diss flavia farias de oliveira
Post on 15-Oct-2015
31 Views
Preview:
TRANSCRIPT
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
1/148
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
A LITERATURA NA LNGUA DO OUTRO: o tratamento do texto
literrio em livros didticos de espanhol como lngua estrangeira
Flvia Farias de Oliveira
Recife
2013
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
2/148
Flvia Farias de Oliveira
A LITERATURA NA LNGUA DO OUTRO: o tratamento do texto
literrio em livros didticos de espanhol como lngua estrangeira
Dissertao submetida como requisito parcial para
obteno do Ttulo de Mestre em Letras, pelo Programa
de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco.
Orientador: Profa. Dra. Fabiele Stockmans De Nardi
Recife
2013
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
3/148
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
4/148
Catalogao na fonte
Andra Marinho, CRB4-1667
O48l Oliveira, Flvia Farias deA literatura na lngua do outro: o tratamento do texto literrio em livros
didticos de espanhol como lngua estrangeira / Flvia Farias de Oliveira.Recife: O Autor, 2013.
148p.: Il.: fig.; 30 cm.
Orientador: Fabiele Stockmans De Nardi.. Dissertao (mestrado)Universidade Federal de Pernambuco, CAC.Letras, 2013.
Inclui bibliografia e anexos.
1. Lingustica. 2. Lngua Espanhola. 3. Interlngua (Aprendizagem delnguas). 4. Literatura. I. De Nardi, Fabiele Stockmans (Orientador). II.Titulo.
410 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2013-69)
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
5/148
Agradecimentos
Pela sade, pela coragem, por no me deixar cair, pelos anjos que ps em minha vida, obrigada,
meu Deus!
minha me, Dona Nena, sempre presente em toda minha vida acadmica, desde os primeirospassos, quando eu ainda aprendia a falar espanhol, e ela, em um grande esforo para me entender,
ouvia-me atentamente falando na lngua de Cortzar, desde que eu pudesse praticar o idioma pelo qual
tinha me apaixonado. Ela que, mesmo sem entender nada de Anlise do Discurso, tambm me cedeu,
inmeras vezes, seus ouvidos, seu corao, sua alma para me escutar falar sobre meu trabalho e, em um
dia de angstia, disse: meus ouvidos so incansveis para voc.
minha famlia, meu pai, meus irmos, minhas tias, em especial Tia Key, minha segunda me,
meus primos e sobrinhos que vibraram a cada conquista minha e estiveram ao meu lado nas vezes em
que as foras me faltaram. Obrigada aos Farias e aos Prazeres, minha base, meu porto seguro.
A Lvia pelo ouvido, pelo olhar, pacincia e dedicao durante esses trs anos de conversas
fundamentais para que minhas foras fossem reestabelecidas e muitas quedas evitadas.
Aos meus companheiros de jornada acadmica, junto aos quais logo percebi que esse universo
pequeno demais para ns, para a amizade que construmos. Com eles, dividi as alegrias e angstias
dos dois anos, at agora, mais importantes de minha vida. Obrigada por estarem comigo!
Agradeo, especialmente, a Andra que to pacientemente soube me ouvir e me fazer rir, em
terras brasileiras e em terras rioplatenses; a Berg, pelas gargalhadas compartilhadas, pelas revises
realizadas, pelo ombro amigo; a Ton e a ngela, pelos cafs de fim de aula, nos quais eles me brindavam
suas agradveis companhias para um dedinho de prosa.
Ao professor Miguel Espar que me deu a chance de trabalhar com a lngua espanhola e de me
apaixonar por ela e pela sala de aula. Pela confiana depositada, ao longo destes anos, muito obrigada
Ao professor Alfredo Cordiviola, com quem eu conheci a literatura hispanoamericana e o fazer
cientfico. Nunca terei palavras suficientes para agradecer a semente do amor pela literatura em mim
plantada.
Por fim, gostaria de dizer que esse trabalho foi todo escrito na primeira pessoa do plural porque,
definitivamente, eu no o escrevi sozinha, eu o fiz com todo o apoio, carinho e dedicao de Fabi, minha
orientadora. Agradeo a Deus por ter te colocado na minha vida! Fabiele De Nardi foi mais que uma
orientadora, ela foi a pessoa que no meu momento de fragilidade disse: te cuida, eu estou aqui! Qualquer
coisa, grita. Eu no gritei porque, afortunadamente, no precisei, mas sempre tive a certeza de que se o
fizesse, poderia contar com ela. s vezes, dizendo-se carrasca, ela puxava minhas orelhas, mas o fazia
de um jeito to sutil e respeitoso que nohavia como concordar com aquela fala. Diante de mim, estavauma enorme pessoa, fazendo o seu trabalho com responsabilidade, amor e dedicao sem iguais, que
me serviro de espelho para sempre, no s em minha vida profissional, mas tambm na pessoal. Com
ela, eu me encontrei teoricamente, meu trabalho ganhou rumo e minha vida acadmica tambm.
Obrigada por tudo, Fabi!
Obrigada a todos que direta ou indiretamente contriburam para minha formao acadmica e
para tessitura deste trabalho.
Agradeo, tambm, ao Programa de Ps-Graduao em Letras da UFPE e CAPES pelo apoio
concedido.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
6/148
RESUMO
O presente trabalho se prope a analisar o tratamento dado ao texto literrio
em livros didticos destinados ao ensino de lngua espanhola para brasileiros,
visando ensejar uma reflexo sobre o processo de ensino-aprendizagem de
espanhol como lngua estrangeira (E/LE) a partir da estreita relao existente
entre lngua e literatura. Partimos do pressuposto de que este processo s
ocorre quando se vive a relao entre lngua-discurso-sujeito. Para tessitura de
tal reflexo, recorremos ao arcabouo terico da Anlise do Discurso de filiao
pecheuxtiana, a fim de pensar no aprendiz da lngua espanhola como um
sujeito imerso em um universo discursivo, que vai ao encontro de um novo
mundo, o da lngua estrangeira, para tomar a palavra neste novo espao social
(SERRANI, 2010). Defendemos que a literatura contribui para a realizao
desse encontro, pois caracterstica sua viver no limiar entre o dito e no-dito,
evidenciando a opacidade da lngua e convidando o leitor/aluno a enveredar
entre seus interditos em uma constante busca por sentido. Sabemos que
construir sentidos e ocupar uma posio frente a uma rede de discursos, que
tambm se materializa linguisticamente no texto literrio, so aspiraes
inerentes a todo ser humano, logo no h como suprimir tais aspiraes
daquele que almeja aprender uma lngua estrangeira. Pretendemos aqui refletir
sobre o que falha no tratamento dos livros didticos de E/LE adotados no
Brasil, a fim de repensar tal tratamento, para que, assim, o aprendiz possa
resignificar a lngua e a literatura de origem castelhana, ocupando um lugar
neste novo universo de dizeres.
PALAVRAS-CHAVE: lngua estrangeira, literatura, ensino-aprendizagem.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
7/148
RESUMEN
El presente trabajo se propone a analizar el tratamiento dado al texto literario
en libros didcticos destinados a la enseanza de la lengua espaola para
brasileos, de modo que pretendemos impartir una reflexin sobre el proceso
de enseanza y aprendizaje de espaol como lengua extranjera (E/LE) a partir
de la estrecha relacin existente entre lengua y literatura. Partimos de la idea
de que este proceso slo ocurre cuando se vive la relacin entre lengua-
discurso-sujeto. Para la escritura de dicha reflexin, buscamos apoyo terico
en el Anlisis del Discurso de corriente pecheuxtiana, a fin de pensar en el
aprendiente de la lengua espaola como un sujeto inscripto en un universo
discursivo, que va al encuentro de un nuevo mundo, el de la lengua espaola,
para poder tomar la palabra en este nuevo espacio social (SERRANI, 2010).
Defendemos que la literatura contribuye para la realizacin de este encuentro,
pues es caracterstica suya vivir entre el dicho y el no dicho, evidenciando la
opacidad de la lengua e invitando el lector/alumno a involucrarse por estos
interdictos en una constante bsqueda por sentido. Sabemos que construir
sentidos y ocupar una posicin frente a una red de discursos, que tambin se
materializa lingsticamente en el texto literario, son anhelos del que desea
aprender una lengua extranjera. Pretendemos aqu reflexionar sobre lo que
falla en el referido tratamiento, para que, de esta forma, el aprendiente pueda
dar nuevos sentidos a la lengua y a la literatura de origen castellano, ocupando
un lugar en este nuevo universo.
PALABRAS CLAVE: lengua extranjera, literatura, enseanza y aprendizaje.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
8/148
Sumrio
Introduo .............................................................................................. 91. Princpios tericos da Anlise do Discurso .......................................12
1.1 Das origens dos estudos em Anlise do Discurso ......................131.2 O sujeito na Anlise do Discurso: um lugar nodizer..............................................................................................18
1.3 Relaes entre discurso ememria........................................................................................24
1.4 O discurso na lngua do outro ......................................................281.5 Lngua e literatura: realizaes discursivas em lngua
estrangeira....................................................................................322. Anlise do Discurso e o texto literrio ...............................................36
2.1 Sobre a ideologia em Anlise do Discurso e sua relao com aliteratura........................................................................................42
2.2 Sobre a funo/autor e o sujeito/leitor no processo de leitura dostextos literrios .............................................................................46
2.3 O que se silencia..........................................................................512.4 Sobre o inconsciente e o imaginrio e sua relao com a
literatura........................................................................................532.5 As trocas interculturais e os discursos que se entremeiam .........58
3. A literatura na aula E/LE na sala de aula contempornea noBrasil..................................................................................................643.1 Por que estudamos espanhol? ....................................................64
3.1.1 Breve sntese da evoluo histrica do ensino de E/LE noBrasil .................................................................................67
3.2 Do objeto de anlise ....................................................................723.2.1 Conforme os parmetros europeus: o predomnio da
perspectiva comunicativa ..................................................733.2.2 Quando a cultura o enfoque que perde o foco ...............803.2.3 Quando o tratamento da literatura depende apenas do
professor ...........................................................................823.2.4 Um poco de literatura? ....................................................85
3.3 Livros didticos especficos para o estudo da literatura em lnguaespanhola.....................................................................................89
3.4 Livros didticos recomendados pelo PNLD: o parmetro
brasileiro.......................................................................................913.4.1 Quando a literatura e o discurso dialogam .......................913.4.2 Quando o dilogo se transforma em um monlogo ..........93
4. Consideraes finais ........................................... ..............................975. Referncias bibliogrficas ............................................. ..................1016. Anexos.............................................................................................108
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
9/148
9
1. Introduo
O presente trabalho postula sobre a importncia de tornar a lngua
estrangeira (LE) significativa para os alunos, priorizar e aperfeioar a
sensibilidade dos discentes atravs da literatura de lngua estrangeira. Para
tanto, partimos do pressuposto de que conhecer um novo idioma implica uma
imerso nos discursos dessa nova lngua-cultura, em suas dimenses sociais,
histricas e ideolgicas. Neste trabalho, entendemos que o processo de
ensino-aprendizagem de LE deve centrar-se nas relaes que envolvem o
outro, em sua dimenso discursiva, atravs do texto literrio, uma vez que a
literatura proporciona a imerso num novo mundo de dizeres em lngua
estrangeira. Portanto, discorreremos, aqui, sobre a relao entre lngua, sujeito,
discurso e literatura, a fim de aportar novos olhares para o processo de ensino-
aprendizagem de espanhol como lngua estrangeira (E/LE).
No raro encontramos nos livros didticos, que orientam a prtica dos
docentes em instituies de ensino brasileiras, menes literatura, mas essas
menes, como temos observado, no implicam uma insero efetiva do texto
literrio nas prticas de ensino de LE. H nos livros didticos, como
demonstraremos nas anlises realizadas mais adiante, o predomnio de
concepes de lngua e ensino, que primam pelo valor estrutural e funcional da
lngua. Conforme esta perspectiva, o aluno deve se apropriar de estruturas
lingusticas para aplic-las em contextos imediatos de uso. Entretanto,
sabemos que aprender um novo idioma est mais alm do que a simples
decodificao da estrutura que constitui a lngua e de se ter o domnio dos
momentos de uso de seu cdigo. Julgamos que saber um idioma vai mais alm
do saber gramatical, um idioma significa a inscrio do aprendiz em uma nova
rede de discursos que se realiza em lngua estrangeira, isto , significa poder
realizar movimentos no interior dessas redes, para, assim, tomar a palavra na
lngua do outro.
No presente trabalho, refletimos sobre o papel da literatura nesse
processo de inscrio do sujeito na lngua. Nosso interesse se justifica pelo fato
de considerarmos que no texto literrio esto presentes as diversas formas de
expresso do ser humano, bem como os vrios dizeres que ecoam dasrelaes scio-histricas da sociedade dessa lngua outra. A percepo da
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
10/148
10
literatura como elemento de prazer esttico, de fruio (BIRMAN, 1996) e como
fonte de diferentes modos de expresso corrobora o fato de que lngua e
literatura esto relacionadas e que no devem dissociar-se no processo de
ensino-aprendizagem. As marcas de identidade social, presentes no discurso
literrio, mobilizam o leitor na busca de produzir sentidos quando se coloca
diante desses novos discursos em verso e prosa, em um processo de
reconhecimento, resignificao, identificao ou negao do que est posto na
materialidade do texto e, principalmente, no que est alm do escrito.
Diante do exposto, o presente trabalho se prope a ratificar a
importncia da relao existente entre o ensino-aprendizagem do espanhol
como lngua estrangeira com a literatura produzida nessa lngua, a partir dos
postulados da Anlise do Discurso (AD) de corrente pecheuxtiana. Pretende-
se, a partir desta reflexo, discutir o que falha no que concerne s noes de
lngua, sujeito e discurso adotadas nos livros didticos de E/LE no Brasil. A
partir desta discusso, propomos uma reflexo, a fim de se pensar na formao
de alunos de LE como sujeitos discursivos, que buscam tomar a palavra na
lngua espanhola. (SERRANI, 2010)
Conforme os pressupostos da AD, aprender outra lngua exige que haja
uma constante busca pelo que constitui o outro, isto , o sujeitodessa lngua,
no somente com a forma como ele age em situaes cotidianas e quais
proposies ele utiliza para tal fim. Como afirma Serrani (2003, p. 285), antes
de falar, todo sujeito est imerso em um mundo de dizeres.Este mundo de
dizeres est presente na memria desta lngua e com ela que devemos
entrar em contato para atuar significativamente no que constitui essa segunda
lngua. Como afirmava Serrani (2003, p. 285) falar uma lngua estrangeira
implica em uma relao entre ns e os outros. No podemos falar outra
lngua sem sair de nosso mundo, sem buscar conhecer a qual universo nos
estamos dirigindo, sem considerar a histria, os costumes, o imaginrio que
constitui o novo. No se pode ignorar de onde vem o outro dessa lngua e
como ele enxerga o seu universo. A literatura se caracteriza por mobilizar o
leitor na busca por conhecer este outro, presente em suas linhas e versos, e
constitudo social, histrica e ideologicamente. O texto literrio tira o leitor da
confortvel posio de receptor de informaes, para revirar memrias embusca de sentidos, que no residem na materialidade lingustica.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
11/148
11
Este trabalho se desenvolve, valendo-se do papel mobilizador da
literatura, a qual permite que sujeitos de distintas realidades e sociedades se
encontrem, recuperando memrias e resignificando discursos. A leitura de
qualquer texto, literrio ou no, instiga o leitor a buscar referenciais, presentes
em sua memria, para que este possa recuperar e dar sentido ao que l.
Entretanto, importante salientar que esta memria mobilizada no a
individual, mas uma srie de sentidos entrecruzados da memria mtica, da
memria social inscrita em prticas, e da memria construda do historiador,
tal como afirma Pcheux (1997, p.50). Discorreremos, nos captulos mais
adiante, em pormenores a referida noo de memria.
Sabemos que, de acordo com os princpios tericos da AD, somos
sujeitos constitudos social, ideolgica e historicamente, e produzimos
discursos que refletem essa constituio, que, por sua vez, flexvel a
interpelaes de outros discursos. Na escritura de textos literrios, o autor no
nico, tampouco munido de meras intenes, ele est interpelado, isto ,
atravessado por esta constituio, que ecoar em seu texto e dar voz aos
vrios discursos que interpelam o autor, enquanto sujeito discursivo, e o seu
dizer literrio.
A literatura aporta para o processo de ensino-aprendizagem de LE um
amplo horizonte de discursos, de vozes que falam desde um lugar que o
aprendiz de espanhol deseja ocupar. papel dos pesquisadores sobre o
ensino de LE repensar a construo de materiais orientadores para os
docentes, cujo enfoque seja auxiliar o alunado a ocupar, discursivamente, um
lugar no universo em que se fala a lngua espanhola.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
12/148
12
1. Princpios tericos da Anlise do Discurso
As paixes que movem esta pesquisa levaram-me a caminhar, perder-
me e encontrar-me dentro de distintas reas dos estudos lingusticos, a fim de
levar para as salas de aula, no Brasil, o espanhol como lngua estrangeira
(E/LE). Nesse processo, a literatura e a lngua espanhola (LE) so paixes que
sempre caminharam juntas. Na tentativa de manter essa indissociabilidade,
surge, de imediato, a ideia de inserir o texto literrio em lngua castelhana nas
aulas de E/LE. A partir desse intento, nasce o conflito indicador de que a
simples insero de crnicas, contos, poemas, etc., no contribua para a
aprendizagem do espanhol como lngua estrangeira.
Na tentativa de encontrar, do ponto de vista terico, o que falhava na
tessitura deste trabalho, encontramos respostas na Anlise do Discurso de
corrente pecheuxtiana. Refletiremos sobre a literatura, escrita por um outro em
discursos que se materializam em uma nova lngua.
Sobre o outro, ao qual nos referiremos ao longo deste trabalho,
tomamos como base os postulados sobre alteridade de Pcheux, em Discurso:
estrutura ou acontecimento (1997), e o que sobre o tema nos diz Coracini
(2003), que centra sua discusso nos referenciais tericos da psicanlise
lacaniana e nas teorias do discurso. Conforme a autora (2003, p. 201), o outro
nos constitui assim como constitui o nosso discurso. Ao longo da constituio
social, histrica e ideolgica dos sujeitos, cria-se, inconscientemente, um
imaginrio acerca do estrangeiro e do falar uma determinada lngua, ou seja,
constri-se um imaginrio sobre o outro dessa lngua, provocando ou rejeitando
um processo de identificao com este que fala na LE, mas que, sobretudo,
fala ocupando lugares sociais no interior dos discursos que se materializam
nesta lngua.
Como afirma Pcheux (2009, p. 123), o outrono discurso designa um
sujeito absoluto e universal. O autor tambm se apoia nos estudados de
Lacan para tecer seus postulados sobre o outro. Segundo a perspectiva
lacaniana, o outro representa saberes que se materializam pela voz de um
sujeito que fala discursivamente na lngua estrangeira, o outro da ordem do
inconsciente e se estrutura na linguagem. este lugar que o aprendiz desejaocupar, em uma tentativa de preencher a falta destes saberes outros.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
13/148
13
Para pensar nos deslocamentos em busca do outro, refletimos sobre o
papel da alteridade, discutida por Pcheux ao refletir sobre a heterogeneidade
dos discursos e dos sujeitos. Conforme o autor, a alteridade um movimento
que nos permite sair de nossos lugares sociais para colocar-nos em outro
lugar. Logo, o imaginrio que se tem sobre o outro nos permite, em um
processo de alteridade, desejar ocupar este lugar, ter voz em suas redes
discursivas.
Os discursos esto repletos de furos permitindo-nos conhecer o qu da
constituio social, histrica e ideolgica desse outro escapa ao texto literrio e
permite a emerso de discursos outros em lngua espanhola. A AD nos
permite, atravs de seus postulados sobre sujeito, memria e discurso,
enveredar sobre o qu do texto literrio nos traz o outro da lngua estrangeira,
aportando, assim, um novo olhar para o processo de ensino-aprendizagem de
E/LE. Conforme a perspectiva terica sobre a qual nos apoiamos, lngua,
literatura, discurso e aprendizagem so elementos indissociveis, pois a
literatura est inserida na rede de discursos que se produzem em uma
sociedade, a literatura discurso que se materializa na lngua.
Para o desenvolvimento desta reflexo, na primeira parte deste trabalho,
ocupar-nos-emos em expor o quadro terico da AD, seus princpios
epistemolgicos e seu legado no Brasil, a fim de compreender como tais
princpios so importantes para o processo de ensino-aprendizagem de E/LE.
1.1 Das origens dos estudos em Anlise do Discurso
A Anlise do Discurso surge na Frana em fins da dcada de 60,
dividindo-se em trs fases principais, nas quais Michel Pcheux rel seus
prprios conceitos, provocando mudanas no interior da teoria. O primeiro
momento da AD tem lugar com a publicao de Anlise Automtica do
Discurso em 1969. Com esta obra, inaugura-se um novo pensar, o qual rompe
com o formalismo lingustico. Nesse mesmo perodo, o estruturalismo, cuja
base terica nasce com Ferdinand de Saussure, encontrava seu auge no
mbito dos estudos sobre linguagem, com a publicao do Curso de
Lingustica Geral, pois, a partir de seus postulados, o terico conferia lingustica o estatuto de cincia: anseio natural diante do quadro histrico
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
14/148
14
lgico-positivista vivenciado na Europa, naquele momento. O estruturalismo
lingustico de Saussure concebia a lngua como sistema, o qual podia obedecer
a normas defendidas pela cincia. Seus estudos estavam centrados na
concepo de lngua como elemento esttico, concreto e analisvel apenas no
que concerne a sua estrutura, ou seja, ao cdigo lingustico. Neste processo,
Saussure dedicou-se apenas anlise desses signos, excluindo as influncias
externas, advindas, por exemplo, da oralidade. Surge assim a dicotomia
lngua/fala langue/parole. Para Saussure, a lngua social e exterior aos
indivduos, enquanto a fala individual. Logo, o sujeito, ser falante, interventor
e construtor dessa lngua, no foi contemplado em seus postulados sobre os
estudos da linguagem. Visto que, como sabemos, a lngua analisada, na
perspectiva saussuriana, no essa que sofre intervenes externas. A
incluso do sujeito dentro dos estudos da linguagem, na perspectiva
estruturalista, incorreria na vulnerabilidade do carter cientfico da Lingustica.
O interior da lngua deixa de ser o centro dos estudos. Abre-se, assim,
espao para conceitos como a historicidade, a ideologia althusseriana, o
trabalho com o inconsciente e a incluso do sujeito no pensar sobre a
linguagem. Novas reas do saber passam a ser estudadas, dissociando-se das
teorias sobre a linguagem vigentes na dcada de 60. A lngua passa a ser vista
em sua dimenso discursiva, logo h um afastamento da teoria saussuriana. O
discurso passa a ser lugar de observao (ORLANDI, 2005, p. 76), ou seja,
no discurso que sero analisadas as relaes entre lngua, sujeito, histria e
ideologia.
No movimento de mudana terica, que se realizou no interior sobre os
estudos da linguagem, temos a figura de Pcheux que defender o discurso
como objeto da AD, sendo este pertencente a um sistema de regularidades,
mas tambm resultado de um quadro poltico-ideolgico existente no interior de
uma formao social. Conforme o autor, no discurso, existem sujeitos que
ocupam espaos sociais e refletem os discursos constitutivos deste lugar
social. O sujeito do discurso, interpelado ideologicamente, inscrever-se- em
uma rede de saberes, definida por Pcheux como formao discursiva, a qual
regula os discursos. Desta forma, surgem conceitos como o de formao
discursiva (doravante FD) e formao ideolgica (doravante FI), que seroaprofundados por Pcheux na chamada fase dois, que ter incio em 1975.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
15/148
15
Com a publicao, em 1975, de Semntica e discurso: uma crtica
afirmao do bvio, cujo ttulo em francs Ls Verits de la Palice, Pcheux
fortalece seus estudos sobre elementos exteriores lngua, reforando as
relaes entre discurso e ideologia. As noes de preconstrudo e de
interdiscurso tambm recebero maior ateno.
Nessa fase, tem-se ampliada a discusso sobre os efeitos produzidos
pelo discurso como resultado dos sentidos determinados ideologicamente.
Considera-se que todo discurso se constri no interior de uma rede de saberes,
constituindo, assim, o que se entende por formao discursiva. Esta, por sua
vez, est diretamente influenciada pelo que est na ordem da ideologia, isto ,
por uma rede de formaes ideolgicas1. Como afirma Nascimento (2010, p.
34):
(...) os sentidos so determinados ideologicamente, por isso asformaes discursivas representam no discurso as formaesideolgicas, nas quais as palavras adquirem sentidos sempre deacordo com a formao discursiva em que se instalam, ressaltandoque na discursividade que a ideologia produz seus efeitos.
Pcheux, nesta fase, est bastante influenciado pela reflexo proposta
por Althusser, em Aparelhos Ideolgicos de Estado. A partir da releitura que fazesse pensador da teoria marxista e seus fundamentos, no possvel pensar a
ideologia como:
(...) um bricolage imaginrio, puro sonho, vazio e vo, constitudopelos resduos diurnos da nica realidade plena e positiva, a dahistria concreta dos indivduos concretos, materiais, produzindomaterialmente sua existncia. (ALTHUSSER, 1985, P.83)
Para Althusser, no h uma histria da ideologia nica, pertencente a
um indivduo concreto, com suas ideologias particulares. O que existe a
histria da ideologia de uma classe, no de um ser especfico. Essas classes,
constitudas ideolgica e historicamente, entravam lutas em relao ao Estado
no em benefcio de um sujeito particular, mas de um conjunto, seja religioso,
poltico ou laboral, por exemplo. A ideologia, assim entendida, responsvel
pela construo de posies e lutas de classe. Para Althusser, o sujeito
1Mais adiante, no presente trabalho, trataremos de forma pormenorizada s noes de FD eFI.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
16/148
16
representa uma coletividade, uma classe social, ele fala desde um lugar na
sociedade. Trata-se de uma voz que fala pelo coletivo, no desde o interior de
um indivduo. A aproximao de Pcheux aos postulados althusserianos deve-
se, em grande parte, a esta noo de sujeito e ao papel da ideologia que o
interpela. Logo, o sujeito do discurso representa um grupo social, em sua
respectiva formao discursiva.
No perodo marcado a partir de 1980, a noo de assujeitamento ser
relativizada por Pcheux, que refletir sobre a heterogeneidade constitutiva do
sujeito discursivo, o qual flexvel e sofre atravessamentos de discursos de
outras ordens, refletindo assim a noo, defendida por Jean-Jacques Courtine
(2009), de que os discursos tambm so heterogneos. Sero discutidas,
nesta fase, as noes de desidentificao e contraidentificao. Ampliaremos,
mais adiante, as referidas perspectivas.
Com a publicao de Discurso: estrutura ou acontecimento, em 1980,
Pcheux evidencia o papel da historicidade na relao entre sujeito e sentido.
Michel Foucault (2010) e a releitura que Courtine (2009) realiza da obra
foucaultiana ganharo bastante relevncia nesta fase. Recebem nfase,
sobretudo, os conceitos referentes heterogeneidade e ao interdiscurso. (Cf.
GREGOLIN, 2004)
Com Courtine, tem-se uma reviso do papel da Histria para AD e a
introduo do conceito de memria discursiva. A partir desta concepo,
amplia-se a discusso sobre as noes de interdiscurso e intradiscurso.
Conforme o autor, todo discurso poroso, passvel de alteraes na medida
em que est em contato com outros discursos. No h homogeneidade
discursiva, h uma relao de dilogo entre os mesmos, isto , uma relao
interdiscursiva que se relaciona com elementos do intradiscurso, permitindo
ressignificar dizeres. No perodo posterior a 1980, a teoria de Pcheux dialoga
com os pressupostos tericos de Jacqueline Authier-Revuz, uma vez que esta
autora tambm discorrer acerca da heterogeneidade do discurso.
Em relao aos estudos sobre Anlise do Discurso no Brasil, temos a
importante contribuio de Eni Orlandi, uma das grandes responsveis pela
consolidao desta teoria em nosso pas entre as dcadas de 70/80. A referida
autora, a partir do legado de Pcheux, concebe a lngua como um fato ligado asua exterioridade: a histria, a ideologia, o inconsciente. Desta forma, rompe-se
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
17/148
17
com a dicotomia saussuriana lngua/fala, pensando, a partir de ento, na
interrelao entre lngua e discurso. No se desconsidera a forma abstrata da
lngua, chamada por Orlandi (2005) de forma material. A partir dos postulados
estruturalistas de Hjelmslev (1968), a materialidade lingustica passa a ser
estudada em consonncia com o Materialismo Histrico, a Psicanlise e a
Lingustica. Orlandi aponta a Anlise do Discurso como uma disciplina de
entremeio, pois est no limiar entre disciplinas de distintas ordens dentro das
cincias humanas.
No Brasil, a Anlise do Discurso segue desenvolvendo-se, entretanto,
como afirma Orlandi (1995, p. 85), no como uma Escola, mas como uma
disciplina, de filiao pecheuxtiana, que continua reinventando-se no mbito
acadmico brasileiro, cujos estudos esto centrados na interrelao entre
lngua e discurso.
Por centrar-se nesta interrelao, interessa-nos aqui abordar alguns
conceitos, ainda bastante estudados no Brasil, os quais nos permitem refletir
melhor sobre o papel da literatura, como texto discursivo, dentro do processo
de ensino-aprendizagem de lnguas estrangeiras. (Cf. ORLANDI, 2005)
Entender como funcionam as noes de sujeito e sentido em AD fundamental
para a compreenso de como os textos literrios ganham sentido,
resignificando-se ao mostrar um outro que fala desde um novo lugar, o da
lngua estrangeira.
Ainda sobre o importante aporte de Orlandi para a Anlise do Discurso
praticada no Brasil, temos a introduo da noo de silncio (ORLANDI, 1995,
p. 86).A partir de seus postulados sobre tal tema, sobretudo em sua obra As
Formas do Silncio (2007), enfatiza-se a necessidade de romper com a noo
pragmtica de implcito, ao se analisar, dentro do discurso, o que est entre o
dizer e o no dizer. Sabemos que em todos os textos vozes so silenciadas por
um j dito ou por um algo a dizer. Nesses espaos de silncio, muitos sentidos
se constroem. A literatura se destaca, em relao aos demais gneros textuais,
por ter como um de seus elementos caractersticos o silncio, que muitas
vezes se revela, linguisticamente, atravs de figuras de linguagem como a
parfrase e a metfora, ao se silenciar um dito, ao diz-lo de outra forma.
Atravs dessas figuras surge o equvoco, ou seja, aquilo que falha, que permitepensar o que est alm do dito, este concebido enquanto forma material. Tais
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
18/148
18
figuras de linguagem, concebidas como procedimentos heursticos, conforme
Orlandi (2005), permitem analisar de que forma os deslizamentos lingusticos
ocorrem.
A importante contribuio de Eni Orlandi para os estudos da linguagem
no Brasil, pelo vis da AD francesa, tambm nortear a pesquisa aqui
desenvolvida sobre a relao entre aprendizagem, literatura e lngua
estrangeira.
1.2Sujeito na Anlise do Discurso: um lugar no dizer
Para uma melhor compreenso de como se configura o discurso,
necessrio compreender qual a concepo de sujeito concebida pela AD e
como este se relaciona com a formao discursiva (FD) na qual est inscrito.
Pensemos sobre a noo de formao discursiva que, tal como postula
Indursky (2008), est diretamente ligada noo de sujeito, de modo que
discorreremos sobre tais temas refletindo sobre as relaes que os interligam.
Embora encontremos em Foucault, mais especificamente em sua obraA
arqueologia do saber (1969), uma definio de formao discursiva, preciso
notar que Pcheux utilizar o mesmo termo, mas com especificidades prprias
de seu arcabouo terico. Para Foucault, o discurso se realiza como
acontecimento histrico, sendo este entendido, pelo referido filsofo, como um
conjunto de enunciados que se repete de forma dispersa, mas que possui
regularidades que lhe conferem unidade, que forma um conjunto de saberes.
Encontrar um ponto em comum de realizao destas repeties enunciativas
implica definir uma prtica discursiva. Uma vez que se encontra um ponto em
comum entre estas repeties enunciativas e que so estabelecidas as
regularidades com que estas repeties ocorrem, tem-se, ento, para o autor, a
constituio de uma formao discursiva. Foucault entende que a regularidade
com que essa disperso ocorre configura a reunio de um conjunto de saberes,
isto , de uma formao discursiva.
A diferena principal entre o conceito de FD em Foucault e Pcheux est
no que concerne questo da ideologia. Foucault postula que a disperso com
que as repeties enunciativas ocorrem no se deve a determinaes decunho ideolgico. A preocupao em pensar a FD est centrada, nos estudos
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
19/148
19
foucaultianos, em descrever de que forma a disperso dos enunciados se
regulariza no interior das prticas discursivas, sendo este esquema
independente de fatores ideolgicos. O prprio autor explica:
(...) no caso em que se puder descrever, entre um certo nmero deenunciados, semelhante sistema de disperso, e no caso em queentre os objetos, os tipos de enunciao, os conceitos, as escolhastemticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem,correlaes, posies e funcionamentos, transformaes), diremos,por conveno, que se trata de uma formao discursiva.(FOUCAULT, 2007, p. 43)
Deslocando as questes epistemolgicas foucaultianas sobre formao
discursiva, Pcheux utilizar o termo observando que as questes ideolgicas
sero fundamentais para compreender a constituio de uma FD. Na chamadasegunda fase de sua produo, Pcheux (1975), juntamente com Catherine
Fuchs, desenvolve seus trabalhos sobre o conceito de formao discursiva,
neste momento, atrelando-o ao de formao ideolgica. A consonncia entre
discurso e ideologia bastante evidente na seguinte afirmao de Pcheux &
Fuchs (1990, p.166):
(...) se deve conceber o discurso como um dos aspectos materiais doque chamamos de materialidade ideolgica. Dito de outro modo, aespcie discursiva pertence ao gnero ideolgico, o que o mesmoque dizer que as formaes ideolgicas comportam necessariamente,como um de seus componentes, uma ou vrias formaesdiscursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito, apartir de uma posio dada numa conjuntura, isto , numa relao delugares no interior de um aparelho ideolgico.
Para Pcheux, a noo de formao discursiva corresponde ao que est
no domnio do saber. Os enunciados presentes neste domnio esto
diretamente ligados s questes de ordem ideolgica que regulam os dizeres
no interior de um domnio do saber, ou seja, de uma formao discursiva.
Bastante influenciado pelas teorias althusserianas, Pcheux entender
ideologia como resultante de uma materialidade social, dentro do mbito da
luta de classes. O sujeito do discurso partcipe dessa luta, ele representa
uma classe social e d voz aos seus dizeres, dado o carter material da
ideologia na perspectiva de Althusser.
Em Semntica e Discurso (1975), Pcheux se centra da discusso sobreo conceito de formao discursiva como heterogneo, no como homogneo,
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
20/148
20
fechado s interpelaes de outras formaes discursivas. A noo de
interdiscurso, desta forma, ganha fora, uma vez que fundamental para a
compreenso do processo de constituio de uma FD. Conforme esta
perspectiva, os discursos trazem consigo umj-dito, ditos que se inscrevem em
uma memria discursiva2, sendo constantemente revisitados e ressignificados.
O sentido se constri na medida em que estes discursos so recuperados, em
que se estabelece um dilogo entre eles e com o que est na ordem da
materialidade lingustica, ou seja, no intradiscurso.
A heterogeneidade da formao discursiva implica na noo de sujeito
do discurso tambm como heterogneo. Como dissemos no incio desta
sesso, tal como postula Indursky (2008), parece-nos difcil dissociar a reflexo
sobre FD e sujeito. Desta forma, ocupar-nos-emos em refletir sobre esta
relao.
Comearemos assim esboando o que Pcheux, em 1975, define como
teoria no-subjetiva da subjetividade. preciso, primeiramente, perceber o
sujeito no como um organismo humano individual, mas como um lugar
determinado na estrutura social (INDURSKY, 2008, p. 10). Em AD, ocorre a
insero do sujeito no discurso em contraposio excluso que o mesmo
sofreu pelo estruturalismo de Saussure, em 1969 com Anlise Automtica do
Discurso. No entanto, esse sujeito, pelo qual o discurso ganha voz, no
aquele pensado enquanto sujeito consciente e dono de seu dizer, tal como
postulam os estudos pragmticos, por exemplo. Conforme Pcheux (1969), o
sujeito ocupa um lugar no discurso que independe de sua constituio
biolgica, isto , o sujeito se encontra em um lugar social, revelando atravs do
discurso o que lhe constitui socialmente.
Conforme Indursky (2008), Pcheux - 1975, em trabalho conjunto com
Catherine Fuchs, agrega sua concepo de sujeito mais um elemento que o
constitui, alm do social j aqui expresso, trata-se do que est na ordem do
inconsciente. O social, o ideolgico e o inconsciente so conceitos que
Pcheux vai trabalhar de maneira articulada para construir sua teoria no-
subjetiva da subjetividade. importante lembrar que o autor no ignora, em
sua teoria, que o sujeito duplamente afetado, ou seja, ele atravessado pela
2Conceito definido por Courtine (1999), em AD, tomando como base o conceito foucaultiano dedomnio de memria.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
21/148
21
memria social e, tambm, por uma memria individual. O sujeito
socialmente interpelado pela ideologia e pela histria, sem se dar conta de tal
interpelao, haja vista que, em sua constituio, ele afetado pelo
inconsciente, tal como afirma Lacan, no mbito da Psicanlise. Tem-se o que a
Anlise do Discurso denominar de sujeito assujeitado3, em prticas
discursivas que se instauram sob a iluso de que ele a origem de seu dizer e
domina perfeitamente o que tem a dizer.(INDURSKY, 2008, p. 11)
Ao longo dos deslocamentos tericos, Pcheux entende que o sujeito
em AD no ser mais concebido como totalmente assujeitado, pois este est
em constante busca de completude, isto , este sujeito vive entre diversos
espaos discursivos, buscando preencher as lacunas constitutivas do discurso.
Vale salientar que no se trata de um indivduo sem vontade, mas de um
sujeito que realiza movimentos dentro da FD, que podem ser de identificao
ou desidentificao, mas continua sendo assujeitado. Esse sujeito assujeitado,
assim definido em AD, est inserido em uma formao discursiva , que por sua
vez corresponde a um domnio de saber, no qual o sujeito se inscreve, por um
processo de identificao, a partir de sua constituio social, ideolgica e
histrica.
H, em toda formao discursiva, o que Pcheux, em Semntica e
Discurso (2009, p.145), chamou de forma-sujeito.A forma-sujeito se refere ao
sujeito universal da FD, que da ordem do social, histrico e ideolgico. a
forma-sujeito que regula os dizeres no interior de uma formao discursiva.
Como afirma Indursky (2008, p. 11), a noo de formao discursiva
corresponde a um domnio de saber, constitudo de enunciados discursivos,
que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regulando
o que pode e deve ser dito. O que pertence ordem da ideologia, entendida
conforme a concepo althusseriana, regula a constituio das FDs, uma vez
que pela formao discursiva que as FIs so representadas na linguagem
(Cf. Pcheux - 1975). Para Pcheux, o conceito de FD est relacionado ao de
FI, o que no ocorre nos estudos que deram origem ao termo formao
discursivaem Foucault.
3 importante lembrar que Pcheux no ignora em sua teoria que o sujeito duplamenteafetado, ou seja, ele atravessado pela memria social e, tambm, por uma memriaindividual.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
22/148
22
Os indivduos so interpelados em sujeitos discursivos. Esse o
processo que define o sujeito como assujeitado: um sujeito regido por
atravessamentos que nortearo a sua inscrio em uma rede de saberes. Tais
atravessamentos ocorrem de forma inconsciente, e desta forma que o sujeito
do discurso ocupa uma posio-sujeito, identificando-se ou rechaando a
forma-sujeito da FD que o afeta. Tem-se, neste momento, o que Pcheux
chamou de primeira modalidade. Para o autor, nesta modalidade, o sujeito do
discurso est em total consonncia com a forma-sujeito da FD na qual est
inscrito, ou seja, o sujeito do discurso ocupa uma posio-sujeito que se
identifica plenamente com a forma-sujeito da FD. Tem-se, ento, o que
Pcheux chamou de bom sujeito. (PCHEUX, 1988, p. 215)
J na segunda modalidade, o sujeito do discurso ocupa uma posio-
sujeito que entra em conflito com a forma-sujeito da FD. Neste caso, tem-se a
definio de mau sujeito. (ibidem) Entretanto, o autor percebe que a noo de
bom e mau sujeito no so suficientes para compreender os movimentos
que ocorrem no interior de uma formao discursiva, e que a no identificao
plena do sujeito do discurso com a forma-sujeito revela quo heterognea
uma FD. Assim, pode-se reconhecer, na constituio de uma FD, o seu carter
poroso, o qual permite que discursos, advindos de outros domnios de saber,
possam dialogar com o j estabelecido em seu interior. Como afirma Indursky
(2008, p. 15): o sujeito do discurso pode romper com o domnio de saber em
que estava inscrito e, em consequncia, identificar-se com outra FD.
O mau sujeito provoca o que Pcheux chamou de contra-identificao e
desindentificao, ambos os processosem relao aos saberes que regem a
FD que afeta o sujeito do discurso. So os processos por meio dos quais
Pcheux vai pensar a relao do sujeito com a FD, j considerada por ele
heterognea.
No h somente o bom e o mau sujeito, mas vrias posies-sujeito no
interior de uma FD. Como afirma Courtine (1981, p. 51), chamar-se- domnio
da forma-sujeito o conjunto das diferentes posies de sujeito em uma
formao discursiva como modalidades particulares de identificao do sujeito
da enunciao ao sujeito do saber. Para entender melhor esta questo,
pensemos sobre a noo de contra-identificao e desidentificao, tomandocomo base terica Pcheux (1988) e Indursky (2008). Para os referidos
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
23/148
23
autores, a contra-identificao ocorre quando o sujeito do discurso se ope no
forma-sujeito da formao discursiva, na qual est inscrito, mas posio-
sujeito dominante desta FD. Recordamos o carter heterogneo das FDs e que
h vrias posies-sujeito em seu interior, sendo uma destas a dominante. A
contra-identificao no implica no rompimento com a FD, mas com uma
posio-sujeito. Apesar do conflito instaurado no seio da formao discursiva,
as divergentes posies-sujeito convivem por estarem de acordo com o a
forma-sujeito regente da FD, em que ambas esto inscritas. A forma-sujeito se
fragmenta, mas no se desfaz. Tal fato corrobora a heterogeneidade
constitutiva das formaes discursivas.
J sobre a desindentificao, Pcheux afirma que esta ocorre a partir de
um acontecimento discursivo (Cf. PCHEUX, 1990), o qual promover o
rompimento do sujeito do discurso com a forma-sujeito da FD que o afeta. O
acontecimento histrico permite que surja uma nova forma-sujeito e,
consequentemente, uma nova formao discursiva, rompendo totalmente com
os saberes da FD com a qual o sujeito do discurso estava anteriormente ligado.
Como se v, a partir da reflexo aqui realizada, o sujeito em Anlise do
Discurso to heterogneo quanto a FD em que se inscreve. H uma via de
mo dupla entre essas duas noes. O sujeito do discurso assume posies-
sujeito, inscrevendo-se em uma FD que corresponde a uma FI que o afeta.
Trata-se de um sujeito que fala desde um lugar no discurso, no de um sujeito
visto como indivduo, dono de seu dizer. O sujeito em Anlise do Discurso
histrico e interpelado ideologicamente, refletindo no discurso saberes que
fazem parte da constituio social, ideolgica e histrica que encontram lugar
na formao discursiva.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
24/148
24
1.3 Relaes entre discurso e memria
A memria corresponde, desde um ponto de vista psicologista, a fatos,
momentos e imagens que o sujeito armazena em sua memria individual.
(PCHEUX, 2010, p.50) No entanto, para a Anlise do Discurso, a memria se
constri socialmente, a partir dos sentidos que advm da memria mtica,
daquela que resulta das prticas sociais, bem como da que construda pela
Histria.
Em Anlise do Discurso, a memria no pode ser concebida como uma
reunio de fatos homogneos, acumulados ao longo do tempo, e que podemos
acessar em qualquer circunstncia. A lngua, os sujeitos, a vida so falhos,
cheios de intervalos e intersees que precisam se interrelacionar para existir,
no h homogeneidade entre esses elementos. O discurso, os sujeitos e a
memria fazem parte de um jogo que se constri de forma flexvel, com falhas
e heterogeneidade, que ganha sentido a partir de sua constituio social,
histrica e ideolgica e do entrecruzamento com novos acontecimentos
discursivos.
Para Pcheux, em o Papel da memria (2010), h dois tipos de
acontecimentos discursivos que buscam inscrever-se na memria: aquele que
no chega a inscrever-se na memria social, dado seu carter pouco
significativo dentro de uma sociedade; e o acontecimento que absorvido pela
memria coletiva, como se no tivesse acontecido. Este ltimo sim social e,
justamente por esse fato, se inscreve na memria, uma vez que resultado de
construes scio-ideolgicas e histricas. Logo, podemos entender a memria
discursiva:
Como estruturao de materialidade discursiva complexa, estendidaem uma dialtica da repetio e da regularizao: a memriadiscursiva seria aquilo que, face a um texto que surge comoacontecimento a ler, vem restabelecer os implcitos(...) de que sualeitura necessita: a condio do legvel em relao ao prprio legvel.(PCHEUX, 2010, p. 52)
A regularizao resulta da repetio de estruturas da materialidade
lingustica, como elementos do lxico e do enunciado. Ao se repetir,
regularmente, determinadas estruturas lingusticas, tem-se a retomada, atravs
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
25/148
25
de processos parafrsticos, dos sentidos implcitos nestas estruturas. Esta
uma discusso realizada por Pcheux em consonncia com os postulados de
Achard, tambm em o Papel da memria. Conforme o autor, as regularidades
discursivas so instveis e suscetveis a mudanas na medida em que as
mesmas entram em contato com um novo acontecimento histrico, logo o
acontecimento desloca e desregula os implcitos associados ao sistema de
regularizao anterior. (PCHEUX, 2010, p. 52) Diante de tal reflexo,
entendemos que a questo dos implcitos vai mais alm da simples retomada
de um sentido primeiro estabelecido por um processo de regularizao e
instaurado na memria de um dito. Os acontecimentos discursivos rompem
com a estabilidade de sentidos que os implcitos cobram, isto , fazem ruir o
que Pcheux (ibid) chamou de estabilizao parafrstica.
Sobre os implcitos, vale salientar que no tratamos dos implcitos de
forma pragmtica, mas como o que, em AD, chamamos de pr-construdos,
isto , elementos que j foram mencionados em outros discursos e que, agora,
atravessam o novo acontecimento histrico. Os implcitos se constroem a partir
da repetio de formas enunciativas que geram, por conseguinte, uma
regularizao dessas repeties dentro do jogo discursivo. A essas
regularizaes, podemos chegar atravs das remisses, das retomadas, da
parfrase. A questo saber onde residem esses implcitos: ausentes em sua
prpria presena.(ibid, p. 52) E, justamente, por estarem ausentes que os
implcitos permitem enxergar que o texto possui brechas que do margem
busca de sentidos para preencheraquilo que no est ali, no texto, mas que
faz parte da memria discursiva, a qual podemos acessar atravs das
regularizaes das formas enunciativas. A repetio dos enunciados nos d a
impresso de que estes j nasceram colados ao acontecimento(DE NARDI,
2003, p. 69), no entanto sabemos que essas repeties sofrem alteraes ao
entrarem em contato com novos acontecimentos discursivos. A estrutura
repetida apenas aponta para um referente, pois est inserida em um discurso,
heterogneo e poroso, o qual logo revelar as brechas que permitem perceber
novos sentidos atribudos mesma estrutura.
Como afirma Pcheux (1969), o discurso se estabelece sempre sobre
um discurso prvio (...). H uma relao dialgica que se estabeleceinterdiscursivamente, na retomada de dizeres, h um dilogo entre o dito no
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
26/148
26
momento da enunciao com o seu sentido de outrora ou com sua formulao-
origem. Muitas vezes, o sentido presente no ato enunciativo j no
corresponde formulao-origem, no h identidade de sentido com o valor
original do dito, este se perdeu ao longo de sua existncia social e histrica.
Essa perda nos mostra como as enunciaes refletem a porosidade,
flexibilidade e heterogeneidade do discurso, posto que este acompanhar os
movimentos de mudanas sociais, histricas e ideolgicas, perdendo e
recebendo sentidos advindos de distintos discursos.
Se, conforme ns o cremos, a memria coletiva essencialmenteuma reconstruo do passado, se ela adapta as imagens dos fatosantigos s crenas e s necessidades espirituais do presente, o
conhecimento do que estava na origem secundrio, senoabsolutamente intil, visto que a realidade do passado no est maisali, como um modelo imvel, ao qual seria preciso conformar-se. (HALBWACHS, 1971, p.7)
No podemos falar em sujeito enquanto indivduo provido de inteno,
quando pensamos no sujeito do discurso nos referimos a sujeitos que
enunciam a partir de um lugar de dizer pertencente a uma memria coletiva.
Esse dizer no se limita a uma mera identificao de significados, pertencentes
memria semntica que remete ao que est na mente dos indivduos.
Negligenciam-se - ao pensar no sujeito como indivduo, consciente de seu dizer
e de suas intenes - as dimenses social, coletiva e histrica dos enunciados.
A Anlise do Discurso defende o no apagamento dessas dimenses, uma vez
que toda produo enunciativa est vinculada a pressupostos sociais.
Novos acontecimentos discursivos tendem a desequilibrar as
regularizaes, uma vez que produzem novos sentidos, levando-nos a
recuperar outras memrias, as quais mudam o lugar daqueles sentidos queestavam associados a outras regularizaes. H, logo, um constante jogo de
resgate do que est na memria discursiva, atravs das retomadas, da
tentativa de compreender as regularizaes discursivas, bem como de
preencher as lacunas que o discurso traz consigo. Desta forma,
(...) volta-se o olhar, ento, para a rede de formaes discursivas emque o discurso em questo est inserido, sendo mister lembrar que
esse retorno, no entanto, nunca pura reproduo, como se odiscurso fosse a imagem no espelho desse dizer anterior que retoma,mas antes re-significao do j-dito que apontar tanto para o sentido
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
27/148
27
j-posto, quanto para novas possibilidades de produo de sentidos.(DE NARDI, 2003, p. 77)
H um momento no discurso em que os pr-construdos no so mais
recuperveis, ou seja, o sentido do dito no reside mais na suposta identidadesignificativa de um enunciado. Temos assim um acontecimento que
absorvido na memria, como se no tivesse ocorrido,(Pcheux, 2010, p. 50)
de forma que, em AD, ocorre um distanciamento do que est supostamente
evidente em uma proposio. Questiona-se a estabilidade dessa materialidade
lingustica, pois esta opaca e, muitas vezes, j no permite reconstruir um
dito, recuperar uma memria. Quando os pr-construdos no podem mais ser
recuperados, significa que os acontecimentos discursivos, recuperados pela
repetio da materialidade lingustica, j foram resignificados, recebendo novas
regularizaes e novos valores que j no remetem ao que, inicialmente,
marcava a sua estabilidade significativa. Ao longo da histria, e no jogo
discursivo, a imagem do dito se perde sem, muitas vezes, inscrever-se na
memria.
O sujeito, inscrito em uma FD, realizar movimentos nos mbitos do
enunciado e da enunciao para conferir sentido ao texto, sendo o enunciado,
conforme Courtine (1999), o lugar da forma, do repetvel e a enunciao, o
espao do ato enunciativo, ou seja, o eu, o aqui e o agora dos discursos
(ibid). O enunciado est na ordem do intradiscurso e a enunciao, do
interdiscurso. H formas enunciativas que podem se repetir em distintos
discursos, j sem recuperar sua formulao-origem (ibid). No movimento que
se realiza entre intra e interdiscurso, entendemos que, de acordo com Courtine,
o primeiro se realiza em um espao horizontal, ou seja, nas relaes de ordem
lingustica no interior do discurso, tais como as citaes, repeties, parfrases,
etc. J o interdiscurso, ocorre verticalmente, neste espao, o sujeito enunciador
retoma discursos atravs dos pr-construdos, uma vez que h sempre j um
discurso (...) um enuncivel que exterior ao sujeito enunciador. (COURTINE,
1999, p.18) A relao indissocivel entre inter e intradiscurso estabelece entre
si uma relao dinmica, uma vez que representam, respectivamente, o
espao de construo do pr-construdo e aquele de sua enunciao por um
sujeito. (DE NARDI, 2002, p. 94) Parte-se do intradiscurso, da materialidadelingustica que o constitui, para promover um dilogo com os discursos que
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
28/148
28
perpassam dita materialidade, interpelando-o, ressignificando-o. Pelo fato de o
discurso ser heterogneo, que se torna possvel que haja essa interpelao,
a ponto de desregular a memria de um dito, fazendo com que novos sentidos
se inscrevam em um dizer, apagando a memria primeira nele inscrita.
Nossa preocupao no tratamento do texto literrio nos livros didticos
consiste, sobretudo, no apagamento de memrias para ceder lugar a anlises
que as apagam por impedir reflexes sobre questes que no se refiram ao
que est na ordem da materialidade lingustica. Logo, o papel da memria um
importante aporte terico da AD francesa que nortear, no presente trabalho,
as reflexes sobre o texto literrio nos livros didticos, utilizados no processo
de ensino-aprendizagem de E/LE no Brasil.
1.4 O discurso na lngua do out ro
Um ponto importante para a tessitura deste trabalho a concepo da
lngua adotada. De acordo com os pressupostos tericos da AD, posicionamo-
nos para definir lngua como registro de uma historicidade, como possibilidade
de falhas e interditos, a lngua est na ordem da opacidade. Lngua, em AD,
corresponde materialidade onde os discursos se realizam, por isso afirmamos
que a lngua opaca, uma vez que seus signos lingusticos por si s nada
dizem, estes esto sempre vinculados a uma materialidade que da ordem
social, histrica e ideolgica. Vive-se em um constante intento de definir o que
se diz nessa lngua, dado que este dito no est claro devido opacidade
constitutiva da lngua.
Ao decidir aprender uma lngua estrangeira, o sujeito busca antes de
tudo vivenciar uma nova experincia. A lngua do outro nos pe em contato
com o novo, um novo viver, um novo modo de sentir e enxergar a vida. O
discurso, tendo como forma material uma lngua diferente da materna, leva-nos
a pensar nos movimentos de alteridade que se estabelecem entre os sujeitos
de ambas as sociedades: a da lngua materna e a da lngua estrangeira.
Portanto, dentro do processo de ensino de uma lngua estrangeira, faz-se
necessrio aclarar qual a concepo de lngua pensada para tal fim.
O presente trabalho concebe lngua como materialidade do discurso,conforme Pcheux, em Semntica e Discurso (2009), ou seja, h, no que
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
29/148
29
constitui a linguagem, discursos que se constroem sob uma base ideolgica,
social e histrica. A lngua materializa esse discurso, atravs de sua estrutura.
No buscar viver uma nova experincia pela lngua do outro, temos uma nova
estrutura que traz consigo discursos prprios da sociedade desse outro, bem
como um movimento que pe o aprendiz em contato com os discursos de sua
prpria sociedade.
Em Anlise do Discurso, definir lngua representa um desafio, sobretudo
no que se refere ao embate com o carter cientfico que a Lingustica ocupou-
se em conquistar. Pensar nos efeitos discursivos resultantes da anlise da
interrelao entre a materialidade lingustica e a discursiva fundamental para
que o processo de ensino-aprendizagem de lngua estrangeira seja concebido
de modo a no dissociar lngua, sujeito e discurso.
Durante muito tempo, houve nos estudos da linguagem a preocupao
em conceber a lngua como transparente, centrando-se no que supostamente
possvel de analisar e comprovar, ou seja, no que gramatical. Sabemos que a
busca da cientificidade, por parte da Lingustica, centrou-se nesse aspecto da
linguagem, enfatizando a determinao do possvel (gramatical) e do
impossvel (agramatical) da lngua (DE NARDI, 2003, p. 68). Como sabemos,
definir o que certo e errado dentro da lngua tornou-se uma das razes que
conferiram Lingustica seu carter cientfico.
A AD compreende a lngua como incompleta, com lacunas, com falhas
que do margem a uma profuso de sentidos que s so possveis na medida
em que a materialidade lingustica e a discursiva dialogam. atravs do que
no est bvio, do que falha dentro de um dizer, supostamente coerente e
coeso, que se pode acessar elementos que esto muito alm do que consta na
materialidade lingustica. Como lembra De Nardi (2003, p. 68), trabalhamos ,
portanto, com essa lngua (...) lugar em que se fala do que no pode ser dito,
daquilo que est ausente mas faz eco.
O movimento de busca de completude, a tentativa de preencher o que
no est dito no texto, enquanto materialidade lingustica, bem como de
compreender as falhas existentes no texto - entendendo falha como aquilo que
no possvel recuperar ou entender apenas na superfcie textual o
objetivo ao qual se dedica a Anlise do Discurso. O anseio por entender oporqu tal dito se diz de uma forma e no de outra leva o leitor a enveredar no
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
30/148
30
universo dessas palavras para buscar quais elementos de ordem discursiva
influenciam na construo do dito.
As intercesses existentes entre lngua, sujeito e discurso, defendidas
pela AD, refletem a concepo de sujeito da referida corrente, um sujeito que
se constitui no discurso, assumindo uma posio-sujeito ao identificar-se com
uma FD ou negando-a, no caso do mau sujeito, descrito por Pcheux. Todo
esse processo se instaura na lngua e se materializa discursivamente. Como
afirma De Nardi (2003, p. 80), a lngua isolada de sua realizao discursiva a
lngua sem sujeito, a lngua sem histria, a lngua sem memria elemento
amorfo, pura estrutura, lngua esttica, sem movimento, sem sentidos.
No jogo discursivo, no h transparncias de sentidos, h sim um
sentido dominante" (ibid. p. 69), que se instaura pela regularizao,
proveniente das repeties enunciativas, entretanto h tambm o
apagamento/esquecimento dessas regularizaes, logo no h um sentido
dominante, nico que no seja passvel de sofrer modificaes.
Entender a lngua, em AD, pensar que o histrico e o cultural j no
precisam mais encontrar um lugar margem da lngua para acomodar-se, eles
esto no seu interior, atravessando-a, constituindo-a, assim como constitutivo
o papel que exerce em relao a ela o social (DE NARDI, 2003, p. 70). Logo,
concebe-se a lngua como produto social, e cabe ao analista do discurso
identificar o qu da materialidade lingustica nos levar perceber os movimentos
do discurso. No se concebe a materialidade lingustica como um fim em si
prprio, mas como incessante buscar sentidos que falam e se entrecruzam no
jogo discursivo. Diante do exposto, a lngua no pode se dissociar do discurso,
ou seja, tambm a lngua est atravessada pela ideologia e pela histria.
Fugimos da literalidade do obvio, buscando produzir sobre o discurso um
gesto de interpretao, o qual o lugar em que se tem a relao do sujeito
com a lnguaOrlandi (1996, p. 46). No se pode falar, em AD, que a lngua
pertence, nica e exclusivamente, a sujeitos individuais, pois estes ocupam
lugares que se vinculam ao conjunto de saberes de uma determinada formao
discursiva, dando voz a uma coletividade.
Ao buscar aprender uma lngua estrangeira, o sujeito - j constitudo
social, histrica e ideologicamente dentro das redes discursivas de suasociedade, materializadas em sua lngua materna realizar novos
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
31/148
31
movimentos na tentativa de acessar esse sujeito da lngua estrangeira, tambm
constitudo discursivamente. Busca-se mais que alcanar essa lngua, mas
realizar um movimento de alteridade na tentativa de conhecer e compreender,
aceitando ou no, como est constitudo scio-historicamente o outro dessa
nova lngua. A anlise dos discursos desse outro responsvel por mobilizar a
memria daquela sociedade e o que ideologicamente est em seu cerne,
compreendendo, reproduzindo discursos ou modificando-os ao mesmo tempo.
Dessa forma, o sujeito aprendiz da lngua estrangeira encontra um lugar de
dizer (ORLANDI, 1996, p. 80) na lngua do outro, a partir do seu prprio lugar
de dizer, sem neg-lo, mas o interrelacionando com o outro.
Ao se inscrever no arcabouo discursivo de uma lngua estrangeira,
ratifica-se o fato de que o sujeito no pode ser considerado autnomo, dono de
seu dizer, tampouco que o discurso est fechado em si prprio, que no sofre o
atravessamento de memrias e acontecimentos discursivos outros, impedindo
que haja dilogos com novos discursos, inclusive em outras lnguas.
Sabemos que o sujeito incompleto e interpelado por memrias e novos
acontecimentos discursivos. Logo, podemos afirmar que o efeito-sujeito,
decorrente do contato com novas formas-sujeito dos discursos da lngua
estrangeira, permite com que este sujeito se inscreva, busque um lugar dentro
dessa nova lngua.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
32/148
32
1.5 Lngua e literatura: realizaes discursivas em lngua estrangeira
A leitura de qualquer texto, literrio ou no, mobiliza no leitor a busca por
referentes discursivos, inscritos na memria, para que este possa recuperar o
que lhe permita dar sentido ao que l. Esta memria corresponde h uma srie
de sentidos entrecruzados da memria mtica, da memria social inscrita em
prticas, e da memria construda do historiador, tal como afirma Pcheux
(1997, p.50). No devemos conceber a memria como um simples local de
armazenamento de informaes. Dentro dos postulados pecheuxtianos, a
memria mais que esse lugar, o espao no discurso onde as experincias
histricas e sociais, absorvidas inconscientemente, se entrecruzam e dialogam.
Todo discurso, portanto, instaura para o sujeito um encontro entre esse
novo dizer e o que ele traz com o que est inscrito na memria. A partir desse
encontro, o leitor motivado a questionar o que l. No se pode entender um
texto como um todo acabado que encerra seus sentidos em si mesmo.
Partimos da materialidade lingustica para entender como o discurso se realiza
na lngua. Temos, em AD, o que est no mbito do intradiscurso, estruturas
que se relacionam, horizontalmente, no interior do texto; temos, tambm, o
interdiscurso que nos remete a uma no-linearidade, que se refere relao
entre os discursos, ao atravessamento que estes sofrem por discursos e
ideologias de distintas ordens. O que est no mbito do interdiscurso o que
interessa, especialmente, AD, pois se trata de um movimento de retomada de
dizeres, de pr-construdos, pelo qual o sujeito encontrar lugar no discurso na
lngua do outro.
Na escritura de textos literrios, o autor no nico, tampouco munido
de meras intenes, como j sabemos, ele est interpelado pela ideologia e
produz o seu discurso a partir de uma posio no interior da FD em que est
inscrito, a qual, por sua vez, suscetvel ao atravessamento de outras FDs. Na
materialidade lingustica de um texto, encontramos, portanto, as marcas da
posio sujeito ocupada na FD com a qual se identifica. A partir da leitura do
texto literrio, produzido por esse autor, que corresponde, antes de tudo, a um
lugar no interior de uma rede discursiva, cada leitor recupera memrias
individuais e coletivas para dar sentido ao que l, produzindo efeitos de sentidoe assumindo posies em relao ao dito. Essas retomadas ocorrem, como
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
33/148
33
postula a Anlise do Discurso, a partir da anlise de quais elementos da ordem
lingustica - isto , do intradiscurso - permitem ao leitor direcionar-se ao
interdiscurso, para ressignificar o dito, enveredando por suas falhas e brechas
na busca de outros/novos sentidos.
Todo texto literrio, ou no, se constri sobre uma base estrutural, sobre
uma forma. Sabemos que, em AD, essa forma nos permite acessar o que est
alm dela mesma, isto , buscar aquilo que definimos como discurso. Portanto,
incongruente que no ensino de lnguas continue existindo a bipartio:
lngua/literatura.
necessrio, como afirma Pcheux, multiplicar as relaes entre o que
dito aqui, dito assim e no de outro jeito, com o que dito em outro lugar e de
outro modo, a fim de entender a presena de no ditos no interior do que
dito. (2006, p.44) Relacionar todas essas nuances dentro do texto literrio,
resgatando e resignificando memrias a partir da leitura desses textos em
lngua estrangeira, fundamental para que se possa estabelecer relaes
entre a materialidade lingustica e a discursiva, ou seja, o que da superfcie
textual aponta para elementos extralingusticos e, por conseguinte, seus
discursos.
Acreditar que a literatura traz implcitos, no sentido defendido pela
Pragmtica, recuperveis atravs da materialidade lingustica em uma relao
de imediatismo contextual, prejudica o deslocamento de sentidos que a
literatura produz. No se permite, assim, que o leitor v mais alm daquele
contexto. O verdadeiro implcito est nesse alm, consiste no que Paul Henry
(1997) chamou de pr-construdos: aquilo que est sempre j a, na ordem
histrico-social4, ou seja, nas enunciaes que nos remetem a uma memria,
instaurada em uma sociedade, que traz consigo uma ideologia, e que se
inscreve inconscientemente na memria coletiva dessa sociedade, ganhando
voz no discurso atravs de seus sujeitos.
Refletir sobre a insero da literatura nas aulas de lngua estrangeira
nos permite pensar, ainda, em sua relao com o elemento cultura.
Frequentemente, no ensino de lnguas estrangeiras, em uma tentativa de levar
elementos culturais, entre eles a literatura, para o processo de ensino-
4Serrani, 2010, p. 64
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
34/148
34
aprendizagem, utilizam-se mtodos os quais inserem atividades que
representam hbitos em situaes cotidianas e previsveis de uso da lngua.
Pensa-se que, conhecendo estas situaes e o emprego das formas
lingusticas, o estudante ser capaz de reproduzi-las uma vez que se encontre
em semelhante situao. Outros aspectos culturais tambm se fazem comuns
nos livros didticos de lngua estrangeira, trazendo aspectos da cultura daquela
lngua, representados por festas tpicas e esteretipos, por exemplo. Nenhuma
reflexo acerca do viver, diferente desse imposto pelos esteretipos,
fomentada, nem ao menos sobre os prprios esteretipos.
Entendemos, assim, que cultura no apenas um registro de fatos, tidos
como tpicos de uma sociedade, mas como um lugar de interpretao (De
Nardi, 2007, p.54), no qual os sujeitos dialogam com os discursos construdos
dentro dessa sociedade, a partir das experincias sociais, histricas e poltico-
ideolgicas vivenciadas dentro desse novo espao social. Esses discursos
esto presentes na linguagem, nas diversas formas de expresso com as quais
o aprendiz entra em contato, aceitando-as ou rechaando-as. Entendemos que
a cultura:
atravessa, portanto, os processos identificatrios por que passa osujeito, j que constitui o cerne da organizao ou sua relao com ooutro. Para a Psicanlise, o sujeito mergulha na cultura assim que seinsere na linguagem e, por meio dela, se constitui como tal,movimento que implica, necessariamente, uma relao com o outro,um familiar-estrangeiro, fonte de fascinao e repulsa ao mesmotempo. (DE NARDI, 2007, p. 52)
Esse conceito de cultura proporciona aos discentes um processo de
identificao real com a lngua do outro, com sua materialidade lingustica e
discursiva. H, em muitas prticas de ensino, o apagamento da histria queconstitui essa cultura e sua sociedade. Nos trabalhos que buscam relacionar a
Anlise do Discurso com ensino-aprendizagem de lnguas estrangeiras, o
maior desafio consiste em refletir sobre a forma material dessa nova lngua
sem dissoci-la de sua materialidade discursiva, ou seja, sem desconsiderar a
histria, os aspectos poltico-sociais e ideolgicos que os discursos trazem
consigo.
Serrani (2003, p.289) fala daimportncia de no desvincular a lngua dainter-relao sujeito-lngua-discurso, ao conceber o processo de aprendizagem
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
35/148
35
de lnguas em contexto educativo. Como sabemos, cada sujeito,
inconscientemente, inscreve-se em uma formao discursiva e assume
posies sujeito no jogo discursivo, provocando efeitos de sentido. O contato
com o discurso literrio em lngua estrangeira, pertencente a uma cultura
diferente daquela do sujeito aprendiz, faz com que memrias sejam resgatadas
a fim de se entender as questes que surgem a partir do encontro com os
discursos inscritos na lngua estrangeira, ou seja, do encontro com essa
sociedade e sua cultura.
Nesse jogo, a literatura de lngua estrangeira tem papel fundamental,
pois est escrita em uma nova materialidade lingustica diferente da materna, e
nos permite submergir em um mundo de dizeres, ditos na histria e guardados
na memria desse outro da lngua estrangeira.
Vrios so os gneros textuais, tais como: quadrinhos, receitas,
propagandas, que permitem essa imerso, entretanto os gneros literrios
trazem consigo o ser sujeito nessa nova sociedade. Mais que a introduo da
literatura, busca-se pensar no processo de ensino-aprendizagem de espanhol
como lngua estrangeira (doravante E/LE), pensando na memria que o texto
literrio traz consigo e nas relaes interdiscursivas que nele se materializam.
Dessa forma, este trabalho se volta para as reflexes produzidas no
campo da AD pecheuxtiana para refletir sobre o tratamento do texto literrio
nos livros didticos adotados no atual quadro de ensino de E/LE no Brasil.
Prope-se aqui o desenvolvimento de uma reflexo em que se conceba o
alunado como constitudo social, histrica e ideologicamente, sendo capaz de
enveredar e mobilizar os discursos de seu prprio universo, para poder realizar
o movimento de mudana de lugar discursivo, isto , partindo do lugar que ele
ocupa em sua lngua materna, para um novo lugar na lngua estrangeira.
Pretendemos, sobretudo, ratificar, com este trabalho, a importncia de
se conceber a literatura como materialidade discursiva, capaz de colocar o
aprendiz da lngua espanhola em contato no somente com a materialidade
lingustica deste idioma, mas com os discursos inscritos, recriados e
resignificados dentro da cultura que constitui esse outro da LE. Ao dialogar
discursivamente com esse outro, buscamos levar os discentes a refletir,
tambm, sobre os discursos de sua prpria sociedade. Uma vez que, assim,
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
36/148
36
compreendendo em que universo se vive, torna-se possvel dialogar com o
novo, com o outro da lngua estrangeira.
2. Anlise do Discurso e o texto literrio
Na busca por estabelecer um dilogo com o outro da lngua estrangeira,
a literatura traz um importante aporte para o processo de ensino-aprendizagem
de espanhol como lngua estrangeira. Ao entrar em contato com o texto literrio
em LE, no com outra pessoa, atravs da figura do autor do texto, que o
leitor se encontra, mas com um espao dentro de um tempo, uma sociedade,
uma ideologia e um lugar: o lugar do outro.
Concebemos este outro5 como um sujeito imerso num jogo discursivoque tagarela no texto literrio, como diria Barthes, em o Prazer do Texto
(2010, p. 9), fazendo ecoar vozes de distintas ordens, mostrando quo opaca
a lngua que diz sem dizer. Nos casos dos textos literrios, essas vozes
convidam o leitor, atravs de seus versos e de sua prosa, a enveredar-se em
meio a essas vozes que se entrecruzam e tagarelam constantemente,
conduzindo o leitor incansvel procura que a literatura compele na busca por
sentidos.Verificamos6que nos livros didticos aprovados pelo PNLD Programa
Nacional do Livro Didtico na rede de ensino, no s na regular: ensino
fundamental e mdio, mas tambm nos institutos privados, cujos parmetros
de ensino so regidos pelo Marco Comn Europeo de Referencia da la
Enseanza de Lenguas, a literatura, quando estudada, no ocupa lugar como
discurso. Nos materiais didticos de E/LE no Brasil, o texto literrio, na maioria
dos casos aqui analisados, como veremos mais adiante, no tagarela com osdiscentes. A falta de dilogo entre os discentes e o texto literrio contribui para
que estes no possam conhecer e inserir-se na lngua do outro, para assim
ocupar posies de sujeito nas redes de saberes que se materializam na lngua
estrangeira.
Ainda predomina nas prticas de ensino de LE, no Brasil, uma
concepo de ensino-aprendizagem de lngua, na qual ela estudada a partir e
5Retomamos aqui a definio sobre o outro esboada na introduo do presente trabalho.
6Como demonstraremos no captulo 3 deste trabalho.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
37/148
37
apenas por sua funcionalidade. Isto , a partir de situaes de uso muito
especficas da lngua: como dilogos em restaurantes, em hotis, como pedir
informaes, etc, o aluno deve se apropriar das formas lingusticas da lngua
estrangeira para utiliz-las em contextos pr-definidos para atender a uma
situao imediata de uso da lngua. O social, conforme esta concepo, limita-
se a situaes de uso da lngua, excluindo destes momentos o carter
discursivo da lngua e de sua sociedade. Como a funcionalidade da lngua o
objetivo principal, tem-se, ento, uma justificativa para excluso do texto
literrio das salas de aula, uma vez que este no cumpre funes sociais no
dia a dia do falante de uma lngua estrangeira. Quando a literatura recebe
algum tratamento nos livros didticos de E/LE, de forma geral, utilizada como
pretexto, isto , como suporte textual para anlises lingusticas, a fim de
implantar um gnero textual que aporte, ao material didtico, elementos de
carter potico, fragmentos de contos, que trazem a presena de grandes
nomes ttulos e autores da literatura, porm sem nenhum indicativo de que o
professor deve ocupar-se efetivamente destas obras. Tal afirmao ser
corroborada nas anlises realizadas mais adiante.
Refletiremos sobre a importncia de estudar o texto literrio na aula de
LE, ratificando o fato de que garantir o domnio do uso da lngua para diversas
situaes cotidianas no permite ao aluno refletir discursivamente dentro deste
novo universo, da lngua do outro, no qual ele est inscrevendo-se.
No processo de ensino-aprendizagem de E/LE, concebemos os
aprendizes dessa nova lngua como sujeitos discursivamente inseridos em uma
sociedade, a da lngua materna, que esto caminhando ao encontro de uma
nova discursividade, a da lngua do outro. O texto literrio proporciona este
encontro, das vozes7 que ecoam na lngua materna e na lngua estrangeira.
Para compreender melhor a concepo de Literatura aqui defendida, deter-nos-
emos em uma discusso sobre a relao entre lngua, escrita, literatura e
discurso, bem como sobre as questes de autoria no texto literrio e o papel do
leitor.
Conforme a Anlise do Discurso, a lngua , para o escritor, a
materialidade que lhe permite a construo da obra literria, entretanto esta
7Utilizamos a palavra vozes, ao longo do texto,como sinnimo de discursos.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
38/148
38
no a lngua do escritor, mas a dos homens, sendo assim lngua, aqui,
compreendida como objeto social por definio, no por eleio. (BARTHES,
2004, p.10)Por mais liberdade que o sujeito emprico/autor pense possuir para
realizar seu trabalho, ele est manejando uma lngua que opaca na qual se
inscreve uma memria, ou seja, pela materialidade da lngua pode sempre
ressoar algo dito anteriormente, em outros lugares sociais e histricos. A
memria constituinte da lngua no simplesmente abstrada pelo escritor, a
favor de suas intenes, visto que essa abstrao no pode ocorrer na
linguagem, pois memria e lngua so indissociveis. Enquanto sujeito
discursivo, tambm constitudo social e historicamente, o escritor ocupa uma
posio de sujeito, conforme a formao discursiva na qual est inserido, e a
partir dela que produz sua obra.
Para pensar melhor a questo da lngua no texto literrio, tomaremos
como base os postulados de Roland Barthes, em O Grau Zero da Escrita
(2004). Conforme os referidos princpios tericos, defendemos que o autor do
texto literrio no escreve uma lngua, este escreve e inscreve discursos de
uma sociedade, de um tempo, de um lugar social e ideolgico, sendo tais
discursos materializados linguisticamente. A lngua traz consigo verdades, que
s ganham sentidos e se resignificam, se pensarmos em quanta densidade e
diversidade de valores pode haver em uma palavra quando a retiramos de sua
condio de forma naturalmente solitria, para pens-la dentro de um discurso.
Como afirma Barthes (2004, p. 15),
(...) a escrita permanece ainda cheia de lembrana de seus usosanteriores, pois a linguagem nunca inocente: as palavras tm umamemria segunda que se prolonga misteriosamente no meio dassignificaes novas. A escrita precisamente esse compromisso
entre uma liberdade e uma lembrana(...)
Como j sabemos, em AD, nenhum sujeito constitutivamente livre para
expressar ideias, h um passado social e histrico que atravessa seus
discursos, levando-os a ocupar uma determinada posio-sujeito. Ao falarmos
em sujeito, no estamos, portanto, remetendo-nos ao sujeito emprico,
consciente de seu dizer, uma vez que como nos mostra Pcheux, o sujeito
constitudo social, histrica e ideologicamente, identifica-se com os saberes de
uma FD, ocupando uma posio a partir da qual enuncia.
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
39/148
39
A liberdade a qual se refere Barthes, na citao acima, concerne s
tomadas de posio que esse sujeito, pensado pela AD, realiza no discurso.
Ou seja, o sujeito se inscreve em uma formao discursiva, podendo, tambm,
dialogar com os saberes de outras formaes.
A escrita do texto literrio nos traz a falsa ideia de que o autor do texto
atua emprica e livremente sobre sua produo. Todavia, sabemos que essa
produo no apenas sua, mas resultado de sua insero em um conjunto de
saberes discursivos e do dilogo com outros discursos. Os textos literrios so
oriundos de realidades sociais, temporais e histricas, por conseguinte
permitem o encontro dos discursos destas realidades. O escrito, em linhas e
versos, inscreve na Histria esses discursos, que lhe so constituintes, logo
fogem ao controle da intencionalidade de um sujeito concebido como emprico.
O sujeito-autor do texto literrio trata de questes que ele mesmo no domina.
No processo de escritura, o autor se encontra diante da incapacidade de
dominar o que se diz com o dito nas estrofes e pargrafos, isto , de dominar a
infinidade de sentidos que so atribudos ao texto cada vez que ele lido.
Durante os tempos burgueses, como afirma Barthes (2004), muitos
autores estabeleceram uma forte preocupao em trabalhar com o controlvel,
nesse caso, a forma da lngua. Essa preocupao, por si s, j reflete uma
sociedade que ainda no se compreendia como mutvel e aberta a
interpelaes de distintas ordens, o que explica a busca pelo domnio daquilo
que, supostamente, se pode controlar.
Por muitos anos, e ainda nos tempos atuais, a literatura foi vista como o
exemplo do bem escrever, do que linguisticamente correto. Essa viso
reduziu a literatura forma dentro das salas de aula de ensino de lnguas: o
texto literrio como um padro a seguir. Buscar sentidos e valores presentes e
ausentes no texto literrio esteve, e ainda est em segundo plano. Pretendia-
se, justamente, ignorar que:
a forma literria pode provocar os sentimentos existenciais que estoatados ao interior vazio do todo objeto: sentido do inslito,familiaridade, repugnncia, complacncia, uso, homicdio.(BARTHES, 2004, p. 5)
Conforme afirma Barthes, de Flaubert a nossos dias, a Literatura passoua ser um problema para os estudos da linguagem, problema este que se reflete
-
5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira
40/148
40
no ensino-aprendizagem de lnguas. Como na sociedade dos tempos
burgueses, a nossa atual sociedade encontra na literatura seu lugar de
prestgio social, porm permanece com a mesma noo de outrora de literatura
como lugar do inacessvel e da norma culta. A literatura impe obstculos,
difcil e exige trabalho. O texto literrio se apropria dos saberes de diversas
formaes discursivas, deslocando-os para o universo verbal, tendo como
funo maior manter esses saberes em movimento de construo e
reconstruo de sentidos. Nesse sentido,
(...) compreendemos com Barthes, ento, que a literatura umaforma de linguagem capaz de destronar a ordem do discurso,possibilitando aos sujeitos a reflexo sobre as subjetividades
construdas que desencadeiam ininterruptamente osassujeitamentos. (GAMA-KHALIL, 2010, p.188)
Trabalhar com o texto literrio uma difcil tarefa, como aqui
mencionado, pois exige o sair da posio daquele que pode controlar um
mundo de dizeres e suas formas, moldando-as conforme suas intenes.
Dentro do processo de ensino-aprendizagem, optou-se por permanecer com a
estabilidade das anlises lingusticas e pouco comprometidas com o poder
discursivo da literatura. Mesmo no ensino de lngua materna essa umarealidade constante, sendo ainda mais presente no ensino de lnguas
estrangeiras. Nestes, poucos so os gneros literrios
top related