efeitos de oralidade na crÔnica da revista istoÉ
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EFEITOS DE ORALIDADE NA CRÔNICA “GPS” DA REVISTA ISTOÉ:
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA.
Mayara Oliveira Feitosa¹
GT7 - Educação, Linguagens e Artes.
Resumo: Partindo da possibilidade de criar efeitos da língua oral na língua escrita, este trabalho tem
como objetivo analisar fenômenos da emissão oral em textos escritos, tais como envolvimento
interpessoal, modos de planejamento, e a constituição dos efeitos de sentido. Serão apresentadas
semelhanças, diferenças, o continuum da língua falada e escrita, métodos de produção, transmissão,
recepção e estruturas de organização, com procedimentos teórico-metodológicos da interface da
oralidade e escrita de Barros (2006), Marcusci (2001) e Neves (2009). Como corpus será utilizada
uma crônica da revista IstoÉ, pois trata-se de um gênero bastante circulado na sociedade. Percebeu-se
o entrecruzamento entre a oralidade e a escrita evidenciando a relação entre elementos das duas
modalidades. Acredita-se que este trabalho possa trazer contribuições para a valorização e a
divulgação de novos estudos linguísticos, indispensáveis para o ensino de Língua Portuguesa.
Palavras - chave: Oralidade; Escrita; Crônicas.
EFECTOS DE ORALIDADE EN LA CRÓNICA “GPS” DE LA REVISTA ISTOÉ:
CONTRIBUCICONES PARA LA ENSEÑANZA DE LENGUA PORTUGESA .
Resumen: Partiendo de la posibilidad de crear efectos de la lengua oral en la lengua escrita, este
trabajo tiene como objetivo analizar fenómenos de la emisión oral en textos escritos, tales como
implicación interpessoal, modos de planificación y la constitución de los efectos de sentido. Serán
presentadas semejanzas, diferencias, el continuum de la lengua hablada y escrita, métodos de
producción, transmisión, recepción y estructuras de organización con procedimentos de Barros (2006),
Marcuschi (2001) y Neves (2009). Como corpus será utilizada uma crónica de la revista IstoÉ, pues se
trata de un género bastante circulado en la sociedad. Se percibió el entrecruzamento entre la oralidade
y la escritura evidenciando la relación entre elementos de las dos modalidades. Se cree que este trabajo
pueda traer contribuciones para la valorización y la divulgación de nuevos estudios lingüísticos,
indispensables para la enseñanza de Lengua Portuguesa.
Palabras - llave: Oralidad; Escritura; Crónicas.
Introdução
Barros (2006) indica que muitos estudos linguísticos identificaram uma insuficiência
a respeito da diferenciação de forma rígida da entre a escrita e a fala, tais estudos discorrem
sobre as chamadas posições intermediárias entre essas duas modalidades da língua. Segundo
Barros (2006, p. 57), conforme Marcuschi (1997; 1999) “tanto a fala quanto a escrita são
imprescindíveis na sociedade atual”, e que apresentam modos complementares de
compreensão do mundo, assim para os autores as duas modalidades devem ser examinadas a
partir de procedimentos linguístico-discursivos que produzem efeitos de sentido de oralidade
_______________________ ¹Mestranda em Letras – Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Sergipe. Grupo Interinstitucional de
Pesquisa em Lexicologia- GIPLEX/CNPq/UFS. E-mail: mayara_oliveiraf@hotmail.com.
no texto escrito interessados na aprendizagem sobre características da fala e da escrita.
Levando em consideração o fato de que os estudos linguísticos têm auxiliado na construção
das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, as atividades com proposta de
produção, recepção e análise de textos têm ganhado espaço: “por força das orientações
contidas nos diferentes documentos de parametrização construídos nos últimos anos e em
consonância, com estudos produzidos pela Análise da Conversação, pela Linguística Textual
e pelas Teorias da Enunciação.” (BRASIL, 2006, p. 34), nota-se a importância do trabalho
com os estudos linguísticos para o ensino de Língua Portuguesa. Este trabalho tem como
objetivo analisar fenômenos da emissão oral em textos escritos como envolvimento
interpessoal, grau e localização temporal do planejamento, natureza dos procedimentos de
formulação em crônica de revistas.
No presente artigo serão introduzidos alguns aspectos históricos da oralidade e da
escrita a partir de Zumthor (1993) sobre questões da materialização das duas modalidades e
sobre a publicação. Em seguida serão apresentadas algumas indicações de diferenciações
entre a língua falada a partir de Neves (2009) e Barros (2006), assim como algumas
semelhanças entre oralidade e escrita. Logo após serão apresentadas concepções de Marcuschi
(2001) referentes ao uso da língua se dá num continuum de relações entre as modalidades oral
e escrita, gêneros textuais e de como letramento e da oralidade podem ser trabalhados.
Para compor o corpus será utilizada a crônica “GPS” da revista IsteÉ, do cantor e
compositor Zeca Baleiro. A escolha pelo gênero crônica justifica-se por se tratar de um
gênero com características orais e escritas, há recursos também argumentativos, são utilizados
para persuadir o público, especialmente para um uso consciente da tecnologia, sistemas ou
aplicativos. São também utilizados recursos simples e populares na linguagem, possivelmente
para que maior parte da população tenha acesso às crônicas que são publicadas mensalmente
na revista. O gênero é bastante interessante, pois apresenta conteúdos elementos importantes
entre a relação entre a oralidade e a escrita, bem como a partir de uma análise prática de um
gênero que faz parte do cotidiano das pessoas na sociedade, abordando temas atuais de uma
forma dinâmica.
Oralidade e Escrita: aspectos históricos
Paul Zumthor (1993) inicia seu texto O espaço oral afirmando que admitir que um
texto tenha sido oral, em algum momento de sua existência é conscientizar-se de um fato
histórico, que jamais será “palpável”, ao contrário da marca escrita. Entretanto é possível
notar em alguns textos escritos a presença de traços da oralidade, segundo Zumthor (1993,
p.35): “acontece-nos frequentemente perceber no texto o rumor, vibrante ou confuso, de um
discurso que fala a própria voz que o carrega”. Assim, o autor apresenta a noção de “índices
de oralidade”: “tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz
humana em sua publicação” (p.35), ou seja, a passagem do texto virtual à atualidade e existiu
na atenção e na memória de alguns indivíduos, assim, a própria voz é capaz de publicar o
texto no momento da fala, tornando o texto público. Zumthor afirma que o índice adquire
valor de prova indiscutível quando consiste em notação musical, assim há uma duplicação do
texto sobre o manuscrito. Além disso, a voz era ligada à questão religiosa, e como os poemas
litúrgicos, assim como a temporalidade, na Idade Média, situando o espaço e o tempo, e texto
em todo texto há um discurso, uma escuta singular, a leitura informa-nos da intervenção da
voz humana.
Notou-se que os textos eram muito musicais, ou seja, comportavam uma melodia,
questões de entonação, o ritmo, e que existem várias melodias na voz, com uma ligação entre
poesia e voz. A música e a voz estavam entrelaçadas, de acordo com o texto, pois a sociedade
utilizava a oralidade, em um tempo em que muitas pessoas não eram alfabetizadas. A liturgia
da igreja era cantada, que pode-se notar atualmente em alguns casos. Os primeiros poemas,
narrativas da época eram cantados, as repetições eram formas de assimilar rapidamente, pois a
musicalidade leva a memorização. Assim, é possível perceber a ação da voz na palavra. Dessa
maneira a história é bastante importante para compreender a língua, e compreende-se
claramente o papel histórico e social da língua que perpassa uma série de acontecimentos e
transformações, a cultura, tradições e a necessidade de comunicação de cada época. O autor
apresenta também índices mais diretos, como “ele falou”, “ele disse” e as canções populares
sobre heróis, crônicas para contar acontecimentos da época, as anedotas, nota-se que os
gêneros são elementos que surgiram há muito tempo.
No texto A palavra fundadora de Zumthor (1993), notou-se a relação da palavra com
o poder da Igreja, assim como a importância da tradição oral: “O catolicismo fazia da tradição
uma das duas fontes do dogma, e essa noção abrangia, com os escritos patrísticos (...) até o
século XII, o bispo tem de fato o monopólio da palavra verídica. A voz intervém sempre,
como poder e verdade. A seu sopro se realizam as formas sacramentaise exorcizantes.”
(ZUMTHOR, 1993, p.76). Dessa maneira, para o autor, a voz além de fornecer a transmissão
da doutrina “é, enquanto perdura, fundadora de uma fé.”
Zumthor (1993, p.79) fala do poder que a oralidade tinha de influência sobre os
costumes das pessoas: “O cristianismo popular (...) aspirava a permitir a cada um, através de
diversas mediações, um contato particularizado com o divino: um diálogo feito de palavra e
de ouvido, num lugar e num tempo concretos e familiares.” Zumthor (1993, p. 80), sobre o
campo da religiosidade, relata que há a incidência de duas vozes: a poética e a religiosa. A
poesia exercia influência na emoção das pessoas e servia para a expressão dos sentimentos:
“Culto e poesia permaneciam funcionalmente unidos no nível das pulsões profundas,
culminando na obra da voz”.
Zumtohor (1993), sobre a escritura, apresenta formas e técnicas, maneiras de ler,
considerações sobre a voz escrita, assim como a questão dos escribas, mostrando que o
sentido do termo escritura não apresenta uniformidade, podendo referir-se a técnicas, atitudes
e condutas diversas, conforme os tempos, os lugares e os contextos eventuais. Assim, nota-se
que a questão do tempo e espaço extremamente importante. Segundo Zumthor (1993, p. 102)
“não é suficiente para o escriba saber desenhar letras e abreviações competência gráfica
básica, de fácil acesso: mais de uma famosa personagem, capaz de assinar seu nome, não teria
podido escrever documentos”. No referido texto percebe-se que as modalidades de escritura
condicionam a leitura. Além disso, o texto mostra que a escritura preenche duas funções: a
transmissão de um texto e a conservação, como forma de arquivamento.
É importante ressaltar que para Zumthor (1993, p. 109): “uma forma qualquer de
oralidade precede a escritura ou então é por ela intencionalmente preparada, dentro do
objetivo performático”, pois cada tipo de escritura requer uma formulação, o autor cita como
exemplo os sermões. Nota-se a importância da palavra como identificação humana: para
Zumthor (1993) “é pela palavra que, e somente por ela, que se manifesta plenamente o
humano” e “em vez de ruptura, a passagem do vocal ao escrito manifesta uma convergência
entre os modos de comunicação assim confrontados. O par voz/escritura é atravessado por
tensões, oposições conflitivas e, com o recuo do tempo, mostra-se muito frequentemente aos
medievalistas como contraditório.” (ZUMTHOR, 1993, p. 114). Zumthor (1993) apresenta,
estudos sobre voz e oralidade na literatura da Idade Média, apresenta apoio teórico para a
compreensão das narrativas atuais.
Língua falada e língua escrita: indicações de diferenciações
Segundo Neves (2009, p. 21) algumas indicações de diferenciação claras entre a língua
falada e a língua escrita são “envolvimento interpessoal; grau e localização temporal do
planejamento; natureza dos procedimentos de formulação; características da organização do
texto”, ao mesmo tempo ressalta a semelhança da língua oral com o uso linguístico em seu
modo natural, a conversação que “é o veículo de comunicação usado em de intervenção social
do tipo de comunicação face a face”. (Tarallo, 1986, p. 19). Neves (2009) ressalta que
recursos da oralidade em textos escritos geralmente são utilizados com objetivo “pragmático,
estilístico, literário”, esse processo é possível de acordo com a autora devido à “regularidade
da língua entre si, de um sistema que sustenta em comum os procedimentos de qualquer
modalidade de formulação linguística”. Há uma série de diferenças entre a fala e a escrita a
partir das condições de produção descritas por Neves (2009), a partir de tais diferenças foi
elaborada a seguinte tabela:
fala escrita
Presença do interlocutor Ausência do interlocutor
Característica física oral: recursos vocais, gestuais,
posturais
Característica física gráfica
Concomitância com a recepção Recepção posterior
Reparação face a face Reparação do texto com privacidade
Planejamento simultâneo a produção Planejamento prévio
Possibilidade (e ameaça) de silêncio na interlocução Ausência de possibilidade (e de perigo) de silêncio na
produção
Fig. 1 – Tabela elaborada a partir das diferenças entre fala e escrita
Neves (2009, p. 25) também elenca algumas semelhanças entre a oralidade e a escrita,
alertando que a dicotomização extrema estre as modalidades de língua pode desrespeitar a
essência da linguagem, pois ambas as modalidades de “constituem interfaces do exercício da
faculdade da linguagem.” Barros recorre a Coseriu (1988): “1) ambas as modalidades
implicam (não importa se com implementação diversa) a capacidade de falar; 2) ambas
implicam (não importa se maneiras peculiares) o conhecimento de uma língua particular
historicamente inserida, têm como correlato um sistema único; 3) ambas implicam a
existência de uma atividade de interação (diferente que seja)”.
Sobre as diferenças entre a oralidade e a escrita, Neves (2009, p. 25) identifica que
uma delas se apresenta como “se governa a segmentação” de unidades menores no texto, além
disso, “Análise da Conversação tem como unidades a tomada de turno, intervenção, ato” a
regularidade linguística que subjaz as duas modalidades coexiste com características
organizacionais peculiares a cada modalidade, e os produtos de elocução: fazem parte do
próprio objeto posto em exame quando se procede a análise. Na língua oral de acordo com
Neves (2009, p. 26) “repetições, superposições, patinações, parentetizações, buscas de
denominação têm de integrar a descrição gramatical, o apagamento absoluto desses
fenômenos, que é basicamente geral na língua escrita, conduz modelos específicos da tradição
escrita.”
Barros (2006) elenca alguns traços que separam a fala da escrita: “construção
‘coletiva’ do texto e alternância de papeis vs construção ‘individual’ do texto e ausência de
alternância de papeis; simetria vs assimetria dos papeis e aproximação da enunciação”
(BARROS, 2006, p. 61). A autora também discorre sobre as imagens de língua falada que o
usuário da língua constrói e na determinação de procedimentos da construção dos efeitos de
oralidade na escrita, assim como seu papel, elementos persuasivos. A autora mostra que “os
textos falados e escritos têm papeis diferentes nas sociedades que se servem tanto da fala
quanto da escrita” (p. 58), assim nota-se que a construção de sentidos é realizada de vários
modos, segundo Barros (2000) examina características temporais, espaciais e actoriais e os
traços de oralidade. Segundo Barros (2006)
a caracterização ideal da fala e da escrita em relação ao tempo e à sua
aspectualização mostra que a fala produz , em geral, os efeitos de sentido de
informalidade (decorrente da falta de planejamento), de transparência, pois
oferece pistas e traços de sua elaboração e de suas revisões e reencaminhamentos, de
falta de acabamento ou de completude, já que o texto vai ser construído na
interação como algo passageiro, que não se conserva (aspectualização descontínua,
pontual.) (BARROS, p. 2006, p. 59)
Na perspectiva da semiótica, Barros (2006, p. 59) indica que os traços semânticos
podem ter valor positivo ou negativo, a depender da posição e da interpretação do sujeito e
apresenta o seguinte quadro os efeitos temporais de oralidade e seus valores positivos e
negativos:
efeitos de sentido temporais da
oralidade
valoração
Positiva negativa
informalidade Sinceridade, franqueza,
subjetividade, cumplicidade
Excesso de envolvimento, sem
objetividade
Falta de acabamento, de
completude
Atualidade, novidade Incompletude, má elaboração
transitoriedade Em que tudo pode ser dito, que
não compromete “verdadeiro”
Efêmero, que não se conserva, de
pouco efeito, que não constrói a
história
Figura 2. Efeitos de sentido temporais da oralidade
Barros (2006) ressalta que as questões negativas dos efeitos negativos da fala
colaboram para o prestígio da escrita. Esta por sua vez, em seus textos, utiliza recursos da
oralidade como procedimentos discursivos, de modo a construir efeitos de valoração
positivos. Já a fala segundo Barros (2006, p. 60), “é caracterizada assim pela presença, em um
mesmo espaço, dos sujeitos envolvidos na conversação, que, dessa forma, partilham o mesmo
contexto situacional. No texto escrito, por sua vez, o destinador e o destinatário não se
encontram em um mesmo espaço”. A seguir, a partir da chamada definição “ideal” de fala os
efeitos de sentido de proximidade espacial descritos por Barros (1006, p. 60):
Efeitos de sentido espaciais da
oralidade valoração
Positiva negativa
Proximidade Cumplicidade, envolvimento
afetivo e emocional, laços corporais
Sem objetividade, excesso de
intimidade, deselegância
Figura 3. Efeitos de sentido espaciais da oralidade
Continuum entre a oralidade e a escrita
Marcuschi (2001) discorre sobre a ideia de o “uso da língua se dá num continuum de
relações entre modalidades, gêneros textuais e contextos socioculturais” e de que a questão do
letramento e oralidade podem ser trabalhadas no contexto das práticas comunicativas,
tratando o letramento como prática social situada. Essas questões são muito importantes, pois
mostram reflexões mais amplas com respeito ao letramento que implica outras características,
o texto é pensado além do texto, sendo assim uma construção social.
Conforme Marcuschi, segundo Street (1995) entre os mitos sobre a fala-escrita de
acordo com a “grande divisão”: a ideia de que a escrita codifica lexical e sintaticamente os
conteúdos e o centro da fala se trada do uso de elementos paralinguísticos, a ideia de que a
escrita possui mais coesão e coerência a fala possui fragmentação e a ideia de que os sentidos
produzidos pela escrita são conduzidos a partir da página expressa e os da fala se referem ao
contexto e as relações face a face. Essas relações são importantes, pois serviram de base para
as novas perspectivas acerca da relação entre a fala e a escrita. Um fato interessante trata-se
da identificação da escrita colaborativa, a exemplo de um formulário, ao mesmo tempo a
constatação de que “o texto final era o produto de uma colaboração de muitas mãos: um típico
texto colaborativo, ou uma prática de letramento com um texto escrito final coletivamente
construído” (MARCUSCHI, 2001, p. 35).
Marcuschi (2001, p. 35) ressalta que seu interesse se volta a uma “relação escalar ou
gradual em que uma série de elementos que se interpretam, seja em termos de função social,
práticas comunicativas, contextos sociais, aspectos constitutivos”, entre outros. O autor trata
também dos domínios discursivos e práticas comunicativas, salientando a existência de
múltiplos letramentos com base nesses domínios discursivos. Observa-se que é extremamente
importante tratar da diferenciação entre tipo textual e gênero textual, o primeiro, segundo o
autor, se trata de um construto teórico que abrange categorias como: narração, argumentação,
exposição, descrição, injunção e não apresenta uma existência empírica, o segundo é tomado
como uma forma textual concretamente realizada e encontrada no texto empírico.
É interessante ressaltar a existência de gêneros “tipicamente orais”, “tipicamente
escritos” e “produzidos na interface”. Assim, o autor observa que há relações claras entre
oralidade e letramento imbricadas. Além disso, as condições de produção da fala e da escrita
são específicas e situadas contextualmente. Essas informações apresentadas por Marcuschi
(2001) contribuem bastante para a compreensão mais ampla sobre o letramento, gêneros e
tipos textuais, assim como da relação entre a fala e a escrita, não apesentada como uma
dicotomia pelo autor.
Análise de efeitos da oralidade na crônica GPS
Segundo Fávero (2009, p. 134), conforme Fix (1997) e Marcuschi (2003) a crônica
pode ser definida como “um gênero hibrido, que oscila entre a subjetividade da literatura e a
objetividade do jornalismo, com propriedades intertextuais intergêneros". Além disso, Fávero
(2009) afirma que a escolha pelo coloquialismo é um atrativo para o leitor, assim como a
urgência expressa no cotidiano de alguns leitores se adequa à rapidez dos acontecimentos
descritos nas crônicas. Fávero (2009) expõe a concepção de Cândido (1992) sobre a crônica:
a crônica não é um ‘gênero maior’ (...) ‘Graças a Deus’, - seria o caso de
dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir de
caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura (...).
Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem
necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia.
Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de
ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização ‘lhe permite’,
como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade
de significação e um certo acabamento de forma. (CÂNDIDO, 1992, p. 13).
Fávero (2009) também ressalta características históricas da crônica, assim como
elementos sociais, culturais e sociais situado em um determinado espaço, conforme Neves
(1992, p. 82) “a crônica, pela própria etimologia – chronus/crônica – é um gênero colado no
tempo (...) com o tempo vivido. De formas diferenciadas, porque diferente é em cada
momento a percepção do tempo histórico”.
Na crônica da revista IstoÉ, do cantor, compositor e colunista Zeca Baleiro é possível
encontrar diversos aspectos da conversação, é importante ressaltar que além da versão
impressa, a revista possui o suporte eletrônico, que facilita o acesso às crônicas. O título da
crônica GPS é bastante atrativo, provoca uma certa antecipação, uma vez que se trata de um
sistema tecnológico e por se tratar de um estrangeirismo, que segundo o site Siglas e
Abreviaturas “é a sigla de Global Positioning System – Sistema de Posicionamento Global,
em tradução livre para o português. Trata-se de um sistema de navegação por satélite que
fornece a um dispositivo móvel a sua posição.” Tal sistema aparentemente auxilia o usuário a
encontrar o destino, porém na crônica, o uso do GPS provoca um acontecimento dispendioso
e direcionando um trajeto mais longo, o autor faz uma crítica ao uso da tecnologia sem
questionamentos, provocando reflexão e ao mesmo tempo humor. Em seguida, é possível
notar no subtítulo da crônica aspectos próprios da conversação:
- Conheço pessoas que não se deslocam mais à esquina para comprar pão sem que
façam uso de GPS, Google Maps e o escambau.
Nas palavras grifadas nota-se a presença de elementos do cotidiano, assim como
hábitos como ir à padaria, acrescenta outro estrangeirismo: “Google Maps”, ampliando assim
o campo semântico do sistema de posicionamento, “e escambau”, para indicar uma seleção
outras coisas não mencionadas, termo bem próprio da linguagem informal. O autor inicia a
descrição do acontecimento:
Entrei no táxi e falei o meu destino.
– Rua Araribóia, por favor.
– Araribóia? Espera um minuto!...– rebateu o homem.
Programou então seu GPS e arrancou.
– Não precisa de GPS, amigo. Sei mais ou menos onde fica. Posso lhe orientar.
– Ah, não. Não saio mais de casa sem isto – declarou.
É possível perceber que nas crônicas, enquanto gênero escrita, os autores representam
os fatos de forma a provocar a sensação de proximidade no leitor, ao apresentar marcas do
subjetivismo. As marcas da oralidade em destaque chamam atenção, justamente por se tratar
de um gênero escrito, além disso, são apresentadas espécies de frases de cortesia, ”por favor”,
tratamento informal “amigo” e “sei mais ou menos”, indicando conhecimento do trajeto
melhor a ser feito. O taxista por sua vez, indica sempre utiliza o GPS para o trabalho. O
humor é apresentado a partir de uma série de denominações feitas pelo cronista ao GPS:
Resmunguei em silêncio. E lá se foi o taxista seguindo seu brinquedinho falante –
“vire à esquerda”; “a 50 metros você vai virar à direita”; “daqui a 300 metros
faça o retorno à esquerda”...
De repente, entre uma e outra prosa, vi ele se afastando da direção que eu julgava
ser a correta.
– Amigo, acho que você está na direção contrária. Tinha que ter entrado naquela
rua à direita, melhor fazer o retorno na frente.
– Não, não, olha aqui – apontou pra geringonça, orgulhoso como ele só. É esse
mesmo o caminho.
Segundo Févero (2009), um aspecto que colabora para a aproximação do leitor se trata
do humor, da comicidade, por meio de uma linguagem simples, que é possível notar no trecho
acima, pode-se notar também os mascadores temporais e espaciais dando mais grau de
realidade ao texto. Percebe-se também na crônica, aspectos observados por Barros (2006)
com relação aos procedimentos dos efeitos de oralidade na análise: organização das pessoas
no discurso recursos temporais e espaciais, comunicação interna, vocabulário e expressões
próprias da fala. Barros (2006) reforça que são usadas diferentes estratégias para a construção
de efeitos de oralidade dirigidas às pessoas, o tempo e o espaço no discurso. A expressão
“esquentar a cabeça” apresenta uma linguagem do cotidiano, assim como as formas de
tratamento, “moço”, “amigo”, “tá aqui no GPS, ó”, e o fato de o taxista “não discutir com a
tecnologia” provoca mais insatisfação no passageiro, o escritor, que da ênfase repetindo a
“frase de efeito” entre aspas e “sim” para dar mais realidade à situação, acrescentando que a
referida frase “denunciava toda uma época”. O taxista é identificado como “sujeito” que não
usava sua experiência como taxista e confiava no GPS, identificado dessa vez como
“engenhoca surda e cega-, mas tecnológica”. O autor se significando enquanto sujeito e
marcando o uso da pessoa do sujeito “eu”, que também foi impedido de questionar a
tecnologia e ao mesmo tempo justifica-se sua posição provocando humor “não quero parecer
um dinossauro”, argumenta em favor do “uso inteligente, comedido e crítico dos apetrechos
eletrônicos”.
Argumentei mais uma vez, já na iminência de explodir.
– Moço, desculpe, mas tenho quase certeza de que você está fazendo um caminho
muito mais longo do que devia.
– Não esquenta a cabeça não, companheiro. Tá aqui no GPS, ó. Não vou discutir
com a tecnologia, né, amigo?
“Não vou discutir com a tecnologia.” Sim, eu havia ouvido aquilo. E mais que uma
frase de efeito de um chofer de praça, aquilo era uma senha que explicava muita
coisa, talvez explicasse até toda uma época.
Nota-se também elementos como o parêntese “estratégia de discursivização e de
textualização de maior relevância, traz hierarquias, em todos os níveis de constituição do
enunciado, todos os planos de funcionamento linguístico e na própria construção do texto”,
segundo Neves (2009), existente na escrita: (se é que a tinha) e (embora por vezes eu
inevitavelmente pareça).
O sujeito deixava de lado sua inteligência (se é que a tinha), a experiência de anos
perambulando a bordo do seu táxi pelas quebradas da cidade e o próprio poder de
dedução para seguir uma engenhoca surda e cega – mas “tecnológica” – sem
questioná-la, e sem que eu também pudesse fazê-lo.
Não quero parecer um dinossauro (embora por vezes eu inevitavelmente pareça),
mas sempre defendi um uso inteligente, comedido e crítico dos apetrechos
eletrônicos.
Nota-se uma argumentação em relação à convivência no espaço e na situação “rodas
de bar” que apresenta a linguagem do cotidiano, assim com “chatas”, que se ressemantiza em
“próximo encontro”, que para o autor foram prejudicadas pelo uso excessivo dos iPhones. O
relato sobre os fatos observados pelo sobrinho “pensador irreverente de botequim”,
demonstram um sujeito que possivelmente comunga com o uso reflexivo dos aparelhos
tecnológicos. Ao mesmo tempo nota-se as formações discursivas dos campos da música, do
futebol temas comuns em conversas entre amigos, que possivelmente são silenciadas pela
internet e até mesmo pelo “bobo alegre”, associado ao usuário que utiliza a internet de forma
não reflexiva.
Tenho um sobrinho, um pensador irreverente de botequim, que gosta de dizer o
seguinte:
– As rodas de bar ficaram muito chatas depois do iPhone. Ninguém mais pode ter
dúvida alguma. Se alguém perguntar: “como é o nome daquele cantor que cantava
aquela música?”; ou então: “quem era o centroavante da seleção de 86?”, logo
algum bobo alegre vai acessar a internet e buscar a resposta. E aí acabar com a
graça, a mágica e o mistério... Não sobra assunto pro próximo encontro.
Outro amigo, filósofo de padaria, tem uma tese/profecia tenebrosa. Diz ele:
– Num futuro próximo, as pessoas deixarão de ter memória. Para que lembrar, se
tudo caberá num HD externo?
É. Faz bastante sentido a tese do meu amigo. Aliás, há tempos não o vejo, o... o...
Como é mesmo o nome dele, gente? Aníbal, não. Átila, não... É um nome assim,
meio histórico... Desculpem aí, vou ter que espiar na agenda do meu celular.
O cronista utiliza diversos marcadores conversacionais, gerando a impressão de
interação com o leitor, de modo que este tem a possibilidade de participação na crônica. Ao
mesmo tempo, com humor, o autor questiona o leitor “como é mesmo gente?”. Isso fica
evidenciado, como vimos, através das perguntas que o autor faz e que, às vezes, ele mesmo
responde. É como se estivéssemos vendo cada leitor se admirando, se indignando, buscando
uma solução para o conflito apresentado. Além disso, pode-se encontrar características
observadas por Barros (2006): a subjetividade, sinceridade, franqueza e informalidade do
destinador, assim como a afetividade.
O “outro amigo” significado como “filósofo de padaria”, unindo duas questões que
são comumente separadas tirando o grau de cientificidade do termo “filósofo”, trazendo
humor com a profecia tenebrosa: “Num futuro próximo, as pessoas deixarão de ter memória.
Para que lembrar, se tudo caberá num HD externo?”. São utilizados mais uma vez termos da
linguagem do cotidiano, e a referida previsão traz ironia, pois indica que até a memória do ser
humano será trocada pela tecnologia.
Nota-se também uma característica que não pertence canonicamente à escrita: a
correção, para Fávero (1999) “as correções correspondem a um processo altamente interativo
e colaborativo”. A fala quando traz marcas de correção, quer, de fato, corrigir, já a escrita, em
geral quando registra propositalmente uma correção, utiliza como estratégia discursiva: “há
tempos não o vejo, o... o... Aníbal, não. Átila, não... É um nome assim, meio histórico...”.
Observa-se ainda a importância da pontuação para a organização do texto, como os travessões
para indicar a tomada de turno, a separação das falas, já as reticências que promovem uma
continuidade, as aspas para destacar, dar ênfase ao que, as exclamações e interrogações que
promovem a sensação de interação nas cenas. Nota-se o humor para finalizar a crônica:
“Desculpem aí, vou ter que espiar na agenda do meu celular”, em interação com o leitor, o
autor admite ter que fazer uso do celular para lembrar o nome do amigo.
Considerações finais
Foram apresentados alguns conceitos e alguns procedimentos analíticos, bem como
aspectos históricos da oralidade e da escrita. Vale ressaltar a importância da discussão de
importantes conceitos, servindo assim de suporte teórico para pesquisadores da Linguística,
assim como uma forma de situar o leitor em questões relativas à linguagem com aspectos
exteriores, os outros sujeitos, os sentidos e com a história. No presente buscou-se realizar uma
tentativa de contribuição para o avanço sobre conhecimento e sobre reflexões acerca dos
estudos da relação entre o oral e o escrito, bem sua prática analítica para possíveis
contribuições para a Linguística Aplacada ao Ensino de Língua Postuguesa.
Nitidamente, conforme Barros (2006), a caracterização da fala e da escrita e seus
diversos fatores apresentados sugerem algumas “posições intermediárias” entre as duas
modalidades da língua, que podem apresentar graus de aproximação a depender do critério
utilizado na análise. Observou-se a partir das análises da crônica “GPS” da revista IstoÉ,
aspectos como a argumentação, proximidade, subjetividade, sinceridade, franqueza e
informalidade do destinador, assim como a afetividade, são alguns exemplos de usos da
oralidade na produção do texto escrito, recursos estes que são comuns à linguagem informal, à
conversação. Assim, as reflexões teóricas mostraram-se importantes para compor a
compreensão dos diferentes modos e formas de produção de sentidos, assim como o
estabelecimento de relação entre sujeitos.
Para Neves (2009) a questão no sentido oposto e o complementar mostra que a análise
não pode concentrar-se apenas na realização (condições de emprego, variações,
qualificações), ignorando o sistema que regula igualmente todos os enunciados da língua. A
linguagem, em qualquer modalidade, é, afinal, a língua em função. Este artigo propôs não
somente uma reflexão de elementos estruturais da oralidade e da escrita, mas também seus
aspectos e que apresentam modos complementares de compreensão do mundo, assim para os
autores as duas modalidades devem ser examinadas a partir de procedimentos linguístico-
discursivos, uma vez que o escritor propõe no texto uma espécie de conscientização em favor
do uso da tecnologia de forma crítica, irônica e dinâmica de modo a dialogar com o leitor.
Assim, percebeu-se o entrecruzamento entre as modalidades oral e escrita, a partir dos
recursos utilizados pelo cronista, a crônica sendo um gênero híbrido utilizado bastante
utilizado pela interatividade e praticidade pelo suporte impresso ou eletrônico em jornais,
revistas, internet, entre outros, contribuído para a prática da leitura, diante do ritmo acelerado
do cotidiano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALEIRO, Zeca. GPS. Revista ISTOÉ. Disponível em: http://www.istoe.com.br/colunas-e-
blogs/coluna/133775_GPS. Acesso em 15 mar. 2016.
BARROS, D. L. P. Entre a fala e a escrita: algumas reflexões sobre as posições
intermediárias. In: PRETI, Dino (org.) Fala e escrita em questão. Vol 4. São Paulo:
Humanitas, 2000, p. 57 – 78.
_____. Efeitos de Oralidade no Texto Escrito. In: PRETI, Dino (org.) Oralidade em
diferentes discursos. São Paulo: Humanitas, 2006, p. 57 – 83.
FÁVERO, L. L. ET AL. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da língua materna.
São Paulo: Humanitas, 2000.
FÁVERO, L. L. ET AL. Crônica e seu valor como documento da história. In: PRETI, Dino
(org.) Oralidade em textos escritos. São Paulo: Humanitas, 2009, p. 131-150.
JUBRAN, Célia C. A. S; KOCH, Ingedore G.V.(orgs.). Gramática do Português culto
falado no Brasil: construção do texto falado. Vol 1. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2006.
MARCUSCHI, L. A. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e dos eventos
comunicativos. In: SIGNORINI, I. (org.) Investigando as relações oral//escrito e as teorias
do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001, p. 23-50.
NEVES, Maria Helena de Moura. Fala e escrita: a mesma gramática?. In: PRETI, Dino.
Oralidade em textos escritos. São Paulo: Humanitas, 2009.
PRETI, D. (org.) Fala e escrita em questão. S. Paulo: Humanitas, 2000.
ZUNTHOR, P. A letra e a voz: A literatura medieval; tradução Amálio Pinheiro, Jerusa
Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ANEXOS
ISTOÉ COLUNISTAS Zeca Baleiro Cantor e Compositor - Colunista Mensal GPS Conheço pessoas que não se deslocam mais à esquina para comprar pão sem que façam uso de GPS, Google Maps e o escambau
Entrei no táxi e falei o meu destino.
– Rua Araribóia, por favor.
– Araribóia? Espera um minuto!...– rebateu o homem.
Programou então seu GPS e arrancou.
– Não precisa de GPS, amigo. Sei mais ou menos onde fica. Posso lhe orientar.
– Ah, não. Não saio mais de casa sem isto – declarou.
Resmunguei em silêncio. E lá se foi o taxista seguindo seu brinquedinho falante – “vire à esquerda”;
“a 50 metros você vai virar à direita”; “daqui a 300 metros faça o retorno à esquerda”...
De repente, entre uma e outra prosa, vi ele se afastando da direção que eu julgava ser a correta.
– Amigo, acho que você está na direção contrária. Tinha que ter entrado naquela rua à direita, melhor
fazer o retorno na frente.
– Não, não, olha aqui – apontou pra geringonça, orgulhoso como ele só. É esse mesmo o caminho.
Cocei a cabeça irritado. Embora eu não soubesse exatamente qual o trajeto a seguir, sabia que aquele
caminho que ele fazia era estupidamente mais longo e complexo.
Argumentei mais uma vez, já na iminência de explodir.
– Moço, desculpe, mas tenho quase certeza de que você está fazendo um caminho muito mais longo
do que devia.
– Não esquenta a cabeça não, companheiro. Tá aqui no GPS, ó. Não vou discutir com a tecnologia, né,
amigo?
“Não vou discutir com a tecnologia.” Sim, eu havia ouvido aquilo. E mais que uma frase de efeito de
um chofer de praça, aquilo era uma senha que explicava muita coisa, talvez explicasse até toda uma
época. O sujeito deixava de lado sua inteligência (se é que a tinha), a experiência de anos
perambulando a bordo do seu táxi pelas quebradas da cidade e o próprio poder de dedução para seguir
uma engenhoca surda e cega – mas “tecnológica” – sem questioná-la, e sem que eu também pudesse
fazê-lo.
Não quero parecer um dinossauro (embora por vezes eu inevitavelmente pareça), mas sempre defendi
um uso inteligente, comedido e crítico dos apetrechos eletrônicos. Conheço pessoas que, por
comodidade, condicionamento ou deslumbramento com o novo mundo cibernético, não se deslocam
mais à esquina para comprar pão sem que façam uso de GPS, Google Maps e o escambau.
Tenho um sobrinho, um pensador irreverente de botequim, que gosta de dizer o seguinte:
– As rodas de bar ficaram muito chatas depois do iPhone. Ninguém mais pode ter dúvida alguma. Se
alguém perguntar: “como é o nome daquele cantor que cantava aquela música?”; ou então: “quem era
o centroavante da seleção de 86?”, logo algum bobo alegre vai acessar a internet e buscar a resposta. E
aí acabar com a graça, a mágica e o mistério... Não sobra assunto pro próximo encontro.
Outro amigo, filósofo de padaria, tem uma tese/profecia tenebrosa sobre o uso sem critério dos
tecnobreguetes: Diz ele:
– Num futuro próximo, as pessoas deixarão de ter memória. Para que lembrar, se tudo caberá num HD
externo?
É. Faz bastante sentido a tese do meu amigo. Aliás, há tempos não o vejo, o... o... Como é mesmo o
nome dele, gente? Aníbal, não. Átila, não... É um nome assim, meio histórico... Desculpem aí, vou ter
que espiar na agenda do meu celular.
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