humanos. A Figura 2
mostra graficamente como funcionam a maioria
dos estudos sobre a condição feminina no interior
do paradigma cientifico reducionista e anti-
dialético dominante. Neles, a feminilidade é
explicada por fatores isolados ou agrupados
2
Dimensões da feminilidade
+
-
Feminilidade
Masculinidade
dentro de uma mesma e única dimensão.
Enquadram-se nesta classificação todas as
explicações exclusiva ou preponderantemente
biológicas que enfatizam as funções reprodutivas
femininas ou as diferenças genéticas entre homens
e mulheres; as explicações que privilegiam os
fatores psicológicos e a experiência vivida; ou
ainda, as explicações mais modernas ou pós-
modernas, que compreendem a feminilidade como
um fenômeno essencialmente cultural
determinado pelas diferentes maneiras pelas quais
o meio social e os valores culturais formatam,
modelam ou produzem os diferentes significados
de ser homem e mulher.
Figura 2: Redução da condição feminina a suas dimensões de existência.
Atualmente, as explicações biologicistas
estão provisoriamente em minoria pelo menos nos
círculos feministas e progressistas. Contudo, está
bem viva na sociobiologia e psicologia
evolucionista norte-americana cujas tentativas de
estender a lógica do darwinismo a todos os
terrenos da existência humana são amplamente
respaldados por setores políticos e econômicos
conservadores e neoliberais (Lewontin, R. C.;
Rose, S. & Kamin, L. J. 1984).
Os estudos reducionistas sobre a
feminilidade seguem as finalidades de previsão e
controle do comportamento humano como a
maioria das ciências sociais o fazem desde a
fundação da Economia, da Sociologia, da
Etnografia e da Psicologia (Lacey, 1998).
Predomina na literatura cientifica os estudos
descritivos que visam levantar e diagnosticar a
realidade em que vivem as mulheres para que
diferentes agentes públicos e privados tomem
decisões. Nestes casos obedece-se rigorosamente
à divisão de trabalho que impera nas sociedades
capitalistas baseada numa suposta neutralidade da
ciência. Estes estudos versam sobre a participação
política da mulher, suas crenças religiosas, sua
condição étnica e racial, sua inserção no mundo
do trabalho, sua condição de ser jovem, sobre
gravidez, parto e a maternidade, sobre políticas
públicas e participação política, sobre os
diferentes usos e abusos do corpo feminino, etc,.
Em muitos casos os estudos vão alem da descrição
e denuncia de situações concretas e fazem
comparações entre a condição feminina e
masculina nos contextos e situações apontadas
acima.
Os estudos descritivos e comparativos são
casos exemplares da “ciência normal” conforme
definiu Thomas Kuhn (1987): trabalham
rigorosamente dentro de um paradigma tradicional
e produzem vasta informação sobre aspectos
parciais do fenômeno investigado. Apesar destas
limitações os estudos descritivos e comparativos
reducionistas ajudam a tornar mais visível a
opressão da mulher e produzem informação útil
para políticas publicas, ainda que parciais. Fazem
parte das conquistas democráticas da luta das
mulheres por sua emancipação.
Entre os setores que contestam a forma
dominante (e patriarcal) de se produzir
conhecimento científico estão as feministas que
estruturam suas investigações em torno da
categoria gênero. Diferentemente do
reducionismo tradicional os estudos de gênero
3
Redução aos Determinantes
Sócio/Cultural
Psicológico
Biológico
Feminilidade
procuram compreender a condição feminina em
sua intima conexão com o seu negativo, a
condição masculina, enfatizando as relações de
dominação e exploração patriarcais e dão maior
atenção à produção teórica e metodológica e a
criação de modelos explicativos mais abrangentes.
É nesta área também que se encontram os setores
que atacam o feminismo marxista a partir de uma
posição à esquerda.
Torna-se cada vez mais evidente,
entretanto, as limitações desta abordagem. De um
lado, o dialogo entre o masculino e o feminino
quase nunca segue um procedimento dialético,
pois a relação é concebida fundamentalmente
como oposição sem complementaridade, seja
porque se eliminam as dimensões onde existem
complementaridades (e até semelhanças) mais
evidentes, a biológica e a psicológica, sejam
porque o uso de regras simplificadoras e
reducionistas induzem a investigação para o
território das comparações entre a condição
feminina e masculina caindo nas limitações dos
estudos descritivos. O uso de referencias
metodológicas reducionistas resultaram também
numa identificação das propriedades e atributos da
condição de gênero a significados socialmente
produzidos. Por esse principio se apreenderia a
totalidade da condição de gênero investigando
apenas o aspecto simbólico da dimensão sócio-
cultural. Configura-se assim, a mais importante
limitação metodológica dos estudos de gênero que
é a redução da feminilidade a determinantes
sociais e a redução do social ao aspecto simbólico. 1 A Figura 3 mostra como os estudos de gênero ao
fazerem a critica do marxismo se afastam de uma
descrição dialética dos elementos que constituem
a condição feminina de existência.
1 Para um estudo mais abrangente e critico sobre o conceito de gênero, ver Revista Critica Marxista nº11.
Figura 3: Nos estudos de gêneros o aspecto simbólico da dimensão cultural determina a feminilidade e a masculinidade e as diferentes posições de poder que ocupam na sociedade.
A ênfase nas relações de poder como
expressão única ou principal das complexas
relações entre homens e mulheres, entre
masculinidade e feminilidade encobre um outro
aspecto fundamental: a alienação que atinge os
dois pólos da contradição. Dominantes e
dominados são seres alienados de si mesmos, de
suas potencialidades e qualidades humanas.
De um ponto de vista materialista e
dialético a interpenetração entre o masculino e o
feminino não resulta apenas ou principalmente em
relações de poder e dominação, histórica e
socialmente construídas, mas num modo de ser e
viver, um modo de vida que separa e une homens
e mulheres. Isto significa que as mulheres vivem e
expressam sua condição biopsicossocial por meio
das formas históricas concretas da dominação
masculina, os modelos patriarcais. Tais modelos
se impuseram ao longo da história evolutiva,
social e pessoal das mulheres por meio da
violência física e psicológica, mas também através
da adesão de uma parcela das mulheres a estes
modelos.
O modo como as mulheres vivem o seu
próprio corpo, sua sexualidade ou maternidade, a
maneira como se comportam e pensam o trabalho,
a escola, a família, o lazer, os papeis e funções
sociais que desejam e se preparam para exercer
são concretizados através de modelos e de normas
4
Dominação Masculina
Dimensão Sócio/Cultural
Aspecto Simbólico
sociais que visam a manutenção da ordem social
vigente, na qual os homens não só exercem o
poder econômico, político e ideológico mas o
fazem em nome de valores e regras sociais que
preservam as diferenças e a dominação masculina
e para as quais se monta um enorme aparato
institucional com vistas ao controle da sua
produção e reprodução. Neste sentido os modelos
patriarcais dominam todas as instituições
responsáveis pela socialização das sucessivas
gerações de mulheres e homens nas sociedades
divididas em classes. Metodologicamente, o que
significam estes pressupostos, ou como podemos
usar estes princípios para compreender e revelar a
condição feminina enquanto conhecimento e luta
social?
Ora, se um ente concretiza sua
positividade por meio da sua negatividade, o seu
ser concreto e historicamente observável, o ser
realmente vivido, está alienado de si mesmo e de
sua potencia humana e a única maneira de reduzir
ao mínimo esta alienação é diminuir a distancia
com seu negativo. Este raciocínio é igualmente
valido para o pólo masculino que na condição de
dominador concretiza sua positividade através de
uma negatividade encoberta e mutilada pela
própria dominação que exerce. Assim, a
feminilidade através da qual se expressa as
características biopsicossociais dos homens é uma
espécie de imagem falsa porque encobriu o
potencial humano da mulher, mas é também uma
auto-imagem incompleta e distorcida porque o
feminino com qual ele se relaciona é uma
projeção de sua própria imagem idealizada. Esta é
a forma concreta pela qual se alienam homens e
mulheres nas sociedades dominadas por modelos
patriarcais de produção, reprodução e controle
social. Os modelos patriarcais não contêm apenas
uma imagem limitada e dominadora do homem,
mas também uma projeção distorcida do ser
mulher e é através deles que homens e mulheres
são socializados e posto em ação na sociedade de
classes. A Figura 4 ilustra o que estamos
descrevendo.
Figura 4: Menor unidade de análise da Feminilidade nas sociedades divididas em classes.
Se aceitarmos o modelo de análise
proposto pelos estudos de gênero o processo de
emancipação feminina se daria com o equilíbrio
de poderes entre homens e mulheres ou com a
inversão da dominação. Se, entretanto, adotarmos
o enfoque marxista poderemos, com algum
esforço intelectual e muita luta, descortinar o
amplo processo social em que, além de
rompermos as barreiras políticas que dividem a
nossa espécie e oprimem as mulheres, poderemos
superar a alienação, mãe e pai de todas as
opressões. Só dessa forma torna-se possível
visualizar o enorme percurso histórico que precisa
ser percorrido para alcançarmos um modo de vida
comunista com base na emancipação
revolucionaria das mulheres e dos homens.
Até agora fizemos o esforço de procurar
responder à pergunta o que é ser mulher, o que é
condição feminina de existência, o que é a
feminilidade. Mostramos que existem diferentes
respostas a essa mesma questão a depender da
ontologia e da epistemologia que os
5
Alienação Masculina
Alienação Feminina
DOMINAÇÃO
Propriedades e Atributos Biológicos, Sociais e Psicológicos.
Modelos Patriarcais de Socialização e Ação
Propriedades e Atributos Biológicos, Sociais e Psicológicos.
investigadores adotam. Do ponto de vista marxista
vimos que uma resposta clara a esta questão busca
manter a complexidade dialética e a materialidade
histórica do fenômeno. Entretanto a resposta que
demos ate agora é parcial, pois só destacou as
interpenetrações dialéticas entre o masculino e o
feminino e como estas relações são geradoras de
dominação e alienação. Os resultados a que
chegamos até o momento nos permite cumprir o
preceito metodológico marxista-leninista que
afirma que o primeiro passo na demarcação clara
de um objeto de estudo é explicitar como a
negatividade de mantêm como parte intrínseca e
fundamental de qualquer fenômeno. Vimos,
portanto apenas a dinâmica relacional do feminino
com seu negativo e acentuamos que as
propriedades e atributos biopsicossociais que
caracterizam as mulheres são realizados na
história concreta pela mediação dos modelos
patriarcais. Mas as características biopsicossociais
das mulheres mudam ao longo do tempo.
Portanto, do ponto de vista metodológico é
necessário agora olhar para o outro par relacional
do ente feminino, a sua própria potencia humana
expressa num complexo de competências
biológicas, sociais e psicológicas. Insistimos que
não apresentaremos teorias sobre estas questões e
sim princípios ontológicos e indicações
metodológicas e epistemológicas sobre a condição
feminina a partir do materialismo dialético.
As transformações biopsicossociais
femininas ocorreram antes da existência dos
modelos patriarcais de socialização e ação e
existirão depois que eles tiverem sido superados
pela luta revolucionária e soterrados pela história.
Elas têm, portanto, precedência e transcendência
frente a qualquer modo de dominação masculina
ou alienação da espécie humana.
Uma leitura metodológica da obra de
Marx nos ajuda a encontrar uma saída para esta
questão. Como sabemos todos os fenômenos
humanos possuem três características
indissociáveis: 1) São, essencialmente, relações
sociais, 2) Tem a sua gênese e desenvolvimento
ao longo de um tempo biológico, histórico e
pessoal irreversíveis e 3) São determinados em
ultima instancia pela produção e reprodução da
vida material. Cada um destes pressupostos
ontológicos trazem consigo implicações
metodológicas que serão desenvolvidas a seguir.
O pressuposto 1 já foi parcialmente
desenvolvido quanto a suas implicações
metodológicas quando exploramos a feminilidade
como o produto de uma relação dialética com o
masculino que se concretiza historicamente pela
mediação dos modelos patriarcais. Este
pressuposto será retomado mais adiante quando
formos desenvolver as conseqüências
epistemológicas do item 3. Por enquanto vamos
tirar as conseqüências lógicas da afirmação de que
todo fenômeno humano ocorre em três níveis
distintos de desenvolvimento ou passa por
transformações que ocorrem simultaneamente em
três aspectos diferentes e interconectados da vida
humana, qual sejam: o nível de desenvolvimento
filogenético ou filogênese onde ocorrem as
transformações de ordem evolutiva,
particularmente o surgimento do trabalho e da
linguagem, que envolvem diferenciadamente toda
a espécie humana e que podem ser observadas em
unidades temporais que medem milhares de anos;
o nível de desenvolvimento sóciogénetico ou
sociogenese onde ocorrem as transformações
históricas que produzem sucessivos e distintos
modos de produção e de vida e separam os seres
humanos em classes, gêneros, etnias, etc.; o nível
de desenvolvimento ontogenético ou ontogênese,
6
onde ocorrem as transformações que acompanham
todo o ser humano desde o seu nascimento até sua
morte. A Figura 5 nos permite visualizar estas
interconexões.
Figura 5: As características biopsicossociais dos seres humanos mudam ao longo do tempo evolutivo, histórico e pessoal de modos diferentes para homens e mulheres.
Vamos nos deter um pouco na analise da
figura acima. Nela, as dimensões da feminilidade
aparecem interconectadas entre si e o mesmo
ocorre com os níveis de desenvolvimento. Já
vimos que qualquer privilégio causal para uma
das dimensões nos leva aos braços do
reducionismo cujo produto final é uma imagem
incompleta e distorcida do ser mulher. O mesmo
ocorre com os níveis de desenvolvimento: eles
não podem ser desconectados um dos outros, pois
existem simultaneamente como processos que
ocorrem com todos os seres humanos. Entretanto,
as transformações que ocorrem nos níveis de
desenvolvimento obedecem a uma lógica
temporal completamente diferente das que
ocorrem com as dimensões da feminilidade.
Transformações filogenéticas significativas
podem levar dezenas ou centenas de milhares de
anos para ocorrerem, transformações
sociogenéticas podem não acontecer ou durar
acontecendo por dezenas ou centenas de anos e
transformações ontogenéticas podem ocorrem em
meses ou anos na dimensão social e certamente
ocorrem diariamente nas dimensões biológica e
psicológica de homens e mulheres. Isto significa
que quando olhamos para as dimensões que
positivam a feminilidade o que vemos são
mudanças ocorrendo de forma diferenciada nas
dimensões biológicas, psicológicas e sociais.
Enquanto que o corpo, a mente e as emoções das
mulheres estão em permanente transformação as
condições sociais de sua existência podem
permanecer as mesmas durante toda a sua vida.
Ora, como todo esse processo de mudança é
mediado por modelos patriarcais, ou seja, por
instituições sociais conservadoras, as distintas
formas de viver sua corporeidade, sua
racionalidade e sua afetividade estarão em tensão,
mas circunscritas, aos limites impostos pela
hegemonia destes modelos.
Podemos concluir então, que, se com
relação às dimensões qualquer ênfase nos retira do
campo do materialismo dialético, ou seja, seres
humanos são, em qualquer circunstância, seres
biopsicossociais e consequentemente devem ser
sempre compreendidos e estudados desta forma, o
mesmo não se pode dizer quanto aos seus níveis
de desenvolvimento. Neste caso, existe uma
prioridade quando se trata de identificar o alcance
das transformações, pois quando ocorrem apenas
no nível ontogenético elas não atingem os
modelos patriarcais, fenômenos sociais que
possuem uma dinâmica transformadora de longa
duração devido a sua institucionalização e
persistência como tradição e, principalmente, pelo
lugar que estes modelos ocupam na produção,
reprodução e controle da ordem econômica
vigente.
A figura também nos mostra que cada
uma das dimensões está sujeita a transformações
em todos os níveis de desenvolvimento. Devemos
investigar como o corpo feminino se modificou,
7
Dimensões da Feminilidade
Biológica Social Psicológica
Filogênese
Sociogenese
Ontogênese
Níveis de Desenvolvimento
diferentemente e em interação com o masculino,
ao longo da escala evolutiva, que pontos cruciais
dessa escala marcam as transformações
qualitativas que fizeram homens e mulheres terem
a estrutura e as propriedades biológicas que
possuem atualmente. Devemos também investigar
como ao longo da história social da humanidade
mulheres e homens foram vivendo de maneira
qualitativamente nova sua existência corporal, os
diferentes usos que os corpos femininos e
masculinos tiveram ao longo do tempo histórico.
Da mesma forma, deve se olhar com particular
atenção para as transformações que nossos corpos
passam ao longo de nossa curta existência pessoal
e como vivemos estas mudanças na condição de
mulheres e homens. Podemos e devemos fazer o
mesmo com a dimensão psicológica e enriquecer
enormemente a investigação e a consciência
marxista sobre a condição da mulher.
Como já afirmamos anteriormente, todas
estas transformações ocorrem sob a mediação dos
modelos de socialização e ação patriarcais e,
portanto, o conhecimento sobre a feminilidade,
parte fundamental da emancipação feminina, seria
tosco e frágil se não investigasse a fundo como os
modelos patriarcais surgiram e se desenvolveram
ao longo da escala evolutiva, se existiram ou não
fenômenos evolutivos que facilitaram a imposição
destes modelos. Além disso, é igualmente
estratégico, compreender como tais modelos se
sustentaram ao longo da história humana, como os
diferentes modos de vida e produção se apoiaram
neles e os desenvolveram e, finalmente, como tais
modelos são objetivados e subjetivados nas
experiências das mulheres e dos homens
existentes ao longo de suas trajetórias pessoais de
vida.
Para completarmos esse enorme painel
sobre a complexidade da feminilidade teríamos
que investigar como, em cada um dos níveis de
desenvolvimento, mudanças qualitativas nas três
dimensões foram construindo a unidade e as
diferenças dentro da espécie humana, de suas
sociedades e entre as pessoas que as compõem.
Com este painel tentamos responder, de
um ponto de vista materialista e dialético, o que é
ser mulher. A resposta que encontramos foi a de
que a mulher vive sua condição de existência
feminina em múltiplas dimensões e níveis de
desenvolvimento, interconectados através da
mediação de sua negatividade – na forma de
modelos patriarcais de socialização e ação –
resultando numa condição histórica de dominação
masculina sobre as mulheres e alienação de ambos
os membros da espécie, de longa duração, que
retroage sobre os modelos patriarcais,
institucionalizando-os e enraizando-os na tradição
existente.
Para responder a pergunta o que é ser
mulher? tivemos necessariamente que responder a
segunda questão que formulamos no inicio do
texto: como se conhece a mulher? Em primeiro
lugar, as afirmações ontológicas devem ser
convertidas em princípios orientadores que
descrevem o ser e sua dinâmica relacional
mínima, aquela que garante a objetividade e a
efetividade do fenômeno que se quer estudar. A
dinâmica relacional mínima é uma tríade dialética
entre o objeto como totalidade, sua negatividade e
sua positividade em que o negativo media a
relação da totalidade com sua expressão positiva.
Em segundo lugar, as dimensões e os níveis de
desenvolvimento ontológicos devem ser postos
em relação e exploradas todas as possibilidades
combinatórias entre eles. Contudo, os princípios
epistemológicos e as referencias metodológicas
que apresentamos até agora não se referiram ainda
às causas e mecanismos responsáveis pelas
8
transformações e conservações que dão forma
concreta à feminilidade ao longo do tempo.
Qual o papel das classes sociais e do seu
modo de vida na determinação da feminilidade?
Como explicar que as relações de produção a
determinam em última instância? Como as outras
determinações se articulam com a determinação
econômica? Que estrutura conceitual e categórica
pode ser proposta para fazer avançar o
conhecimento e a emancipação feminina? Que
tipo de sociedade pode de fato extirpar a
dominação masculina e minimizar a alienação?
Que modo de vida poderá abrigar mulheres e
homens emancipados? Este conjunto de questões
serão tratadas no próximo artigo.
Referências Bibliográficas.
1. Marx, K. (2004) Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Boitempo Editorial, São Paulo, pgs: 126-128.
2. Marx, K (1978). O Método da Economia Política. Os Pensadores, Ed. Abril Cultural, São Paulo.
3. Lenin, V I. (1989) Cadernos Filosóficos. Edições Avante, Lisboa, pgs: 199-203
4. Lenin, V. I. (1975) Materialismo e Empiriocriticismo. Editorial Estampa, Lisboa.
5. Lewontin, R. C., Rose, S. e Kamin, L. J. (1984) Biologia, Ideologia e Natureza Humana, Publicações Europa-America, Lisboa.
6. Lacey H.(1998) Valores e Atividade
Científica, Fapesp, São Paulo,
7. Kuhn, T. (1987) A estrutura das revoluções cientificas. Editora Perspectiva, São Paulo.
8. Dossiê Marxismo e Feminismo (2000). Revista Critica Marxista. Nº11. São Paulo
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