diss flavia farias de oliveira

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  • 5/25/2018 Diss Flavia Farias de Oliveira

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE ARTES E COMUNICAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    A LITERATURA NA LNGUA DO OUTRO: o tratamento do texto

    literrio em livros didticos de espanhol como lngua estrangeira

    Flvia Farias de Oliveira

    Recife

    2013

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    Flvia Farias de Oliveira

    A LITERATURA NA LNGUA DO OUTRO: o tratamento do texto

    literrio em livros didticos de espanhol como lngua estrangeira

    Dissertao submetida como requisito parcial para

    obteno do Ttulo de Mestre em Letras, pelo Programa

    de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal de

    Pernambuco.

    Orientador: Profa. Dra. Fabiele Stockmans De Nardi

    Recife

    2013

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    Catalogao na fonte

    Andra Marinho, CRB4-1667

    O48l Oliveira, Flvia Farias deA literatura na lngua do outro: o tratamento do texto literrio em livros

    didticos de espanhol como lngua estrangeira / Flvia Farias de Oliveira.Recife: O Autor, 2013.

    148p.: Il.: fig.; 30 cm.

    Orientador: Fabiele Stockmans De Nardi.. Dissertao (mestrado)Universidade Federal de Pernambuco, CAC.Letras, 2013.

    Inclui bibliografia e anexos.

    1. Lingustica. 2. Lngua Espanhola. 3. Interlngua (Aprendizagem delnguas). 4. Literatura. I. De Nardi, Fabiele Stockmans (Orientador). II.Titulo.

    410 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2013-69)

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    Agradecimentos

    Pela sade, pela coragem, por no me deixar cair, pelos anjos que ps em minha vida, obrigada,

    meu Deus!

    minha me, Dona Nena, sempre presente em toda minha vida acadmica, desde os primeirospassos, quando eu ainda aprendia a falar espanhol, e ela, em um grande esforo para me entender,

    ouvia-me atentamente falando na lngua de Cortzar, desde que eu pudesse praticar o idioma pelo qual

    tinha me apaixonado. Ela que, mesmo sem entender nada de Anlise do Discurso, tambm me cedeu,

    inmeras vezes, seus ouvidos, seu corao, sua alma para me escutar falar sobre meu trabalho e, em um

    dia de angstia, disse: meus ouvidos so incansveis para voc.

    minha famlia, meu pai, meus irmos, minhas tias, em especial Tia Key, minha segunda me,

    meus primos e sobrinhos que vibraram a cada conquista minha e estiveram ao meu lado nas vezes em

    que as foras me faltaram. Obrigada aos Farias e aos Prazeres, minha base, meu porto seguro.

    A Lvia pelo ouvido, pelo olhar, pacincia e dedicao durante esses trs anos de conversas

    fundamentais para que minhas foras fossem reestabelecidas e muitas quedas evitadas.

    Aos meus companheiros de jornada acadmica, junto aos quais logo percebi que esse universo

    pequeno demais para ns, para a amizade que construmos. Com eles, dividi as alegrias e angstias

    dos dois anos, at agora, mais importantes de minha vida. Obrigada por estarem comigo!

    Agradeo, especialmente, a Andra que to pacientemente soube me ouvir e me fazer rir, em

    terras brasileiras e em terras rioplatenses; a Berg, pelas gargalhadas compartilhadas, pelas revises

    realizadas, pelo ombro amigo; a Ton e a ngela, pelos cafs de fim de aula, nos quais eles me brindavam

    suas agradveis companhias para um dedinho de prosa.

    Ao professor Miguel Espar que me deu a chance de trabalhar com a lngua espanhola e de me

    apaixonar por ela e pela sala de aula. Pela confiana depositada, ao longo destes anos, muito obrigada

    Ao professor Alfredo Cordiviola, com quem eu conheci a literatura hispanoamericana e o fazer

    cientfico. Nunca terei palavras suficientes para agradecer a semente do amor pela literatura em mim

    plantada.

    Por fim, gostaria de dizer que esse trabalho foi todo escrito na primeira pessoa do plural porque,

    definitivamente, eu no o escrevi sozinha, eu o fiz com todo o apoio, carinho e dedicao de Fabi, minha

    orientadora. Agradeo a Deus por ter te colocado na minha vida! Fabiele De Nardi foi mais que uma

    orientadora, ela foi a pessoa que no meu momento de fragilidade disse: te cuida, eu estou aqui! Qualquer

    coisa, grita. Eu no gritei porque, afortunadamente, no precisei, mas sempre tive a certeza de que se o

    fizesse, poderia contar com ela. s vezes, dizendo-se carrasca, ela puxava minhas orelhas, mas o fazia

    de um jeito to sutil e respeitoso que nohavia como concordar com aquela fala. Diante de mim, estavauma enorme pessoa, fazendo o seu trabalho com responsabilidade, amor e dedicao sem iguais, que

    me serviro de espelho para sempre, no s em minha vida profissional, mas tambm na pessoal. Com

    ela, eu me encontrei teoricamente, meu trabalho ganhou rumo e minha vida acadmica tambm.

    Obrigada por tudo, Fabi!

    Obrigada a todos que direta ou indiretamente contriburam para minha formao acadmica e

    para tessitura deste trabalho.

    Agradeo, tambm, ao Programa de Ps-Graduao em Letras da UFPE e CAPES pelo apoio

    concedido.

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    RESUMO

    O presente trabalho se prope a analisar o tratamento dado ao texto literrio

    em livros didticos destinados ao ensino de lngua espanhola para brasileiros,

    visando ensejar uma reflexo sobre o processo de ensino-aprendizagem de

    espanhol como lngua estrangeira (E/LE) a partir da estreita relao existente

    entre lngua e literatura. Partimos do pressuposto de que este processo s

    ocorre quando se vive a relao entre lngua-discurso-sujeito. Para tessitura de

    tal reflexo, recorremos ao arcabouo terico da Anlise do Discurso de filiao

    pecheuxtiana, a fim de pensar no aprendiz da lngua espanhola como um

    sujeito imerso em um universo discursivo, que vai ao encontro de um novo

    mundo, o da lngua estrangeira, para tomar a palavra neste novo espao social

    (SERRANI, 2010). Defendemos que a literatura contribui para a realizao

    desse encontro, pois caracterstica sua viver no limiar entre o dito e no-dito,

    evidenciando a opacidade da lngua e convidando o leitor/aluno a enveredar

    entre seus interditos em uma constante busca por sentido. Sabemos que

    construir sentidos e ocupar uma posio frente a uma rede de discursos, que

    tambm se materializa linguisticamente no texto literrio, so aspiraes

    inerentes a todo ser humano, logo no h como suprimir tais aspiraes

    daquele que almeja aprender uma lngua estrangeira. Pretendemos aqui refletir

    sobre o que falha no tratamento dos livros didticos de E/LE adotados no

    Brasil, a fim de repensar tal tratamento, para que, assim, o aprendiz possa

    resignificar a lngua e a literatura de origem castelhana, ocupando um lugar

    neste novo universo de dizeres.

    PALAVRAS-CHAVE: lngua estrangeira, literatura, ensino-aprendizagem.

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    RESUMEN

    El presente trabajo se propone a analizar el tratamiento dado al texto literario

    en libros didcticos destinados a la enseanza de la lengua espaola para

    brasileos, de modo que pretendemos impartir una reflexin sobre el proceso

    de enseanza y aprendizaje de espaol como lengua extranjera (E/LE) a partir

    de la estrecha relacin existente entre lengua y literatura. Partimos de la idea

    de que este proceso slo ocurre cuando se vive la relacin entre lengua-

    discurso-sujeto. Para la escritura de dicha reflexin, buscamos apoyo terico

    en el Anlisis del Discurso de corriente pecheuxtiana, a fin de pensar en el

    aprendiente de la lengua espaola como un sujeto inscripto en un universo

    discursivo, que va al encuentro de un nuevo mundo, el de la lengua espaola,

    para poder tomar la palabra en este nuevo espacio social (SERRANI, 2010).

    Defendemos que la literatura contribuye para la realizacin de este encuentro,

    pues es caracterstica suya vivir entre el dicho y el no dicho, evidenciando la

    opacidad de la lengua e invitando el lector/alumno a involucrarse por estos

    interdictos en una constante bsqueda por sentido. Sabemos que construir

    sentidos y ocupar una posicin frente a una red de discursos, que tambin se

    materializa lingsticamente en el texto literario, son anhelos del que desea

    aprender una lengua extranjera. Pretendemos aqu reflexionar sobre lo que

    falla en el referido tratamiento, para que, de esta forma, el aprendiente pueda

    dar nuevos sentidos a la lengua y a la literatura de origen castellano, ocupando

    un lugar en este nuevo universo.

    PALABRAS CLAVE: lengua extranjera, literatura, enseanza y aprendizaje.

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    Sumrio

    Introduo .............................................................................................. 91. Princpios tericos da Anlise do Discurso .......................................12

    1.1 Das origens dos estudos em Anlise do Discurso ......................131.2 O sujeito na Anlise do Discurso: um lugar nodizer..............................................................................................18

    1.3 Relaes entre discurso ememria........................................................................................24

    1.4 O discurso na lngua do outro ......................................................281.5 Lngua e literatura: realizaes discursivas em lngua

    estrangeira....................................................................................322. Anlise do Discurso e o texto literrio ...............................................36

    2.1 Sobre a ideologia em Anlise do Discurso e sua relao com aliteratura........................................................................................42

    2.2 Sobre a funo/autor e o sujeito/leitor no processo de leitura dostextos literrios .............................................................................46

    2.3 O que se silencia..........................................................................512.4 Sobre o inconsciente e o imaginrio e sua relao com a

    literatura........................................................................................532.5 As trocas interculturais e os discursos que se entremeiam .........58

    3. A literatura na aula E/LE na sala de aula contempornea noBrasil..................................................................................................643.1 Por que estudamos espanhol? ....................................................64

    3.1.1 Breve sntese da evoluo histrica do ensino de E/LE noBrasil .................................................................................67

    3.2 Do objeto de anlise ....................................................................723.2.1 Conforme os parmetros europeus: o predomnio da

    perspectiva comunicativa ..................................................733.2.2 Quando a cultura o enfoque que perde o foco ...............803.2.3 Quando o tratamento da literatura depende apenas do

    professor ...........................................................................823.2.4 Um poco de literatura? ....................................................85

    3.3 Livros didticos especficos para o estudo da literatura em lnguaespanhola.....................................................................................89

    3.4 Livros didticos recomendados pelo PNLD: o parmetro

    brasileiro.......................................................................................913.4.1 Quando a literatura e o discurso dialogam .......................913.4.2 Quando o dilogo se transforma em um monlogo ..........93

    4. Consideraes finais ........................................... ..............................975. Referncias bibliogrficas ............................................. ..................1016. Anexos.............................................................................................108

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    1. Introduo

    O presente trabalho postula sobre a importncia de tornar a lngua

    estrangeira (LE) significativa para os alunos, priorizar e aperfeioar a

    sensibilidade dos discentes atravs da literatura de lngua estrangeira. Para

    tanto, partimos do pressuposto de que conhecer um novo idioma implica uma

    imerso nos discursos dessa nova lngua-cultura, em suas dimenses sociais,

    histricas e ideolgicas. Neste trabalho, entendemos que o processo de

    ensino-aprendizagem de LE deve centrar-se nas relaes que envolvem o

    outro, em sua dimenso discursiva, atravs do texto literrio, uma vez que a

    literatura proporciona a imerso num novo mundo de dizeres em lngua

    estrangeira. Portanto, discorreremos, aqui, sobre a relao entre lngua, sujeito,

    discurso e literatura, a fim de aportar novos olhares para o processo de ensino-

    aprendizagem de espanhol como lngua estrangeira (E/LE).

    No raro encontramos nos livros didticos, que orientam a prtica dos

    docentes em instituies de ensino brasileiras, menes literatura, mas essas

    menes, como temos observado, no implicam uma insero efetiva do texto

    literrio nas prticas de ensino de LE. H nos livros didticos, como

    demonstraremos nas anlises realizadas mais adiante, o predomnio de

    concepes de lngua e ensino, que primam pelo valor estrutural e funcional da

    lngua. Conforme esta perspectiva, o aluno deve se apropriar de estruturas

    lingusticas para aplic-las em contextos imediatos de uso. Entretanto,

    sabemos que aprender um novo idioma est mais alm do que a simples

    decodificao da estrutura que constitui a lngua e de se ter o domnio dos

    momentos de uso de seu cdigo. Julgamos que saber um idioma vai mais alm

    do saber gramatical, um idioma significa a inscrio do aprendiz em uma nova

    rede de discursos que se realiza em lngua estrangeira, isto , significa poder

    realizar movimentos no interior dessas redes, para, assim, tomar a palavra na

    lngua do outro.

    No presente trabalho, refletimos sobre o papel da literatura nesse

    processo de inscrio do sujeito na lngua. Nosso interesse se justifica pelo fato

    de considerarmos que no texto literrio esto presentes as diversas formas de

    expresso do ser humano, bem como os vrios dizeres que ecoam dasrelaes scio-histricas da sociedade dessa lngua outra. A percepo da

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    literatura como elemento de prazer esttico, de fruio (BIRMAN, 1996) e como

    fonte de diferentes modos de expresso corrobora o fato de que lngua e

    literatura esto relacionadas e que no devem dissociar-se no processo de

    ensino-aprendizagem. As marcas de identidade social, presentes no discurso

    literrio, mobilizam o leitor na busca de produzir sentidos quando se coloca

    diante desses novos discursos em verso e prosa, em um processo de

    reconhecimento, resignificao, identificao ou negao do que est posto na

    materialidade do texto e, principalmente, no que est alm do escrito.

    Diante do exposto, o presente trabalho se prope a ratificar a

    importncia da relao existente entre o ensino-aprendizagem do espanhol

    como lngua estrangeira com a literatura produzida nessa lngua, a partir dos

    postulados da Anlise do Discurso (AD) de corrente pecheuxtiana. Pretende-

    se, a partir desta reflexo, discutir o que falha no que concerne s noes de

    lngua, sujeito e discurso adotadas nos livros didticos de E/LE no Brasil. A

    partir desta discusso, propomos uma reflexo, a fim de se pensar na formao

    de alunos de LE como sujeitos discursivos, que buscam tomar a palavra na

    lngua espanhola. (SERRANI, 2010)

    Conforme os pressupostos da AD, aprender outra lngua exige que haja

    uma constante busca pelo que constitui o outro, isto , o sujeitodessa lngua,

    no somente com a forma como ele age em situaes cotidianas e quais

    proposies ele utiliza para tal fim. Como afirma Serrani (2003, p. 285), antes

    de falar, todo sujeito est imerso em um mundo de dizeres.Este mundo de

    dizeres est presente na memria desta lngua e com ela que devemos

    entrar em contato para atuar significativamente no que constitui essa segunda

    lngua. Como afirmava Serrani (2003, p. 285) falar uma lngua estrangeira

    implica em uma relao entre ns e os outros. No podemos falar outra

    lngua sem sair de nosso mundo, sem buscar conhecer a qual universo nos

    estamos dirigindo, sem considerar a histria, os costumes, o imaginrio que

    constitui o novo. No se pode ignorar de onde vem o outro dessa lngua e

    como ele enxerga o seu universo. A literatura se caracteriza por mobilizar o

    leitor na busca por conhecer este outro, presente em suas linhas e versos, e

    constitudo social, histrica e ideologicamente. O texto literrio tira o leitor da

    confortvel posio de receptor de informaes, para revirar memrias embusca de sentidos, que no residem na materialidade lingustica.

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    Este trabalho se desenvolve, valendo-se do papel mobilizador da

    literatura, a qual permite que sujeitos de distintas realidades e sociedades se

    encontrem, recuperando memrias e resignificando discursos. A leitura de

    qualquer texto, literrio ou no, instiga o leitor a buscar referenciais, presentes

    em sua memria, para que este possa recuperar e dar sentido ao que l.

    Entretanto, importante salientar que esta memria mobilizada no a

    individual, mas uma srie de sentidos entrecruzados da memria mtica, da

    memria social inscrita em prticas, e da memria construda do historiador,

    tal como afirma Pcheux (1997, p.50). Discorreremos, nos captulos mais

    adiante, em pormenores a referida noo de memria.

    Sabemos que, de acordo com os princpios tericos da AD, somos

    sujeitos constitudos social, ideolgica e historicamente, e produzimos

    discursos que refletem essa constituio, que, por sua vez, flexvel a

    interpelaes de outros discursos. Na escritura de textos literrios, o autor no

    nico, tampouco munido de meras intenes, ele est interpelado, isto ,

    atravessado por esta constituio, que ecoar em seu texto e dar voz aos

    vrios discursos que interpelam o autor, enquanto sujeito discursivo, e o seu

    dizer literrio.

    A literatura aporta para o processo de ensino-aprendizagem de LE um

    amplo horizonte de discursos, de vozes que falam desde um lugar que o

    aprendiz de espanhol deseja ocupar. papel dos pesquisadores sobre o

    ensino de LE repensar a construo de materiais orientadores para os

    docentes, cujo enfoque seja auxiliar o alunado a ocupar, discursivamente, um

    lugar no universo em que se fala a lngua espanhola.

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    1. Princpios tericos da Anlise do Discurso

    As paixes que movem esta pesquisa levaram-me a caminhar, perder-

    me e encontrar-me dentro de distintas reas dos estudos lingusticos, a fim de

    levar para as salas de aula, no Brasil, o espanhol como lngua estrangeira

    (E/LE). Nesse processo, a literatura e a lngua espanhola (LE) so paixes que

    sempre caminharam juntas. Na tentativa de manter essa indissociabilidade,

    surge, de imediato, a ideia de inserir o texto literrio em lngua castelhana nas

    aulas de E/LE. A partir desse intento, nasce o conflito indicador de que a

    simples insero de crnicas, contos, poemas, etc., no contribua para a

    aprendizagem do espanhol como lngua estrangeira.

    Na tentativa de encontrar, do ponto de vista terico, o que falhava na

    tessitura deste trabalho, encontramos respostas na Anlise do Discurso de

    corrente pecheuxtiana. Refletiremos sobre a literatura, escrita por um outro em

    discursos que se materializam em uma nova lngua.

    Sobre o outro, ao qual nos referiremos ao longo deste trabalho,

    tomamos como base os postulados sobre alteridade de Pcheux, em Discurso:

    estrutura ou acontecimento (1997), e o que sobre o tema nos diz Coracini

    (2003), que centra sua discusso nos referenciais tericos da psicanlise

    lacaniana e nas teorias do discurso. Conforme a autora (2003, p. 201), o outro

    nos constitui assim como constitui o nosso discurso. Ao longo da constituio

    social, histrica e ideolgica dos sujeitos, cria-se, inconscientemente, um

    imaginrio acerca do estrangeiro e do falar uma determinada lngua, ou seja,

    constri-se um imaginrio sobre o outro dessa lngua, provocando ou rejeitando

    um processo de identificao com este que fala na LE, mas que, sobretudo,

    fala ocupando lugares sociais no interior dos discursos que se materializam

    nesta lngua.

    Como afirma Pcheux (2009, p. 123), o outrono discurso designa um

    sujeito absoluto e universal. O autor tambm se apoia nos estudados de

    Lacan para tecer seus postulados sobre o outro. Segundo a perspectiva

    lacaniana, o outro representa saberes que se materializam pela voz de um

    sujeito que fala discursivamente na lngua estrangeira, o outro da ordem do

    inconsciente e se estrutura na linguagem. este lugar que o aprendiz desejaocupar, em uma tentativa de preencher a falta destes saberes outros.

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    Para pensar nos deslocamentos em busca do outro, refletimos sobre o

    papel da alteridade, discutida por Pcheux ao refletir sobre a heterogeneidade

    dos discursos e dos sujeitos. Conforme o autor, a alteridade um movimento

    que nos permite sair de nossos lugares sociais para colocar-nos em outro

    lugar. Logo, o imaginrio que se tem sobre o outro nos permite, em um

    processo de alteridade, desejar ocupar este lugar, ter voz em suas redes

    discursivas.

    Os discursos esto repletos de furos permitindo-nos conhecer o qu da

    constituio social, histrica e ideolgica desse outro escapa ao texto literrio e

    permite a emerso de discursos outros em lngua espanhola. A AD nos

    permite, atravs de seus postulados sobre sujeito, memria e discurso,

    enveredar sobre o qu do texto literrio nos traz o outro da lngua estrangeira,

    aportando, assim, um novo olhar para o processo de ensino-aprendizagem de

    E/LE. Conforme a perspectiva terica sobre a qual nos apoiamos, lngua,

    literatura, discurso e aprendizagem so elementos indissociveis, pois a

    literatura est inserida na rede de discursos que se produzem em uma

    sociedade, a literatura discurso que se materializa na lngua.

    Para o desenvolvimento desta reflexo, na primeira parte deste trabalho,

    ocupar-nos-emos em expor o quadro terico da AD, seus princpios

    epistemolgicos e seu legado no Brasil, a fim de compreender como tais

    princpios so importantes para o processo de ensino-aprendizagem de E/LE.

    1.1 Das origens dos estudos em Anlise do Discurso

    A Anlise do Discurso surge na Frana em fins da dcada de 60,

    dividindo-se em trs fases principais, nas quais Michel Pcheux rel seus

    prprios conceitos, provocando mudanas no interior da teoria. O primeiro

    momento da AD tem lugar com a publicao de Anlise Automtica do

    Discurso em 1969. Com esta obra, inaugura-se um novo pensar, o qual rompe

    com o formalismo lingustico. Nesse mesmo perodo, o estruturalismo, cuja

    base terica nasce com Ferdinand de Saussure, encontrava seu auge no

    mbito dos estudos sobre linguagem, com a publicao do Curso de

    Lingustica Geral, pois, a partir de seus postulados, o terico conferia lingustica o estatuto de cincia: anseio natural diante do quadro histrico

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    lgico-positivista vivenciado na Europa, naquele momento. O estruturalismo

    lingustico de Saussure concebia a lngua como sistema, o qual podia obedecer

    a normas defendidas pela cincia. Seus estudos estavam centrados na

    concepo de lngua como elemento esttico, concreto e analisvel apenas no

    que concerne a sua estrutura, ou seja, ao cdigo lingustico. Neste processo,

    Saussure dedicou-se apenas anlise desses signos, excluindo as influncias

    externas, advindas, por exemplo, da oralidade. Surge assim a dicotomia

    lngua/fala langue/parole. Para Saussure, a lngua social e exterior aos

    indivduos, enquanto a fala individual. Logo, o sujeito, ser falante, interventor

    e construtor dessa lngua, no foi contemplado em seus postulados sobre os

    estudos da linguagem. Visto que, como sabemos, a lngua analisada, na

    perspectiva saussuriana, no essa que sofre intervenes externas. A

    incluso do sujeito dentro dos estudos da linguagem, na perspectiva

    estruturalista, incorreria na vulnerabilidade do carter cientfico da Lingustica.

    O interior da lngua deixa de ser o centro dos estudos. Abre-se, assim,

    espao para conceitos como a historicidade, a ideologia althusseriana, o

    trabalho com o inconsciente e a incluso do sujeito no pensar sobre a

    linguagem. Novas reas do saber passam a ser estudadas, dissociando-se das

    teorias sobre a linguagem vigentes na dcada de 60. A lngua passa a ser vista

    em sua dimenso discursiva, logo h um afastamento da teoria saussuriana. O

    discurso passa a ser lugar de observao (ORLANDI, 2005, p. 76), ou seja,

    no discurso que sero analisadas as relaes entre lngua, sujeito, histria e

    ideologia.

    No movimento de mudana terica, que se realizou no interior sobre os

    estudos da linguagem, temos a figura de Pcheux que defender o discurso

    como objeto da AD, sendo este pertencente a um sistema de regularidades,

    mas tambm resultado de um quadro poltico-ideolgico existente no interior de

    uma formao social. Conforme o autor, no discurso, existem sujeitos que

    ocupam espaos sociais e refletem os discursos constitutivos deste lugar

    social. O sujeito do discurso, interpelado ideologicamente, inscrever-se- em

    uma rede de saberes, definida por Pcheux como formao discursiva, a qual

    regula os discursos. Desta forma, surgem conceitos como o de formao

    discursiva (doravante FD) e formao ideolgica (doravante FI), que seroaprofundados por Pcheux na chamada fase dois, que ter incio em 1975.

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    Com a publicao, em 1975, de Semntica e discurso: uma crtica

    afirmao do bvio, cujo ttulo em francs Ls Verits de la Palice, Pcheux

    fortalece seus estudos sobre elementos exteriores lngua, reforando as

    relaes entre discurso e ideologia. As noes de preconstrudo e de

    interdiscurso tambm recebero maior ateno.

    Nessa fase, tem-se ampliada a discusso sobre os efeitos produzidos

    pelo discurso como resultado dos sentidos determinados ideologicamente.

    Considera-se que todo discurso se constri no interior de uma rede de saberes,

    constituindo, assim, o que se entende por formao discursiva. Esta, por sua

    vez, est diretamente influenciada pelo que est na ordem da ideologia, isto ,

    por uma rede de formaes ideolgicas1. Como afirma Nascimento (2010, p.

    34):

    (...) os sentidos so determinados ideologicamente, por isso asformaes discursivas representam no discurso as formaesideolgicas, nas quais as palavras adquirem sentidos sempre deacordo com a formao discursiva em que se instalam, ressaltandoque na discursividade que a ideologia produz seus efeitos.

    Pcheux, nesta fase, est bastante influenciado pela reflexo proposta

    por Althusser, em Aparelhos Ideolgicos de Estado. A partir da releitura que fazesse pensador da teoria marxista e seus fundamentos, no possvel pensar a

    ideologia como:

    (...) um bricolage imaginrio, puro sonho, vazio e vo, constitudopelos resduos diurnos da nica realidade plena e positiva, a dahistria concreta dos indivduos concretos, materiais, produzindomaterialmente sua existncia. (ALTHUSSER, 1985, P.83)

    Para Althusser, no h uma histria da ideologia nica, pertencente a

    um indivduo concreto, com suas ideologias particulares. O que existe a

    histria da ideologia de uma classe, no de um ser especfico. Essas classes,

    constitudas ideolgica e historicamente, entravam lutas em relao ao Estado

    no em benefcio de um sujeito particular, mas de um conjunto, seja religioso,

    poltico ou laboral, por exemplo. A ideologia, assim entendida, responsvel

    pela construo de posies e lutas de classe. Para Althusser, o sujeito

    1Mais adiante, no presente trabalho, trataremos de forma pormenorizada s noes de FD eFI.

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    representa uma coletividade, uma classe social, ele fala desde um lugar na

    sociedade. Trata-se de uma voz que fala pelo coletivo, no desde o interior de

    um indivduo. A aproximao de Pcheux aos postulados althusserianos deve-

    se, em grande parte, a esta noo de sujeito e ao papel da ideologia que o

    interpela. Logo, o sujeito do discurso representa um grupo social, em sua

    respectiva formao discursiva.

    No perodo marcado a partir de 1980, a noo de assujeitamento ser

    relativizada por Pcheux, que refletir sobre a heterogeneidade constitutiva do

    sujeito discursivo, o qual flexvel e sofre atravessamentos de discursos de

    outras ordens, refletindo assim a noo, defendida por Jean-Jacques Courtine

    (2009), de que os discursos tambm so heterogneos. Sero discutidas,

    nesta fase, as noes de desidentificao e contraidentificao. Ampliaremos,

    mais adiante, as referidas perspectivas.

    Com a publicao de Discurso: estrutura ou acontecimento, em 1980,

    Pcheux evidencia o papel da historicidade na relao entre sujeito e sentido.

    Michel Foucault (2010) e a releitura que Courtine (2009) realiza da obra

    foucaultiana ganharo bastante relevncia nesta fase. Recebem nfase,

    sobretudo, os conceitos referentes heterogeneidade e ao interdiscurso. (Cf.

    GREGOLIN, 2004)

    Com Courtine, tem-se uma reviso do papel da Histria para AD e a

    introduo do conceito de memria discursiva. A partir desta concepo,

    amplia-se a discusso sobre as noes de interdiscurso e intradiscurso.

    Conforme o autor, todo discurso poroso, passvel de alteraes na medida

    em que est em contato com outros discursos. No h homogeneidade

    discursiva, h uma relao de dilogo entre os mesmos, isto , uma relao

    interdiscursiva que se relaciona com elementos do intradiscurso, permitindo

    ressignificar dizeres. No perodo posterior a 1980, a teoria de Pcheux dialoga

    com os pressupostos tericos de Jacqueline Authier-Revuz, uma vez que esta

    autora tambm discorrer acerca da heterogeneidade do discurso.

    Em relao aos estudos sobre Anlise do Discurso no Brasil, temos a

    importante contribuio de Eni Orlandi, uma das grandes responsveis pela

    consolidao desta teoria em nosso pas entre as dcadas de 70/80. A referida

    autora, a partir do legado de Pcheux, concebe a lngua como um fato ligado asua exterioridade: a histria, a ideologia, o inconsciente. Desta forma, rompe-se

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    com a dicotomia saussuriana lngua/fala, pensando, a partir de ento, na

    interrelao entre lngua e discurso. No se desconsidera a forma abstrata da

    lngua, chamada por Orlandi (2005) de forma material. A partir dos postulados

    estruturalistas de Hjelmslev (1968), a materialidade lingustica passa a ser

    estudada em consonncia com o Materialismo Histrico, a Psicanlise e a

    Lingustica. Orlandi aponta a Anlise do Discurso como uma disciplina de

    entremeio, pois est no limiar entre disciplinas de distintas ordens dentro das

    cincias humanas.

    No Brasil, a Anlise do Discurso segue desenvolvendo-se, entretanto,

    como afirma Orlandi (1995, p. 85), no como uma Escola, mas como uma

    disciplina, de filiao pecheuxtiana, que continua reinventando-se no mbito

    acadmico brasileiro, cujos estudos esto centrados na interrelao entre

    lngua e discurso.

    Por centrar-se nesta interrelao, interessa-nos aqui abordar alguns

    conceitos, ainda bastante estudados no Brasil, os quais nos permitem refletir

    melhor sobre o papel da literatura, como texto discursivo, dentro do processo

    de ensino-aprendizagem de lnguas estrangeiras. (Cf. ORLANDI, 2005)

    Entender como funcionam as noes de sujeito e sentido em AD fundamental

    para a compreenso de como os textos literrios ganham sentido,

    resignificando-se ao mostrar um outro que fala desde um novo lugar, o da

    lngua estrangeira.

    Ainda sobre o importante aporte de Orlandi para a Anlise do Discurso

    praticada no Brasil, temos a introduo da noo de silncio (ORLANDI, 1995,

    p. 86).A partir de seus postulados sobre tal tema, sobretudo em sua obra As

    Formas do Silncio (2007), enfatiza-se a necessidade de romper com a noo

    pragmtica de implcito, ao se analisar, dentro do discurso, o que est entre o

    dizer e o no dizer. Sabemos que em todos os textos vozes so silenciadas por

    um j dito ou por um algo a dizer. Nesses espaos de silncio, muitos sentidos

    se constroem. A literatura se destaca, em relao aos demais gneros textuais,

    por ter como um de seus elementos caractersticos o silncio, que muitas

    vezes se revela, linguisticamente, atravs de figuras de linguagem como a

    parfrase e a metfora, ao se silenciar um dito, ao diz-lo de outra forma.

    Atravs dessas figuras surge o equvoco, ou seja, aquilo que falha, que permitepensar o que est alm do dito, este concebido enquanto forma material. Tais

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    figuras de linguagem, concebidas como procedimentos heursticos, conforme

    Orlandi (2005), permitem analisar de que forma os deslizamentos lingusticos

    ocorrem.

    A importante contribuio de Eni Orlandi para os estudos da linguagem

    no Brasil, pelo vis da AD francesa, tambm nortear a pesquisa aqui

    desenvolvida sobre a relao entre aprendizagem, literatura e lngua

    estrangeira.

    1.2Sujeito na Anlise do Discurso: um lugar no dizer

    Para uma melhor compreenso de como se configura o discurso,

    necessrio compreender qual a concepo de sujeito concebida pela AD e

    como este se relaciona com a formao discursiva (FD) na qual est inscrito.

    Pensemos sobre a noo de formao discursiva que, tal como postula

    Indursky (2008), est diretamente ligada noo de sujeito, de modo que

    discorreremos sobre tais temas refletindo sobre as relaes que os interligam.

    Embora encontremos em Foucault, mais especificamente em sua obraA

    arqueologia do saber (1969), uma definio de formao discursiva, preciso

    notar que Pcheux utilizar o mesmo termo, mas com especificidades prprias

    de seu arcabouo terico. Para Foucault, o discurso se realiza como

    acontecimento histrico, sendo este entendido, pelo referido filsofo, como um

    conjunto de enunciados que se repete de forma dispersa, mas que possui

    regularidades que lhe conferem unidade, que forma um conjunto de saberes.

    Encontrar um ponto em comum de realizao destas repeties enunciativas

    implica definir uma prtica discursiva. Uma vez que se encontra um ponto em

    comum entre estas repeties enunciativas e que so estabelecidas as

    regularidades com que estas repeties ocorrem, tem-se, ento, para o autor, a

    constituio de uma formao discursiva. Foucault entende que a regularidade

    com que essa disperso ocorre configura a reunio de um conjunto de saberes,

    isto , de uma formao discursiva.

    A diferena principal entre o conceito de FD em Foucault e Pcheux est

    no que concerne questo da ideologia. Foucault postula que a disperso com

    que as repeties enunciativas ocorrem no se deve a determinaes decunho ideolgico. A preocupao em pensar a FD est centrada, nos estudos

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    foucaultianos, em descrever de que forma a disperso dos enunciados se

    regulariza no interior das prticas discursivas, sendo este esquema

    independente de fatores ideolgicos. O prprio autor explica:

    (...) no caso em que se puder descrever, entre um certo nmero deenunciados, semelhante sistema de disperso, e no caso em queentre os objetos, os tipos de enunciao, os conceitos, as escolhastemticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem,correlaes, posies e funcionamentos, transformaes), diremos,por conveno, que se trata de uma formao discursiva.(FOUCAULT, 2007, p. 43)

    Deslocando as questes epistemolgicas foucaultianas sobre formao

    discursiva, Pcheux utilizar o termo observando que as questes ideolgicas

    sero fundamentais para compreender a constituio de uma FD. Na chamadasegunda fase de sua produo, Pcheux (1975), juntamente com Catherine

    Fuchs, desenvolve seus trabalhos sobre o conceito de formao discursiva,

    neste momento, atrelando-o ao de formao ideolgica. A consonncia entre

    discurso e ideologia bastante evidente na seguinte afirmao de Pcheux &

    Fuchs (1990, p.166):

    (...) se deve conceber o discurso como um dos aspectos materiais doque chamamos de materialidade ideolgica. Dito de outro modo, aespcie discursiva pertence ao gnero ideolgico, o que o mesmoque dizer que as formaes ideolgicas comportam necessariamente,como um de seus componentes, uma ou vrias formaesdiscursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito, apartir de uma posio dada numa conjuntura, isto , numa relao delugares no interior de um aparelho ideolgico.

    Para Pcheux, a noo de formao discursiva corresponde ao que est

    no domnio do saber. Os enunciados presentes neste domnio esto

    diretamente ligados s questes de ordem ideolgica que regulam os dizeres

    no interior de um domnio do saber, ou seja, de uma formao discursiva.

    Bastante influenciado pelas teorias althusserianas, Pcheux entender

    ideologia como resultante de uma materialidade social, dentro do mbito da

    luta de classes. O sujeito do discurso partcipe dessa luta, ele representa

    uma classe social e d voz aos seus dizeres, dado o carter material da

    ideologia na perspectiva de Althusser.

    Em Semntica e Discurso (1975), Pcheux se centra da discusso sobreo conceito de formao discursiva como heterogneo, no como homogneo,

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    fechado s interpelaes de outras formaes discursivas. A noo de

    interdiscurso, desta forma, ganha fora, uma vez que fundamental para a

    compreenso do processo de constituio de uma FD. Conforme esta

    perspectiva, os discursos trazem consigo umj-dito, ditos que se inscrevem em

    uma memria discursiva2, sendo constantemente revisitados e ressignificados.

    O sentido se constri na medida em que estes discursos so recuperados, em

    que se estabelece um dilogo entre eles e com o que est na ordem da

    materialidade lingustica, ou seja, no intradiscurso.

    A heterogeneidade da formao discursiva implica na noo de sujeito

    do discurso tambm como heterogneo. Como dissemos no incio desta

    sesso, tal como postula Indursky (2008), parece-nos difcil dissociar a reflexo

    sobre FD e sujeito. Desta forma, ocupar-nos-emos em refletir sobre esta

    relao.

    Comearemos assim esboando o que Pcheux, em 1975, define como

    teoria no-subjetiva da subjetividade. preciso, primeiramente, perceber o

    sujeito no como um organismo humano individual, mas como um lugar

    determinado na estrutura social (INDURSKY, 2008, p. 10). Em AD, ocorre a

    insero do sujeito no discurso em contraposio excluso que o mesmo

    sofreu pelo estruturalismo de Saussure, em 1969 com Anlise Automtica do

    Discurso. No entanto, esse sujeito, pelo qual o discurso ganha voz, no

    aquele pensado enquanto sujeito consciente e dono de seu dizer, tal como

    postulam os estudos pragmticos, por exemplo. Conforme Pcheux (1969), o

    sujeito ocupa um lugar no discurso que independe de sua constituio

    biolgica, isto , o sujeito se encontra em um lugar social, revelando atravs do

    discurso o que lhe constitui socialmente.

    Conforme Indursky (2008), Pcheux - 1975, em trabalho conjunto com

    Catherine Fuchs, agrega sua concepo de sujeito mais um elemento que o

    constitui, alm do social j aqui expresso, trata-se do que est na ordem do

    inconsciente. O social, o ideolgico e o inconsciente so conceitos que

    Pcheux vai trabalhar de maneira articulada para construir sua teoria no-

    subjetiva da subjetividade. importante lembrar que o autor no ignora, em

    sua teoria, que o sujeito duplamente afetado, ou seja, ele atravessado pela

    2Conceito definido por Courtine (1999), em AD, tomando como base o conceito foucaultiano dedomnio de memria.

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    memria social e, tambm, por uma memria individual. O sujeito

    socialmente interpelado pela ideologia e pela histria, sem se dar conta de tal

    interpelao, haja vista que, em sua constituio, ele afetado pelo

    inconsciente, tal como afirma Lacan, no mbito da Psicanlise. Tem-se o que a

    Anlise do Discurso denominar de sujeito assujeitado3, em prticas

    discursivas que se instauram sob a iluso de que ele a origem de seu dizer e

    domina perfeitamente o que tem a dizer.(INDURSKY, 2008, p. 11)

    Ao longo dos deslocamentos tericos, Pcheux entende que o sujeito

    em AD no ser mais concebido como totalmente assujeitado, pois este est

    em constante busca de completude, isto , este sujeito vive entre diversos

    espaos discursivos, buscando preencher as lacunas constitutivas do discurso.

    Vale salientar que no se trata de um indivduo sem vontade, mas de um

    sujeito que realiza movimentos dentro da FD, que podem ser de identificao

    ou desidentificao, mas continua sendo assujeitado. Esse sujeito assujeitado,

    assim definido em AD, est inserido em uma formao discursiva , que por sua

    vez corresponde a um domnio de saber, no qual o sujeito se inscreve, por um

    processo de identificao, a partir de sua constituio social, ideolgica e

    histrica.

    H, em toda formao discursiva, o que Pcheux, em Semntica e

    Discurso (2009, p.145), chamou de forma-sujeito.A forma-sujeito se refere ao

    sujeito universal da FD, que da ordem do social, histrico e ideolgico. a

    forma-sujeito que regula os dizeres no interior de uma formao discursiva.

    Como afirma Indursky (2008, p. 11), a noo de formao discursiva

    corresponde a um domnio de saber, constitudo de enunciados discursivos,

    que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regulando

    o que pode e deve ser dito. O que pertence ordem da ideologia, entendida

    conforme a concepo althusseriana, regula a constituio das FDs, uma vez

    que pela formao discursiva que as FIs so representadas na linguagem

    (Cf. Pcheux - 1975). Para Pcheux, o conceito de FD est relacionado ao de

    FI, o que no ocorre nos estudos que deram origem ao termo formao

    discursivaem Foucault.

    3 importante lembrar que Pcheux no ignora em sua teoria que o sujeito duplamenteafetado, ou seja, ele atravessado pela memria social e, tambm, por uma memriaindividual.

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    Os indivduos so interpelados em sujeitos discursivos. Esse o

    processo que define o sujeito como assujeitado: um sujeito regido por

    atravessamentos que nortearo a sua inscrio em uma rede de saberes. Tais

    atravessamentos ocorrem de forma inconsciente, e desta forma que o sujeito

    do discurso ocupa uma posio-sujeito, identificando-se ou rechaando a

    forma-sujeito da FD que o afeta. Tem-se, neste momento, o que Pcheux

    chamou de primeira modalidade. Para o autor, nesta modalidade, o sujeito do

    discurso est em total consonncia com a forma-sujeito da FD na qual est

    inscrito, ou seja, o sujeito do discurso ocupa uma posio-sujeito que se

    identifica plenamente com a forma-sujeito da FD. Tem-se, ento, o que

    Pcheux chamou de bom sujeito. (PCHEUX, 1988, p. 215)

    J na segunda modalidade, o sujeito do discurso ocupa uma posio-

    sujeito que entra em conflito com a forma-sujeito da FD. Neste caso, tem-se a

    definio de mau sujeito. (ibidem) Entretanto, o autor percebe que a noo de

    bom e mau sujeito no so suficientes para compreender os movimentos

    que ocorrem no interior de uma formao discursiva, e que a no identificao

    plena do sujeito do discurso com a forma-sujeito revela quo heterognea

    uma FD. Assim, pode-se reconhecer, na constituio de uma FD, o seu carter

    poroso, o qual permite que discursos, advindos de outros domnios de saber,

    possam dialogar com o j estabelecido em seu interior. Como afirma Indursky

    (2008, p. 15): o sujeito do discurso pode romper com o domnio de saber em

    que estava inscrito e, em consequncia, identificar-se com outra FD.

    O mau sujeito provoca o que Pcheux chamou de contra-identificao e

    desindentificao, ambos os processosem relao aos saberes que regem a

    FD que afeta o sujeito do discurso. So os processos por meio dos quais

    Pcheux vai pensar a relao do sujeito com a FD, j considerada por ele

    heterognea.

    No h somente o bom e o mau sujeito, mas vrias posies-sujeito no

    interior de uma FD. Como afirma Courtine (1981, p. 51), chamar-se- domnio

    da forma-sujeito o conjunto das diferentes posies de sujeito em uma

    formao discursiva como modalidades particulares de identificao do sujeito

    da enunciao ao sujeito do saber. Para entender melhor esta questo,

    pensemos sobre a noo de contra-identificao e desidentificao, tomandocomo base terica Pcheux (1988) e Indursky (2008). Para os referidos

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    autores, a contra-identificao ocorre quando o sujeito do discurso se ope no

    forma-sujeito da formao discursiva, na qual est inscrito, mas posio-

    sujeito dominante desta FD. Recordamos o carter heterogneo das FDs e que

    h vrias posies-sujeito em seu interior, sendo uma destas a dominante. A

    contra-identificao no implica no rompimento com a FD, mas com uma

    posio-sujeito. Apesar do conflito instaurado no seio da formao discursiva,

    as divergentes posies-sujeito convivem por estarem de acordo com o a

    forma-sujeito regente da FD, em que ambas esto inscritas. A forma-sujeito se

    fragmenta, mas no se desfaz. Tal fato corrobora a heterogeneidade

    constitutiva das formaes discursivas.

    J sobre a desindentificao, Pcheux afirma que esta ocorre a partir de

    um acontecimento discursivo (Cf. PCHEUX, 1990), o qual promover o

    rompimento do sujeito do discurso com a forma-sujeito da FD que o afeta. O

    acontecimento histrico permite que surja uma nova forma-sujeito e,

    consequentemente, uma nova formao discursiva, rompendo totalmente com

    os saberes da FD com a qual o sujeito do discurso estava anteriormente ligado.

    Como se v, a partir da reflexo aqui realizada, o sujeito em Anlise do

    Discurso to heterogneo quanto a FD em que se inscreve. H uma via de

    mo dupla entre essas duas noes. O sujeito do discurso assume posies-

    sujeito, inscrevendo-se em uma FD que corresponde a uma FI que o afeta.

    Trata-se de um sujeito que fala desde um lugar no discurso, no de um sujeito

    visto como indivduo, dono de seu dizer. O sujeito em Anlise do Discurso

    histrico e interpelado ideologicamente, refletindo no discurso saberes que

    fazem parte da constituio social, ideolgica e histrica que encontram lugar

    na formao discursiva.

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    1.3 Relaes entre discurso e memria

    A memria corresponde, desde um ponto de vista psicologista, a fatos,

    momentos e imagens que o sujeito armazena em sua memria individual.

    (PCHEUX, 2010, p.50) No entanto, para a Anlise do Discurso, a memria se

    constri socialmente, a partir dos sentidos que advm da memria mtica,

    daquela que resulta das prticas sociais, bem como da que construda pela

    Histria.

    Em Anlise do Discurso, a memria no pode ser concebida como uma

    reunio de fatos homogneos, acumulados ao longo do tempo, e que podemos

    acessar em qualquer circunstncia. A lngua, os sujeitos, a vida so falhos,

    cheios de intervalos e intersees que precisam se interrelacionar para existir,

    no h homogeneidade entre esses elementos. O discurso, os sujeitos e a

    memria fazem parte de um jogo que se constri de forma flexvel, com falhas

    e heterogeneidade, que ganha sentido a partir de sua constituio social,

    histrica e ideolgica e do entrecruzamento com novos acontecimentos

    discursivos.

    Para Pcheux, em o Papel da memria (2010), h dois tipos de

    acontecimentos discursivos que buscam inscrever-se na memria: aquele que

    no chega a inscrever-se na memria social, dado seu carter pouco

    significativo dentro de uma sociedade; e o acontecimento que absorvido pela

    memria coletiva, como se no tivesse acontecido. Este ltimo sim social e,

    justamente por esse fato, se inscreve na memria, uma vez que resultado de

    construes scio-ideolgicas e histricas. Logo, podemos entender a memria

    discursiva:

    Como estruturao de materialidade discursiva complexa, estendidaem uma dialtica da repetio e da regularizao: a memriadiscursiva seria aquilo que, face a um texto que surge comoacontecimento a ler, vem restabelecer os implcitos(...) de que sualeitura necessita: a condio do legvel em relao ao prprio legvel.(PCHEUX, 2010, p. 52)

    A regularizao resulta da repetio de estruturas da materialidade

    lingustica, como elementos do lxico e do enunciado. Ao se repetir,

    regularmente, determinadas estruturas lingusticas, tem-se a retomada, atravs

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    de processos parafrsticos, dos sentidos implcitos nestas estruturas. Esta

    uma discusso realizada por Pcheux em consonncia com os postulados de

    Achard, tambm em o Papel da memria. Conforme o autor, as regularidades

    discursivas so instveis e suscetveis a mudanas na medida em que as

    mesmas entram em contato com um novo acontecimento histrico, logo o

    acontecimento desloca e desregula os implcitos associados ao sistema de

    regularizao anterior. (PCHEUX, 2010, p. 52) Diante de tal reflexo,

    entendemos que a questo dos implcitos vai mais alm da simples retomada

    de um sentido primeiro estabelecido por um processo de regularizao e

    instaurado na memria de um dito. Os acontecimentos discursivos rompem

    com a estabilidade de sentidos que os implcitos cobram, isto , fazem ruir o

    que Pcheux (ibid) chamou de estabilizao parafrstica.

    Sobre os implcitos, vale salientar que no tratamos dos implcitos de

    forma pragmtica, mas como o que, em AD, chamamos de pr-construdos,

    isto , elementos que j foram mencionados em outros discursos e que, agora,

    atravessam o novo acontecimento histrico. Os implcitos se constroem a partir

    da repetio de formas enunciativas que geram, por conseguinte, uma

    regularizao dessas repeties dentro do jogo discursivo. A essas

    regularizaes, podemos chegar atravs das remisses, das retomadas, da

    parfrase. A questo saber onde residem esses implcitos: ausentes em sua

    prpria presena.(ibid, p. 52) E, justamente, por estarem ausentes que os

    implcitos permitem enxergar que o texto possui brechas que do margem

    busca de sentidos para preencheraquilo que no est ali, no texto, mas que

    faz parte da memria discursiva, a qual podemos acessar atravs das

    regularizaes das formas enunciativas. A repetio dos enunciados nos d a

    impresso de que estes j nasceram colados ao acontecimento(DE NARDI,

    2003, p. 69), no entanto sabemos que essas repeties sofrem alteraes ao

    entrarem em contato com novos acontecimentos discursivos. A estrutura

    repetida apenas aponta para um referente, pois est inserida em um discurso,

    heterogneo e poroso, o qual logo revelar as brechas que permitem perceber

    novos sentidos atribudos mesma estrutura.

    Como afirma Pcheux (1969), o discurso se estabelece sempre sobre

    um discurso prvio (...). H uma relao dialgica que se estabeleceinterdiscursivamente, na retomada de dizeres, h um dilogo entre o dito no

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    momento da enunciao com o seu sentido de outrora ou com sua formulao-

    origem. Muitas vezes, o sentido presente no ato enunciativo j no

    corresponde formulao-origem, no h identidade de sentido com o valor

    original do dito, este se perdeu ao longo de sua existncia social e histrica.

    Essa perda nos mostra como as enunciaes refletem a porosidade,

    flexibilidade e heterogeneidade do discurso, posto que este acompanhar os

    movimentos de mudanas sociais, histricas e ideolgicas, perdendo e

    recebendo sentidos advindos de distintos discursos.

    Se, conforme ns o cremos, a memria coletiva essencialmenteuma reconstruo do passado, se ela adapta as imagens dos fatosantigos s crenas e s necessidades espirituais do presente, o

    conhecimento do que estava na origem secundrio, senoabsolutamente intil, visto que a realidade do passado no est maisali, como um modelo imvel, ao qual seria preciso conformar-se. (HALBWACHS, 1971, p.7)

    No podemos falar em sujeito enquanto indivduo provido de inteno,

    quando pensamos no sujeito do discurso nos referimos a sujeitos que

    enunciam a partir de um lugar de dizer pertencente a uma memria coletiva.

    Esse dizer no se limita a uma mera identificao de significados, pertencentes

    memria semntica que remete ao que est na mente dos indivduos.

    Negligenciam-se - ao pensar no sujeito como indivduo, consciente de seu dizer

    e de suas intenes - as dimenses social, coletiva e histrica dos enunciados.

    A Anlise do Discurso defende o no apagamento dessas dimenses, uma vez

    que toda produo enunciativa est vinculada a pressupostos sociais.

    Novos acontecimentos discursivos tendem a desequilibrar as

    regularizaes, uma vez que produzem novos sentidos, levando-nos a

    recuperar outras memrias, as quais mudam o lugar daqueles sentidos queestavam associados a outras regularizaes. H, logo, um constante jogo de

    resgate do que est na memria discursiva, atravs das retomadas, da

    tentativa de compreender as regularizaes discursivas, bem como de

    preencher as lacunas que o discurso traz consigo. Desta forma,

    (...) volta-se o olhar, ento, para a rede de formaes discursivas emque o discurso em questo est inserido, sendo mister lembrar que

    esse retorno, no entanto, nunca pura reproduo, como se odiscurso fosse a imagem no espelho desse dizer anterior que retoma,mas antes re-significao do j-dito que apontar tanto para o sentido

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    j-posto, quanto para novas possibilidades de produo de sentidos.(DE NARDI, 2003, p. 77)

    H um momento no discurso em que os pr-construdos no so mais

    recuperveis, ou seja, o sentido do dito no reside mais na suposta identidadesignificativa de um enunciado. Temos assim um acontecimento que

    absorvido na memria, como se no tivesse ocorrido,(Pcheux, 2010, p. 50)

    de forma que, em AD, ocorre um distanciamento do que est supostamente

    evidente em uma proposio. Questiona-se a estabilidade dessa materialidade

    lingustica, pois esta opaca e, muitas vezes, j no permite reconstruir um

    dito, recuperar uma memria. Quando os pr-construdos no podem mais ser

    recuperados, significa que os acontecimentos discursivos, recuperados pela

    repetio da materialidade lingustica, j foram resignificados, recebendo novas

    regularizaes e novos valores que j no remetem ao que, inicialmente,

    marcava a sua estabilidade significativa. Ao longo da histria, e no jogo

    discursivo, a imagem do dito se perde sem, muitas vezes, inscrever-se na

    memria.

    O sujeito, inscrito em uma FD, realizar movimentos nos mbitos do

    enunciado e da enunciao para conferir sentido ao texto, sendo o enunciado,

    conforme Courtine (1999), o lugar da forma, do repetvel e a enunciao, o

    espao do ato enunciativo, ou seja, o eu, o aqui e o agora dos discursos

    (ibid). O enunciado est na ordem do intradiscurso e a enunciao, do

    interdiscurso. H formas enunciativas que podem se repetir em distintos

    discursos, j sem recuperar sua formulao-origem (ibid). No movimento que

    se realiza entre intra e interdiscurso, entendemos que, de acordo com Courtine,

    o primeiro se realiza em um espao horizontal, ou seja, nas relaes de ordem

    lingustica no interior do discurso, tais como as citaes, repeties, parfrases,

    etc. J o interdiscurso, ocorre verticalmente, neste espao, o sujeito enunciador

    retoma discursos atravs dos pr-construdos, uma vez que h sempre j um

    discurso (...) um enuncivel que exterior ao sujeito enunciador. (COURTINE,

    1999, p.18) A relao indissocivel entre inter e intradiscurso estabelece entre

    si uma relao dinmica, uma vez que representam, respectivamente, o

    espao de construo do pr-construdo e aquele de sua enunciao por um

    sujeito. (DE NARDI, 2002, p. 94) Parte-se do intradiscurso, da materialidadelingustica que o constitui, para promover um dilogo com os discursos que

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    perpassam dita materialidade, interpelando-o, ressignificando-o. Pelo fato de o

    discurso ser heterogneo, que se torna possvel que haja essa interpelao,

    a ponto de desregular a memria de um dito, fazendo com que novos sentidos

    se inscrevam em um dizer, apagando a memria primeira nele inscrita.

    Nossa preocupao no tratamento do texto literrio nos livros didticos

    consiste, sobretudo, no apagamento de memrias para ceder lugar a anlises

    que as apagam por impedir reflexes sobre questes que no se refiram ao

    que est na ordem da materialidade lingustica. Logo, o papel da memria um

    importante aporte terico da AD francesa que nortear, no presente trabalho,

    as reflexes sobre o texto literrio nos livros didticos, utilizados no processo

    de ensino-aprendizagem de E/LE no Brasil.

    1.4 O discurso na lngua do out ro

    Um ponto importante para a tessitura deste trabalho a concepo da

    lngua adotada. De acordo com os pressupostos tericos da AD, posicionamo-

    nos para definir lngua como registro de uma historicidade, como possibilidade

    de falhas e interditos, a lngua est na ordem da opacidade. Lngua, em AD,

    corresponde materialidade onde os discursos se realizam, por isso afirmamos

    que a lngua opaca, uma vez que seus signos lingusticos por si s nada

    dizem, estes esto sempre vinculados a uma materialidade que da ordem

    social, histrica e ideolgica. Vive-se em um constante intento de definir o que

    se diz nessa lngua, dado que este dito no est claro devido opacidade

    constitutiva da lngua.

    Ao decidir aprender uma lngua estrangeira, o sujeito busca antes de

    tudo vivenciar uma nova experincia. A lngua do outro nos pe em contato

    com o novo, um novo viver, um novo modo de sentir e enxergar a vida. O

    discurso, tendo como forma material uma lngua diferente da materna, leva-nos

    a pensar nos movimentos de alteridade que se estabelecem entre os sujeitos

    de ambas as sociedades: a da lngua materna e a da lngua estrangeira.

    Portanto, dentro do processo de ensino de uma lngua estrangeira, faz-se

    necessrio aclarar qual a concepo de lngua pensada para tal fim.

    O presente trabalho concebe lngua como materialidade do discurso,conforme Pcheux, em Semntica e Discurso (2009), ou seja, h, no que

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    constitui a linguagem, discursos que se constroem sob uma base ideolgica,

    social e histrica. A lngua materializa esse discurso, atravs de sua estrutura.

    No buscar viver uma nova experincia pela lngua do outro, temos uma nova

    estrutura que traz consigo discursos prprios da sociedade desse outro, bem

    como um movimento que pe o aprendiz em contato com os discursos de sua

    prpria sociedade.

    Em Anlise do Discurso, definir lngua representa um desafio, sobretudo

    no que se refere ao embate com o carter cientfico que a Lingustica ocupou-

    se em conquistar. Pensar nos efeitos discursivos resultantes da anlise da

    interrelao entre a materialidade lingustica e a discursiva fundamental para

    que o processo de ensino-aprendizagem de lngua estrangeira seja concebido

    de modo a no dissociar lngua, sujeito e discurso.

    Durante muito tempo, houve nos estudos da linguagem a preocupao

    em conceber a lngua como transparente, centrando-se no que supostamente

    possvel de analisar e comprovar, ou seja, no que gramatical. Sabemos que a

    busca da cientificidade, por parte da Lingustica, centrou-se nesse aspecto da

    linguagem, enfatizando a determinao do possvel (gramatical) e do

    impossvel (agramatical) da lngua (DE NARDI, 2003, p. 68). Como sabemos,

    definir o que certo e errado dentro da lngua tornou-se uma das razes que

    conferiram Lingustica seu carter cientfico.

    A AD compreende a lngua como incompleta, com lacunas, com falhas

    que do margem a uma profuso de sentidos que s so possveis na medida

    em que a materialidade lingustica e a discursiva dialogam. atravs do que

    no est bvio, do que falha dentro de um dizer, supostamente coerente e

    coeso, que se pode acessar elementos que esto muito alm do que consta na

    materialidade lingustica. Como lembra De Nardi (2003, p. 68), trabalhamos ,

    portanto, com essa lngua (...) lugar em que se fala do que no pode ser dito,

    daquilo que est ausente mas faz eco.

    O movimento de busca de completude, a tentativa de preencher o que

    no est dito no texto, enquanto materialidade lingustica, bem como de

    compreender as falhas existentes no texto - entendendo falha como aquilo que

    no possvel recuperar ou entender apenas na superfcie textual o

    objetivo ao qual se dedica a Anlise do Discurso. O anseio por entender oporqu tal dito se diz de uma forma e no de outra leva o leitor a enveredar no

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    universo dessas palavras para buscar quais elementos de ordem discursiva

    influenciam na construo do dito.

    As intercesses existentes entre lngua, sujeito e discurso, defendidas

    pela AD, refletem a concepo de sujeito da referida corrente, um sujeito que

    se constitui no discurso, assumindo uma posio-sujeito ao identificar-se com

    uma FD ou negando-a, no caso do mau sujeito, descrito por Pcheux. Todo

    esse processo se instaura na lngua e se materializa discursivamente. Como

    afirma De Nardi (2003, p. 80), a lngua isolada de sua realizao discursiva a

    lngua sem sujeito, a lngua sem histria, a lngua sem memria elemento

    amorfo, pura estrutura, lngua esttica, sem movimento, sem sentidos.

    No jogo discursivo, no h transparncias de sentidos, h sim um

    sentido dominante" (ibid. p. 69), que se instaura pela regularizao,

    proveniente das repeties enunciativas, entretanto h tambm o

    apagamento/esquecimento dessas regularizaes, logo no h um sentido

    dominante, nico que no seja passvel de sofrer modificaes.

    Entender a lngua, em AD, pensar que o histrico e o cultural j no

    precisam mais encontrar um lugar margem da lngua para acomodar-se, eles

    esto no seu interior, atravessando-a, constituindo-a, assim como constitutivo

    o papel que exerce em relao a ela o social (DE NARDI, 2003, p. 70). Logo,

    concebe-se a lngua como produto social, e cabe ao analista do discurso

    identificar o qu da materialidade lingustica nos levar perceber os movimentos

    do discurso. No se concebe a materialidade lingustica como um fim em si

    prprio, mas como incessante buscar sentidos que falam e se entrecruzam no

    jogo discursivo. Diante do exposto, a lngua no pode se dissociar do discurso,

    ou seja, tambm a lngua est atravessada pela ideologia e pela histria.

    Fugimos da literalidade do obvio, buscando produzir sobre o discurso um

    gesto de interpretao, o qual o lugar em que se tem a relao do sujeito

    com a lnguaOrlandi (1996, p. 46). No se pode falar, em AD, que a lngua

    pertence, nica e exclusivamente, a sujeitos individuais, pois estes ocupam

    lugares que se vinculam ao conjunto de saberes de uma determinada formao

    discursiva, dando voz a uma coletividade.

    Ao buscar aprender uma lngua estrangeira, o sujeito - j constitudo

    social, histrica e ideologicamente dentro das redes discursivas de suasociedade, materializadas em sua lngua materna realizar novos

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    movimentos na tentativa de acessar esse sujeito da lngua estrangeira, tambm

    constitudo discursivamente. Busca-se mais que alcanar essa lngua, mas

    realizar um movimento de alteridade na tentativa de conhecer e compreender,

    aceitando ou no, como est constitudo scio-historicamente o outro dessa

    nova lngua. A anlise dos discursos desse outro responsvel por mobilizar a

    memria daquela sociedade e o que ideologicamente est em seu cerne,

    compreendendo, reproduzindo discursos ou modificando-os ao mesmo tempo.

    Dessa forma, o sujeito aprendiz da lngua estrangeira encontra um lugar de

    dizer (ORLANDI, 1996, p. 80) na lngua do outro, a partir do seu prprio lugar

    de dizer, sem neg-lo, mas o interrelacionando com o outro.

    Ao se inscrever no arcabouo discursivo de uma lngua estrangeira,

    ratifica-se o fato de que o sujeito no pode ser considerado autnomo, dono de

    seu dizer, tampouco que o discurso est fechado em si prprio, que no sofre o

    atravessamento de memrias e acontecimentos discursivos outros, impedindo

    que haja dilogos com novos discursos, inclusive em outras lnguas.

    Sabemos que o sujeito incompleto e interpelado por memrias e novos

    acontecimentos discursivos. Logo, podemos afirmar que o efeito-sujeito,

    decorrente do contato com novas formas-sujeito dos discursos da lngua

    estrangeira, permite com que este sujeito se inscreva, busque um lugar dentro

    dessa nova lngua.

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    1.5 Lngua e literatura: realizaes discursivas em lngua estrangeira

    A leitura de qualquer texto, literrio ou no, mobiliza no leitor a busca por

    referentes discursivos, inscritos na memria, para que este possa recuperar o

    que lhe permita dar sentido ao que l. Esta memria corresponde h uma srie

    de sentidos entrecruzados da memria mtica, da memria social inscrita em

    prticas, e da memria construda do historiador, tal como afirma Pcheux

    (1997, p.50). No devemos conceber a memria como um simples local de

    armazenamento de informaes. Dentro dos postulados pecheuxtianos, a

    memria mais que esse lugar, o espao no discurso onde as experincias

    histricas e sociais, absorvidas inconscientemente, se entrecruzam e dialogam.

    Todo discurso, portanto, instaura para o sujeito um encontro entre esse

    novo dizer e o que ele traz com o que est inscrito na memria. A partir desse

    encontro, o leitor motivado a questionar o que l. No se pode entender um

    texto como um todo acabado que encerra seus sentidos em si mesmo.

    Partimos da materialidade lingustica para entender como o discurso se realiza

    na lngua. Temos, em AD, o que est no mbito do intradiscurso, estruturas

    que se relacionam, horizontalmente, no interior do texto; temos, tambm, o

    interdiscurso que nos remete a uma no-linearidade, que se refere relao

    entre os discursos, ao atravessamento que estes sofrem por discursos e

    ideologias de distintas ordens. O que est no mbito do interdiscurso o que

    interessa, especialmente, AD, pois se trata de um movimento de retomada de

    dizeres, de pr-construdos, pelo qual o sujeito encontrar lugar no discurso na

    lngua do outro.

    Na escritura de textos literrios, o autor no nico, tampouco munido

    de meras intenes, como j sabemos, ele est interpelado pela ideologia e

    produz o seu discurso a partir de uma posio no interior da FD em que est

    inscrito, a qual, por sua vez, suscetvel ao atravessamento de outras FDs. Na

    materialidade lingustica de um texto, encontramos, portanto, as marcas da

    posio sujeito ocupada na FD com a qual se identifica. A partir da leitura do

    texto literrio, produzido por esse autor, que corresponde, antes de tudo, a um

    lugar no interior de uma rede discursiva, cada leitor recupera memrias

    individuais e coletivas para dar sentido ao que l, produzindo efeitos de sentidoe assumindo posies em relao ao dito. Essas retomadas ocorrem, como

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    postula a Anlise do Discurso, a partir da anlise de quais elementos da ordem

    lingustica - isto , do intradiscurso - permitem ao leitor direcionar-se ao

    interdiscurso, para ressignificar o dito, enveredando por suas falhas e brechas

    na busca de outros/novos sentidos.

    Todo texto literrio, ou no, se constri sobre uma base estrutural, sobre

    uma forma. Sabemos que, em AD, essa forma nos permite acessar o que est

    alm dela mesma, isto , buscar aquilo que definimos como discurso. Portanto,

    incongruente que no ensino de lnguas continue existindo a bipartio:

    lngua/literatura.

    necessrio, como afirma Pcheux, multiplicar as relaes entre o que

    dito aqui, dito assim e no de outro jeito, com o que dito em outro lugar e de

    outro modo, a fim de entender a presena de no ditos no interior do que

    dito. (2006, p.44) Relacionar todas essas nuances dentro do texto literrio,

    resgatando e resignificando memrias a partir da leitura desses textos em

    lngua estrangeira, fundamental para que se possa estabelecer relaes

    entre a materialidade lingustica e a discursiva, ou seja, o que da superfcie

    textual aponta para elementos extralingusticos e, por conseguinte, seus

    discursos.

    Acreditar que a literatura traz implcitos, no sentido defendido pela

    Pragmtica, recuperveis atravs da materialidade lingustica em uma relao

    de imediatismo contextual, prejudica o deslocamento de sentidos que a

    literatura produz. No se permite, assim, que o leitor v mais alm daquele

    contexto. O verdadeiro implcito est nesse alm, consiste no que Paul Henry

    (1997) chamou de pr-construdos: aquilo que est sempre j a, na ordem

    histrico-social4, ou seja, nas enunciaes que nos remetem a uma memria,

    instaurada em uma sociedade, que traz consigo uma ideologia, e que se

    inscreve inconscientemente na memria coletiva dessa sociedade, ganhando

    voz no discurso atravs de seus sujeitos.

    Refletir sobre a insero da literatura nas aulas de lngua estrangeira

    nos permite pensar, ainda, em sua relao com o elemento cultura.

    Frequentemente, no ensino de lnguas estrangeiras, em uma tentativa de levar

    elementos culturais, entre eles a literatura, para o processo de ensino-

    4Serrani, 2010, p. 64

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    aprendizagem, utilizam-se mtodos os quais inserem atividades que

    representam hbitos em situaes cotidianas e previsveis de uso da lngua.

    Pensa-se que, conhecendo estas situaes e o emprego das formas

    lingusticas, o estudante ser capaz de reproduzi-las uma vez que se encontre

    em semelhante situao. Outros aspectos culturais tambm se fazem comuns

    nos livros didticos de lngua estrangeira, trazendo aspectos da cultura daquela

    lngua, representados por festas tpicas e esteretipos, por exemplo. Nenhuma

    reflexo acerca do viver, diferente desse imposto pelos esteretipos,

    fomentada, nem ao menos sobre os prprios esteretipos.

    Entendemos, assim, que cultura no apenas um registro de fatos, tidos

    como tpicos de uma sociedade, mas como um lugar de interpretao (De

    Nardi, 2007, p.54), no qual os sujeitos dialogam com os discursos construdos

    dentro dessa sociedade, a partir das experincias sociais, histricas e poltico-

    ideolgicas vivenciadas dentro desse novo espao social. Esses discursos

    esto presentes na linguagem, nas diversas formas de expresso com as quais

    o aprendiz entra em contato, aceitando-as ou rechaando-as. Entendemos que

    a cultura:

    atravessa, portanto, os processos identificatrios por que passa osujeito, j que constitui o cerne da organizao ou sua relao com ooutro. Para a Psicanlise, o sujeito mergulha na cultura assim que seinsere na linguagem e, por meio dela, se constitui como tal,movimento que implica, necessariamente, uma relao com o outro,um familiar-estrangeiro, fonte de fascinao e repulsa ao mesmotempo. (DE NARDI, 2007, p. 52)

    Esse conceito de cultura proporciona aos discentes um processo de

    identificao real com a lngua do outro, com sua materialidade lingustica e

    discursiva. H, em muitas prticas de ensino, o apagamento da histria queconstitui essa cultura e sua sociedade. Nos trabalhos que buscam relacionar a

    Anlise do Discurso com ensino-aprendizagem de lnguas estrangeiras, o

    maior desafio consiste em refletir sobre a forma material dessa nova lngua

    sem dissoci-la de sua materialidade discursiva, ou seja, sem desconsiderar a

    histria, os aspectos poltico-sociais e ideolgicos que os discursos trazem

    consigo.

    Serrani (2003, p.289) fala daimportncia de no desvincular a lngua dainter-relao sujeito-lngua-discurso, ao conceber o processo de aprendizagem

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    de lnguas em contexto educativo. Como sabemos, cada sujeito,

    inconscientemente, inscreve-se em uma formao discursiva e assume

    posies sujeito no jogo discursivo, provocando efeitos de sentido. O contato

    com o discurso literrio em lngua estrangeira, pertencente a uma cultura

    diferente daquela do sujeito aprendiz, faz com que memrias sejam resgatadas

    a fim de se entender as questes que surgem a partir do encontro com os

    discursos inscritos na lngua estrangeira, ou seja, do encontro com essa

    sociedade e sua cultura.

    Nesse jogo, a literatura de lngua estrangeira tem papel fundamental,

    pois est escrita em uma nova materialidade lingustica diferente da materna, e

    nos permite submergir em um mundo de dizeres, ditos na histria e guardados

    na memria desse outro da lngua estrangeira.

    Vrios so os gneros textuais, tais como: quadrinhos, receitas,

    propagandas, que permitem essa imerso, entretanto os gneros literrios

    trazem consigo o ser sujeito nessa nova sociedade. Mais que a introduo da

    literatura, busca-se pensar no processo de ensino-aprendizagem de espanhol

    como lngua estrangeira (doravante E/LE), pensando na memria que o texto

    literrio traz consigo e nas relaes interdiscursivas que nele se materializam.

    Dessa forma, este trabalho se volta para as reflexes produzidas no

    campo da AD pecheuxtiana para refletir sobre o tratamento do texto literrio

    nos livros didticos adotados no atual quadro de ensino de E/LE no Brasil.

    Prope-se aqui o desenvolvimento de uma reflexo em que se conceba o

    alunado como constitudo social, histrica e ideologicamente, sendo capaz de

    enveredar e mobilizar os discursos de seu prprio universo, para poder realizar

    o movimento de mudana de lugar discursivo, isto , partindo do lugar que ele

    ocupa em sua lngua materna, para um novo lugar na lngua estrangeira.

    Pretendemos, sobretudo, ratificar, com este trabalho, a importncia de

    se conceber a literatura como materialidade discursiva, capaz de colocar o

    aprendiz da lngua espanhola em contato no somente com a materialidade

    lingustica deste idioma, mas com os discursos inscritos, recriados e

    resignificados dentro da cultura que constitui esse outro da LE. Ao dialogar

    discursivamente com esse outro, buscamos levar os discentes a refletir,

    tambm, sobre os discursos de sua prpria sociedade. Uma vez que, assim,

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    compreendendo em que universo se vive, torna-se possvel dialogar com o

    novo, com o outro da lngua estrangeira.

    2. Anlise do Discurso e o texto literrio

    Na busca por estabelecer um dilogo com o outro da lngua estrangeira,

    a literatura traz um importante aporte para o processo de ensino-aprendizagem

    de espanhol como lngua estrangeira. Ao entrar em contato com o texto literrio

    em LE, no com outra pessoa, atravs da figura do autor do texto, que o

    leitor se encontra, mas com um espao dentro de um tempo, uma sociedade,

    uma ideologia e um lugar: o lugar do outro.

    Concebemos este outro5 como um sujeito imerso num jogo discursivoque tagarela no texto literrio, como diria Barthes, em o Prazer do Texto

    (2010, p. 9), fazendo ecoar vozes de distintas ordens, mostrando quo opaca

    a lngua que diz sem dizer. Nos casos dos textos literrios, essas vozes

    convidam o leitor, atravs de seus versos e de sua prosa, a enveredar-se em

    meio a essas vozes que se entrecruzam e tagarelam constantemente,

    conduzindo o leitor incansvel procura que a literatura compele na busca por

    sentidos.Verificamos6que nos livros didticos aprovados pelo PNLD Programa

    Nacional do Livro Didtico na rede de ensino, no s na regular: ensino

    fundamental e mdio, mas tambm nos institutos privados, cujos parmetros

    de ensino so regidos pelo Marco Comn Europeo de Referencia da la

    Enseanza de Lenguas, a literatura, quando estudada, no ocupa lugar como

    discurso. Nos materiais didticos de E/LE no Brasil, o texto literrio, na maioria

    dos casos aqui analisados, como veremos mais adiante, no tagarela com osdiscentes. A falta de dilogo entre os discentes e o texto literrio contribui para

    que estes no possam conhecer e inserir-se na lngua do outro, para assim

    ocupar posies de sujeito nas redes de saberes que se materializam na lngua

    estrangeira.

    Ainda predomina nas prticas de ensino de LE, no Brasil, uma

    concepo de ensino-aprendizagem de lngua, na qual ela estudada a partir e

    5Retomamos aqui a definio sobre o outro esboada na introduo do presente trabalho.

    6Como demonstraremos no captulo 3 deste trabalho.

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    apenas por sua funcionalidade. Isto , a partir de situaes de uso muito

    especficas da lngua: como dilogos em restaurantes, em hotis, como pedir

    informaes, etc, o aluno deve se apropriar das formas lingusticas da lngua

    estrangeira para utiliz-las em contextos pr-definidos para atender a uma

    situao imediata de uso da lngua. O social, conforme esta concepo, limita-

    se a situaes de uso da lngua, excluindo destes momentos o carter

    discursivo da lngua e de sua sociedade. Como a funcionalidade da lngua o

    objetivo principal, tem-se, ento, uma justificativa para excluso do texto

    literrio das salas de aula, uma vez que este no cumpre funes sociais no

    dia a dia do falante de uma lngua estrangeira. Quando a literatura recebe

    algum tratamento nos livros didticos de E/LE, de forma geral, utilizada como

    pretexto, isto , como suporte textual para anlises lingusticas, a fim de

    implantar um gnero textual que aporte, ao material didtico, elementos de

    carter potico, fragmentos de contos, que trazem a presena de grandes

    nomes ttulos e autores da literatura, porm sem nenhum indicativo de que o

    professor deve ocupar-se efetivamente destas obras. Tal afirmao ser

    corroborada nas anlises realizadas mais adiante.

    Refletiremos sobre a importncia de estudar o texto literrio na aula de

    LE, ratificando o fato de que garantir o domnio do uso da lngua para diversas

    situaes cotidianas no permite ao aluno refletir discursivamente dentro deste

    novo universo, da lngua do outro, no qual ele est inscrevendo-se.

    No processo de ensino-aprendizagem de E/LE, concebemos os

    aprendizes dessa nova lngua como sujeitos discursivamente inseridos em uma

    sociedade, a da lngua materna, que esto caminhando ao encontro de uma

    nova discursividade, a da lngua do outro. O texto literrio proporciona este

    encontro, das vozes7 que ecoam na lngua materna e na lngua estrangeira.

    Para compreender melhor a concepo de Literatura aqui defendida, deter-nos-

    emos em uma discusso sobre a relao entre lngua, escrita, literatura e

    discurso, bem como sobre as questes de autoria no texto literrio e o papel do

    leitor.

    Conforme a Anlise do Discurso, a lngua , para o escritor, a

    materialidade que lhe permite a construo da obra literria, entretanto esta

    7Utilizamos a palavra vozes, ao longo do texto,como sinnimo de discursos.

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    no a lngua do escritor, mas a dos homens, sendo assim lngua, aqui,

    compreendida como objeto social por definio, no por eleio. (BARTHES,

    2004, p.10)Por mais liberdade que o sujeito emprico/autor pense possuir para

    realizar seu trabalho, ele est manejando uma lngua que opaca na qual se

    inscreve uma memria, ou seja, pela materialidade da lngua pode sempre

    ressoar algo dito anteriormente, em outros lugares sociais e histricos. A

    memria constituinte da lngua no simplesmente abstrada pelo escritor, a

    favor de suas intenes, visto que essa abstrao no pode ocorrer na

    linguagem, pois memria e lngua so indissociveis. Enquanto sujeito

    discursivo, tambm constitudo social e historicamente, o escritor ocupa uma

    posio de sujeito, conforme a formao discursiva na qual est inserido, e a

    partir dela que produz sua obra.

    Para pensar melhor a questo da lngua no texto literrio, tomaremos

    como base os postulados de Roland Barthes, em O Grau Zero da Escrita

    (2004). Conforme os referidos princpios tericos, defendemos que o autor do

    texto literrio no escreve uma lngua, este escreve e inscreve discursos de

    uma sociedade, de um tempo, de um lugar social e ideolgico, sendo tais

    discursos materializados linguisticamente. A lngua traz consigo verdades, que

    s ganham sentidos e se resignificam, se pensarmos em quanta densidade e

    diversidade de valores pode haver em uma palavra quando a retiramos de sua

    condio de forma naturalmente solitria, para pens-la dentro de um discurso.

    Como afirma Barthes (2004, p. 15),

    (...) a escrita permanece ainda cheia de lembrana de seus usosanteriores, pois a linguagem nunca inocente: as palavras tm umamemria segunda que se prolonga misteriosamente no meio dassignificaes novas. A escrita precisamente esse compromisso

    entre uma liberdade e uma lembrana(...)

    Como j sabemos, em AD, nenhum sujeito constitutivamente livre para

    expressar ideias, h um passado social e histrico que atravessa seus

    discursos, levando-os a ocupar uma determinada posio-sujeito. Ao falarmos

    em sujeito, no estamos, portanto, remetendo-nos ao sujeito emprico,

    consciente de seu dizer, uma vez que como nos mostra Pcheux, o sujeito

    constitudo social, histrica e ideologicamente, identifica-se com os saberes de

    uma FD, ocupando uma posio a partir da qual enuncia.

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    A liberdade a qual se refere Barthes, na citao acima, concerne s

    tomadas de posio que esse sujeito, pensado pela AD, realiza no discurso.

    Ou seja, o sujeito se inscreve em uma formao discursiva, podendo, tambm,

    dialogar com os saberes de outras formaes.

    A escrita do texto literrio nos traz a falsa ideia de que o autor do texto

    atua emprica e livremente sobre sua produo. Todavia, sabemos que essa

    produo no apenas sua, mas resultado de sua insero em um conjunto de

    saberes discursivos e do dilogo com outros discursos. Os textos literrios so

    oriundos de realidades sociais, temporais e histricas, por conseguinte

    permitem o encontro dos discursos destas realidades. O escrito, em linhas e

    versos, inscreve na Histria esses discursos, que lhe so constituintes, logo

    fogem ao controle da intencionalidade de um sujeito concebido como emprico.

    O sujeito-autor do texto literrio trata de questes que ele mesmo no domina.

    No processo de escritura, o autor se encontra diante da incapacidade de

    dominar o que se diz com o dito nas estrofes e pargrafos, isto , de dominar a

    infinidade de sentidos que so atribudos ao texto cada vez que ele lido.

    Durante os tempos burgueses, como afirma Barthes (2004), muitos

    autores estabeleceram uma forte preocupao em trabalhar com o controlvel,

    nesse caso, a forma da lngua. Essa preocupao, por si s, j reflete uma

    sociedade que ainda no se compreendia como mutvel e aberta a

    interpelaes de distintas ordens, o que explica a busca pelo domnio daquilo

    que, supostamente, se pode controlar.

    Por muitos anos, e ainda nos tempos atuais, a literatura foi vista como o

    exemplo do bem escrever, do que linguisticamente correto. Essa viso

    reduziu a literatura forma dentro das salas de aula de ensino de lnguas: o

    texto literrio como um padro a seguir. Buscar sentidos e valores presentes e

    ausentes no texto literrio esteve, e ainda est em segundo plano. Pretendia-

    se, justamente, ignorar que:

    a forma literria pode provocar os sentimentos existenciais que estoatados ao interior vazio do todo objeto: sentido do inslito,familiaridade, repugnncia, complacncia, uso, homicdio.(BARTHES, 2004, p. 5)

    Conforme afirma Barthes, de Flaubert a nossos dias, a Literatura passoua ser um problema para os estudos da linguagem, problema este que se reflete

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    no ensino-aprendizagem de lnguas. Como na sociedade dos tempos

    burgueses, a nossa atual sociedade encontra na literatura seu lugar de

    prestgio social, porm permanece com a mesma noo de outrora de literatura

    como lugar do inacessvel e da norma culta. A literatura impe obstculos,

    difcil e exige trabalho. O texto literrio se apropria dos saberes de diversas

    formaes discursivas, deslocando-os para o universo verbal, tendo como

    funo maior manter esses saberes em movimento de construo e

    reconstruo de sentidos. Nesse sentido,

    (...) compreendemos com Barthes, ento, que a literatura umaforma de linguagem capaz de destronar a ordem do discurso,possibilitando aos sujeitos a reflexo sobre as subjetividades

    construdas que desencadeiam ininterruptamente osassujeitamentos. (GAMA-KHALIL, 2010, p.188)

    Trabalhar com o texto literrio uma difcil tarefa, como aqui

    mencionado, pois exige o sair da posio daquele que pode controlar um

    mundo de dizeres e suas formas, moldando-as conforme suas intenes.

    Dentro do processo de ensino-aprendizagem, optou-se por permanecer com a

    estabilidade das anlises lingusticas e pouco comprometidas com o poder

    discursivo da literatura. Mesmo no ensino de lngua materna essa umarealidade constante, sendo ainda mais presente no ensino de lnguas

    estrangeiras. Nestes, poucos so os gneros literrios