feminismo emancipacionista parte i

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Pequena Contribuição Metodológica Ao Feminismo Emancipacionista Milton B. de Almeida Filho O objetivo deste trabalho é discutir as bases filosóficas do feminismo emancipacionista. Entendemos como base filosófica um conjunto de perguntas e respostas cruciais sobre a condição de existência da mulher. As perguntas são relativamente fáceis de serem feitas mesmo que sejam embaraçosas; as respostas estão necessariamente em construção, pois fazem parte do próprio processo de emancipação da mulher que é inexoravelmente coletivo. As perguntas são: O que é ser Mulher? Como é possível conhecer a Mulher? Que modo de vida propõem as Mulheres? A primeira pergunta, de caráter ontológico, demandará respostas da segunda, afinal, só podemos saber o que ser mulher se encontrarmos um modo adequado de conhecê-las. A terceira pergunta dependerá de que mulher estamos falando, a qual classe social ela se vincula, que interesses ela defende. Durante um tempo demasiadamente longo e enfadonho a filosofia e a ciência, com seus mais ilustres e melhores representantes, desqualificaram a mulher tornando-a uma obviedade desinteressante para a investigação racional. Mais do que isso, a apropriação privada pré-capitalista e capitalista que inicialmente aprisionou-as à vida doméstica impedindo-nas de desenvolver uma visão ampla da sua existência e de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino um meio de acesso à vida publica para eternizá-la como objeto de desejo dos machos, velhos e novos. A situação de silencio, obscuridade e banalidade na qual foram colocadas as mulheres impõe como desafio político estratégico a tarefa de trazer à luz suas vozes, suas mentes, sua condição humana. Estamos convencidos de que o processo de conhecimento sobre as mulheres é parte indispensável do processo de libertação de mulheres e homens do jugo do 1

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Pequena Contribuição Metodológica Ao Feminismo Emancipacionista. parte I escrito porMilton B. de Almeida Filho.O objetivo deste trabalho é discutir as bases filosóficas do feminismo emancipacionista

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Page 1: Feminismo Emancipacionista Parte I

Pequena Contribuição Metodológica Ao Feminismo Emancipacionista

Milton B. de Almeida Filho

O objetivo deste trabalho é discutir as

bases filosóficas do feminismo emancipacionista.

Entendemos como base filosófica um conjunto de

perguntas e respostas cruciais sobre a condição de

existência da mulher. As perguntas são

relativamente fáceis de serem feitas mesmo que

sejam embaraçosas; já as respostas estão

necessariamente em construção, pois fazem parte

do próprio processo de emancipação da mulher

que é inexoravelmente coletivo. As perguntas são:

O que é ser Mulher? Como é possível conhecer a

Mulher? Que modo de vida propõem as

Mulheres?

A primeira pergunta, de caráter

ontológico, demandará respostas da segunda,

afinal, só podemos saber o que ser mulher se

encontrarmos um modo adequado de conhecê-las.

A terceira pergunta dependerá de que mulher

estamos falando, a qual classe social ela se

vincula, que interesses ela defende.

Durante um tempo demasiadamente longo

e enfadonho a filosofia e a ciência, com seus mais

ilustres e melhores representantes,

desqualificaram a mulher tornando-a uma

obviedade desinteressante para a investigação

racional. Mais do que isso, a apropriação privada

pré-capitalista e capitalista que inicialmente

aprisionou-as à vida doméstica impedindo-nas de

desenvolver uma visão ampla da sua existência e

de suas possibilidades enquanto ser humano, hoje

as objetifica e mercantiliza, faz do corpo feminino

um meio de acesso à vida publica para eternizá-la

como objeto de desejo dos machos, velhos e

novos. A situação de silencio, obscuridade e

banalidade na qual foram colocadas as mulheres

impõe como desafio político estratégico a tarefa

de trazer à luz suas vozes, suas mentes, sua

condição humana.

Estamos convencidos de que o processo

de conhecimento sobre as mulheres é parte

indispensável do processo de libertação de

mulheres e homens do jugo do capital.

Começamos então por antecipar um conceito que

ficará mais claro e preciso apenas ao final do

trabalho, mas que orientará as nossas

investigações desde o inicio. À pergunta “o que é

ser mulher” responderemos que, em principio, ser

mulher é existir na condição feminina que será

denominada de feminilidade.

Feminilidade ou Condição Feminina de

Existência é o modo de viver próprio das

mulheres ou o conjunto das condições

socioeconômicas, ambientais e corporais

(condições materiais de vida), hábitos, rotinas e

tradições (estilo de vida), conceitos, princípios e

valores (concepção de vida) que formam o modo

de vida das mulheres.

Na historia concreta da espécie humana, a

condição feminina se expressa positivamente em

diferentes dimensões de existência. Essas

dimensões são as mesmas nas quais se realizam a

condição humana em geral e, portanto, são validas

para homens e mulheres. Elas reúnem um

conjunto diverso de propriedades, atributos e

processos denominados de sócio-culturais,

psicológicos e biológicos. Por sua vez, os aspectos

culturais, psicológicos e biológicos que

caracterizam a condição feminina são gerados

através da mediação com seu oposto imediato e

negativo, a masculinidade, como mostra a Figura

1.

Homens e mulheres, mesmo sendo tão

diferentes como são, formam uma unidade

dinâmica indissolúvel responsável pela

sobrevivência e desenvolvimento da espécie

1

Page 2: Feminismo Emancipacionista Parte I

humana. Essa unidade é dinâmica porque homens

e mulheres são, simultaneamente, opostos que se

distinguem um do outro por possuírem diferentes

propriedades e atributos construídos numa história

biológica, psicológica e social, e são

complementares, já que a história a que acabamos

de nos referir é compartilhada durante todo o

processo evolutivo da espécie, o que viabiliza, a

interpenetração sistemática e a conseqüente

modificação mútua entre o conjunto das

características biopsicossociais que identificam

homens e mulheres.

Figura 1: A menor unidade de analise da Feminilidade é uma tríade dialética complexa.

Para continuar o raciocínio tomemos a

feminilidade como um ente real e concreto e não

apenas como um conceito. A ontologia dialética

demonstra que todos os entes existentes no

universo estão direta ou indiretamente

interconectados uns com os outros. Ora, se todos

os fenômenos são determinados por sua conexão

universal como investigá-los sem conhecer a

totalidade? Para responder a esta questão é

necessário deduzir da proposição ontológica

acima suas implicações epistemológicas. Afirmar

a conexão universal implica dizer também que

todos os fenômenos são multideterminados e que

é impossível se aproximar da verdade dos fatos

isolando-os uns dos outros. Além disso, é

necessário identificar a conexão mínima, que

torna um ser existente na rede da conexão

universal passível de ser conhecido. Como

afirmaram Marx (2004, 1978) e Lenin (1975,

1989) a objetividade de qualquer ente é garantida

quando, simultaneamente, esse ente toma para si,

como seu objeto, a sua própria negatividade e, por

outro lado, é tomado como objeto por outro(s)

ente(s), cuja existência lhe é independente. Só

dessa forma é possível “reter no positivo a

negatividade” e com isso revelar a essência

objetiva do fenômeno que se quer compreender. A

aplicação deste princípio metodológico permite

explicitar a menor unidade de analise que pode se

propor para compreender a feminilidade. Ela

contém necessariamente três componentes que

interagem dialeticamente: O Ser Feminino (1) –

uma totalidade – que se expressa positivamente

nas dimensões biopsicossociais (2) pela mediação

do seu negativo, o Ser Masculino (3). Neste

sentido, não se pode entender cientificamente a

complexidade da condição feminina e masculina

simplesmente separando-os como dois opostos

nem subsumindo um ao outro, como

tradicionalmente é feito ao se tomar como modelo

para a compreensão do que é ser mulher a

condição de existência dos homens ou vice-versa.

No paradigma cientifico dominante,

entretanto, as teorias explicam a condição

feminina reduzindo-a a um das dimensões de

existência da feminilidade. Isso acontece porque a

identificação dos determinantes que explicam a

feminilidade é feita com base em regras de

simplificação e redução que resultam na perda ou

no escamoteamento da complexidade e, portanto,

da multideterminação dos objetos, característica

ontológica dos fenômenos humanos. A Figura 2

mostra graficamente como funcionam a maioria

dos estudos sobre a condição feminina no interior

do paradigma cientifico reducionista e anti-

dialético dominante. Neles, a feminilidade é

explicada por fatores isolados ou agrupados

2

Dimensões da feminilidade

+

-

Feminilidade

Masculinidade

Page 3: Feminismo Emancipacionista Parte I

dentro de uma mesma e única dimensão.

Enquadram-se nesta classificação todas as

explicações exclusiva ou preponderantemente

biológicas que enfatizam as funções reprodutivas

femininas ou as diferenças genéticas entre homens

e mulheres; as explicações que privilegiam os

fatores psicológicos e a experiência vivida; ou

ainda, as explicações mais modernas ou pós-

modernas, que compreendem a feminilidade como

um fenômeno essencialmente cultural

determinado pelas diferentes maneiras pelas quais

o meio social e os valores culturais formatam,

modelam ou produzem os diferentes significados

de ser homem e mulher.

Figura 2: Redução da condição feminina a suas dimensões de existência.

Atualmente, as explicações biologicistas

estão provisoriamente em minoria pelo menos nos

círculos feministas e progressistas. Contudo, está

bem viva na sociobiologia e psicologia

evolucionista norte-americana cujas tentativas de

estender a lógica do darwinismo a todos os

terrenos da existência humana são amplamente

respaldados por setores políticos e econômicos

conservadores e neoliberais (Lewontin, R. C.;

Rose, S. & Kamin, L. J. 1984).

Os estudos reducionistas sobre a

feminilidade seguem as finalidades de previsão e

controle do comportamento humano como a

maioria das ciências sociais o fazem desde a

fundação da Economia, da Sociologia, da

Etnografia e da Psicologia (Lacey, 1998).

Predomina na literatura cientifica os estudos

descritivos que visam levantar e diagnosticar a

realidade em que vivem as mulheres para que

diferentes agentes públicos e privados tomem

decisões. Nestes casos obedece-se rigorosamente

à divisão de trabalho que impera nas sociedades

capitalistas baseada numa suposta neutralidade da

ciência. Estes estudos versam sobre a participação

política da mulher, suas crenças religiosas, sua

condição étnica e racial, sua inserção no mundo

do trabalho, sua condição de ser jovem, sobre

gravidez, parto e a maternidade, sobre políticas

públicas e participação política, sobre os

diferentes usos e abusos do corpo feminino, etc,.

Em muitos casos os estudos vão alem da descrição

e denuncia de situações concretas e fazem

comparações entre a condição feminina e

masculina nos contextos e situações apontadas

acima.

Os estudos descritivos e comparativos são

casos exemplares da “ciência normal” conforme

definiu Thomas Kuhn (1987): trabalham

rigorosamente dentro de um paradigma tradicional

e produzem vasta informação sobre aspectos

parciais do fenômeno investigado. Apesar destas

limitações os estudos descritivos e comparativos

reducionistas ajudam a tornar mais visível a

opressão da mulher e produzem informação útil

para políticas publicas, ainda que parciais. Fazem

parte das conquistas democráticas da luta das

mulheres por sua emancipação.

Entre os setores que contestam a forma

dominante (e patriarcal) de se produzir

conhecimento científico estão as feministas que

estruturam suas investigações em torno da

categoria gênero. Diferentemente do

reducionismo tradicional os estudos de gênero

3

Redução aos Determinantes

Sócio/Cultural

Psicológico

Biológico

Feminilidade

Page 4: Feminismo Emancipacionista Parte I

procuram compreender a condição feminina em

sua intima conexão com o seu negativo, a

condição masculina, enfatizando as relações de

dominação e exploração patriarcais e dão maior

atenção à produção teórica e metodológica e a

criação de modelos explicativos mais abrangentes.

É nesta área também que se encontram os setores

que atacam o feminismo marxista a partir de uma

posição à esquerda.

Torna-se cada vez mais evidente,

entretanto, as limitações desta abordagem. De um

lado, o dialogo entre o masculino e o feminino

quase nunca segue um procedimento dialético,

pois a relação é concebida fundamentalmente

como oposição sem complementaridade, seja

porque se eliminam as dimensões onde existem

complementaridades (e até semelhanças) mais

evidentes, a biológica e a psicológica, sejam

porque o uso de regras simplificadoras e

reducionistas induzem a investigação para o

território das comparações entre a condição

feminina e masculina caindo nas limitações dos

estudos descritivos. O uso de referencias

metodológicas reducionistas resultaram também

numa identificação das propriedades e atributos da

condição de gênero a significados socialmente

produzidos. Por esse principio se apreenderia a

totalidade da condição de gênero investigando

apenas o aspecto simbólico da dimensão sócio-

cultural. Configura-se assim, a mais importante

limitação metodológica dos estudos de gênero que

é a redução da feminilidade a determinantes

sociais e a redução do social ao aspecto simbólico. 1 A Figura 3 mostra como os estudos de gênero ao

fazerem a critica do marxismo se afastam de uma

descrição dialética dos elementos que constituem

a condição feminina de existência.

1 Para um estudo mais abrangente e critico sobre o conceito de gênero, ver Revista Critica Marxista nº11.

Figura 3: Nos estudos de gêneros o aspecto simbólico da dimensão cultural determina a feminilidade e a masculinidade e as diferentes posições de poder que ocupam na sociedade.

A ênfase nas relações de poder como

expressão única ou principal das complexas

relações entre homens e mulheres, entre

masculinidade e feminilidade encobre um outro

aspecto fundamental: a alienação que atinge os

dois pólos da contradição. Dominantes e

dominados são seres alienados de si mesmos, de

suas potencialidades e qualidades humanas.

De um ponto de vista materialista e

dialético a interpenetração entre o masculino e o

feminino não resulta apenas ou principalmente em

relações de poder e dominação, histórica e

socialmente construídas, mas num modo de ser e

viver, um modo de vida que separa e une homens

e mulheres. Isto significa que as mulheres vivem e

expressam sua condição biopsicossocial por meio

das formas históricas concretas da dominação

masculina, os modelos patriarcais. Tais modelos

se impuseram ao longo da história evolutiva,

social e pessoal das mulheres por meio da

violência física e psicológica, mas também através

da adesão de uma parcela das mulheres a estes

modelos.

O modo como as mulheres vivem o seu

próprio corpo, sua sexualidade ou maternidade, a

maneira como se comportam e pensam o trabalho,

a escola, a família, o lazer, os papeis e funções

sociais que desejam e se preparam para exercer

são concretizados através de modelos e de normas

4

Dominação Masculina

Dimensão Sócio/Cultural

Aspecto Simbólico

Page 5: Feminismo Emancipacionista Parte I

sociais que visam a manutenção da ordem social

vigente, na qual os homens não só exercem o

poder econômico, político e ideológico mas o

fazem em nome de valores e regras sociais que

preservam as diferenças e a dominação masculina

e para as quais se monta um enorme aparato

institucional com vistas ao controle da sua

produção e reprodução. Neste sentido os modelos

patriarcais dominam todas as instituições

responsáveis pela socialização das sucessivas

gerações de mulheres e homens nas sociedades

divididas em classes. Metodologicamente, o que

significam estes pressupostos, ou como podemos

usar estes princípios para compreender e revelar a

condição feminina enquanto conhecimento e luta

social?

Ora, se um ente concretiza sua

positividade por meio da sua negatividade, o seu

ser concreto e historicamente observável, o ser

realmente vivido, está alienado de si mesmo e de

sua potencia humana e a única maneira de reduzir

ao mínimo esta alienação é diminuir a distancia

com seu negativo. Este raciocínio é igualmente

valido para o pólo masculino que na condição de

dominador concretiza sua positividade através de

uma negatividade encoberta e mutilada pela

própria dominação que exerce. Assim, a

feminilidade através da qual se expressa as

características biopsicossociais dos homens é uma

espécie de imagem falsa porque encobriu o

potencial humano da mulher, mas é também uma

auto-imagem incompleta e distorcida porque o

feminino com qual ele se relaciona é uma

projeção de sua própria imagem idealizada. Esta é

a forma concreta pela qual se alienam homens e

mulheres nas sociedades dominadas por modelos

patriarcais de produção, reprodução e controle

social. Os modelos patriarcais não contêm apenas

uma imagem limitada e dominadora do homem,

mas também uma projeção distorcida do ser

mulher e é através deles que homens e mulheres

são socializados e posto em ação na sociedade de

classes. A Figura 4 ilustra o que estamos

descrevendo.

Figura 4: Menor unidade de análise da Feminilidade nas sociedades divididas em classes.

Se aceitarmos o modelo de análise

proposto pelos estudos de gênero o processo de

emancipação feminina se daria com o equilíbrio

de poderes entre homens e mulheres ou com a

inversão da dominação. Se, entretanto, adotarmos

o enfoque marxista poderemos, com algum

esforço intelectual e muita luta, descortinar o

amplo processo social em que, além de

rompermos as barreiras políticas que dividem a

nossa espécie e oprimem as mulheres, poderemos

superar a alienação, mãe e pai de todas as

opressões. Só dessa forma torna-se possível

visualizar o enorme percurso histórico que precisa

ser percorrido para alcançarmos um modo de vida

comunista com base na emancipação

revolucionaria das mulheres e dos homens.

Até agora fizemos o esforço de procurar

responder à pergunta o que é ser mulher, o que é

condição feminina de existência, o que é a

feminilidade. Mostramos que existem diferentes

respostas a essa mesma questão a depender da

ontologia e da epistemologia que os

5

Alienação Masculina

Alienação Feminina

DOMINAÇÃO

Propriedades e Atributos Biológicos, Sociais e Psicológicos.

Modelos Patriarcais de Socialização e Ação

Propriedades e Atributos Biológicos, Sociais e Psicológicos.

Page 6: Feminismo Emancipacionista Parte I

investigadores adotam. Do ponto de vista marxista

vimos que uma resposta clara a esta questão busca

manter a complexidade dialética e a materialidade

histórica do fenômeno. Entretanto a resposta que

demos ate agora é parcial, pois só destacou as

interpenetrações dialéticas entre o masculino e o

feminino e como estas relações são geradoras de

dominação e alienação. Os resultados a que

chegamos até o momento nos permite cumprir o

preceito metodológico marxista-leninista que

afirma que o primeiro passo na demarcação clara

de um objeto de estudo é explicitar como a

negatividade de mantêm como parte intrínseca e

fundamental de qualquer fenômeno. Vimos,

portanto apenas a dinâmica relacional do feminino

com seu negativo e acentuamos que as

propriedades e atributos biopsicossociais que

caracterizam as mulheres são realizados na

história concreta pela mediação dos modelos

patriarcais. Mas as características biopsicossociais

das mulheres mudam ao longo do tempo.

Portanto, do ponto de vista metodológico é

necessário agora olhar para o outro par relacional

do ente feminino, a sua própria potencia humana

expressa num complexo de competências

biológicas, sociais e psicológicas. Insistimos que

não apresentaremos teorias sobre estas questões e

sim princípios ontológicos e indicações

metodológicas e epistemológicas sobre a condição

feminina a partir do materialismo dialético.

As transformações biopsicossociais

femininas ocorreram antes da existência dos

modelos patriarcais de socialização e ação e

existirão depois que eles tiverem sido superados

pela luta revolucionária e soterrados pela história.

Elas têm, portanto, precedência e transcendência

frente a qualquer modo de dominação masculina

ou alienação da espécie humana.

Uma leitura metodológica da obra de

Marx nos ajuda a encontrar uma saída para esta

questão. Como sabemos todos os fenômenos

humanos possuem três características

indissociáveis: 1) São, essencialmente, relações

sociais, 2) Tem a sua gênese e desenvolvimento

ao longo de um tempo biológico, histórico e

pessoal irreversíveis e 3) São determinados em

ultima instancia pela produção e reprodução da

vida material. Cada um destes pressupostos

ontológicos trazem consigo implicações

metodológicas que serão desenvolvidas a seguir.

O pressuposto 1 já foi parcialmente

desenvolvido quanto a suas implicações

metodológicas quando exploramos a feminilidade

como o produto de uma relação dialética com o

masculino que se concretiza historicamente pela

mediação dos modelos patriarcais. Este

pressuposto será retomado mais adiante quando

formos desenvolver as conseqüências

epistemológicas do item 3. Por enquanto vamos

tirar as conseqüências lógicas da afirmação de que

todo fenômeno humano ocorre em três níveis

distintos de desenvolvimento ou passa por

transformações que ocorrem simultaneamente em

três aspectos diferentes e interconectados da vida

humana, qual sejam: o nível de desenvolvimento

filogenético ou filogênese onde ocorrem as

transformações de ordem evolutiva,

particularmente o surgimento do trabalho e da

linguagem, que envolvem diferenciadamente toda

a espécie humana e que podem ser observadas em

unidades temporais que medem milhares de anos;

o nível de desenvolvimento sóciogénetico ou

sociogenese onde ocorrem as transformações

históricas que produzem sucessivos e distintos

modos de produção e de vida e separam os seres

humanos em classes, gêneros, etnias, etc.; o nível

de desenvolvimento ontogenético ou ontogênese,

6

Page 7: Feminismo Emancipacionista Parte I

onde ocorrem as transformações que acompanham

todo o ser humano desde o seu nascimento até sua

morte. A Figura 5 nos permite visualizar estas

interconexões.

Figura 5: As características biopsicossociais dos seres humanos mudam ao longo do tempo evolutivo, histórico e pessoal de modos diferentes para homens e mulheres.

Vamos nos deter um pouco na analise da

figura acima. Nela, as dimensões da feminilidade

aparecem interconectadas entre si e o mesmo

ocorre com os níveis de desenvolvimento. Já

vimos que qualquer privilégio causal para uma

das dimensões nos leva aos braços do

reducionismo cujo produto final é uma imagem

incompleta e distorcida do ser mulher. O mesmo

ocorre com os níveis de desenvolvimento: eles

não podem ser desconectados um dos outros, pois

existem simultaneamente como processos que

ocorrem com todos os seres humanos. Entretanto,

as transformações que ocorrem nos níveis de

desenvolvimento obedecem a uma lógica

temporal completamente diferente das que

ocorrem com as dimensões da feminilidade.

Transformações filogenéticas significativas

podem levar dezenas ou centenas de milhares de

anos para ocorrerem, transformações

sociogenéticas podem não acontecer ou durar

acontecendo por dezenas ou centenas de anos e

transformações ontogenéticas podem ocorrem em

meses ou anos na dimensão social e certamente

ocorrem diariamente nas dimensões biológica e

psicológica de homens e mulheres. Isto significa

que quando olhamos para as dimensões que

positivam a feminilidade o que vemos são

mudanças ocorrendo de forma diferenciada nas

dimensões biológicas, psicológicas e sociais.

Enquanto que o corpo, a mente e as emoções das

mulheres estão em permanente transformação as

condições sociais de sua existência podem

permanecer as mesmas durante toda a sua vida.

Ora, como todo esse processo de mudança é

mediado por modelos patriarcais, ou seja, por

instituições sociais conservadoras, as distintas

formas de viver sua corporeidade, sua

racionalidade e sua afetividade estarão em tensão,

mas circunscritas, aos limites impostos pela

hegemonia destes modelos.

Podemos concluir então, que, se com

relação às dimensões qualquer ênfase nos retira do

campo do materialismo dialético, ou seja, seres

humanos são, em qualquer circunstância, seres

biopsicossociais e consequentemente devem ser

sempre compreendidos e estudados desta forma, o

mesmo não se pode dizer quanto aos seus níveis

de desenvolvimento. Neste caso, existe uma

prioridade quando se trata de identificar o alcance

das transformações, pois quando ocorrem apenas

no nível ontogenético elas não atingem os

modelos patriarcais, fenômenos sociais que

possuem uma dinâmica transformadora de longa

duração devido a sua institucionalização e

persistência como tradição e, principalmente, pelo

lugar que estes modelos ocupam na produção,

reprodução e controle da ordem econômica

vigente.

A figura também nos mostra que cada

uma das dimensões está sujeita a transformações

em todos os níveis de desenvolvimento. Devemos

investigar como o corpo feminino se modificou,

7

Dimensões da Feminilidade

Biológica Social Psicológica

Filogênese

Sociogenese

Ontogênese

Níveis de Desenvolvimento

Page 8: Feminismo Emancipacionista Parte I

diferentemente e em interação com o masculino,

ao longo da escala evolutiva, que pontos cruciais

dessa escala marcam as transformações

qualitativas que fizeram homens e mulheres terem

a estrutura e as propriedades biológicas que

possuem atualmente. Devemos também investigar

como ao longo da história social da humanidade

mulheres e homens foram vivendo de maneira

qualitativamente nova sua existência corporal, os

diferentes usos que os corpos femininos e

masculinos tiveram ao longo do tempo histórico.

Da mesma forma, deve se olhar com particular

atenção para as transformações que nossos corpos

passam ao longo de nossa curta existência pessoal

e como vivemos estas mudanças na condição de

mulheres e homens. Podemos e devemos fazer o

mesmo com a dimensão psicológica e enriquecer

enormemente a investigação e a consciência

marxista sobre a condição da mulher.

Como já afirmamos anteriormente, todas

estas transformações ocorrem sob a mediação dos

modelos de socialização e ação patriarcais e,

portanto, o conhecimento sobre a feminilidade,

parte fundamental da emancipação feminina, seria

tosco e frágil se não investigasse a fundo como os

modelos patriarcais surgiram e se desenvolveram

ao longo da escala evolutiva, se existiram ou não

fenômenos evolutivos que facilitaram a imposição

destes modelos. Além disso, é igualmente

estratégico, compreender como tais modelos se

sustentaram ao longo da história humana, como os

diferentes modos de vida e produção se apoiaram

neles e os desenvolveram e, finalmente, como tais

modelos são objetivados e subjetivados nas

experiências das mulheres e dos homens

existentes ao longo de suas trajetórias pessoais de

vida.

Para completarmos esse enorme painel

sobre a complexidade da feminilidade teríamos

que investigar como, em cada um dos níveis de

desenvolvimento, mudanças qualitativas nas três

dimensões foram construindo a unidade e as

diferenças dentro da espécie humana, de suas

sociedades e entre as pessoas que as compõem.

Com este painel tentamos responder, de

um ponto de vista materialista e dialético, o que é

ser mulher. A resposta que encontramos foi a de

que a mulher vive sua condição de existência

feminina em múltiplas dimensões e níveis de

desenvolvimento, interconectados através da

mediação de sua negatividade – na forma de

modelos patriarcais de socialização e ação –

resultando numa condição histórica de dominação

masculina sobre as mulheres e alienação de ambos

os membros da espécie, de longa duração, que

retroage sobre os modelos patriarcais,

institucionalizando-os e enraizando-os na tradição

existente.

Para responder a pergunta o que é ser

mulher? tivemos necessariamente que responder a

segunda questão que formulamos no inicio do

texto: como se conhece a mulher? Em primeiro

lugar, as afirmações ontológicas devem ser

convertidas em princípios orientadores que

descrevem o ser e sua dinâmica relacional

mínima, aquela que garante a objetividade e a

efetividade do fenômeno que se quer estudar. A

dinâmica relacional mínima é uma tríade dialética

entre o objeto como totalidade, sua negatividade e

sua positividade em que o negativo media a

relação da totalidade com sua expressão positiva.

Em segundo lugar, as dimensões e os níveis de

desenvolvimento ontológicos devem ser postos

em relação e exploradas todas as possibilidades

combinatórias entre eles. Contudo, os princípios

epistemológicos e as referencias metodológicas

que apresentamos até agora não se referiram ainda

às causas e mecanismos responsáveis pelas

8

Page 9: Feminismo Emancipacionista Parte I

transformações e conservações que dão forma

concreta à feminilidade ao longo do tempo.

Qual o papel das classes sociais e do seu

modo de vida na determinação da feminilidade?

Como explicar que as relações de produção a

determinam em última instância? Como as outras

determinações se articulam com a determinação

econômica? Que estrutura conceitual e categórica

pode ser proposta para fazer avançar o

conhecimento e a emancipação feminina? Que

tipo de sociedade pode de fato extirpar a

dominação masculina e minimizar a alienação?

Que modo de vida poderá abrigar mulheres e

homens emancipados? Este conjunto de questões

serão tratadas no próximo artigo.

Referências Bibliográficas.

1. Marx, K. (2004) Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Boitempo Editorial, São Paulo, pgs: 126-128.

2. Marx, K (1978). O Método da Economia Política. Os Pensadores, Ed. Abril Cultural, São Paulo.

3. Lenin, V I. (1989) Cadernos Filosóficos. Edições Avante, Lisboa, pgs: 199-203

4. Lenin, V. I. (1975) Materialismo e Empiriocriticismo. Editorial Estampa, Lisboa.

5. Lewontin, R. C., Rose, S. e Kamin, L. J. (1984) Biologia, Ideologia e Natureza Humana, Publicações Europa-America, Lisboa.

6. Lacey H.(1998) Valores e Atividade

Científica, Fapesp, São Paulo,

7. Kuhn, T. (1987) A estrutura das revoluções cientificas. Editora Perspectiva, São Paulo.

8. Dossiê Marxismo e Feminismo (2000). Revista Critica Marxista. Nº11. São Paulo

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