discussão dialógica de narrativas locativas
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ – UESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: LINGUAGENS E
REPRESENTAÇÕES
VINÍCIUS VITA GORENDER
DISCUSSÃO DIALÓGICA DE NARRATIVAS LOCATIVAS
ILHÉUS – BA
2016
VINÍCIUS VITA GORENDER
DISCUSSÃO DIALÓGICA DE NARRATIVAS LOCATIVAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras: Linguagens e
Representações, da Universidade Estadual de
Santa Cruz, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre.
Área de concetração: Linguística
Orientadora: Profa. Dra. Vânia Lúcia Menezes
Torga
ILHÉUS – BA
2016
G666 Gorender, Vinícius Vita. Discussão dialógica de narrativas locativas / Vinícius Vita Gorender. – Ilhéus, BA: UESC, 2016.
v, 125 f. : il. Orientadora: Vânia Lúcia Menezes Torga. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Santa Cruz. Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagens e Representações. Referências: f. 124-125.
1. Linguística. 2. Literatura eletrônica. 3. Gêneros discursivos. 4. Literatura – Recursos de rede de com- putador. 5. Linguagem e línguas. I. Título. CDD 410
VINÍCIUS VITA GORENDER
DISCUSSÃO DIALÓGICA DE NARRATIVAS LOCATIVAS
Ilhéus, 16/06/2016.
______________________________________________________________
1º Membro
Profa. Dra. Vânia Lúcia Menezes Torga (Orientadora)
Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC
______________________________________________________________
2º Membro
Prof. Dr. Igor Rossoni
Universidade Federal da Bahia
_____________________________________________________________
3º Membro
Profa. Dr. Fabiane Pianowsky
Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Vânia Lúcia Menezes Torga, por seus esforços dedicados a este
trabalho; pelo carinho e paciência, durante esses dois anos de convivência; pelas orientações
concedidas tanto em relação ao trablho quanto à vida.
Ao professor Igor Rossoni e à professora Fabiane Pianowski, por suas valorosas
contribuições na banca examinadora.
A todos os meus professores do Programa, com os quais foi muito bom conviver.
Agradeço por seus ensinamentos para além das propostas de trabalho.
Ao professor André Mitidieri que, na ausência física de minha orientadora, fez as
vezes de coorientador e de amigo e esteve presente em momentos difíceis com boas
indicações de leitura, boas propostas de questionamentos e, acima de tudo, uma alegria
contagiante.
À minha mãe, Aida Vita, por sua presença ubíqua em minha vida, que me faz
caminhar inexoravelmente em direção a ser alguém melhor tanto profissionalmente como em
caráter.
Ao meu pai, Sérgio Gorender, por seu amor incondicional, pelas conversas otimistas,
pelo carinho e atenção.
À Verônica Kataoka, pelo seu apoio incondicional, pelas leituras e exemplo de
determinação.
À Alana Argolo que, durante esse período de estudos e escrita aprofundado, suportou
firmemente ao meu lado as dificuldades.
Aos meus colegas que, durante esses dois anos me incentivaram, suportaram,
acalmaram, pelas conversas e convívio.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
bolsa concedida que contribuiu possibilitando-me chegar aos resultados desta investigação, e
à Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), pela oferta desse curso de Pós-graduação de
excelência.
iv
DISCUSSÃO DIALÓGICA DE NARRATIVAS LOCATIVAS
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo apresentar as narrativas locativas a partir dos conceitos de
gêneros discursivos e cronotopo, ambos de Bakhtin e do Círculo. Para tal, apresentamos
definições já existentes do objeto de pesquisa – narrativas locativas, bem como definições
correlatas, quais sejam: literatura eletrônica e mídias locativas. Em seguida, foram utilizados
os conceitos Bakhtinianos de gêneros do discurso e cronotopo, para demonstrar que as
narrativas locativas podem ser pensadas como um gênero discursivo, bem como propor a
existência de um cronotopo específico desse gênero que foi chamado de cronotopo locativo.
Para ilustrar como os conceitos bakhtinianos se relacionam com as narrativas locativas, foi
analisada a obra Haunted London, procurando demonstrar a existência do cronotopo locativo
e sua relação necessária com a forma como o tempo e o espaço são vistos no momento da
leitura, e ainda a formação do enunciado e como os diversos discursos relacionados interagem
com a construção da obra. Dessa analáse resultou a existência do cronotopo locativo que é
uma forma de tempo e espaço que hibridiza virtual e concreto, de forma que ambos, virtual e
concreto, se tornam facetas de uma mesma existência. Esse cronotopo busca a imersão do
leitor na obra por meio da sobreposição do espaço da obra sobre o espaço concreto e real do
leitor. O espaço virtualizado em camadas de informação é colocado por meio das tecnologias
locativas sobre objetos do cotidiano. Assim, o espaço da obra é o resultado da hibridação dos
objetos que compõem o espaço concreto do leitor e da informação virtual que os sobrepõe. Já
em relação ao tempo, temos uma relação oposta em que o tempo do leitor corta o tempo da
obra, guia e define a sua existência. É o tempo do leitor que controla o fio da narrativa; é
apenas enquanto esse a experimenta que ela acontece. Por fim, conclui-se que existem ainda
muitas lacunas a serem investigadas, sendo assim, espera-se, que esse estudo possa contribuir
com outras pesquisas envolvendo esta temática.
Palavras-chave: Gêneros Discursivos. Cronotopo. Literatura eletrônica. Narrativas locativas.
v
THE CRONOTHOPE OF LOCATIVE NARRATIVES
ABSTRACT
This dissertation aims to discuss the locative narratives as a speech genre and to seek na
specific cronothope that forms this genre. This discussion is based upon the concepts created
by Mikhail Bakhtin during his academic and philosopher’s life. Beyond that we also briefly
discuss the concepts and caracteristics of electronic literature and some of it’s genres, the
locative media and it’s way of functioning and the definitions of locative narratives. As we
started to analise locative narratives as a speech genre we concluded that, as such, it should
have a spefic cronotope that defines it’s utterances. As so, we came to the resolution that this
specifc cronotope could be named locative cronotope, in it, we have some sort of hybrid space
in a way that the space from the artwork is a feature of the readers concrete space and the
locative media virtual constructed space. The time is always the readers time, in a way that
even if the story is an inner one, or maybe it is about historical facts, the narrative happens as
the readers interacts with it, so it’s time is the readers cronological one. In locative narratives
we have a virtual space that comes uppon the readers concrete space as layers of virtual
information augmenting it, at the other hand the readers concrete and also cronological time
guides the construction of the plot. As a new literary genre there are still a lot of space for
future research about the locative narratives, this is just a preliminary study that allow us to
start our understandings about it.
Keywords: Speech genre. Cronothope. Electronic literature. Locative narrative.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. The Jews Daughter – Ao passar o mouse pela palavra azul um bloco de texto é
substituído por outro ................................................................................................................. 43
Figura 2. Deviant: The possession of Christian Shaw – Tela inicial da história ...................... 45
Figura 3. Trecho de Haunted London. Uso de realidade aumentada em um iPhone. .............. 96
SUMÁRIO
RESUMO .................................................................................................................................. iv
ABSTRACT .............................................................................................................................. v
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
1 A LITERATURA ELETRÔNICA ................................................................................. 17
1.1 Literatura eletrônica: novo lugar de leitura ................................................................. 18
1.2 A literatura na era eletrônica ......................................................................................... 21
1.3 Características de ambientes digitais ............................................................................ 23
1.3.1 Imersão ......................................................................................................................... 26
1.3.2 Agenciamento ............................................................................................................... 32
1.4 Literatura eletrônica, arte e literatura .......................................................................... 35
1.5 Gêneros da Literatura Eletrônica .................................................................................. 42
2 GÊNEROS DISCURSIVOS E CRONOTOPO EM BAKHTIN E NO CÍRCULO .. 51
2.1 Uma breve exposição sobre o conceito de gêneros do discurso em Bakhtin e no
círculo ...................................................................................................................................... 52
2.2 Cronotopo: tempo e espaço para Bakhtin e o Círculo ................................................. 59
3 AS NARRATIVAS LOCATIVAS ................................................................................. 74
3.1 A tecnologia móvel digital ............................................................................................... 74
3.2 As mídias locativas: definições, funções e formas de uso ............................................. 79
3.3 Discussão das narrativas locativas: Conceituação, funcionamento, especificidades do
gênero ...................................................................................................................................... 84
4 AS NARRATIVAS LOCATIVAS EM UMA PERSPECTIVA GENÉRICA E
CRONOTRÓPICA ................................................................................................................. 92
4.1 HAUNTED London ....................................................................................................... 111
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 122
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 124
9
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é apresentar o gênero narrativas locativas, tendo como base
teórica os conceitos de gêneros discursivos e cronotopo em Bakhtin e no Círculo. Desse
modo, esperamos construir uma base epistemológica suficiente para discutir os enunciados de
narrativas locativas. Realizamos neste trabalho uma abordagem ampla, trazendo conceitos da
crítica literária contemporânea, da filosofia da linguagem bakhtiniana para analisar as
narrativas locativas.
Escolher Bakhtin como referencial teórico permitiu-nos discutir as narrativas
locativas, além das questões de tecnologia. Analisamos as narrativas locativas em sua relação
com outras obras eletrônicas, em geral, além de: o uso da tecnologia; a existência de relações
formais que delimitam o gênero; a ligação do texto com o espaço; imersão; uso do contexto
etc.
Acreditamos que, ao balizar nossa pesquisa nos conceitos de gêneros e cronotopo,
estaremos apresentando uma abertura, um novo ponto de observação em relação às narrativas
locativas, já que essa abordagem nos permite ir além de discussões limitadas à tecnologia e
pensar as obras eletrônicas também em sua relação linguística, suas características estilístico-
formais, sua relação com gêneros anteriores, tecnologia e gênero, tempo e espaço da narrativa.
Ao propor uma abordagem linguística e literária, delimitamos o nosso trabalho
principalmente a esses dois campos de atuação, sem esquecer, no entanto, que a abordagem
proposta tangencia uma série de outros campos como os da filosofia e da sociologia. O uso
da linguagem, que em geral reporta à vida, é uma forma de atuar sobre mundo, refletindo e
refratando as situações do cotidiano. Usar a linguagem, mesmo que por meio do pensamento,
é um agir social e historicamente localizado, mais um ato em uma cadeia de outros atos que o
precederam e o sucederão.
10
O nosso objeto de pesquisa, as narrativas locativas, é um dos diversos gêneros que faz
parte de um conjunto de gêneros eletrônicos chamados de literatura eletrônica. Esse gênero é
definido, principalmente, mas não exclusivamente, pelo uso de mídias locativas, que são
tecnologias e processos encetados por meio dessas tecnologias, em que a informação digital é
agregada a lugares geográficos específicos. Trazemos essa ideia, pois o termo locativo pode
ser usado para qualquer tecnologia situada geograficamente, tais como os mapas e outros
objetos de localização aí incluídos. Entretanto, neste trabalho, interessa-nos o locativo que se
relaciona com as tecnologias locativas digitais.
Para entender as narrativas locativas, torna-se relevante, primeiro, conhecer a literatura
eletrônica, a qual apresenta obras que utilizam alguma das capacidades de computadores na
expressão de aspectos literários. Reiteramos que falamos em aspectos literários para evitar
discussões sobre o que é ou não literatura. Cada gênero específico de literatura eletrônica é
demarcado por uma forma, também específica, de uso de computadores (digitais), conectados
em rede ou não. Como exemplos, citamos a ficção hipertextual, gênero que se apropria do
hipertexto, os poemas em flash, construídos por meio de programação em flash, e as
narrativas locativas, nosso objeto de pesquisa, que são obras narrativas recebidas por meio de
mídias locativas.
Qualquer obra de literatura eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada, é
construída como um software, e, portanto, é programada em uma linguagem de programação
adequada ao seu gênero; contém informações que precisam ser interpretadas por uma
máquina capaz de processar dados e possui existência genérica dupla. São escritas em uma
linguagem, mas, quando lidas, ou mais especificamente executadas, apresentam outra forma.
Entretanto, a literatura eletrônica é mais do que software, já que sua existência extrapola as
esferas de atividades relacionadas à computação. São relevantes nesse gênero também os
aspectos artísticos, literários e linguísticos, de forma que os gêneros das esferas da arte, da
literatura, da linguagem ressoam nas obras eletrônicas, seja por meio da hibridação de estilos,
seja na apresentação do conteúdo temático ou ainda por alguma similitude na forma
composicional. Essa ressonância do literário nas obras eletrônicas divide, com o uso da
tecnologia, a função de definição do gênero. A ficção hipertextual, por exemplo, usa o
hipertexto em sua composição para apresentar narrativas; já os poemas em flash são, antes de
tudo, poemas; e as narrativas locativas criam obras narrativas, ficcionais ou referenciadas em
uma realidade, que tem como principal característica a relação direta da informação com
locais geográficos específicos.
11
No âmbito da literatura eletrônica, centraremos nossas discussões em nosso objeto de
pesquisa, que são as narrativas locativas, nas quais a história é contada por meio de mídias
locativas, que são e existem, exclusivamente, por meio de tecnologias móveis de
processamento digital de dados. São smartphones, tablets, notebooks e outros aparelhos
digitais, somente quando utilizados para acessar, ou agregar informação a lugares geográficos,
de forma que não são uma existência constante, ou seja, as mídias digitais tornam-se
locativas, quando, funcionando, de forma locativa. Essas mídias locativas utilizam redes
móveis para acessar informações em lugares específicos detectados por meio de GPS - Global
Positioning System – Sistema global de posicionamento. Temos, assim, que, nos usos mais
comuns da internet as informações de qualquer lugar do mundo podem ser acessadas em,
virtualmente, qualquer outro lugar do mundo, por meio de mídias locativas, a informação de
lugares específicos apenas pode ser acessada, quando o usuário interage com objetos
existentes nesses locais específicos.
As narrativas locativas são obras multimídia: misturam áudio, texto, imagem estática e
vídeo, ou seja, a sua construção envolve: roteirização, produção, fotografia, edição e
programação de computadores. Essa separação de funções, entretanto, não faz parte do nosso
objeto de pesquisa neste trabalho. Ainda que a existência desses momentos possa ser
observada de forma individual, já que acontece em esferas diferentes, focaremos apenas no
resultado final do processo: execução da obra em Mídias Locativas.
As informações das narrativas locativas, áudio, vídeo, texto ou imagem, podem ser
construídos em tecnologias não locativas, de forma que, nessa construção, apenas nos
interessam os aspectos linguísticos e literários, apenas apreciáveis por meio da execução do
software-obra. Evitaremos discutir extensamente questões relacionadas aos aspectos
tecnológicos que não tenham relação direta com os usos de linguagem.
Destacamos, ainda nesta introdução a possibilidade de criação de obras locativas sem
o uso de tecnologias digitais ou máquinas capazes de processar dados, ou ainda, obras,
construídas por meio de mídias locativas, que não apresentem diferencial em relação às obras
de outras tecnologias. Um guia turístico, em áudio, de um museu, por exemplo, pode ter uma
série de características comuns com as narrativas locativas: oferecem uma narrativa,
relacionam o conteúdo da informação ao local. Ressaltamos, entretanto, que apenas tratamos
das obras exclusivas das mídias locativas digitais, de forma que possamos fazer um estudo
completo das características do gênero e apresentar, mesmo dentro do inacabamento
12
característico bakhtiniano, limites suficientes para definir uma obra pertencente a esse gênero.
Escolhemos para análise principal a obra Haunted London por apresentar todas as
características que detectamos serem necessárias e suficientes para uma narrativa locativa.
Escolhemos essa obra, também, devido à dificuldade de encontrar outras obras. Destacamos
aqui, que por uma escassez de verba, não pudemos experimentar a obra in loco, tendo
realizado uma leitura em segundo nível por meio de um vídeo apresentado pelos autores.
Propomos neste trabalho que o uso das mídias locativas na recepção das narrativas
locativas represente uma série de mudanças no processo de leitura. A primeira dessas
mudanças é a alteração de um modelo de leitura contemplativa, que prima pelo silêncio, pela
atenção profunda e pela imersão em um mundo ficcional, por um processo ativo, que
demanda a realização de atividades cognitivas e no qual o espaço ficcional se hibridiza ao
espaço concreto. Outra dessas mudanças é que, em narrativas locativas, a leitura demanda a
realização de tarefas específicas, como andar, correr, localizar-se geograficamente, fotografar,
filmar, pesquisar na internet e interagir, no geral, com os locais por meio da tecnologia.
Assim, a interação do leitor com a obra extrapola o entendimento, e esse leitor, além de
perceber e desvendar os caminhos da obra, no sentido metafórico, é requisitado a desvendar
os caminhos, em um sentido geográfico concreto. E, por fim, por meio dessa tecnologia, as
obras construídas apresentam informação nas diversas mídias e, ainda, a possibilidade de
construção em cooperação.
Ao leitor é dada a possibilidade ou a tarefa de interagir com a história, a partir de seu
lugar concreto no tempo e espaço, e a partir daí propomos que esta história realiza-se em um
tempo híbrido entre o real do leitor e o tempo virtual. Ela [a história] existe, a priori, apenas
como potência, em um código de computador. Nas narrativas locativas, o enredo, o tempo e o
espaço da história extrapolam o universo ficcional e existem em uma forma híbrida entre o
virtual e o concreto. Enquanto o enredo se desenrola em um espaço, que chamaremos, de
lugar da narrativa que é virtual, o leitor o experimenta por meio de interações com o seu
espaço concreto, geograficamente localizado. A narrativa é construída em camadas de
informação virtual, que se sobrepõem umas às outras, e aos locais e objetos do cotidiano. A
existência das obras como camadas sobrepostas de informação, apenas acessadas por meio da
interação dos leitores com os locais, permite-nos afirmar que tratamos de um gênero literário
em que os enunciados são tanto experimentados quanto lidos.
13
Acreditamos, também, que as narrativas locativas são um gênero literário em que o
cronotopo da narrativa não pode ser separado do cronotopo real do leitor. Nessas obras, o
tempo e o espaço do leitor misturam-se ao tempo e espaço da narrativa, sendo que esse
cronotopo locativo é resultado dessa união. Esses tempos e espaços, a forma como interagem
com a narrativa e com o mundo concreto, e ainda a forma como interagem com os diversos
“eus” e com os diversos “outros” envolvidos no processo de autoria e leitura são os objetivos
principais deste trabalho. Por se tratar de um objeto de pesquisa relativamente novo e
inexplorado pelas esferas que têm a linguagem como objeto principal, iniciaremos este
trabalho, propondo a investigação das narrativas locativas a partir do conceito de gêneros do
discurso, considerando que essa investigação nos possibilitará, antes de tudo, compreender o
funcionamento dos novos dispositivos na construção literária.
Ao propor uma discussão sobre o gênero discursivo, apontamos para o conceito de
Bakhtin e do Círculo como um aparato teórico e metodológico para pensar o uso da
linguagem, mas também os atos, em geral, envolvidos nas narrativas locativas. O conceito de
gênero bakhtiniano leva-nos a pensar os usos da linguagem a partir dos enunciados concretos
realizados em uma esfera de atividade qualquer, de forma que esse uso de linguagem reflete e
refrata situações diretamente ligadas à vida.
Cada esfera de atividade da vida possui seus enunciados característicos, compostos por
um estilo de uso da linguagem, por uma forma de tratar os conteúdos e por uma estruturação
composicional. Esses enunciados não existem sozinhos no tempo e espaço, mas funcionam
como elos em uma corrente de enunciados: unem os enunciados que o precederam aos que o
sucederão. Os enunciados de uma dada esfera também entram em contato com enunciados de
outras esferas, apresentando semelhanças no estilo, conteúdo temático ou na composição.
Essas categorias nortearão nosso estudo, e, a partir daí, poderemos afirmar que cada
enunciado-obra de narrativa locativa pertence ao gênero narrativas locativas. Esses
enunciados são definidos pelo pertencimento a uma esfera híbrida, e reiteramos que o uso do
termo híbrido remete-nos a Bakhtin e o Círculo, abarcando o uso de tecnologias móveis e de
linguagem literária, além de sofrer influência também de discussões sociológicas e
arquitetônicas. Observemos que Bakhtin (2014), ao discorrer sobre os gêneros, afirma que
“devemos incluir as variadas formas das manifestações científicas e todos os gêneros
literários”, que “todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da
14
linguagem”, e o “caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da
atividade humana”.
Somente esse entendimento do gênero nos permitirá discutir as questões do espaço e
tempo e entender como se estruturam nos enunciados de narrativas locativas. Discutiremos o
tempo e o espaço por meio do conceito de cronotopo, também em Bakhtin e seu Círculo.
Dessa forma propomos-nos a ir além de questionamentos: como “onde?” e “quando?”, para
entender como esses tempos e espaços interagem e permitem a existência das obras de
narrativas locativas.
Quanto mais nos aprofundávamos nos conceitos, tanto de gêneros quanto de
cronotopo, e os aplicávamos em nossas investigações, tornava-se claro para nós a
impossibilidade de separar a formulação filosófica Bakhtiniana. Percebemos que seus
conceitos estão tão profundamente interligados, que os gêneros apenas existem em um tempo
e espaço, e esse tempo e espaço, ainda que repetíveis nos gêneros literários são únicos e
irreiteráveis na construção de um contexto. Assim, apesar de a busca por um didatismo nos
forçar a trabalhar cada conceito em um espaço específico, apontamos a impossibilidade de
definir o gênero narrativas locativas sem abordar seu funcionamento no tempo e no espaço,
pois a relação cronotópica nesse gênero é a sua principal característica.
Analisamos a narrativa locativa “Haunted London”, de forma a apresentar resultados
objetivos da construção teórica deste trabalho. A escolha dessa obra baseou-se, em primeiro
lugar, na pequena variedade de trabalhos completos e disponíveis ao público; em segundo
lugar, em como as tecnologias de posicionamento são utilizadas; em terceiro lugar, pela
relação entre agenciamento e imersão existente na obra. A seguir apresentamos a estrutra
deste trabalho.
O capítulo 1 apresenta uma breve discussão sobre a literatura eletrônica e seus gêneros
narrativos. Conceituamos a literatura eletrônica a partir de Hayles (2007) e Ricardo (2012).
Em seguida, apresentamos os ambientes digitais e suas características, alguns gêneros
narrativos e finalizamos o capítulo discutindo o conceito de literatura ergódica.
No capítulo 2, discutimos os conceitos bakhtinianos de gêneros do discurso e de
cronotopo. Iniciamos, discutindo as esferas de atividade e suas coerções, em seguida
conceituamos os gêneros, apresentamos a diferença entre gêneros primários e secundários e os
enunciados como unidade concreta da comunicação.
15
Após discutir o conceito de gênero, mas não em separado, discutimos o conceito de
cronotopo. Apresentamos a existência do tempo e do espaço como dependentes e
correlacionados um ao outro. Apesar de termos como objeto de pesquisa um gênero literário,
trataremos do conceito de cronotopo em um âmbito mais abrangente do que apenas as esferas
relacionadas à literatura.
No capítulo 3, discutimos sobre os enunciados de narrativas locativas e suas
características relativamente estáveis, definidoras de gênero. Essa discussão foi embasada
numa revisão bibliográfica de pesquisas relacionadas à esfera da tecnologia utilizada na
construção e recepção das obras. Discutimos conceitos relacionados a software e a tecnologias
móveis: mídias locativas, seus processos, funções e possibilidades.
Após discutir sobre a tecnologia apresentamosseu funcionamento no processo de
recepção de narrativas locativas. Apresentamos conceitos e possibilidades das narrativas
locativas, de forma que as histórias podem ir de um extremo ao outro em relação à imersão e
ao agenciamento. Discutiremos como as histórias contadas por meio de mídias locativas
relacionam os locais concretos com os locais da narrativa.
Nesse capítulo, apropriamo-nos dos conceitos discutidos, relacionados mais aos
campos do literário, do sociológico, ou da tecnologia em uma abordagem linguística, para
pensar no que essas obras locativas apresentam em termos de enunciados, em suas questões
de estilo, conteúdo temático e forma composicional e, ainda, sua relação com usos de
linguagem de outras esferas.
No capítulo 4, aplicamos os conceitos bakhtinianos discutidos às narrativas locativas.
Na primeira parte desse capítulo, discutimos efetivamente os enunciados em função do
conceito de gêneros do discurso, apresentamos as esferas que se encontram na sua fundação,
as possibilidades de estilo, conteúdo temático e forma composicional e como esses conceitos
podem ser encontrados, quando pensamos em multimídia e locatividade.
Na segunda parte do capítulo 4, construímos o cronotopo das narrativas locativas.
Propomos a existência de um cronotopo locativo, que resulta na existência de uma
representação de homem também locativo. Nesse cronotopo, tanto o tempo quanto o espaço
se apresentam, ao mesmo tempo, em uma mistura de virtual e concreto, ficcional e real.
16
Finalizando o capítulo 4, analisamos a obra Haunted London, de acordo com os
conceitos discutidos em todo o trabalho, apresentando resultados para as discussões
realizadas.
17
1 A LITERATURA ELETRÔNICA
Iniciamos este capítulo com uma discussão sobre a literatura eletrônica e sua relação
com a literatura impressa. Na sequência, apresentamos o ambiente digital e as características
que o definem, guiam e limitam a construção das obras. Essas características estão presentes
em maior ou menor grau, no nosso objeto de pesquisa, qual seja, as narrativas locativas, e
essas discussões nos permitiram entender o panorama em que esse objeto se enquadra.
Na segunda parte do capítulo, apresentamos um grupo de gêneros eletrônicos
narrativos. Escolhemos esses gêneros por possuírem características semelhantes às narrativas
locativas, que estão apenas preliminarmente incluídas nesse grupo. O conhecimento desses
gêneros permitiu-nos compreender as especificidades dos enunciados de narrativas locativas e
também sua relação com outros gêneros. Limitamos-nos aos gêneros narrativos, pois são os
mais relevantes para o entendimento de nosso objeto. A literatura eletrônica possui outros
gêneros como as poesias em flash; ascii art, por exemplo.
Essa discussão nos permitirá a demonstração do macroambiente em que as narrativas
locativas se inserem, apresentando conceitos relacionados a obras de literatura eletrônica, que
mesmo não sendo específicos de narrativas locativas, também dizem respeito a esse gênero.
Demonstraremos que o computador é uma máquina com uma série de usos possíveis para a
literatura.
Discutimos os ambientes eletrônicos e os definimos como processuais, participatórios,
espaciais e enciclopédicos. Essas características culminam na existência de agenciamento e
imersão nas obras eletrônicas, sendo o agenciamento, o quanto as decisões do leitor
interferem no andamento da narrativa, e a imersão, o quanto o leitor experimenta do universo
ficcional.
A seguir, citamos e conceituamos outros gêneros narrativos de literatura eletrônica,
para que o leitor entenda em qual contexto as narrativas locativas se inserem. Demonstramos
18
que cada um desses gêneros se utiliza de forma diferente das possibilidades da tecnologia.
Alguns buscam maior automatização; outros visam à interatividade e à possibilidade de o
leitor interferir no rumo da história. Mesmo que interativos, os gêneros podem aproximar-se
mais dos aspectos de jogo ou dos aspectos literários. Quanto mais as formas de interação se
aproximam do agenciamento, mais o gênero se aproxima do jogo. Por outro lado, alguns
outros gêneros interativos podem demandar do leitor apenas a combinação de blocos de texto,
e a construção de um sentido da história, afastando-se do jogo1 em direção ao literário.
1.1 Literatura eletrônica: novo lugar de leitura
Para Hayles (2007, p. 1) “o lugar da escrita está novamente tumultuado, bagunçado,
dessa vez não pela invenção do livro impresso, mas, pelo surgimento da literatura eletrônica”
2. Da mesma forma que “a história da literatura impressa está profundamente ligada à
evolução da tecnologia do livro como fora construída onda após onda de inovações
tecnológicas, também a história da literatura eletrônica está condicionada à evolução dos
computadores digitais” 3. Assim como o livro impresso alterou as regras da escrita, a literatura
eletrônica impacta tanto no processo de construção quanto na recepção de obras e, ao mesmo
tempo, é impactada pelo desenvolvimento de computadores digitais.
Sempre que um novo gênero surge, alguns questionamentos tornam-se pertinentes, e
,com a literatura eletrônica, acontece o mesmo. Assim, Hayles (2007, p.2) propõe as seguintes
questões:
a literatura eletrônica é literatura? Os mecanismos de disseminação da
internet e da Web, ao liberar a publicação para todos, resultará em uma
inundação de trabalhos ruins? É possível obter qualidade literária em obras
de mídias digitais ou a literatura eletrônica é inferior ao cânone impresso?
Quais mudanças sociais e culturais de larga escala estão ligadas com a
propagação da cultura digital, e o que eles guardam para o futuro da escrita? 4 [Tradução nossa]
1 Consideramos como característica de jogo a maior abertura para interferência do leitor na narrativa.
2 “the place of writing is again in turmoil, roiled now not by the invetion of print books but the emergence of
eletronic literature”. 3 “the history of print literature is deeply bound up with the evolution of book technology as it built on wave
after wave of technical innovations, so the history of eletronic literature is entwined with the evolution of
digital computers”. 4 “is eletronic literature really literature at all? Will the dissemination mechanisms of the internet and the Web,
by opening publication to everyone, result in a flood of worthless drivel? Is literary quality possible in digital
19
O caminho para responder a esses questionamentos passa por uma exploração dos
gêneros que compõm a literatura eletrônica, com uma abordagem teórica específica para eles,
de maneira que, “ver a literatura eletrônica pela lente do impresso é, de forma significante,
não enxergá-la” 5 (HAYLES, 2007, p. 3). Assim, nesse subcapítulo, seguimos a proposta da
autora, ou seja, observar a literatura eletrônica por uma lente específica construída para esse
fim Nesse sentido, mergulhamos na literatura eletrônica, respondemos a algumas das questões
propostas e apresentamos o contexto em que se inserem as narrativas locativas.
É fundamental destacar que o conceito de literatura eletrônica é construído para
excluir os formatos dependentes do impresso, ou que sejam digitalizados a partir do impresso.
Para Hayles (2007, 3) a literatura eletrônica é nascida digital “um objeto digital de primeira
geração, criado digitalmente em um computador e (comumente) para ser lido em um
computador” 6. Ainda como definição, a Electronic Literature Organization define a literatura
eletrônica como “trabalho de importante aspecto literário que se apropria das capacidades e
contextos providos por um computador em rede ou não” 7 (ELO, 1999-2014), resultando que
ebooks, pdf, documentos do Word e outros formatos não são, usualmente, considerados
literatura eletrônica, pois apenas simulam e facilitam a realização das características dos
formatos impressos.
A partir da definição da ELO, Hayles (2007) indica-nos dois caminhos para pensar a
literatura eletrônica: no primeiro, é preciso ter clara a ideia do que seriam aspectos literários
importantes, conhecimento de ordem estética, que está fora do escopo deste trabalho. O
segundo caminho é indicado pelos possíveis usos das diversas capacidades e conceitos dos
computadores, ainda mais ao tratar do rápido desenvolvimento de novas possibilidades desses
usos. Ainda que o conceito possua uma abertura que permite diversas interpretações, a autora
(2007, p. 4) alerta para o fato de que a literatura eletrônica surge, após 500 anos de tradição
impressa, e outros tantos de tradição oral e escrita, e que os leitores se deparam com as obras
de literatura eletrônica com expectativas formadas no contato com a literatura impressa,
“incluindo um profundo e extenso conhecimento de formas de letras, convenções e modos de
media o ris eletronic literature demonstrably inferior to the print canon? What large-scale social and cultural
changes are bound up with the spread of digital culture, and what do tey portend to the future of writing 5 “to see eletronic literature only through the lens of print is, in a significant sense, not to see it at all”.
6 “a first-generation digital object created on a computer and (usually) meant to be read on a computer”.
7 “work with an important literary aspect that takes advantage of the capabilities and contexts provided by the
stand-alone or networked computer”.
20
impressão. É necessário que a literatura eletrônica se aproprie dessas expectativas, mesmo
enquanto as transforma”8.
Ricardo (2009, p. 2) afirma que o grupo de obras que chamamos aqui de literatura
eletrônica é a realização das possibilidades dos meios eletrônicos de construir obras que
abarcam “distinções tradicionais em funções chave, para incluir o estético e o poético; o
puramente participativo e o puramente receptivo; o ato criativo de narração e aquele ato de
produção em tempo real” 9. O surgimento de obras eletrônicas, que evidenciem essas
dualidades leva esse autor (2009, p. 2), a, também, propor alguns questionamentos, entre eles:
“como é possível falar em ‘audiência’ em obras que são guiadas e nas quais o
desenvolvimento é de responsabilidade daqueles que até esse momento apenas
experimentaram as obras como leitores ou expectadores?” 10
. O referido autor (2009) propõe
que estaríamos vivendo uma mudança que deixa o status e conceito de arte “em discussão por
uma virada na história e por mudanças estéticas” 11
.
Essa mudança de gosto aponta para uma abertura nas possibilidades criativas. A
interatividade, por exemplo, com seus diversos matizes é responsável pelo surgimento de
obras que nos termos de Ricardo (2007, p. 2) não podem ser vistas “nem como literatura nem
como arte, mas, além dos dois: algo que não é totalmente predeterminado nem completamente
aleatório, mas, além dos dois: e que não habita nem um lugar único e nem todos os lugares,
mas além dos dois” 12
.
A literatura eletrônica, segundo Hayles (2007, p. 4), é “composta de partes tiradas de
diversas tradições que podem não se enquadrar bem juntas” 13
, o que atesta para um
hibridismo natural “nas quais, diferente vocalubário, conhecimentos específicos e
expectativas juntam-se para experimentar o que emerge da mistura” 14
. Hibridismo em uso de
diversas linguagens, nos públicos, nos conhecimentos dos artistas, enquanto grande grupo é
hibridizado nos vários gêneros que o compõem.
8 “including extensive and deep tacit knowledge of letter forms, print conventions, and print modes. Of
necessity, electronic literature must build on these expetations even as it modifies and tranforms them”. 9 “traditional distinctions at key junctures, to include the aesthetic and the poetic; the entirely participatory and
the entirely receptive; the act of narrative creation and that of real-time production” 10
““How does one speak of an ‘audience’ in work that is driven and whose development is largely fashioned by
those who would have heretofore experienced it purely as viewers or readers 11
“Under assault by a turn of history, and changes of taste” 12
“neither as literature nor as art, but beyond both; something neither entirely predetermined nor entirely
random, but beyond both; and that dwells neither in a single place nor everywhere, but beyond both”. 13
“composed of parts taken from diverse traditions that may not always fit nearly together”. 14
“in which diferente vocabularies, expertises, and expectations come together to see what might emerge from
their intercourse”.
21
O hibridismo de Hayles (2007) é visto por Ricardo como uma natureza variegada
(2007, p. 2). Uma série de elementos como “elementos cinematográficos em jogos de
computador; poemas em instalações; dramatizações realizadas em mundos virtuais simulados;
as obras locativas” 15
. Ou seja, possibilidades estéticas e metodológicas de apropriação dos
contextos e potencialidades do computador, ao mesmo tempo que em ligação aos gêneros não
eletrônicos.
Ricardo (2007, p. 2) trata a novidade que é a multiplicidade de características e
possibilidades estéticas das obras eletrônicas como um indicador de que a questão teórica “é
melhor abordada por questionamentos ao invés de por meio da formulação de uma teoria
unificadora, ou de alguma crítica particular” 16
. De maneira que as especificidades de cada
uma das obras, de cada um dos gêneros eletrônicos/digitais sejam consideradas, e discutidas, à
priori a formação de uma teoria.
Findadas essas considerações preliminares, à guisa de definição, a seguir adentramos o
universo da literatura eletrônica.
1.2 A literatura na era eletrônica
Para entender a literatura eletrônica é necessário discutir duas questões preliminares: a
primeira diz respeito ao o uso dos termos “literatura” e “eletrônica” para categorizar os
gêneros que são tratados nesse trabalho; a segunda diz respeito ao uso do computador e a
existência de um ambiente digital em que as obras são criadas, divulgadas e/ou recebidas.
Em relação ao uso do rótulo literatura eletrônica Ricardo (2009, p. 2) sugere outras
possibilidades para as obras, tais como “literatura digital, literatura eletrônica, arte em novas
mídias, arte digital, cibertextos, gamestudies” 17
. Sendo que a escolha por algum dos termos
está mais ligada a cada autor e obra que a existência de algum critério determinado.
Esses dísticos trazem em comum o fato de apontarem para o uso da tecnologia como
“paradigma de mudança que leva a condições de ruptura categóricas que transcendem os
15
“the cinematic in computer games; poems in projective installations; dramatic reenactments played out in
simulated online worlds; the audible immersive, explorable in open physical space”. 16
“is best approached interrogatively, rather than through the formulation of one unifying theory or one
particular critic”. 17
“digital literature, electronic literature, new media art, digital art, cybertexts, game studies”.
22
conceitos de arte e literatura” 18
(RICARDO, 2009, p. 2). A escolha de algum dos rótulos
citados para o conjunto de obras eletrônicas indica uma abordagem que transcende a arte sem
o uso da tecnologia. Essa abordagem define o uso da tecnologia como fator de ruptura em
relação ao que é aceito, a priori, como arte ou literatura.
Pensar a tecnologia como uma ruptura, entretanto, aponta para uma série de critérios
de definição. As obras que se enquadram nos gêneros da literatura eletrônica, que
apresentamos adiante, devem evitar uma a-historicidade “que ignore os laços filosóficos
subjacentes que hibridizam o novo com o antigo [gêneros ou obras]” 19
(RICARDO, 2009,
p.3). A partir disso entendemos que essas obras eletrônicas ainda que tecnologicamente
representem uma ruptura com critérios que definem o que é arte e literatura, devem,
principalmente em estágios iniciais, às práticas e aos processos de gêneros anteriores 20
.
Ressaltamos que segundo Bakhtin (1997) os gêneros são elos em uma cadeia, são ligados a
gêneros que o precedem e a gêneros que o sucederão por características semelhantes em
relação a esferas de produção. São gêneros que respondem às mesmas forças centrípetas e
centrífugas.
Por fim, falar em literatura é problemático, pois muitas dessas obras sequer possuem
sequências textuais. Segundo Ricardo (2009) o uso do termo literatura minimiza a influência e
o valor do visual nas obras. Contudo, Hayles (2007) indica que apesar de todas as rupturas
desse espectro de obras, o termo literatura refere-se à existência de aspectos literários. Mesmo
que nas obras inexista texto escrito, essa autora (2007) enxerga que, em tais obras, o visual
carrega características suficientes para que seja tratado como literatura. Apesar de estarmos
cientes da existência de outras linhas teóricas, como a semiótica e linhas contemporâneas de
análise do discurso, que lêem também o imagético, entendemos com Hayles (2007) a
existência de um cânone que não aceita classificar gêneros como games, como literatura.
A seguir discutimos algumas características de ambientes digitais, que são transferidas
para as obras. Essas características definem algumas possibilidades para criação e criam um
conjunto de expectativas por parte de leitores.
18
“paradigm of change that led to the conditions of categorical rupture transcending ‘literature’ or ‘art’ alone”. 19
“ignoring the underlying bonds of philosophy merging the new with something much older”.
23
1.3 Ambientes digitais
Destacamos, a princípio, que todas as obras da literatura eletrônica têm em comum o
uso do computador na autoria e na recepção, e uma das características primárias dos
ambientes digitais é a possibilidade de criar em diversas mídias, ou multimídia. Para Murray
(1997) tratar as mídias locativas como multimídia indica um desconhecimento das
possibilidades expressivas dos meios eletrônicos e uma dependência em relação às
tecnologias anteriores, raciocínio que leva a citada autora (1997) a apontar a inevitabilidade
de adoção de processos que se afastam da autoria e recepeção de gêneros existentes em mídias
anteriores.
Para Murray (1997), os ambientes digitais, em que se constroem as obras de literatura
eletrônica, possuem quatro propriedades principais: processuais, participatórios, espaciais e
enciclopédicos. Segundo a autora (1997, p. 71),
as duas primeiras referem-se ao que chamamos de forma abstrata de
interatividade; as duas propriedades restantes ajudam a fazer com que as
criações digitais sejam exploráveis e extensivas como o mundo atual,
referindo-se à possibilidade de imersão no ciberespaço 21
[Tradução nossa]
A primeira das características diz respeito diretamente ao fato de que as obras de
literatura eletrônica são software, que, segundo Pressman (2011, p. 29), são “programas
executáveis em um computador de qualquer porte ou arquitetura, conteúdos (à medida que os
programas são executados), informações descritivas, tanto na forma impressa (hard copy)
quanto na virtual, abrangendo praticamente qualquer mídia eletrônica”. A capacidade
processual é a capacidade dos computadores de seguir e executar os comandos específicos.
Ainda que não seja óbvio, computadores não são “somente um fio ou um caminho, mas uma
engrenagem. Foram planejados [os computadores] não para transmitir informação estática,
mas, para incorporar comportamentos complexos e contingenciais”.22
(MURRAY, 1997, p.
21
“the first two properties make up most for what we mean by the vaguely used word interactive; the remaining
two properties help to make digital creations seem as explorable and extensive as the actual world, making up
much of what we mean when we say that cyberspace is immersive”. 22
“fundamentally a wire or a puthway but an engine. It was designed not to carry static information, but to
embody complex, contingent behaviors”.
24
72). Para essa autora (1997), a criação de obras eletrônicas demanda a identificação de regras
específicas que descrevam cada procedimento, de forma que o computador possa recriar esses
procedimentos seguindo as regras.
A segunda característica de obras de literatura eletrônica é que são participatórias.
Murray (1997, p. 74) explica que “ambientes processuais são interessantes não somente
porque exibem comportamento gerado por determinadas regras, mas porque é possível induzir
esse comportamento. Eles respondem aos comandos que realizamos” 23
. Os graus de
participação são variáveis dentro das possibilidades de resposta da obra. Algumas obras
oferecem alternativas para os usuários, enquanto outras criam universos em que qualquer ação
possível é aceita. Essa autora (1997) assevera que é a união entre resposta e participação que
define o caráter interativo de obras eletrônicas. Para Lévy (1999) a interatividade existe em
diversos graus, que vão da simples possibilidade de escolher entre duas alternativas, aos
mundos abertos. A participação discutida por Murray é limitada pelo próprio universo das
obras.
A terceira das características é a espacialização do conteúdo, de forma que
representem espaço navegável. Murray (1997, p. 80) afirma que “mídias lineares como livros
e filmes podem apresentar espaço, ou por descrições verbais ou por imagens, mas apenas
ambientes digitais podem apresentar espaço navegável” 24
. A possibilidade de movimentar-se
pelo espaço digital independe da existência de mapas, imagens ou mesmo modelos em três
dimensões; independe, também, da possibilidade de conectar a lugares distantes.
Segundo Murray (1997, p. 80), “a qualidade espacial do computador é criada pela
interatividade no processo de navegação. Sabemos que estamos em uma localização
particular, quando efetuamos um comando no mouse ou no teclado a tela apresenta as
mudanças gráficas ou textuais” 25
. A diferença entre as obras eletrônicas e as obras impressas
em relação ao espaço é que, nas eletrônicas, “você não está apenas lendo sobre um evento que
23
“procedural enviroments are appealing to us not just because they exhibit rule-generated behavior but because
we can induce the behavior they are responsive to our inputs”. 24
“linear media such as books and films can portray space, either by verbal description or image, but only digital
environments can present space that we can move through”. 25
“the computer’s spatial quality is created by the interactive proccess of navigation. We know that we are in a
particular location because when we enter a keybord or mouse command the (text or graphic) screen display
changes approppriately”.
25
aconteceu no passado; o evento está acontecendo agora, e, diferente de uma ação no palco de
um teatro, a ação acontece com você” 26
.
A última das características citadas por Murray (1997) é o fato de os ambientes
digitais serem enciclopédicos. A autora explica que computadores são as máquinas com as
maiores capacidades já inventadas, de forma que, devido à sua “eficiência de representar
palavras e números em formato digital, podemos armazenar e acessar quantidades de
informação muito maiores do que era possível” 27
(MURRAY, 1997, p. 83). Hoje, a nuvem é
um sistema de armazenamento potencialmente ilimitado; são enormes galpões com servidores
que guardam toda a informação e são acessados pela internet.
Tão importantes quanto a capacidade de armazenamento dos meios digitais, são as
expectativas que seu uso induz. Isso se deve à inclinação de surgimento de uma biblioteca
global em que as diversas formas de representação podem ser encontradas. Assim, “pinturas,
filmes, livros, jornais, programas de televisão, e bancos de dados serão acessíveis de qualquer
parte do globo” 28
(MURRAY, 1997, p. 84). Essa visão, um pouco utópica da internet, é
balanceada por uma visão mais realista que compreende a forma caótica e fragmentada na
qual a informação é encontrada.
Segundo Murray (1997, p. 84), a eficácia enciclopédica das máquinas e sua aptidão
“para representar quantidades enormes de informação em formas digitais, traduz-se em um
potencial artístico de oferecer” 29
. Essa grande quantidade de dados permite que os autores
possam oferecer histórias que se cruzam, a partir de vários pontos de vista. São histórias que,
tanto a construção do sentido quanto a construção do texto escrito, em áudio ou em vídeo, ou
ainda nas três mídias, está sempre inacabada, por fazer, incompleta, histórias com uma
quantidade de informação, que, em relação à facilidade de acesso, não têm comparação com
nenhum formato anterior.
A seguir, discutimos a imersão e o agenciamento, características que fazem parte de
obras eletrônicas. Ambos os aspectos se relacionam a uma série de outras funções como:
26
“you are not, just reading about an event that occurred in the past; the event is happening now, and, unlike the
action on the stage of a theater it is happening to you”. 27
“efficiency of representing words and numbers in digital form, we can store and retrieve quantities of
information far beyond what was possible before”. 28
“paintings, films, books, newspapers, television programs, and databases, would be acessible from any point
on the globe”. 29
“to represent enormous quantities of information in digital form translates into an artist’s potential to offer a
wealth of detail, to represent the world with both scope and particularity”.
26
ação, interação, presença, espaço, tempo, movimento entre outras. Tanto a imersão e
agenciamento determinam essas outras funções, quanto são determinadas por elas.
Nessas características encontramos marcas que definem o cronotopo eletrônico.
Perceberemos, no momento em que discutirmos o conceito, que cada gênero específico é
construído a partir de uma linha espáciotemporal específica. Sendo assim, apesar de essas
características serem encontradas, em maior ou menor grau nas linhas de espaço,
principalmente, mas também, sempre de tempo, dos enunciados eletrônicos, nas narrativas
locativas, teremos características que são únicas e inerentes desse gênero.
1.3.1 Imersão
O contato com obras digitais é permeado pela possibilidade de imersão e
agenciamento. São características as quais, ainda que não exclusivas de obras eletrônicas, são
potencializadas e intensificadas por obras construídas nesse meio. A interação, enquanto
característica já discutida, permite que o leitor vá além do processo discutido por Eco (1994),
por exemplo, porquanto o “passeio” deixa de ser uma metáfora e passa a representar
processos relacionados à movimentação pela espacialização discutida por Murray (1997). A
questão da leitura será discutida adiante quando tratarmos do conceito de gêneros.
De acordo com Murray (1997, p. 98), o desejo humano de experienciar fantasias em
mundos ficcionais é “intensificado por uma mídia participatória e imersiva que promete
satisfazê-lo mais completamente do que antes fora possível” 30
. A autora percebe que os
ambientes digitais, por meio de suas características de navegação e enciclopédia, permitem
que o leitor/receptor das obras adentre o universo ficcional. As obras de simulação, por
exemplo, permitem que esse leitor/receptor atue no universo ficcional, não como uma
metáfora sobre a construção de sentido, mas realmente pervadindo o universo ficcional.
Murray (1997, p. 98-99) explica que a imersão em ambientes virtuais é
a experiência de ser transportado para um lugar elaboradamente simulado é
agradável em si, independente do conteúdo da simulação. Chamamos essa
30
“has been intensified by a participatory, immersive medium that promises to satisfy it more completely than
has ever before been possible”.
27
experiência de imersão. Imersão é uma metáfora advinda da experiência
física de estar submerso em água. Busca-se a sensação de uma experiência
psicológica imersiva de um mergulho no oceano ou em uma piscina: a
sensação de estar completamente rodeado por uma outra realidade, tão
diferente quanto a água é do ar, que toma toda a atenção, todo nosso aparato
perceptual. Desfrutamos a saída de nosso mundo familiar, o sentimento de
estar em alerta por estar em um novo lugar, e a satisfação de aprender a
movimentar-se nesse novo lugar. Imersão pode ocasionar uma mera
inundação da mente com sensações, o transbordamento de estímulos
sensíveis experimentados no salão de televisão no Farenheit 451 de
Bradbury. Muitas pessoas ouvem música dessa forma, como um agradável
afogamento das partes verbais do cérebro. Mas em uma mídia participatória,
imersão implica aprender a nadar, a fazer as coisas que o novo ambiente
possibilita 31
[Tradução nossa]
Isso nos leva a pensar que diferente da imersão em obras impressas, em que o processo
acontece por meio da abstração do meio, a imersão em obras eletrônicas representa o prazer
de compreender e dominar as formas de ação no universo ficcional, em que cada gênero
eletrônico é dotado de possibilidades de ação diferentes, e é exatamente ao prazer de
desvendar cada uma dessas estratégias possíveis que constitui o prazer das obras eletrônicas.
Para ampliar a compreensão sobre a imersão em ambientes digitais é necessário
entender qual a função do computador no processo narrativo. Perceber o computador apenas
como uma ferramenta obscurece a compreensão de que
as vezes o computador pode agir como um ser autônomo e animado,
sentindo o ambiente e respondendo de acordo com processos gerados
internamente, mas pode também parecer uma extensão de nossa própria
consciência, capturando nossas palavras por meio do teclado e as
31
“The experience of being transported to na elaborately simulated place is pleasurable in itself, regardless of the
fantasy content. We refer to this experience as immersion. Immersion is a metaphorical term derived from the
physical experience of being submerged in water. We seek the same feeling from a psychologically immersive
experience that we do from a plunge in the oceano r swimming pool: the sensation of being surrounded by a
completely other reality, as different as water is from air, that takes over all o four attention, our whole
perceptual apparatus. We enjoy the movement out o four familiar world, the feeling of alertness that comes
from being in this new place, and the delight that comes from learning to move within it. Immersion can entail
a mere flooding of the mind with sensation, the overflow of sensory stimulation experienced in the televisor
parlor in Bradbury’s Fahrenheit 451. Many people listen to music in this way, as a pleasurable droining of the
verbal parts of the brain. But in a participatory medium, immersion implies learning to swim, to do the things
that the new environment makes possible”.
28
apresentando na tela tão rápido quanto venham a nossa mente 32
(MURRAY,
1997, p. 99) [Tradução nossa]
Daí deduz-se a existência de ao menos duas possibilidades: a primeira, processos
previamente programados, ou seja, automação, e a segunda, ferramenta.
A autora (1997, p. 99) afirma que “o encanto do computador cria um espaço público
ao qual o sentimos bastante privado e íntimo” 33
Entendemos com a autora citada que o
universo em que as obras eletrônicas se encontram, criado em computadores, mostra-se uma
interligação entre o que acontece na realidade externa e o que acontece em nossas mentes. O
mesmo acontece com as narrativas, situam-se, também, no limiar entre externo e interno. Nos
universos ficcionais virtuais “para manter esses transes imersivos poderosos temos que fazer
algo intrinsecamente paradoxal: temos que manter o mundo virtual ‘real’ afastando-o do real”
34 (MURRAY, 1997, p. 99). Apresenta-se uma necessidade de criar estratégias específicas,
nas formas narrativas, inclusive nas eletrônicas, para manter intacto esse limiar. Sendo que
uma das estratégias possíveis seria proibir completamente a participação do leitor.
(MURRAY 1997, p. 100)
Em obras eletrônicas, em que a participação é um dos maiores atrativos, ao invés da
proibição é necessário encontrar um equilíbrio, quanto maior for a presença nos mundos
virtuais maior a necessidade de criar estratégias para separar o que é concreto do que é
ficcional. Para isso se torna necessário descobrir35
os limites convencionais que permitirão
que os leitores/recepteros se entreguem ao ficcional/virtual, de forma a atingir níveis buscados
de imersão. (MURRAY, 1997)
Para Murray (1997, p. 103) “parte do trabalho inicial em qualquer mídia é a
exploração das fronteiras entre o mundo representado e o mundo real” 36
Em ambientes
virtuais essa fronteira é tênue. Para a autora (1997), o universo ficcional virtual é tão presente
psicologicamente que em muitos casos assume um status mais próximo do concreto do que de
32
“sometimes it can act like an autonomous, animate being, sensing its environment and carrying out internally
generated processes, yet it can also seem like an extension of our own consciousness, capturing our words
through the keyboard and displaying them on the screen as fast as we can think of then”. 33
“the enchantment of the computer creates for us a public space that also feels very private and intimate”. 34
“in order to sustain such powerful immersive trances, we have to do something inherently paradoxical: we
have to keep the virtual world ‘real’ by keeping it ‘not there’”. 35
Em cada gênero eletrônico diferente as estratégias, e os limites são diferentes, fazem parte das características
que formam esses gêneros. 36
“part of the early work in any medium is the exploration of the border between the representational world and
the actual world”.
29
representação.37
As narrativas construídas por computador tendem “A enfatizar a fronteira,
celebrar o encantamento e testar a durabilidade da ilusão” 38
(MURRAY, 1997, p. 106).
Murray (1997) propõe uma metáfora de visita para equilibrar a relação entre
participação e imersão. São criadas limitações em relação às ações possíveis que devem ser
adequadas ao universo ficcional em questão. A metáfora da visita se realiza por meio de
limitações relacionadas a questões de espaço e tempo. A participação é concentrada em ações
específicas, em espaços também específicos e a tempos limitados.
Em obras eletrônicas existe uma relação direta entre participação e imersão
ambientes eletrônicos que aparecem nas telas de computadores podem
proporcionar a estrutura de uma visita imersiva. Nesses casos a tela é uma
quarta barreira [que separa no teatro o espectador do espetáculo], e o
controlador (mouse ou controle de videogame ou luva de controle) é o objeto
limitante que leva o participante para dentro e para fora da experiência.
Quando o controlador é intimamente relacionado a um objeto no universo
ficcional, como um cursor na tela que se transforma em uma mão, os
movimentos reais dos participantes tornam-se movimentos no mundo virtual.
Essa correspondência, quando movimentos reais são iguais a movimentos no
mundo ficcional, são uma parte importante do prazer relacionado a simples
jogos. Além do mais, um jogo eletrônico que envolve labirintos e
combatentes é muito parecido a uma visita a uma fun house na qual
oponentes e obstáculos aparecem a todo instante no caminho de forma
aleatória e surpreendente. Essa atividade constante significa que mesmo que
o leitor/receptor mova-se pelo espaço sem lutar, o mundo continua presente 39
(MURRAY, 1997, p. 108) [Tradução nossa]
Entendemos que essa relação entre a ação e a imersão é a mesma para as obras
narrativas eletrônicas. Mesmo que a ação se resuma a cliques de mouse, quanto maior a
sensação de estar movimentando-se por um espaço, ainda que virtual, maiores os níveis de
imersão no mundo ficcional. Ainda que existam universos navegáveis, a imersão não acontece
37
As redes sociais são um bom exemplo dessa presença. 38
“to emphasize the border, celebrate the enchantment and test the durability of the illusion”. 39
“screen-based electronic environments can also provide the structure of na immersive visit. Here the screen
itself is a reassuring fourth wall, and the controller (mouse or joystick or dataglove) is the threshold object that
takes you in and leads you out of the experience. When the controller is very closely tied to na object in the
fictional world, such as a screen cursor that turns into a hand, the participant’s actual movements become
movements through the virtual space. This correspondence, when acutal movement through real space brings
corresponding movement in the fantasy world, is an important parto f the fascination of simple joystick-
controlled videogames. Moreover, an electronic game that involves a maze and combatants is alos very much
like a fun house visit in that opponents keep popping out at you and obstacles keep appearing in your path in a
randomized and therefore surprising fashion. This constant activity means that even if you move through the
space without fighting, the world is still dramatically present”.
30
quando não há ação, pois para Murray (1997) a presença em ambientes digitais é
acompanhada naturalmente por um desejo de interação.
Retomando nossas reflexões sobre presença e ação, percebemos a existência de dois
extremos: em um extremo a presença é limitada a um único caminho e no outro extremo a
presença existe por meio de um mundo aberto dotado de diversas possibilidades exploratórias.
Nas obras em que a presença é mais limitada é preciso criar objetos pelo caminho, que reajam
à medida que o leitor/receptor se aproxime. Além disso, nesse tipo de presença é preciso que a
história seja curta e com muitos acontecimentos para manter a sensação de imersão.
Já nas obras em que há vários caminhos a serem explorados é necessário que ou
existam outros personagens para interagir, ou que a narrativa aconteça de acordo com ações,
movimentações e escolhas do leitor/receptor40
. Isso ocorre poque “nós nos experimentamos
como presentes nesses mundos imersivos, como se estivéssemos no palco ao invés de na
audiência, queremos mais do que simplesmente viajar por esses mundos” 41
(MURRAY,
1997, p. 109-110).
Existem, entretanto, semelhanças das narrativas eletrônicas com narrativas em meios
não eletrônicos. O processo de suspensão e recriação de crença por exemplo, ainda que
realizado por meio de estratégias diferentes, busca resultados parecidos, visto que os autores
se aproveitam do desejo dos interlocutores de imersão no universo ficcional. Nesse sentido
podemos ainda destacar que o comportamento dos objetos do cenário, de personagens
automáticos, mas que interagem de forma específica a comportamentos do interlocutor e que
são parte de objetivos específicos, aumentam a sensação de imersão, assim um ciclo é criado
em que a interação cria necessidade de mais interação. (MURRAY, 1997)
Duas outras estratégias, que mesmo não sendo exclusivas de obras eletrônicas, são
potencializadas por esses meios, são o uso do espetáculo e dos avatares. A possibilidade de
uso de efeitos especiais, de signos que piscam, explodem, se movimentam, e mesmo de
cenários que respondem às ações do leitor agem de forma a reter a atenção, além disso criam
uma máscara que indica aos leitores\interolocures que devem interpretar um personagem ao
40
Apesar de usarmo o termo receptor, sabemos que esse dístico denota a existência de passividade, entretanto,
para Bakhtin (1999), não existe receptor passivo, o ouvinte ou alocutário é ativo no processo de construção do
sentido. No caso dos enunciados aqui em questão essa existência ativa é clara pois a história se desenvolve a
partir das ações concretas do alocutário. 41
“we experience ourselves as present in these immersive worlds, as if we are on the stage rather than in the
audience, we whant to do more than merely travel through them”.
31
invés de si mesmos, bem como mantém o afastamento necessário entre o real e o virtual.
(MURRAY, 1997)
Sobre os avatares Murray (1997, p. 113) afirma que
nós podemos colocar uma máscara, nos meios digitais, ao agir com um
avatar. Um avatar é uma figura gráfica como um personagem de videogame.
Em muitos jogos de internet e salas de chat, participantes escolhem um
avatar para compartilhar o espaço comum. Os avatares podem oferecer
identidades alternativas que podem fornecer identidades alternativas
relevantes, mesmo quando sejam mal desenhados ou ofereçam poucas
possibilidades de personalização42
. [Tradução nossa]
Daí, entendemos que a máscara é uma estratégia de separação entre o mundo ficcional
e o mundo real, de forma que a ficção apensa esteja presente no virtual, sendo assim o uso de
um avatar é uma forma de máscara em que o leitor/receptor ao interpretar um personagem
empreende uma busca por satisfazer os critérios necessários de realidade do mundo ficcional
em questão, trabalhando em prol da imersão.
Registramos também que em obras em rede, em que se realize a presença de outros
leitores\receptores, a interação coletiva é um desafio à imersão. Cada leitor\receptor é o
responsável por interpretar um personagem diferente, e diferente de si próprio, a partir dessa
realização, cabe ao autor criar estratégias de manutenção dos personagens que são um misto
dos desejos de cada um com as convenções específicas do mundo ficcional. Para Murray
(1997) essa relação é complicada pela necessidade de criar artifícios para que os
interlocutores possam entrar e sair do personagem sem destruir o tecido ficcional, de forma
que dividir um mundo ficcional com outras pessoas demanda uma relação constante de
negociação da narrativa e dos limites entre o ficcional e o real.
Duas formas de manter o equilíbrio entre real e ficcional seriam o uso de um mestre, e
a criação de personagens psicologicamente bem definidos e com objetivos também definidos.
O mestre seria ou uma pessoa, que possui controle sobre o universo ficcional, ou um conjunto
de regras inquebráveis, que determinam os limites de abertura entre real/ficcional. Já a criação
de personagens com características psicológicas específicas delimita as ações possíveis de
cada leitor/receptor, sendo que as possibilidades de ação e reação são balizadas por essas
características determinadas a priori. (MURRAY, 1997)
42
“in digital environments we can put on a mask by acting through na avatar. An avatar is a graphical figure like
a character in a videogame. In many internet games and chat rooms, participants select na avatar in order to
enter the common space. Even when avatars are crudely drawn or offer a very limited choice of
personalization they can still provide alternate identities that can be energically employed”.
32
1.3.2 Agenciamento
Agenciamento é a capacidade de interferir no desenrolar dos acontecimentos, sendo
que apenas existe quando os resultados das ações do interlocutor são perceptíveis. Murray
(1997, p. 126) define o agenciamento como “o poder de agir significativamente e poder ver os
resultados de nossas decisões e escolhas” 43
. Em ambientes e obras eletrônicas é fácil de
observar como é o click do mouse em um arquivo, por exemplo, que faz iniciar o programa,
ou o click em um link, faz com que o interlocutor seja levado a um outro documento online.
A grande questão do agenciamento é que apesar de em meios eletrônicos ser esperado,
em narrativas tradicionais, segundo Murray (1997), essa característica não é esperada. O uso
desses meios eletrônicos traz possibilidades de estruturar o agenciamento de forma que se
equilibre a sensação de experimentar uma narrativa com as possibilidades de ação esperadas.
Um exemplo dessas formas é construir a participação como uma escolha dentro de um
universo de possibilidades. O que realmente importa é que qualquer que seja a escolha resulte
em alguma mudança na história. (MURRAY, 1997)
Algumas vezes o agenciamento é confundido com a possibilidade de agir. Mas,
agenciamento é mais do que participação e ação. Não é a quantidade de interações, mas a
qualidade das mesmas que define o grau de agenciamento. Murray (1997) exemplifica essa
qualidade por meio de uma partida de xadrez em que cada jogador faz apenas um movimento
por rodada, porém, cada movimento tem o poder de alterar profundamente o resultado final,
além de poder ser escolhido entre uma grande quantidade de outros movimentos possíveis.
Enquanto as formas comuns de agenciamento perseguem uma estrutura de jogo, as
obras eletrônicas são dotadas de espaço navegável, que surge como uma forma de
agenciamento. Essa navegação intencional permite que os leitores/receptores escolham para
onde “ir” a partir de pontos específicos, construam mentalmente, e na tela, esses ambientes
navegados e percebam as mudanças que resultam de suas escolhas de movimentação. As
obras criadas eletronicamente possibilitam dois tipos diferentes de navegação: o “labirinto
solúvel” e o “rizoma intrincado” 44
(MURRAY, 1997).
43
“agency is the satisfying power to take meaningful action and see the results of our decisions and choices” 44
No original “The solvable maze” e “the tangled rhizome”. (MURRAY, 1997, p. 130)
33
Organizar o agenciamento em narrativas eletrônicas segundo a ideia do labirinto
solúvel significa organizar a história como um lugar assustador “cheio de perigos e desafios,
mas que leva a grandes recompensas, se navegado com sucesso” 45
(MURRAY, 1997, p.
130). Os desafios e perigos são diferentes em cada um dos gêneros possíveis. Nos games essa
metáfora torna-se mais clara, em que os perigos são inimigos e armadilhas encontradas pelo
caminho. Em gêneros com menos características de jogo, existem outros desafios. Em
narrativas locativas, por exemplo, os desafios são a própria navegação pelo espaço concreto.
O labirinto é atrativo, porque mistura “um desafio cognitivo: encontrar o caminho;
com um padrão simbólico emocional: enfrentar o que é desconhecido e aterrador” 46
(MURRAY, 1997, p. 130). O uso do labirinto demanda que o leitor/receptor atue ativamente
em busca de desvendar a história. Assim, esse padrão de construção do espaço é considerado
por essa autora uma forma mais ativa da visita imersiva, “histórias baseadas em labirinto
afastam-se da plataforma que se move e transformam o leitor/receptor de um observador
passivo em um protagonista que deve encontrar seu caminho pela narrativa” 47
(MURRAY,
1997, p. 130).
Pensar um labirinto, entretanto, é mais do que a constituição visual da narrativa. É
possível que obras apenas textuais apresentem essa estrutura. Segundo Murray (1997, p.131)
as narrativas em labirinto não precisam ser simples, ou apresentar forma espacial de um
labiritino. De forma que
o labirinto não precisa ser composto somente de mudanças espaciais, mas
também de escolhas morais ou/e psicológicas. Assim como é difícil perceber
onde um emaranhado de corredores está nos levando, também é difícil
prever as consequências de seus atos e determinar o que valorizar ou em
quem confiar 48
(MURRAY, 1997, p. 131) [Tradução nossa]
45
“full of danger and bafflement, but successful navigation of it led to great rewards”. 46
“a cognitive problem (finding the path) with an emotionally simbolyc pattern (facing what is frightening and
unknown)”. 47
“maze-based stories take away the moving platform and turn the passively observant visitor into a protagonist
who must find his or her own way through”. 48
“the maze could be composed not only of spatial twists but of moral and psychological choices. Just as it is
hard to see where a tangle of virtual corridors is leading, so too would it be hard to foresee the consequences of
your actions and to determine what to value and whom to trust”.
34
Assim, o labirinto é uma forma de organizar o agenciamento em que o leitor/receptor é
continuamente desafiado com escolhas que resultem no desenvolvimento da história por uma
vertente específica.
Ainda que a construção em labirinto não seja específica de ambientes digitais, adequa-
se às obras construídas por esses meios, pois conecta história e navegação. Segundo Murray
(1997, 132) “na medida em que progrido, sinto uma sensação de poder, de ação importante,
que se imbrica ao meu prazer de desvendar a história” 49
. Em uma experiência narrativa que
engloba questões mais importantes do que vencer ou perder, progredir significa experimentar
ao mesmo tempo o previsível e o imprevisível.
Porém, a orientação da narrativa como um labirinto possui um problema já que esse
modelo
guia o alocutário em direção a apenas uma solução possível, em direção a
única saída. O desejo por agenciamento em ambientes digitais nos torna
impacientes quando nossas opções são tão limitadas. Queremos uma estrada
aberta longa, e com mais de uma forma de chegar a algum lugar.50
(MURRAY, 1997, p. 132) [Tradução nossa]
As limitações propostas por esse formato trabalham contra a imersão, apesar de
constituir uma forma de agenciamento. Todas as ações do alocutário são significativas,
levam-no em direção a um objetivo específico, interferem sobre o andamento da narrativa.
Entretanto, esse formato de agenciamento limita as possibilidades de ação, no universo
ficcional, em um conjunto de ações específicas. O alocutário não pode escolher por uma ação
que escape desse conjunto delimitado que o levará especificamente na única direção que
finaliza o labirinto.
A segunda estratégia de espacialização navegável é por meio da ideia do rizoma. A
estrutura é baseada livremente na construção conceitual de Deleuze. O filósofo francês trata o
rizoma como um modelo de conectividade de ideias. Mas os teóricos do digital, segundo
Murray (1997) apropriam-se da noção para tratar de “sistemas textuais baseados em alusão,
49
“as I move forward, I feel a sense of powerfulness, of signification actionm that is tied to my pleasure in the
unfolding story”. 50
“It moves the interactor toward a single solution, toward finding the one way out. The desire for agency in
digital environments makes us impatient when our options are so limited. We want an open road with wide
latitude to explore and more than one way to get somewhere”
35
que não são lineares como um livro, mas, sem fronteiras e sem fechamento” 51
. São formatos
de construção textual baseados no hipertexto, porém não exclusivos desse gênero.
Estruturar uma obra eletrônica como um rizoma significa criar “textos que não
privilegiam nenhuma ordem de leitura ou quadro interpretativo” 52
(MURRAY, 1997, p. 133).
São formas indeterminadas que frustram “nosso desejo de agenciamento narrativo, de usar o
ato de navegação para desvendar uma história que flui de nossas próprias escolhas” 53
(MURRAY, 1997, p. 133). O rizoma é uma forma de labirinto insolúvel, em que o objetivo
deixa de ser, chegar a um suposto final e torna-se desvendar todos os mistérios do universo
ficcional; mais que isso: significa que não há um final que encerre as peripécias.
A escolha por qualquer uma das duas formas apresenta problemas. Tanto as limitações
do labirinto simples quanto a indeterminação do rizoma impedem o equilíbrio entre a
experimentação do mundo ficcional e o agenciamento. A solução seria a construção de
narrativas que balanceiem o uso de ambas as estratégias, histórias que possuam um objetivo,
de forma a guiar as escolhas do alocutário, mas que possuam um conjunto que extrapole essas
ações. Assim, ao alocutário é dado um objetivo, mas, como atingir esse objetivo é resultado
de suas escolhas.
1.4 Literatura eletrônica, arte e literatura
Hayles (2007, p.5) afirma que “na era contemporânea, textos impressos e eletrônicos
são profundamente interpenetrados por código
[a autora delimita aqui ao código de
programação]” 54
. Enquanto na literatura eletrônica essa presença é evidente, não é tão óbvia
assim na literatura impressa. A autora (2007, p. 5) explica que as “tecnologias digitais estão
tão profundamente integradas com processos comerciais de impressão que o impresso pode
ser considerado como uma forma particular de produto do texto eletrônico do que uma mídia
totalmente independente” 55
Assim, a diferença entre a literatura eletrônica e a literatura
impressa é que a primeira não pode ser lida até que seu código seja atualizado, e apenas os
51
“allusive text systems that are not linear like a book but boundaryless and without closure”. 52
“texts that do not ‘privilege’ any order of reading or interpretive framework”. 53
“our desire for narrational agency, for using the act of navigation to unfold a story that flows from our own
meaningful choices”. 54
“in the contemporary era, both print and electronic texts are deeply interpenetrated by code”. 55
“digital technologies are now so thoroughly integrated with comercial printing processes that print is more
properly considered a particular output form of electronic text than na entirely separate médium”.
36
computadores digitais são capazes de executar propriamente esses códigos. Ressaltamos que
um computador é qualquer máquina capaz de processar dados inseridos com base em um
algoritmo qualquer; já computadores digitais são máquinas que tanto os dados recebidos
quanto os apresentados como resultados de qualquer operação existem em formato digital.
Esses computadores, como serão apresentados no terceiro capítulo, podem existir em diversos
formatos e tamanhos, e ser, inclusive, colocados em objetos do cotidiano.
Para entender os gêneros da literatura eletrônica é preciso entender a relação entre
código e a performance textual, principalmente levando-se em conta que uma das
possibilidades de definição de um gênero, na literatura eletrônica, é a forma em que o código
se transforma em texto. Alguns desses gêneros emergem “não somente por meio das
diferentes formas as quais os usuários [gêneros da literatura eletrônica] experimentam, mas
também pela estrutura e especificidade do código do programa” 56
(HAYLES, 2007, p. 5).
Portanto, muitos dos gêneros eletrônicos são definidos pelos softwares usados para construção
ou execução das obras.
Essas novas linguagens, abordagens linguísticas, procedimentos textuais e tecnologias
representam as diversas modalidades da arte eletrônica que atualizam novos desafios para
escritores, públicos e críticos “a construir um conhecimento que agrupe as diversas
especialidades e traduções interpretativas, para que as estratégias estéticas e possibilidades da
literatura eletrônica sejam completamente entendidas” (HAYLES, 2007, p. 22). A autora
aponta para a necessidade de um esforço em três frentes: da criação, da recepção e da análise,
ás quais podem ser acrescentados alguns outros como: governos, instituições de fomento,
intermediários, produtores, em que cada parte pode contribuir para a formação desse
conhecimento enciclopédico.
Para Ricardo (2009, p. 3), o que há de novo em obras de literatura eletrônica desafiam
tradições de arte e sensibilidades estruturais57
. O referido autor (2009, p.4) cita a existência de
duas rupturas da arte contemporânea:
a) Decatexia da imagem: “o fim do longo período histórico durante o qual a arte era
definida em termos de atenção a um objeto visível, como esse objeto era percebido
56
“not only from different ways in which the user experiences them, but also from the structure and specificity
of the underlying code”. 57
Não está no escopo desse trabalho discutir as tradições sobre as quais esse autor fala. Mas aceitamos a sua
afirmação de que a literatura eletrônica desafia padrões tradicionais a ponto de ser questionada quanto seu
aspecto literário.
37
e julgado e como a obra correspondia – ou se adequava – a gêneros estabelecidos e
práticas tradicionais” 58
;
b) Questão sensorial do que define um objeto de arte;
A decatexia da imagem ocorre de duas formas, na primeira percebe-se “a elevação ao
status de arte de obras que não são primariamente construídas para fruição por meio da
observação”. A segunda forma é o surgimento de obras visuais que passaram a ter status de
objetos estéticos (RICARDO, 2009, p. 4). Seguir por esse caminho significa considerar como
obra de arte, e por consequência como literatura, objetos que anteriormente não tinham esse
status, agregando a esse grupo as performances, arte conceitual e a literatura eletrônica.
Tratando-se de literatura eletrôncia, são obras que devem ser investigadas “sob a luz dessas
rupturas da visualização59
, objetificação e materizalização” 60
(RICARDO, 2009, p. 4).
Nesse contexto, segundo Hayles (2007) existe a possibilidade de transformação de um
trabalho impresso para aproveitar as potencialidades do comportamento, e capacidades
audiovisuais da Web, nesses casos o resultado seria mais que uma “versão Web”, mas “uma
produção artística completamente diferente que deve ser avaliada de acordo com seus
próprios termos com uma abordagem crítica adequada à especificidade da mídia” 61
(p. 23).
Segundo a autora supracitada (2007) há ainda casos em que a obra é planejada já de forma
híbrida entre o impresso e o eletrônico, nessas obras as possibilidades de sentidos emergentes
“multiplicam-se exponencialmente por meio das diferenças, sobreposições e convergências
das instâncias em comparação uma com a outra” 62
(p. 23).
As novas possibilidades criadas pelos formatos eletrônicos evidenciam a necessidade
de se repensar teorias, pois
a tendência de leitores imersos em textos impressos é focar primeiro na
superfície textual, aplicando estratégias que evoluíram no curso dos séculos
por meio de interações complexas entre escritores, leitores, editores,
58
“the end of the long historical period during which art is defined in terms of attention to the visible object, how
it is perceived and judged, and how the created object corresponds – or conforms – to established genres and
traditions of practice”. 59
Tradução aproximada, a visualização nesse caso está relacionada com um enquadramento, com uma forma de
representação. 60
“in light of these ruptures of retinality, objecthood, and materiality”. 61
“an entirely different artistic production that should be evaluated in its own terms with a critical approach fully
attentive to the specificity of the medium”. 62
“multiply exponentially through the differences, overlaps, and convergences of the instantiations compared
with one another”.
38
organizadores, vendedores e outros participantes da mídia impressa 63
(HAYLES, 2007, p. 23-24) [tradução nossa].
Aqueles, desses usuários, que não tem conhecimento de programação tendem a ler a
observar a tela da mesma forma que lêem uma página impressa. Ainda que esses usuários
percebam que existe uma diferença, entre tela e página, não conseguem discernir as
implicações dessa diferença. A mudança da página para a tela torna-se ainda mais complexa
devido à velocidade das mudanças das tecnologias eletrônicas.
A direção a seguir é exatamente um “caminho do meio” entre aceitar e buscar o novo
sem ignorar o tradicional. Ou seja, reconhecer o que é específico e único dos gêneros
eletrônicos, mas aceitar que as inovações não ignoram as heranças dos conhecimentos
tradicionais, dos modos de entender a linguagem, interpretações, categorias de análise, e
formas de interação com o texto. Esse processo se ratifica a partir do reconhecimento de que
a literatura eletrônica não é a impressa. Manovich (2000, apud HAYLES, 2007) cita cinco
princípios que definem essa diferença: representação numérica; variação; modulação;
automação; transcodificação.
Segundo Hayles (2007) a transcodificação diz respeito a possibilidade de importar
artefatos simbólicos, ideias e pressuposições da “camada cultural” para a “camada
computacional”. De forma:
ainda que seja simplificador definir essas camadas [cultural e
computacional] como fenômenos distintos (porque estão em constante
interação e trocas), a ideia de transcodificação entretanto é crucial para
entender que a computação se tornou uma importante ferramenta por meio
da qual assertivas pré-conscientes são movidas dos veículos tradicionais de
transmissão, na medida em que retórica política, religião e outros rituais,
gestos e posturas, narrativas literárias, história e outras fontes ideológicas
passam a circular e a corresponder a operações materiais de aparelhos
computacionais 64
(HAYLES, 2007, p. 34) [Tradução nossa]
A cada procedimento de mudança na codificação, para se enquadrar nas operações
computacionais, cada uma dessas esferas de atividade: literatura, política, história,
63
“the tendency of readers immersed in print is to focus first on the screenic text, employing strategies that have
evolved over centuries through complex interactions between writers, readers, publishers, editors, booksellers,
and other stakeholders in the print médium”. 64
“Altough is too simplistic to posit these “layers” as a distinct phenomena (because they are in constant
interaction and recursive feedback with one another), the idea of transcoding nevertheless makes the crucial
point that computation has become a powerful means by which preconscious assumptions move from such
traditional cultural transmission vehicles as political rhetoric, religious and other rituals, gestures and postures,
literary narratives, historical accounts, and other purveyors of ideology into the material operations of
computational devices”.
39
construções ideológicas se adequam a cada um dos quatro princípios de Manovich, quais
sejam, a representação numérica que é o uso de código binário, a Modulação ou Variação, que
diz respeito aum tipo de programação orientada ao objeto a, Automação que é o uso de
arquiteturas de rede com sensores e acionadores, além da já citada transcodificação (2000
apud HAYLES, 2007), assim, se tem sua origem em práticas que, de forma grosseira, podem
ser posicionados fora do universo computacional, transformam-se para fazer parte desse
universo. Temos, então, que a principal característica da transformação em um texto
eletrônico é que esse “não podem ser acessados sem executar o código” 65
(HAYLES, 2007,
p. 35).
Essa hibridação já em sua origem indica que a literatura eletrônica é mais que uma
prática artística, ainda que também seja isso, mas é também, e principalmente, “um lugar de
negociação entre diversas características e competências distinstas” 66
(HAYLES, 2007, p.
38). Apontando, desta forma, para a existência de uma série de transformações teóricas e
práticas, além da união de competências que vão desde a criatividade até o conhecimento de
algoritmos e linguagens de programação.
Já Ricardo (2009) observa que, do ponto de vista da autoria, as obras eletrônicas
caminham em duas direções distintas: em uma delas, a preponderância ocorre no valor
estético dos mecanismos eletrônicos da obra; na outra direção, a importância maior está no
valor estético da experiência gerada por esses mecanismos. É possível estabelecer uma
diferença crucial entre os formatos não eletrônicos e os eletrônicos:
arte e literatura não eletrônicas, dependem de suportes estáticos como a
página impressa, o objeto esculpível, a tela, ou placas, existem em mídias
estáveis que não mudam, e a ação literária e estética acontece no horizonte
da imaginação da leitura ou percepção visual. Enquanto que, na literatura e
arte eletrônicas os processos subjetivos são construídos por padrões de ação
motora não estética programável do ergódico em todas suas modalidades, o
cibertexto. Já que essas obras tanto apresentam quanto respondem, podemos
perceber algumas delas como abarcando uma dualidade fenomenológica
envolvendo tanto a respostas do leitor quanto a resposta do autor 67
(RICARDO, 2009, p. 6) [Tradução nossa]
65
“cannot be accessed without running the code”. 66
“a site for negotiations between diverse constituencies and different kinds of expertise”. 67
“Nondigital art and literature, relying on satic supports like the printed page, the sculputral object, the canvas,
or the etching, exist over stable, unchanging media, and it is in the imaginal horizons of readerly or visual
perception that literary or aesthetic action takes place. In eletctronic art and literature, however, such subjective
processes are additionally informed by patterns of kineticized action in the programmatic aesthettic of the
40
O que demonstra uma mudança nas formas de experimentação muda de processos
cognitivos para a ação motora, ou seja, o leitor precisa desenvolver estratégias, que podem ser
simples como o clique do mouse, ou mais complexas como os desafios dos jogos. Há ainda a
dupla fenomenologia que, tratada dessa forma, mostra que por meio da resposta das obras a
interação se torna concreta.
É possível ainda delinear dois momentos distintos em obras de literatura eletrônica,
experiência algorítmica e a representação estética. Ainda que esses dois momentos não sejam
independentes, as obras tendem a apontar uma ênfase em um ou outro. Essa ênfase realiza-se
por meio de estratégias que rasuram essa distinção alterando os significados existentes nas
análises visuais e literárias, “uma distinção que ilustra a corrente etérea articulada pelo poema,
pelo mundo virtual ou locativo, ou pelo segmento projetado de um lado, e as mecânicas
contextuais de afinidades funcionais expostas nas análises dos autores do outro” 68
(RICARDO, 2009, p. 6). Sendo que a ênfase é dada segundo as intenções do autor.
Outra transformação é advinda de uma mudança de abordagem teórica de um modelo
de um sujeito complexo, mas uno, para um modelo de cognição distribuído. Morris e Swiss
(2006) afirmam que “desde meados da década de 1980 noções de cognição distribuída tem
ido além do indivíduo para focar em circuitos ou sistemas que conectem os seres humanos
uns aos outros, aos artefatos e ferramentas, e às máquinas programáveis e em rede” (p. 3) 69
.
Essa mudança permite ultrapassar as noções humanistas clássicas de gênio e obra-prima. Os
gêneros da literatura eletrônica dão conta de abarcar processos estéticos de uma visão de
homem enquanto ser cibernético em contato reflexivo ininterrupto com as diversas mídias e
tecnologias de informação.
A velocidade de desenvolvimento em novas tecnologias cria um problema para a
preservação de obras. Enquanto um bom livro, impresso em papel de qualidade, bem cuidado,
pode durar muitos anos, as obras eletrônicas rapidamente se tornam obsoletas, e impossíveis
de ser executadas, pois “softwares podem se tornar obsoletos ou migrar para novas versões
ergodic and its overaching bluepring, the cybertext, Since these works both present and respond, we might
view some of them as accomodating a dual phenomenology involving both reader response and author
response”. 68
“it is a distinction that illustrates the flowing etherality articulated by the põem, the virtual or locative world,
or the projective segmento n one hand, and the underlying mechanics of functional affinity as exposed in the
author’s analyses on the other”. 69
“since the mid- 1980s, notions of ‘distributed cognition’ have increasingly extended beyond the individual to
focus on circuits or systems that link human beings with each other, with their material artifacts and tools, and
with their networked and programmable machines”.
41
incompatíveis com as antigas, e novos sistemas operacionais (ou ainda novas máquinas)
podem aparecer nas quais as antigas obras não rodarão” 70
(HAYLES, 2007, p. 40).
O uso do computador como ferramenta para a construção de obras narrativas deve ir
além do uso indiscriminado do hipertexto, de simulação, ou de outras tecnologias como
realidade virtual ou aumentada. Assim
aplicações narrativas atuais superexploram as possibilidades digressivas do
hipertexto e das possibilidades de jogo da simulação, mas isso não é uma
surpresa em uma mídia ainda em seus estágios iniciais. No processo de
maturação das narrativas digitais, as desconhecidas formas de associação
ganharão maior coerência e jogos de combate, por exemplo, darão lugar a
representação de processos mais complexos. Os espectadores participantes
poderão assumir papéis mais claros; aprenderão como se tornar orientadores
nos complexos labirintos e a entender as formações interpretativas nos
mundos simulados. Ao mesmo tempo que essas qualidades formais são
desenvolvidas, escritores desenvolverão uma percepção mais acurada de que
padrões de experiência humana podem ser melhor representados em mídias
digitais. Desse modo uma nova arte narrativa surgirá em um formato de
expressão próprio 71 (MURRAY, 1997, p. 93) [Tradução nossa]
A partir dessa ideia destacamos que é preciso que o uso das tecnologias se harmonize
com as histórias a serem contadas, de forma que sejam superadas tanto as histórias que
simplesmente são contadas por outras mídias, e o uso dessas mesmas tecnologias de forma
indiscriminada, sobrepondo a história. Para cada contexto do computador existem histórias
que melhor se adequam, de forma que é essa descoberta, de qual história deve ser contada por
qual meio, que traria maior naturalidade às histórias eletrônicas.
A seguir apresentamos alguns dos gêneros narrativos elencados sob a bandeira da
literatura eletrônica. Seguimos uma ordem de classificação que se inicia pelos gêneros mais
semelhantes à literatura impressa, até àqueles que apenas possuem características que apenas
são possíveis nos meios eletrônicos e digitais.
70
“commercial programs can become obsolete or migrate to new versions incompatible with older ones, and new
operating systems (or altogether new machines) can appear on which older works will not play .” [Tradução
nossa] 71
“Current narrative applications overexploit the digressive possibilities of hypertext and the gamelike features
of simulation, but that is not surprising in na incunabular medium. As digital narrative develops into maturity,
the associational wilderness will acquire more coherence and the combat games will give way to the portaryal
of more complex processes. Participating viewers will assume clearer roles; they will learh how to become
orienteers in the complex labyrinths and to see the interpretive shaping in simulated worlds. At the same time
as these formal qualities improve, writers will be developing a better feel for which patterns of human
experience can best be captured in digital media. In this way a new narrative art will come into its own
expressive form”.
42
1.5 Gêneros da Literatura Eletrônica
Seguindo a ordem proposta, o primeiro formato, que ainda guarda muitas
semelhanças, e que possui exemplares impressos, a ficção hipertextual é “caracterizada por
estruturas em links, e não linearidade. As primeiras obras desse gênero eram escritas em
softwares72
específicos como Storyspace. Essas obras experimentais, eram apenas blocos de
texto acessados por links diversos, que exploravam a possibilidade de reordenação do
hipertexto. (HAYLES, 2007, p. 6).
As obras posteriores, surgidas após o advento da Web, passaram a fazer uso das
capacidades multimídia da rede e dos computadores, de forma que trabalhos posteriores vão
além dos links de texto e “utilizam uma gama maior de esquemas de navecação e metáfores
na interface que tendem a remover a ênfase no link enquanto tal”. 73
(HAYLES, 2007, p. 6-7).
Nesse caso, são obras construídas já em texto, imagem, áudio, vídeo, e que qualquer uma das
mídias pode apresentar uma informação relevante.
Murray (1997, p. 87) relaciona as obras hipertextuais com a natureza enciclopédica
dos meios digitais, assim “elas encorajam morosidade e ausência de forma aos contadores, e
deixam leitores/receptores imaginando qual dos muitos pontos finais é o fim e como podem
saber se viram tudo que há para ser visto” 74
Ainda de acordo a citada autora esse tipo de obra
pode tornar a leitura lenta e desagradável. A não linearidade, característica do hipertexto,
causa dúvida nos leitores sobre qual a melhor ordenação, ou, sobre as diversas possibilidades
de organização do texto.
O grande problema no uso do hipertexto é que as obras construídas por meio dessa
tecnologia precisam de muitas ações dos leitores, muitos clicks, de forma que o leitor se perde
em meio à quantidade de informação. Nesse contexto, entendemos que a relação com a
história perde a fluidez, tornando-se enfadonha. Assim, acreditamos que o desafio desse
gênero é construir histórias que ao mesmo tempo utilizem-se das possibilidades do hipertexto
para fugir da linearidade ordinária, mas que ao mesmo tempo não percam a fluidez.
O desenvolvimento tecnológico, além de permitir o surgimento de novos gêneros,
também acarreta alterações em um mesmo gênero. É o caso de mutações sofridas pela ficção
72
Sobre o conceito de software cf. Pressman (2011). 73
“use a wide variety of navigation schemes and interface metaphors that tend to deemphasize the link as such”. 74
“it encourages long-windedness and formlessness in storytellers, and it leaves readers/interactors wondering
which of the several endpoints is the end and how they can know if they have seen everything there is to see
43
hipertextual “em uma gama de formas misturadas, incluindo narrativas que surgem
diretamente de bancos de dados” 75 (HAYLES, 2007, p.7). Sendo que cada um desses
gêneros, ainda mantém o uso de links, ao mesmo tempo em que apelam para outras estratégias
de construção textual. Em The Jew’s Daughter 76
, por exemplo, Judd Morrissey e Lori Talley,
constroem uma narrativa em que blocos de texto são alterados ao passar o mouse sobre
determinadas palavras-chave.
Figura 1. The Jews Daughter – Ao passar o mouse pela palavra azul um bloco de texto é substituído por outro
Podemos observar pelo fragmento de The Jews Daughter um exemplo de leitura que
pode se tornar complicada. Ao passar o mouse sobre a palavra em destaque, em azul, uma
parte do texto muda automaticamente, independente de ter sido lida ou não. Essa mudança,
por sua vez, cria outro texto que apresenta novas palavras em destaque resultando em não-
linear. Essa não linearidade, entretanto, não permite que o leitor volte em suas escolhas,
levando esse leitor a se questionar sobre as possibilidades de leitura perdidas.
75
into a range of hybrid forms, including narratives that emerge from a collection of data repositories 76
A obra pode ser lida em http://www.thejewsdaughter.com/
44
Um gênero que ainda mantém algo dos gêneros impressos, mas ao mesmo tempo
possui um afastamento maior são as ficções interativas 77
, as quais agregam elementos de jogo
às narrativas. Hayles (2007,p. 8) afirma que “os limites entre a literatura eletrônica e os jogos
de computador não são claros; muitos jogos possuem elementos narrativos, enquanto muitas
obras literárias possuem elementos de jogo” 78
Entretanto, é possível propor uma separação
quanto ao objetivo: em literatura eletrônica os instrumentos de jogo surgem para dar forma à
narrativa, enquanto nos jogos os elementos narrativos aparecem como contexto para o jogo 79
.
Essa aproximação com o jogo permite que a literatura eletrônica utilize técnicas como
“animação gráfica, imagens, e modificações de aparelhos literários tradicionais” 80
(HAYLES,
2007, p. 9).
Nessas obras interativas
O quadro interpretativo é inserido nas regras pelas quais o sistema funciona
e no modo pelo qual a participação é determinada. Mas as capacidades
enciclopédicas dos computadores podem nos distrair de questionar por que
as coisas funcionam como funcionam e por que somos requisitados a
interpretador um determinado. Quanto maior for o conteúdo narrativo de
determinado sistema, mais importante torna-se a natureza interpretativa
dessas estruturas 81
(MURRAY, 1997, p. 89) [Tradução nossa]
A construção adequada da história é o fator que impede que o interpretante questione
as escolhas limitadas, ou seja, ainda que existam poucas opções de ação interativa, essas
opções apenas precisam atingir o máximo do espectro de possibilidades do universo da obra.
Ressaltamos ainda que segundo Murray (1997) um bom enquadramento facilita a imersão e
resolve a problemática dos balizamentos no agenciamento.
77
Interative Fiction (IF) em Hayles (2007) 78
“the demarcation between electronic literature and cumputer games is far from clear; many games have
narrative componentes, while many Works of electronic literature have game elements”. 79
Hayles (2007) cita estudo de Monfort (cf. MONFORT, N. Twisty Little Passages: An Approach to Interactive
Fiction, The Mit Press, 2005) em que o autor afirma que nas ficções interativas o programa é um analisador
sintático, o usuário interpreta um personagem por meio de comandos específicos, que são interpretados pela
obra. 80
“visual displays, graphics, animations, and clever modifications of traditional literary devices”. 81
“the interpretive framework is embedded in the rules by which the system works and in the way in which
participation is shaped. But the encyclopedic capacity of the computer can distract us from asking why things
work the way they do and why we are being asked to play one role rather than another. As these systems take
on more narrative content the interpretative nature of these structures will be more and more important”.
45
Outra evolução técnica ocorrida na parte gráfica é a criação de universos em três
dimensões. Em Deviant: the possession of Christian Shaw, por exemplo, Hayles (2007) cita a
possibilidade de exploração da interatividade em profundidade. A obra é construída
completamente por meio das imagens, e ainda que não possua texto, é dotada de aspectos
narrativos similares. A cena inicial, figura 2, apresenta uma pequena cidade em que alguns
pontos são dotados de nós que ao serem escolhidos dão (ou não) continuidade à história.
Assim, como as IFs textuais, os comandos executados são necessários para o
desenvolvimento da ação.
Figura 2. Deviant: The possession of Christian Shaw – Tela inicial da história
Nessa história algumas janelas dos prédios levam o leitor para outros pontos da
história. As árvores apresentam mudanças etc. É possível perceber também que a imagem
apresenta profundidade.
Para Hayles (2007) o próximo passo é ir das imagens em três dimensões virtuais para
imersão em espaços concretos, acompanhando o desenvolvimento de computadores portáteis,
46
inteligentes e ubíquos. Entre esses gêneros estão às narrativas locativas, que vão desde obras
curtas focadas em áudio, até os aplicativos de celular que utilizam de técnicas das mídias
locativas. As obras locativas no geral “colocam em primeiro plano a habilidade do leitor de
integrar locais concretos com narrativas virtuais” 82
(HAYLES, 2007, p. 12).
Diferentes das narrativas locativas, as instalações locativas são caracterizadas pela
ausência de mobilidade. São ambientações criadas por meio de tecnologias tais como:
multimídia e realidade virtual, tem como objetivo modificar a experimentação dos processos
de recepção ao afastar a experiência dos processos tradicionais de leitura impressa, tornam a
relação com a informação um processo de corpo inteiro.
As instalações questionam o lugar da leitura, “envolvendo não somente atividade
cerebral de decodificação, mas interações corporais com as palavras percebidas como objetos
que se movem no espaço”.83
(HAYLES, 2007, p. 13) Além das palavras a própria ideia de
texto é questionada, além da discussão sobre a imersão já que
entrar na narrativa agora não significa abandonar a superfície, como quando
um leitor mergulha em um mundo imaginário [ficcional] e o considera tão
absorvente que deixa de perceber a existência da página. Aqui, a ‘página’ é
transformada em uma topologia complexa que transformasse rapidamente de
uma superfície estável em um espaço ‘jogável’ no qual ela [o leitor] é um
participante ativo 84
(HAYliteratura eletrônicaS, 2007, p. 13) [Tradução
nossa]
A imersão deixa de ser uma metáfora para um estado de apreciação do universo da
narrativa e passa a ser uma variável concreta do processo de interação com o texto. O
leitor/receptor interage com o mundo ficcional por meio de uma série de estratégias
possibilitadas pelos meios eletrônicos.
Hayles (2007, p. 15) cita, também, os dramas interativos (interactive dramas) que são
“dramas formados por um script geral que delimita os personagens e a ação inicial (algumas
vezes o fim também é determinado), permitindo que os atores improvisem as ações e o
82
“foreground the user’s ability to integrate real-world locations with virtual narratives”. 83
“involving not just cerebral activity of decoding but bodily interactions with the words as perceiveds objects
moving in texts”. 84
“entering the narrative now does not mean leaving the surface behind, as when a reader plunges into na
imaginative world and finds it so engrossing that she ceases to notice the page. Rather, the ‘page’ is
transformed into a complex topology that rapidly transforms from a stable surfasse into a ‘playable’ space in
which she is an active participant”.
47
roteiro” 85
. Esse gênero divide com as narrativas locativas e instalações questões sobre
presença ou copresença, autoria e hibridismo entre real/ficcional. Ressaltamos que a
copresença pode representar estar conectado, ao mesmo tempo, em espaços concretos
diferentes, mas no mesmo espaço virtual ou no mesmo espaço, concreto ou virtual, em tempos
diferentes, de forma a compartilhar marcas. São obras construídas “ambientadas e executadas
para audiências ao vivo em galerias em combinação com atores presentes in-loco ou de forma
remota” 86
(HAYLES, 2007, p. 15). A interatividade aparece na escolha dos atores, que são,
geralmente, o próprio público ou ainda na possibilidade de decisão das ações pelo próprio
público. O uso da tecnologia aparece na possibilidade da participação remota em modelo de
copresença e ainda na possibilidade da realização online.
Hayles (2007) cita o exemplo da obra Façade87
. Essa obra não guarda semelhança
com a ideia do teatro, já que os personagens não são atores, mas programas de computador.
Na obra, o usuário é o convidado de um casal que tem problemas de relacionamento e pode
intervir na história, de diversas formas, porém o final não é alterado: “escolhas programadas
que mantém intacta a estrutura de enredo Aristótelica constituída por iníucio, meio e fim” 88
(HAYLES, 2007, p. 16).
Um questionamento possível para essas obras interativas é: Qual o limite para a tensão
entre interatividade e narrativa? Já que são os próprios usuários que determinam a história,
qual o limite entre a abertura e o fechamento, para que ainda seja possível a experimentação
da narrativa? Como criar estratégias que delimitem adequadamente a separação entre ficcional
e concreto?
Assim como existem obras que, apesar de ter aspectos de games, são
predominentemente narrativas, existem games, que possuem aspectos narrativos. Ainda que
aparentemente, os games e as narrativas possuam características muito diferentes, que são
experimentadas, de maneira diversa. Os aspectos do jogo são geralmente simples, envolvem
85
“many of these dramas proceed with a general script outlining the characters and the initiating action
(sometimes the final outcome will also be specfied), leaving the actors to improvise the intervening action and
plot”. 86
“site specific, performed for live audiences in gallery spaces in combination with present and/or remote
actors”. 87
Disponível em http://www.interactivestory.net/. 88
“a programming choice that maintains intact the Aristotelian plot structure of a beginning, middle, and end”.
48
“algum tipo de atividade geralmente focada no domínio de alguma habilidade, de estratégia
como no xadrez ao uso de um joystick” 89 (MURRAY, 1997, p.140).
Apesar da existência de algumas dessemelhanças entre games e narrativas, existem
muitas possibilidades de aproximar ambos. Os jogos são formas diferentes de contar histórias
em que são apresentados quadros específicos do mundo ficcional, de forma que, “todos os
jogos, eletrônicos ou não, podem ser experienciados como dramas simbólicos.
Independentemente do conteúdo do jogo, independentemente do nosso papel nele, somos
sempre protagonistas da ação simbólica” 90
(HAYLES, 1997, p. 142). Assim que, em
qualquer jogo existe um aspecto relevante de narrativa, seja ficcional ou não, mas que
acompanha a suspensão de descrença.
A tensão entre o jogo, o eletrônico e o literário resulta em “um incremento na inovação
e experimentação, com soluções que vão desde o fechamento e limitações das primeiras obras
construídas com o Storyspace aos limites aristotélicos de Façade” 91
(HAYLES, 2007, p. 17).
Sobre a literatura eletrônica e os questionamentos feitos, não há uma única resposta, e essas
respostas não giram em torno do certo e errado, mas, das possibilidades da mídia e das
intenções do autor92.
Outro dos gêneros eletrônicos é a arte gerativa “em que um algoritmo é usado para
gerar textos de forma aleatória ou para embaralhar e reorganizar textos já existentes” 93
(HAYLES, 2007, p. 18), ou seja, é o próprio computador que constrói os textos ou reconstrói
textos já prontos, seguindo programações específicas. Esse processo “é uma forma de quebrar
as limitações de sentido e liberar as resistências que existem latentes na linguagem, liberando-
a da linearidade da sintaxe e da coesão narrativa” 94
(HAYES, 2007, p. 20). A arte generativa
é um moodelo de arte que se propõe utilizar a tecnologia com o intuito de criar novas ou
deformar antigas estratégias de construção textual.
89
“some kind of activity and are often focused on the mastery of skills, whether the skill involves chess strategy
or joystick twitching”. 90
“every game, electronic or otherwise, can be experienced as a symbolic drama. Whatever the contente of the
game itself, whatever our role whitin it, we are Always the protagonists of the symbolic action”. 91
“the response to this tension in electronic literature has been a burst of innovation and experimentation, with
solutions ranging from the guard fields of classic Storyspace works to the Aristotelian constraints of Façade”. 92
Hayles (2007, p. 17) afirma que duas das respostas tem sido “uma virada para a poesia, e para os formatos em
que o processo de construção do texto é automatizado”, ou seja, para uma mudança na linguagem e na
construção do texto. 93
“whereby an algorithm is used either to generate texts according to a randomized scheme or to scramble and
rearrange preexisting texts”. 94
“is a way to break the hold of the viral word and liberate resistances latent in language by freeing it from linear
syntax and coherent narrative”. Hayles (2007) explica as possibilidades de “cut-up” e “fold-in”. A técnica
gerativa permite uma fuga ao controle consciente dos processos de construção linguística.
49
Outro dos gêneros, o Code work pode ser definido como
uma pratica linguística na qual inglês (ou outra linguagem natural) é
hibridizada com expressões de programação para criar uma mistura de
línguas que diga algo a leitores humanos, especialmente aqueles
familiarizados com as denotações das linguagens de programação. ‘Code
Work’ em sua forma mais pura é executável por máquinas, como os poemas
em Perl que literalmente possuem dois destinatários, humanos e máquinas
inteligentes. Mais comumente essas misturas utilizam ‘código quebrado’,
código que não pode ser executado mas que usa expressões e marcações de
linguagens de programação que evocam conotações com significado
linguístico 95
(HAYLES, 2007, p. 20-21) [Tradução nossa]
É a hibridação dos léxicos de código com as línguas correntes. Obras como essas são
construídas com trocadilhos, neologismos e outras formas de inovações na linguagem. Esse
gênero cria uma zona de trocas entre a linguagem humana e as linguagens de programação, e
ao misturar os universos linguísticos de homens e máquinas seria responsável por tornar
visível “na superfície da tela uma condição intrínseca a todas as textualidades eletrônicas,
declaradamente as dinâmicas entre as linguagens exclusivas de humanos e as linguagens
exclusivas das máquinas” 96
(HAYLES, 2007, p. 21) [Tradução nossa].
Essa mistura de linguagens, em uma análise mais profunda, também traz a superfície
“a complexa hibridação em processo entre a cognição humana e a muito diferente, mas ainda
assim com certa conexão, cognição de máquinas inteligentes” 97
(HAYLES, 2007, p. 21)
[Tradução nossa].
Nesse capítulo definimos a literatura eletrônica e discutimos os possíveis termos que
podem ser empregados para designar esse grupo de gêneros, para, logo em seguida
justificarmos o porquê escolhermos literatura eletrônica. Dando seguimento, apresentamos
algumas características específicas de ambientes digitais que são influenciam na forma como
as obras eletrônicas são construídas.
95
“a linguistic practice in which English (or some ohter natural language) is hybridized with programming
expressions to create a creole evocation for human readers especially those familiar with the denotations of
programming languages. ‘Code work’ in its purest form is machine readable and executable, such as Perl
poems that literally have two adresses, humans and inteligente machines. More Typical are creoles using
‘broken code’, code that cannot actually be executed but that uses programming punctuation and expression.
To evoque connotations appropriate to the linguist signifiers”. 96
“on the screenic surfasse a condition intrisic to all electronic textuality, namely the intermediating dynamics
between human-only languages and machine-readable code”. 97
“the complex hybridization now underway between human cognition and the very different and yet interlinked
cognitions of inteligente machine”. Cf. HAYliteratura eletrônicaS, N. Katherine. How we became
posthuman: Virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. University of Chicago Press, 2008,
para mais sobre máquinas inteligentes e hibridação entre cognição humana e cognição de máquinas.
50
Apresentados os ambientes digitais, relacionamos a literatura eletrônica com
característcas da literatura impressa e da arte não eletrônica. Por fim, elencamos uma série de
gêneros eletrônicos narrativos em uma ordem que foi domais parecido com a literatura
impressa para os menos parecidos.
No capítulo seguinte discutimos nosso referencial teórico bakhtiniano. Tratamos os
conceitos de gêneros discursivos e cronotopo, buscando entender as narrativas locativas como
gênero, e propor a existência de um cronotopo locativo próprio dessas obras.
51
2 GÊNEROS DISCURSIVOS E CRONOTOPO EM BAKHTIN E NO CÍRCULO
Nesfe capítulo, tratamos dos conceitos de gêneros do discurso; utilizaremos ao longo
deste trabalho, tanto gêneros discursivos, quanto gêneros do discurso ou somente gêneros para
nos referirmos à mesma ideia, e cronotopo, segundo a filosofia da linguagem de Bakhtin e o
Círculo. Para essa discussão, entendemos que esses conceitos bakhtinianos não se separam
um do outro, mas se entrelaçam e se estendem, formam uma teia longa, embasam-se
mutuamente. Assim, para apresentar tanto os gêneros quanto o cronotopo, de maneira mais
fiel, citamos, em alguns momentos, outros conceitos bakhtinianos relevantes como o de
autoria, ou de forças centrípetas e centrífugas.
Entendendo a abertura e o inacabamento proposto por Bakhtin em seus escritos,
buscamos nestas páginas seguintes um equilíbrio entre o didatismo necessário para o
entendimento e o dialogismo e abertura propostos por Bakhtin. Dedicamo-nos a manter maior
fidelidade possível com o inacabamento bakhtiniano, ao mesmo tempo em que, tentamos ser
didáticos o suficiente, para que nossos objetivos possam ser alcançados.
Para os de gêneros do discurso, estabelecemos o texto “gêneros do discurso” (1997)
como fonte principal, de forma que temos as definições de estilo, conteúdo temático e forma
composicional como centro; além disso, também discutimos o papel das esferas de atividade e
do alocutário na construção dos enunciados. Apesar desse foco principal no texto supracitado
também destacamos a importância de outras definições já citados na introdução. Tratamos o
conceito de gênero, também, em função da existência dos enunciados relativamente estáveis
em cada esfera de atividade, sendo que a ideia da esfera de atividade é tratada como um
delimitador para as escolhas linguísticas.
52
Além do conceito de gêneros discursivos, neste capítulo também trabalhamos o
conceito de cronotopo. Discutimos ambos em separado, ainda que existam muitos pontos de
interconexão, para facilitar o processo de análise das narrativas locativas. Examinamos o
conceito de cronotopo como uma relação indissolúvel entre o tempo e o espaço, e que
extrapola a ideia de contexto, como uma categoria filosófica que existe anteriormente ao
contexto, que o delimita e determina e que extrapola o universo dos gêneros literários, sendo
uma categoria aplicável a qualquer ato da vida.
2.1 Uma breve exposição sobre o conceito de gêneros do discurso em Bakhtin e no
círculo
Iniciamos a nossa discussão dos gêneros, a partir de Bakhtin (1981, p. 29), de que “as
relações de produção e a estrutura sócio-política que delas diretamente derivam, determinam
todos os contatos verbais possíveis entre os indivíduos, todas as formas e os meios de
comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na construção ideológica”. Assim,
entendemos que as possibilidades de uso verbal são delimitadas por características específicas
existentes nas diversas formas de atividade, sejam tais atividades do âmbito da infraestrutura,
ou relações de produção ou da superestrutura, estruturas sócio-políticas.
Essa relação entre infraestrutura, superestrutura e as formas e meios de comunicação é
refratada na forma de coerções específicas sobre as diversas formas de comunicação verbal.
São essas coerções que determinam e delimitam a construção de enunciados, que são,
segundo Bakhtin (1997), a “estrutura real da comunicação”, de forma que esses enunciados se
adequam a “uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a todas as
flutuações da atmosfera social” (p. 29).
Morson e Emerson (2008, p. 307) completam que essas coerções existem também na
forma de um “resíduo de um comportamento passado, um acréscimo que guia e coage o
comportamento futuro”, já que as interações passadas guiam as interações futuras, ou ainda,
os enunciados futuros são construídos com base nas coerções e recursos dados por enunciados
já existentes, levando em consideração que essas construções novas não são mera repetição, e
sim, o novo feito com base no que já existe. As determinações de um conjunto de enunciados
funcionam como ponto de partida para construção dos enunciados novos.
53
Assim, as coerções têm o papel de manter uma estabilidade nos enunciados concretos
de cada esfera. Segundo Bakhtin (1997,p. 279)
cada esfera de atividade possui suas coerções verbais específicas, tipos mais
ou menos estáveis de enunciados, ou seja, gêneros discursivos. O enunciado
reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela
seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais –, mas também, e, sobretudo, por sua construção composicional.
Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional)
fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são
marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação
Podemos, então, afirmar que as condições específicas e as finalidades de cada esfera
de produção e suas relações socioeconômicas, refletidas nos enunciados por meio do tema, do
estilo e da forma composicional, são o que Bakhtin (1997) chama de gêneros discursivos.
Ressaltamos que esferas de uso da linguagem não são uma noção abstrata. Segundo Machado
(2005, p. 156), essa é “uma referência direta aos enunciados concretos que se manifestam nos
discursos”.
Holquist (2002, p. 62) explica que conteúdo temático é “o que é percebido como a
exaustão imanente do tema do enunciado” 98
; enquanto estilo é definido como “o
planejamento discursivo do locutor” 99
; e a forma composicional, “as formas típicas de
acabamento de enunciados” 100
.
Bakhtin (1981) afirma que existem, nos enunciados, duas características, uma, a
significação que é repetível e estrutural; outra, irreiterável, o tema, expõe, ainda, que, no
geral, os enunciados completos são realizados em meio a características sóco-históricas
específicas, sendo assim, únicos.
Para Morson e Emerson (2008, p. 308)
precisamos declarar as relações sociais entre os falantes e sua relação com os
estranhos; indicar um conjunto de valores; oferecer um conjunto de
percepções e maneiras de perceber; esboçar um campo de ações possíveis,
prováveis ou desejáveis; transmitir uma percepção vaga ou específica do
tempo e do espaço; sugerir um tom apropriado; incluir ou excluir vários
estilos e linguagens de heteroglossia; e negociar um conjunto de propósitos
98
what is perceived as the imamnent semantic exhaustiveness of the utterance’s theme” 99
“the speech plan of the speaker” 100
“the typical generic forms of finalization”
54
A partir dessas características destacadas pelos autores citados, podemos perceber que
a necessidade de cumprir todos esses requisitos, em um enunciado específico, seria
praticamente impossível, se a cada nova interação todos os formatos de representar essas
características tivessem que ser recriados. Temos, então, que os gêneros do discurso são as
formas determinadas ou que determinam como os comunicantes se fazem entender, durante o
processo de comunicação, portanto, são os gêneros discursivos que “funcionam como ponto
de partida para trocas particulares” (MORSON e EMERSON, 2008, p. 308).
O estudo dos gêneros guia-se mais pelos meios de construção dos enunciados, que em
seus produtos finais ou nos enunciados em si mesmos. O conceito de gêneros se inicia no
vínculo entre linguagem e atividade. Para Fiorin (2006, p. 61) “só se age na interação, só se
diz no agir e o agir motiva certos tipos de enunciados, o que quer dizer que cada esfera de
utilização da língua elabora tipos estáveis de enunciados”. A estabilidade dos enunciados tem
como ponto de partida seu uso no processo de interação, nas esferas de atividade.
É por meio dos gêneros que a linguagem se relaciona com a vida, e, por meio dos
enunciados concretos, a vida social penetra na linguagem, e a linguagem, por sua vez, penetra
na vida (FIORIN, 2006). Entendemos com o autor citado que, nos enunciados concretos, a
linguagem reflete e refrata situações específicas da vida e as esferas de produção em que os
gêneros se relacionam, de forma que há uma situação reflexiva em que os gêneros são
acabados e dão acabamento à vida.
Morson e Emerson (2008, p. 308) relacionam os gêneros à vida e às experiências
concretas e reais, de modo que
cada gênero implica um conjunto de valores, um modo de pensar a respeito
dos tipos de experiência e uma intuição sobre a conveniência de aplicar os
gêneros em qualquer contexto dado. Uma quantidade enorme de conteúdo
cognitivo não-formalizado é adquirida sempre que aprendemos um novo tipo
de atividade social com seus gêneros concomitantes, conteúdo cuja própria
natureza permaneceu em grande parte não-examinada
Do exposto deduzimos que, para cada situação específica de comunicação, existe ao
menos um gênero específico que deve ser utilizado, sendo que tal gênero é formado por
relações sociais e históricas concretas. Podemos ainda afirmar que, para cada novo gênero,
temos: novas regras, novos conhecimentos de situações de uso, novas formas de tratamento de
conteúdos. Assim, o aprendizado de um novo gênero liga-se diretamente com o
relacionamento com uma esfera de atividade. Acrescentamos, ainda, que a relação dos
55
gêneros com a esfera de produção resulta que o número de gêneros possíveis é virtualmente
infinito.
Os gêneros do discurso são estruturas, apenas, relativamente estáveis, pois refletem e
refratam mudanças que acontecem na sociedade, de forma que para Bakhtin (1997, p. 279)
“cada esfera de atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais
complexa”. Os gêneros são, assim, históricos e espaciais, cronotópicos em essência, o que
significa dizer que acompanham o desenvolvimento das formas de atividade no tempo e no
espaço. Fiorin (2006) complementa que essa relativa estabilidade também é observada na
imprecisão das fronteiras entre um gênero e outro, pois inexistem limites claros entre um e
outro gênero.
Morson e Emerson (2008, p. 309) explicam que o processo de surgimento dos gêneros,
na história, é por meio de adição. Os autores comparam esse processo a uma colcha de
retalhos em que pedaços distintos são agrupados em um todo. Portanto,
não se pode entendê-los a menos que se reconheça que são compromissos,
jamais projetados desde o início para o propósito a que servem atualmente,
mas adaptados para esse propósito a partir de formas que serviam
anteriormente a outros propósitos. Como a maioria dos produtos da
evolução, eles são perfeitamente adequados ao seu uso presente – e por isso
mesmo são relativamente adaptáveis a usos futuros, para os quais serão
também aceitavelmente, mas não otimamente apropriados. Feitos com
ingredientes à mão, tornam-se parte de um prato misto de cultura – a sua
satura prosaica – de oferendas preparadas às pressas (MORSON e
EMERSON, 2008, p. 309)
Assim, os novos gêneros são sempre, em certa medida, adaptações e novos usos de
gêneros antigos. São formas relativamente estáveis que se misturam para dar conta das novas
atividades que surgem. Existem no presente sem esquecer o passado e sempre apontando para
as possibilidades de futuro. Tomando por base esse entendimento, podemos destacar que as
narrativas locativas, por exemplo, são a junção de uma série de gêneros pré-existentes tais
como o teatro e outros gêneros narrativos, os games, guias turísticos modificados, somados,
misturados, para possibilitar uma nova forma de contar histórias, por meio de uma nova
tecnologia.
56
Ainda sobre a origem dos gêneros, Machado (2005, p. 154) destaca que não é um
processo de substituição de uma forma discursiva por outra, mas “de evolução das próprias
práticas significantes de sistemas comunicativos que emergem das interações dialógicas,
ainda que cada uma delas tenha seu campo de significação muito preciso”, de forma que o
surgimento de um gênero não significa, necessariamente, o desuso de outro. Nesse sentido
acreditamos que o surgimento de narrativas locativas não desestimula, nem prega contra as
formas narrativas anteriores, apenas acrescenta uma nova possibilidade em uma esfera de
produção única.
Os gêneros devem ser vistos como estruturas fluídas, não “moldados mediante projeto
ou integrados como uma estrutura, os gêneros não podem ser adequadamente descritos como
ou por um sistema de regras” (MORSON e EMERSON, 2008, p. 309). Afirmamos a partir daí
que mesmo ao apresentar a existência de coerções, critérios, regras, cada gênero é mais ou
menos livre, escapam às tentativas de definição limitantes, não só por serem estruturas
cronotópicas, mas também, por serem mais ou menos determinados pela situação de uso, bem
como por permitirem ao usuário maior ou menor liberdade.
A relação entre discurso e práticas sociais engendrada pelo conceito de gêneros do
discurso é, segundo Machado (2005), responsável pela criação de um lugar possível para
manifestações de discursos diversos. De acordo com a citada autora (2005, p. 152),
graças a essa abertura conceitual é possível considerar as formações
discursivas do amplo campo da comunicação mediada, seja aquela
processada pelos meios de comunicação de massas ou das modernas mídias
digitais, sobre o qual, evidentemente, Bakhtin nada disse mas para o qual
suas formulações convergem.
Daí deduzir que é apenas no próprio universo conceitual dos gêneros, em sua relação
com o tempo histórico e com o espaço, afeito a mudanças e a adaptações às diversas esferas
de atividade ser possível discutir gêneros aos quais Bakhtin não poderia ter previsto. É
exatamente nesse espaço que colocamos as narrativas locativas, gênero que apenas se torna
passível de análise por essa estrutura conceitual devido a essa relação direta entre os gêneros e
a vida.
Os gêneros têm peculiaridades específicas em cada uma das esferas de atividade.
Podem ser mais simples ou mais complexos, vão desde a conversa íntima com os familiares
às diversas linguagens científicas. Bakhtin (1997) diferencia esses gêneros em primários e
secundários. Segundo esse autor, os gêneros primários são os mais simples, os gêneros do
57
cotidiano, enquanto os secundários “aparecem em circunstâncias de uma comunicação
cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída” (p. 281).
A fixação dessas duas categorias não significa um atestado de pureza, já que os
gêneros primários são absorvidos e transformados para a criação dos gêneros secundários.
Bakhtin afirma que no processo de formação dos gêneros secundários os gêneros primários
perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a
realidade dos enunciados alheios – por exemplo, inseridas no
romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua
forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do
romance, só se integram à realidade existente através do romance
considerado como um todo (BAKHTIN, 1997,p. 281)
Quando um gênero primário é utilizado em um enunciado de um gênero secundário
ele perde sua ligação direta com a vida, e passa a significar apenas quando considerado no
plano maior em que se inclui. Por exemplo, um diálogo entre amigos, em uma obra de
narrativas locativas, deixa de ser um diálogo direto e passa a fazer parte de um contexto maior
que é o todo da obra.
Segundo Bakhtin (1997) as situações sociais concretas e reais, que se realizam em
esferas de produção, e definem as coerções que tratamos como gêneros do discurso, são
refratadas nos usos de linguagem principalmente em três características: um estilo, um
conteúdo temático e uma forma composicional. De forma que Fiorin (2006, p.61) define os
gêneros do discurso como “tipos de enunciados relativamente estáveis, caracterizados por um
conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo”. Estilo, conteúdo temático e
construção composicional são características indissociáveis uma da outra e dão forma aos
enunciados específicos de cada gênero.
O enunciado concreto, situado historicamente, tem um locutor e como tal reflete a
individualidade, o estilo desse locutor. Porém, segundo Bakhtin (1997), cada gênero tem um
grau diferente de liberdade estilística. Esse autor afirma que os gêneros literários são mais
propícios ao estilo individual enquanto que os gêneros padronizados, como as ordens
militares, ou os documentos oficiais, são menos propícios a expressar a individualidade do
locutor.
58
Ser historicamente situado indica um pertencimento a um certo tempo e um certo
espaço. Machado (2008, p. 158) afirma que os gêneros existem como manifestação da cultura
e que “nesse sentido, não é espécie nem tampouco modalidade de composição; é dispositivo
de organização, troca, divulgação, armazenamento, transmissão e, sobretudo, de criação de
mensagens em contextos culturais específicos”. Assim os gêneros não são somente formas
específicas de estruturar os usos de linguagem, mas trazem consigo um repositório de formas
de representar a vida. Essa noção dos gêneros como formas de representar em contextos
específicos apontam novamente para a impossibilidade de pensar um gênero longe do
conceito de cronotopo.
Cada gênero insere-se em um contexto cultural específico “em relação ao qual se
manifesta como ‘memória criativa’ onde estão depositadas não só as grandes conquistas das
civilizações, como também as descobertas significativas sobre os homens e suas ações no
tempo e no espaço” (MACHADO, 2005, p. 159). Permitem o relacionamento cultural do aqui
e agora com o passado e também com o futuro, funcionam como memória e como potência.
Citamos as narrativas locativas como um gênero que mistura as tecnologias mais novas em
relação a um posicionamento global; realidade virtual; realidade aumentada; a formatos
narrativos para (re)contar histórias de, e, em locais que existem de qualquer tempo.
A relação do conceito de gênero com o de cronotopo aponta novamente para a
existência do gênero como um elo em que cada gênero específico surge “dentro de algumas
tradições com as quais se relacionam de algum modo, permitindo a reconstrução da imagem
espaciotemporal da representação estética que orienta o uso da linguagem” (MACHADO,
2008, p. 159), o que segundo a autora elimina as ideias de nascimento original ou de morte
definitiva dos gêneros.
A seguir apresentamos o conceito de cronotopo, de acordo com Bakhtin, como uma
ideologia modeladora de acontecimentos. Também como formulações concretas, ou seja,
dotadas de características específicas e perceptíveis para cada situação. Tempo e espaço que
extrapolam a ideia limitada de um contexto que envolve acontecimentos, mas a própria força
criadora do sentido desses acontecimentos.
59
2.2 Cronotopo: tempo e espaço para Bakhtin e o Círculo
Bakhtin (2014, p. 211) define cronotopo como “a interligação fundamental das
relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura”, de forma que
teremos sempre duas variáveis: tempo e espaço, que possuem existência própria, mas não
independentes uma da outra. O autor afirma que, mesmo utilizando um termo já existente em
outras ciências, e que esse termo guarde semelhanças com os usos na física de Einstein, para o
raciocínio da cultura, ele deve ser apropriado quase como uma metáfora.
Diferente da física e de outras ciências exatas, o tempo artístico-literário, discutido por
Bakhtin (2014, p. 211), não existe apenas em função de grandezas numéricas exatas, sendo
esse apenas um dos tipos cronotópicos possíveis. A relação de semelhança, entre tempo e
espaço físico e literário, existe na “expressão de indissolubilidade de espaço e tempo”. O
tempo funciona como uma quarta dimensão do espaço e unidos constituem uma das
categorias definidoras da ação do universo literário.
O conceito de cronotopo, como ntos outros bakhtinianos está fragmentado por
diversos de seus escritos, mas o filósofo russo escreveu um texto específico para definir esse
conceito, nesse texto Bakhtin (2014) afirma que não busca uma “precisão” em suas
formulações teóricas, apresenta o cronotopo principalmente por meio de análises de
cronotopos já existentes e praticados, e destaca que no cronotopo artístico literário
ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e
concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente
visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do
enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o
espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de
séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN,
2014, p. 211)
Dito isso, depreende-se que o tempo e o espaço precisam ser considerados em sua
plenitude, ou seja, além de datas e nomes de cidades ou ruas, o tempo e o espaço, em um
mesmo objeto artístico, precisam ser tratados em suas correlações características. Em termos,
por exemplo, de movimento ou inércia, de exatidão ou incerteza, de metafísica ou concretude,
de forma que o tempo, em uma obra, reflete e refrata também a forma de representar o espaço.
Para o pensamento cronotópico, a relação entre tempo e espaço, extrapola a construção
de um contexto. O cronotopo avança ativamente sobre a construção de sentido, relaciona-se
diretamente com cada um dos gêneros do discurso, principalmente, mas não exclusivamente
60
na literatura, determina as escolhas das formas de tratamento dos temas e do uso da
linguagem.
Segundo Bakhtin (2014,p. 212) a ligação entre o cronotopo e os gêneros é tão intensa
que em literatura “o gênero e as variedades de gênero são determinadas justamente pelo
cronotopo, sendo que em literatura o princípio condutor é o tempo” Além de determinar o
gênero e o contexto, “o cronotopo como categoria conteudístico-formal determina (em
medida significativa) também a imagem do indivíduo na literatura” (BAKHTIN, 2014, p.
212). O que nos leva a deduzir que para cada representação espaçotemporal há uma
representação possível do indivíduo, de forma que na nossa hipótese de existência de um
cronotopo locativo caberia a existência também de uma representação específica de indivíduo:
um homem locativo.
Assim como os gêneros do discurso, o cronotopo também reflete e refrata a vida. Para
Bakhtin (2014, p. 212) a literatura apropria-se, não somente como reflexão, mas também
como refração da existência de um cronotopo real e histórico: com base nas diversas
possibilidades de cronotopos reais e históricos outras concepções de tempo e espaço são
construídas na literatura. Cada um desses diferentes cronotopos apresenta, ou representa,
“condições e aspectos determinados do cronotopo acessíveis em dadas condições históricas”.
Os conceitos de gênero e de cronotopo se entrelaçam, pois, enquanto cada gênero
apresenta sua forma de enunciados específicos, cada um desses enunciados formadores do
gênero apresenta, ou representa, um tipo de cronotopo. Como os gêneros, os cronotopos
também se desenvolvem no tempo e espaço da vida. Esse desenvolvimento, entretanto, não
significa que os gêneros e os cronotopos antigos são esquecidos já que ambos também
compartilham uma relação com a tradição, que permite sua existência ainda quando “já
tinham perdido completamente sua significação realisticamente produtiva e adequada”.
(BAKHTIN, 2014, p. 212)
Como outros conceitos bakhtinianos, o cronotopo também foi construído por meio de
acabamentos provisórios e retomadas. Além de discutir o cronotopo como tema principal em
Formas de Tempo e de Cronotopo no Romance: ensaios da poética histórica, o filósofo russo
apresenta outras possibilidades de cronotopos e outras discussões sobre esse conceito nos
textos sobre Goethe, Rabelais, ou ainda no seu ensaio sobre as ciências humanas.
61
Apesar dos diversos textos contendo o gérmen de uma ideia de tempo e espaço como
categoria fundante em qualquer epistemologia, Bakhtin (2014) reconhecera que seu trabalho
não era definitivo e nem encerrava o tema. E, p. 212 afirma que
não almejamos a totalidade nem a precisão de nossas formulações teóricas e
definições. Só há pouco tempo foi iniciado por nós e no exterior um trabalho
sério de estudo das formas de tempo e de espaço na arte e na literatura. Esse
trabalho, no seu desenvolvimento ulterior, completará e, talvez, venha a
corrigir fundamentalmente as características dos cronotopos de romance
dadas por nós aqui
Têm-se então que tanto seu trabalho teórico, quanto suas análises estariam abertas a
posteriores discussões, correções e desenvolvimentos. Bakhtin (2014) demonstra que seu
próprio parecer teórico e epistemológico em relação ao mundo é tangenciado por um
cronotopo específico, neste caso propõe à posteridade, o diálogo necessário ao continuo
processo de acabamento e inacabamento do conhecimento. E assim entendemos que nesse
ponto permite que comentadores acrescentem e continuem sua obra.
Entre esses comentadores trazemos Amorim (2006, p. 92) que discute o cronotopo em
relação direta com a exotopia. Para a citada autora,o cronotopo “foi concebido no âmbito
estrito do texto literário” enquanto que a exotopia “refere-se à atividade criadora em geral”.
Os dois conceitos apresentam relações fundamentalmente diferentes entre o espaço e o tempo,
ainda que “em nenhum momento do pensamento bakhtiniano, eles se substituam.
Permanecem, ao longo de sua obra, como dois modos possíveis de abordar essa relação”
Tanto exotopia quanto o cronotopo são possibilidades de realização de um acabamento
de um objeto qualquer, com a diferença já citada de que o cronotopo seria exclusivo de
objetos literários. Amorim (2006, p. 97) explica que esse acabamento não é como a imagem
de Dorian Gray101
presa em uma moldura, mas um “ato generoso de quem dá de si. Dar de
sua posição, dar aquilo que somente sua posição permite ver e entender” [grifo da autora]. Ou
seja, não é uma forma de representar como um reflexo, mas um ato criativo, único e
irreiterável.
Os conceitos, exotopia e cronotopo, também guardam entre si diferenças. A exotopia é
um fenômeno eminentemente espacial, nele o tempo é cortado por uma ideia de espaço, e
101
Em o Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde, escreve sobre uma pintura que aprisiona toda a beleza
do objeto retrato. De tal forma que a pintura se torna o objeto, a pintura envelhece e se humaniza,
enquanto o objeto permanece o mesmo com o passar do tempo.
62
neste caso, olhar de outro tempo significa observar de outro lugar. Amorim (2006, p.101)
apresenta essa ideia como um enquadramento de tal forma que o espaço é a “dimensão que
permite fixar, inscrever o movimento ou, dito de outra forma, a dimensão em que o
movimento pode se escrever e deixar suas marcas”.
Já no cronotopo, o tempo é o elemento privilegiado, o tempo guia a formação do
cronotopo. Para Amorim (2006, p. 102-103) esse conceito é uma busca bakhtiniana para
entender “em cada época da história do romance, como o problema do tempo é tratado ou
qual é a concepção de tempo que vigora”. Cada concepção de tempo aponta para a existência
de uma concepção diferente de homem, ou seja, a cada nova temporalidade, corresponde um
novo homem, ou uma nova representação de homem. De forma que essa mudança na
concepção de tempo e de representação de homem reage em relação ao par
alteração/identidade
No âmbito do cronotopo há uma diferença entre o tempo que representa do tempo
representado. Ainda que o objeto representado seja o autor da representação, esse eu que
representa se encontra sempre em um tempo diferente do outro representado. A relação entre
representação e objeto representado como pensada por Bakhtin (2014) significa que por mais
realista que a representação seja, nunca será o mundo representado, de forma que toda
representação, ainda que colocada no presente, trata de um acontecimento já passado. Mesmo
que a língua possua estruturas, como o gerúndio, para tratar de um acontecimento no
momento em que ele efetivamente acontece, na realidade sempre que um enunciado completa
um acontecimento esse existe em um tempo passado. Bakhtin (1997) trata do acabamento de
um acontecimento como um processo de ir a outro e voltar a si, mas que toda representação é
sempre de um acontecimento passado.
Amorim (2006, p. 105) aponta que o conceito de cronotopo é construído também
sobre uma base temporal sócio-histórica, como um modelo de representação repetível que
“designa um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se
contam ou se escrevem” [grifo nosso]. Para essa autora o cronotopo e o gênero se encontram
por meio da solidificação dessas matrizes espaço-temporais. Os gêneros são “formas coletivas
típicas, que enceram temporalidades típicas e assim, consequentemente, visões típicas do
homem” (AMORIM, 2006, p. 105).
Amorim (2006, p. 105), apesar de limitar o cronotopo ao estudo do literário, analisa,
no mesmo trabalho, um objeto cinematográfico. Essa autora expande o campo de
63
funcionamento do conceito ao afirmar, por exemplo, que “é pertinente falar do cinema de
Kiarostami como sendo dotado de grande cronotopia”, e ainda que o cinema desse autor traga
um novo cronotopo, em relação aos citados por Bakhtin, o cronotopo do carro.
Para nós, não são relevantes nem o objeto cinematográfico, nem as características
específicas do cronotopo do carro. Mas a abertura do campo, do universo de objetos que
podem ser acabados por meio do conceito de cronotopo, e pela produtividade criativa que ele
permite. É nesse limiar criativo que entendemos ser possível que novos gêneros literários,
como a literatura eletrônica e as narrativas locativas, possam ser lidas e analisadas por meio
do aparato conceitual bakhtiniano.
Como outro comentador que estuda o cronotopo, Cabral (2012) delimita o
funcionamento do tempo e do espaço. Esse autor (2012, p. 11) atribui ao espaço e ao tempo
uma carga valorativa sendo “o espaço correlato à localização geográfica concreta e o tempo
compreendido como fluxo histórico dos acontecimentos”. Relaciona as qualidades atribuídas
ao tempo e ao espaço, ou seja, respectivamente concreto e histórico, a outras qualidades como
“material, corpóreo e visível”, [grifos do autor] de forma que nos permite afirmar que
corrobora a existência de tempos e espaços não metafísicos, mas concretos.
Para Cabral (2012), diferente de Amorim (2006), o cronotopo, principalmente a
qualidade do tempo, está associado sempre ao evento da ação humana, ou ainda, ao evento da
realidade como processo – no advento de uma nova qualidade de apreensão do mundo como
imagem, e tal raciocínio nos permite afirmar que para esse autor o cronotopo extrapola o
universo literário, já que apresenta a ideia de que todo e qualquer evento humano é uma forma
de representar, portanto, existindo e representando, também cronotopicamente.
Cabral (2012, p.12) destaca que apesar da indissolubilidade de tempo e espaço do
conceito de cronotopo está postulada “a centralidade da categoria tempo para o estudo do
desenvolvimento dos gêneros narrativos”, além disso, à categoria do tempo “estariam
subordinadas às categorias do espaço e sujeito” sendo que cada uma dessas categorias, em
conjunto, representa um corte, refletindo e refratando acontecimentos sempre em devir.
Temos então que refração e reflexão de uma realidade sempre em devir permitiram a Bakhtin
(2014) associar a imagem formada pelo corte cronotópico específico ao gênero, assim,
surgem formas específicas de acabamento de temas, imagens construídas nos atos de refletir e
refratar os acontecimentos, que, não são em si, a representação do acontecimento, mas que se
relaciona às representações com cada “imagem da realidade do mundo representada, como
64
consciência concreta, por meio da criação literária”. (CABRAL, 2012, p. 13) O que nos
permite afirmar a existência de cronotopos específicos que determinam a existência de
gêneros específicos.
Cabral (2006, p.13-14) retoma a caracterização bakhtiniana do cronotopo como um
“sintagma conteudístico-formal” e propõe que esse conceito
alude não só à revisão empreendida por Bakhtin dos pressupostos filosóficos
que fundamentam espaço e tempo como categorias do conhecimento, mas,
principalmente, à sua assimilação no campo semântico como imagens de
conteúdos da realidade formalizados em significados temáticos ou
figurativos – em imagens do mundo.
Daí que o tempo e o espaço extrapolam a formulação de um contexto para observação
dos fenômenos e construção do conhecimento teórico. Em torno dessas categorias são criados
modelos formais de representação do mundo real, sempre como reflexo e refração de um
mundo real sócio-histórico. Conforme o referido autor (2006, p. 13) o cronotopo atua como
conteúdo material objetivo “que determina as condições de representação da experiência,
delimitando, assim, as possibilidades de concretização artística”.
Do exposto até aqui, compreendemos que entre os diversos pontos de afastamento e
aproximações, rasuras e retomadas existentes entre Bakhtin e seus seguidores, a
indissolubilidade do tempo e do espaço no cronotopo parece ser ponto em que não há
divergências. Nesse sentido, Cabral (2012, p. 14) acrescenta que o interesse bakhtiniano, está
nos “tempos da realidade do mundo (o tempo físico dos acontecimentos no mundo, o tempo
histórico da cultura, o tempo biográfico do homem)”.
Temos então que cada evento ou acontecimento no mundo é desenrolado em uma ação
localizada constituída “pelas relações entre o transcorrer irreversível do tempo, a cultura e a
marcha da consciência pela história” (CABRAL, p. 14). O autor (2006) citado considera essa
forma de entender a relação entre espaço/tempo/cultura como um diálogo de Bakhtin com
Einstein: assim como para o físico alemão existem diferentes formas de perceber o tempo;
para o filósofo russo diferentes cronotopos permitem diferentes vislumbres em relação ao
processo histórico-literário.
Ver o tempo de forma concreta significa entendê-lo “não como uma realidade abstrata,
mas como sendo representação da realidade material imediata, como evento concreto”
65
(CABRAL, p. 15). Já em relação ao espaço, concretude significa uma “ambiência
geograficamente real onde ocorrem as ações das personagens” (CABRAL, p. 15). Esse
mesmo autor (2012) afirma ainda que a atribuição de materialidade e concretude ao tempo e
espaço permitem que Bakhtin veja o texto literário como “um tesouro de imagens da
experiência” (p. 15) e o cronotopo como “operador analítico que viabilizaria a sondagem do
modo pelo qual a teia-dos-eventos da realidade histórica é assimilada pela linguagem por
meio da representação literária” (p. 15).
Uma análise do cronotopo significaria, então, uma forma de perceber “a relação
indissolúvel entre a emergência de uma consciência a respeito das dinâmicas do tempo
histórico e o reconhecimento dos indícios de transformação do mundo a partir da ação
criadora do homem” (CABRAL, p. 19). O que nos permite afirmar que em cada novo ato
criador, o autor, desse ato criador, representa sua visão de realidade por meio de um tom
emotivo-volitivo, refratando a visão temporal, espacial e cultural históricas.
Para Cabral (2012) a busca bakhtiniana por perceber no romance uma representação
de uma materialidade cronotópica real incorreria em realismo ingênuo. De forma que para o
comentador Bakhtin atribui ao romance, e exclusivamente ao romance, um poder de
vislumbrar “indício das várias forças configuradoras da teia-do-mundo atuantes em um dado
contexto histórico” (p. 22). Cabral (2012), entretanto, ignora a inconclusibilidade típica dos
escritos de Bakhtin, e que essa abertura para o futuro é declarada pelo autor russo ao prever
que seus escritos seriam completados e corrigidos posteriormente, de forma que Bakhtin
aparenta atribuir a si próprio e a seus escritos os conceitos que cria. Contestamos essa visão de
Cabral (2012) em relação aos textos bakhtinianos, ao perceber que esses também refletem e
refratam características cronotópicas, também são construídos como enunciados inacabados,
apontando para enunciados passados e futuros, dotados de uma visão específica de homem.
Holquist (2005), em seus estudos sobre o cronotopo, vai em direção contrária à de
Cabral (2012) e encaminha o entendimento do cronotopo numa aproximação a um realismo
crítico, de forma que mesmo a realidade sob a qual um determinado cronotopo representa é,
em si, também fruto de representação. Segundo esse autor (2005) Bakhtin aponta para um
relativismo limitado em que, a todo instante, dialogam formas determinadas, delimitadas,
históricas, sociais e a irreiterabilidade de enunciados e atos cronotopicamente localizados.
Holquist (2005, p. 107) conceitua que, em primeira instância, o cronotopo é uma
categoria que auxilia o entendimento e estudo da narrativa. Nessa primeira instância o
66
cronotopo trata exatamente das formas de “Combinações particulares de tempo e espaço
como manifestadas historicamente em formas narrativas” 102
. Por meio dessa conceituação e
dos exemplos de análises realizados por Bakhtin, Holquist (2005) afirma que o cronotopo
parece receber um status próximo do motivo ou função das análises estruturalistas.
Nessa primeira instância o cronotopo é tido como uma forma estabilizada “que
distingue um tipo particular de texto de forma que – não importa quando for lido ou ouvido –
sempre será reconhecido como um tipo específico de texto” 103
(HOLQUIST, 2005, p. 108),
o que nos permite entender o tempo e o espaço concebidos como unidades específicas que
caracterizam tipos também específicos de narrativas.
Com base nas afirmações de Holquist (2005) sobre o cronotopo, percebemos que essa
primeira instância, entretanto, não é a única, ou a mais relevante no conceito em discussão. O
cronotopo supera os aparatos estruturalistas que tentam dar conta de toda a realidade. Mesmo
em textos literários essas formalizações são historicamente localizadas, mantendo-se atadas ao
quadro cultural em que são construídas, portanto independente da realidade histórica, ou do
quão realista for uma obra de arte, essa nunca será um reflexo direto da realidade.
Nesse ponto, Holquist (2005) relaciona o conceito de cronotopo, na literatura, com os
escritos bakhtinianos sobre autoria e a existência de dois planos diferentes: arte e vida.
Conforme esse autor (2005, p. 109) apesar de diferentes, esses dois planos não estão
completamente separados já que “tanto a arte como a experiência vivida, são aspectos dos
mesmos fenômenos, heteroglossia, valores, e ações cuja interação fazem do diálogo categoria
fundamental do dialogismo” 104
, ainda de acordo com esse mesmo autor (2005, p. 109) como
aspectos de um mesmo conjunto de fenômenos, arte e vida, são, ambas, formas de
representação, como tal, “são aspectos diferentes da mesma necessidade de mediar o que
define a experiência humana” 105
É nessa relação entre representação, na arte e na vida, que segundo Holquist (2005, p.
109) o cronotopo assume uma segunda instância, em que supera a análise do texto narrativo.
Nessa segunda instância o cronotopo “apresenta meios de explorar as complexas, indiretas e
102
“particular combinations of time and space as they have resulted in historically manifested narrative forms”. 103
“that dinstinguishes a particular text type in such a way that – no matter when it is heard or read – it will
Always be recognizable as being that kind of text”. 104
“both art and lived experience are aspects of the same phenomenon, heteroglossia of words, value, and
actions whose interaction makes dialogue the fundamental category of dialogism”. 105
“they are different aspects of the same imperative to mediate that defines all human experience”.
67
sempre mediadas relações entre arte e vida” 106
. Daí, deduzimos que o cronotopo extrapola o
universo literário, pois a vida, assim como a arte, também é fruto de representação, e portanto,
dotada de cronotopia.
Faz-se necessário ainda destacar que o vínculo entre a representação na vida e a
representação na arte determina que os cronotopos artísticos sejam, de acordo com Holquist
(2005, p. 110), “sensíveis a mudanças históricas” 107
. Assim para o autor citado (2005, p. 110)
cada tempo e espaço sócio-históricos dão forma a diferentes cronotopos na arte e na vida,
permitindo a afirmação de existência de uma relação em que cronotopos específicos são
condicionados “em algum tipo de relação com condições exteriores nas quais surgem” 108
,
nesse contexto seria possível afirmar, nessa segunda instância, a existência de uma relação
única e específica entre narrativa e realidade.
Essa afirmação parece entrar em contradição com as análises bakhtinianas, que
apresentam, por exemplo, uma produtividade do cronotopo de aventuras que extrapola o
romance antigo, que é possível ser encontrado, segundo Holquist (2005), inclusive no cinema.
Para esse autor (2005, p. 110) essa contradição torna-se visível no tratamento de certos tipos
de cronotopo por Bakhtin “como se fossem estruturas trans-históricas que não são específicas
de um ponto no tempo” 109
, enquanto em outros espaços o filósofo russo afirma “a habilidade
do cronotopo de estar em diálogo com contextos extraliterários específicos” 110
(p. 110).
Para Holquist (2005, p. 110) a contradição é apenas aparente, pois o entendimento do
conceito de cronotopo deve ter em conta “as diferentes funções realizadas pelo cronotopo em
diferentes níveis de especificidade e generalização” 111
. Esse autor explica que essa diferença
em níveis de especificidade ou generalização deve estar discriminada sempre que o conceito
de cronotopo seja trabalhado. Daí ele afirmar a existência de pelo menos duas instâncias a
partir de dois posicionamentos extremos: sendo que em um desses extremos, o conceito
apenas é aplicado ao texto literário particular, ao específico, em um posicionamento próximo,
e no outro extremo, o cronotopo pode ser usado para análise da relação entre um texto e
outros textos de seu tempo. Nesse segundo extremo, o cronotopo, de acordo com Holquist
(2005, p. 111) torna-se uma ferramenta fundamental “para uma análise histórica e social mais
106
“provides a means to explore the complex, indirect, and always meditated relation between art and life”. 107
“sensitive to historical change”. 108
“in some kind of relation to the exterior conditions in which they arise”. 109
“as if they were transhistorical structures that are not unique to particular points in time”. 110
“the cronotope’s ability to be in dialogue with specific, extraliterary contexts”. 111
“the varying functions that are served by chronotopes at different levels of specificity and generalization”.
68
ampla, na qual a literatura seria apenas um entre vários tipos de discursos interconectados”
112.
Holsquist (2005) explica que apesar da possibilidade de conceituar o cronotopo em
dois extremos, são as relações entre esses extremos que apresentam a maior produtividade do
conceito, de forma que a relação que existe entre o enunciado e a realidade imediata de qual
faz parte dialogicamente representa ao menos dois tempos em diálogo. Conforme o autor
citado (2005) temos ainda que enquanto uma das ligações tempo/espaço seria a representação
da realidade, ao modo que toda realidade é representada, a segunda seria o tempo como
representado no enunciado.
No primeiro extremo, para Holquist (2005, p. 111), restringido o cronotopo a uma
categoria formal da narrativa, “deve ser definido de forma mais econômica como a matriz
formada pela compressão da história e do enredo em uma narrativa” 113
. Ele traz, ainda, na
discussão sobre o cronotopo, a distinção formalista entre história e enredo, sendo que história
é “a forma que um evento se desenvolve enquanto cronologia bruta” 114
, enquanto o enredo é
“o mesmo evento, ordenado para ser contado, uma construção, na qual a cronologia pode ser
alterada em qualquer grau, para atingir algum efeito específico” 115
As diferentes formas de organizar temporalmente uma história são definidas por
Holquist (2005, p. 111) como
forma específica na qual a sequencia dos eventos é ‘deformada’ (sempre
envolvendo uma segmentação, uma espacialização em qualquer
configuração desses eventos). É essa simultaneidade necessária entre figura
(nesse caso, enredo) e base (ou história) que constitui o elemento dialógico
no cronotopo 116
[Tradução nossa]
Tem-se então, que a capacidade do enredo de representar está ligada dialogicamente
com a história que esse enredo representa, e é apenas por esse meio que a capacidade
figurativa e textual do enredo se torna aparente. Assim, para Holquist (2005, p. 111), na
112
“for a broader social and historical analysis, within which the literary series would be only one of several
interconnected types of discourse”. 113
“específica it might most economically be definede as the total matrix that is comprised by both story and the
plot of any particular narrative”. 114
“the way in which an event unfolds as a brute chronology”. 115
“the same event, ordered in a mediated telling of it, a construction in which the chronology might be varied or
even reversed, so as too achieve a particular effect”. 116
“specific way in which the sequentiality of events is ‘deformed’ (Always involving a segmentation, a
spatialization in any given account of those events. It is this necessary simultaneity of figure (in this case, plot)
and ground (or story) that constitutes the dialogic element in the chronotope”.
69
instância menor, o cronotopo pode ser entendido como “uma combinação indissolúvel desses
dois elementos [enredo e história]” 117
.
Subjacente à relação entre história (enquanto cronotopia bruta) e enredo (distorção da
cronotopica histórica), é possível perceber na relação entre vida e arte, segundo Holquist
(2005), “a suposição que, em literatura, eventos podem ser organizados em qualquer
sequencia, enquanto na vida real são sempre cronológicos" 118
. Conforme esse mesmo autor
(2005, p. 113) o problema nessa afirmação está na ingênua asserção de existência da vida em
total separação da arte, da existência de uma vida real em que mesmo a cronologia não seja
resultado de representação.
Holquist (2005, p. 113) afirma que mesmo a representação ao nível de texto e ao nível
de vida real sendo moldada a partir de critérios diferentes, o tempo, na vida como na arte, é
determinado por convenções, não há, no dialogismo, determinação de “uma separação
absoluta entre uma existência livre de convenções fora do texto e um mundo completamente
convencionado dentro de textos” 119
. O que nos permite afirmar que tanto na vida existem
convenções, como na arte existe liberdade de estilo de autor, inclusive na determinação
cronólogica.
Nesse ponto, percebemos que todos os acontecimentos se tornam dialogizados já que
dependem de outros acontecimentos com os quais possam ser comparados, seguindo Einstein
na ideia de que um tempo só existe em comparação a outro tempo. Nessa linha de
pensamento, qualquer coisa em si deixa de existir, já que “tudo vai depender de como a
relação entre o que acontece e sua situação no tempo e espaço é mediada” 120
(HOLQUIST,
2005, p.113).
Esse relativismo tomado em toda a sua extensão, supera as várias possíveis
interpretações de um acontecimento específico, já que o próprio evento de acontecer é um ato
de interpretação. Entretanto, o pensamento bakhtiniano (1981) não deve indicar a existência
de um solipsismo relativista, criticado por Bakhtin como subjetivismo idealista, mas a um
relativismo social, pautado em uma realidade sócio-histórica concreta.
117
“the indissoluble combination of thesse two elements”. 118
“the assumption that in literature events can be arranged in any sequence, whereas in real life they are always
chronological”. 119
“an absolute separation between existence free of conventions outside texts, and a world comprising only
conventions within texts”. 120
“everything will depend on how the relation between what happens and its situation in time/space is
mediated”.
70
Esse relativismo concreto, sócio-histórico, está determinado pela concretude do
cronotopo, e é efetivado pela relação entre enredo e história, assim
a forma pela qual qualquer enredo presumido deforma qualquer história
particular dependerá não somente de características formais em um texto
específico, mas também em concepções de como o tempo e o espaçose
relacionam em uma cultura em um determinado momento. Isso acarreta que
a definição de enredo, aparentementenão problemática, definida pelos
formatlistas, a ordem cronológica dos eventos, sempre é interpretada de
formas diferentes em tempos diferentes. Bakhtin pratica uma poética
histórica exatamente assim: ele assume que formas são sempre históricas 121
(HOLQUIST, 2005, p.114) [Tradução nossa]
Daí que Bakhtin (1981) foge tanto do objetivismo abstrato, de que todo uso da língua,
toda possibilidade de deformação do enredo, seria dada por um meio social, bem como do
subjetivismo idealista, em que o sujeito cognoscente reflete seu interior por meio do uso da
linguagem. Assim deduzimos que na primeira forma de pensamento todas as construções
temporais, tanto intratextual quanto extratextuais seriam dadas por forças de convenção e
pressões sociais, ao passo que na segunda o tempo reflete o interior do homem, sendo apenas
construído.
Um dos exemplos dessas formas analisado por Bakhtin (2014) é o cronotopo de
aventuras antigo. Nessa forma de romance os acontecimentos se sucedem sem interferir no
desenvolvimento dos personagens. Assim apenas o primeiro e o último acontecimento são
determinantes na história, a ordem, a série, a quantidade de outros acontecimentos não causa
nenhum impacto.
Apesar de estar localizado historicamente na Grécia antiga, esse cronotopo continua a
ter produtividade, em termos formais, no romance, e ainda em outros gêneros como cinema,
quadrinhos e etc. ,apontando então para a existência de padrões transhistóricos, como forma
dada. Holquist (2005, p.115-116) explica que “mesmo a forma mais elementar de cronotopo,
tempo de aventuras abstrato, está sujeito a condições intertextuais e históricas que fazem com
121
“The means by which any presumed plot deforms any particular story will depend not only on formal features
in a given text, but also on generallly held conceptions of how time and space relate to each other in a
particular culture at a particular time. It follows that the apparently unproblematic definition of plot (fabula)
provided by the early Formalists, that is the chronological order of events, is always interpreted in different
ways at different times. Bakhtin is practicing a historical poetics precisely in this: he assumes that forms are
always historical”. [Tradução nossa]
71
que qualquer apropriação de suas características repetíveis em um enunciado, ou seja, um
texto com um sentido particular em uma situação particular” 122
.
Existem características do cronotopo que se mantêm, mas seu uso para a representação
literária sempre é dialógico, o que significa dizer que sempre é um tempo e espaço que
dialogam no tempo e no espaço com outros cronotopos praticados no contexto. Vale ainda
ressaltar que toda obra literária é um enunciado, sendo assim dotada de tema e significação,
que representam algo de específico, único e irreiterável e, também, algo de repetível.
Seguindo adiante nessa linha de raciocínio percebemos que cada vez que um cronotopo dá
forma a um texto, ele o faz por dois movimentos: por um movimento reconhecível, pela
reflexão/refração de um tempo/espaço dado, e ao mesmo tempo por uma organização, desse
tempo e espaço, construída e específica. Sendo assim, a capacidade produtiva de criar sentido,
existe nessa relação dialógica entre, ao menos, dois cronotopos e na qual, pelo menos um
desses cronotopos é necessariamente intratextual, ou seja, forma ou deforma a narrativa.
Enxergar o tempo da narrativa de forma cronotópica significa, para Holquist (2005) ir
além do tempo da história de Eco, ou da deformação dos formalistas. Para esse autor (2005, p.
117), ao analisar uma história pelas lentes do cronotopo
a quebra ou deformação será vista não como cronológica, isso é, como
acontecendo em um tempo tão puro, tão evidente, que existiria independente
de interpretação (o sonho de uma fábula pura), mas, como sendo
desenvolvido em um espaço (como todos os tempos devem). É um espaço,
entretanto, que não apenas o da vida cotidiana ou de nosso contexto, mas o
espaço de mudanças de relações constantes: a relação entre tal ordem
teoricamente presumida, e a ordem em que os eventos se desenvolvem em
um texto dado123
[Tradução nossa]
A partir do exposto entendemos que mesmo sendo possível perceber características
específicas na forma que o espaço e o tempo são representados em certo cronotopo é preciso
levar em consideração que essa existência não é acabada e imutável. Portanto, sempre há um
122
“even the most elementar form of the chronotope, abstract adventure, is subject to intertextual and historical
conditions that make any appropriation of its repeatable features an utterance, that is, a text with a particular
meaning in a specific situation”. [Tradução nossa] 123
“The breakdown or deformation would then be seen not as chronological, that is as taking place in a time so
pure as to be self-evident and therefore beyond interpretation (the dream of a sheer fabula), but rather as
unfolding in a space (as all time must). It is a space, moreover, that is not merely that of “everyday life” or of
“our conditions”, but the space of constantly changing relationship: the relationship between such a
theoretically presumed order, and the order in which events are actually deployed in a particular text”.
72
cronotopo maior, mais amplo, presumido, sócio histórico e concreto, que envolve qualquer
outra forma de organização cronotópica, e com a qual qualquer cronotopo se relaciona.
São exatamente essas diversas formas possíveis de organizar os acontecimentos na
linha temporal e seu relacionamento com os diversos espaços que cria a história, ainda que o
enredo seja de alguma forma consolidado no momento de autoria a relação de organização da
história e enredo “será diferente em futuras leituras” 124
(HOLQUIST, 2005, p. 118). Nesse
contexto, esse mesmo autor (2006) propõe que essas novas organizações possíveis são
atribuídas aos cronotopos específicos de determinados gêneros e não a psique de cada
indivíduo.
Holquist (2006, 118) afirma que, da mesma forma que Einstein encontrou a velocidade
da luz como constante na física, seria necessária a existência de um cronotopo modelo para
possibilitar o entendimento da relação do tempo e espaço em um texto, entretanto, diferente
da física, esse cronotopo norteador não é constante, mas “enquanto tal, geralmente é provido
por coordenadas existentes no próprio texto” 125
. O que nos leva a pensar sobre a inexistência
do texto como objeto em si mesmo, sendo esse o resultado da produção do autor e dos
diversos sentidos possíveis determinados pelas relações formais de gêneros subsequentes.
Assim, nesse capítulo conceituamos os gêneros do discurso como um conjunto de
coerções específicas relacionadas diretamente a uma esfera de atividade, que moldam os
enunciados em função da existência de estilo, conteúdo temático e forma composicional.
Além disso, conceituamos o cronotopo como uma ligação indissolúvel entre o tempo o espaço
que guia as formas de representação dentro dos diversos gêneros.
Esses dois conceitos, em separado e em sua interconexão, nos permitiram discernir as
características linguísticas e literárias das narrativas locativas. A partir do conceito de gêneros
propomos as características linguísticas, de estilo, de tratamento do conteúdo e de forma
composicional das narrativas locativas, além de discutir como as esferas de atividade impõem
coerções específicas aos enunciados do gênero discutido.
A partir do conceito de cronotopo pudemos, enfim, cumprir a nossa meta de investigar
a possível existência de um tempo e um espaço locativo, que resultam numa representação de
realidade também locativa e, portanto, na construção de um homem locativo. Esses resultados
124
“will be different from the one accruing to it in later readings”. 125
“as it were, is usually provided by the co-ordinates deployed in the text itself”.
73
foram discutidos no capítulo seguinte e testados por meio da análise da obra locativa
Haunted London.
74
3 AS NARRATIVAS LOCATIVAS
Nesse capítulo apresentamos o conceito de narrativas locativas a partir das ideias de
diversos autores que já discutiram o tema. Em primeiro lugar abordamos o histórico e o
funcionamento da tecnologia móvel digital, alguns conceitos do tipo de tecnologia citado, em
seguida conceituamos as mídias locativas, apresentamos suas funções e possibilidades de uso.
Em segundo lugar fizemos um apanhado teórico sobre as narrativas locativas, na esperança de
que esse conhecimento permita a construção de um modelo para o gênero, e da percepção da
relação cronotópica existente.
3.1 A tecnologia móvel digital
A seguir apresentamos alguns formatos de construção de computadores digitais móveis
que se relacionam com as mídias locativas. Entre esses formatos de construção de
computadores móveis está a Ubiquitous computing [computação ubíqua] que “refere-se ao
uso coletivo de computadores disponíveis no ambiente físico dos usuários, talvez colocados
de forma invisível para eles” 126
(LOKE, 2006, p. 2). Outro desses formatos é a Pervasive
Computing [computação pervasiva] que “diz respeito a ideia de aparelhos ou computadores
pervadindo o cotidiano” 127
(LOKE, 2006, p. 2) em nossos termos são sistemas
computacionais planejados para estarem presentes em todos os momentos e situações do dia-
a-dia, o formato citado segundo Loke (2006, p. 2) “pode ser interpretado como uma
126
“refers to the collective use of computers available in the physical environment of users, perhaps embedded in
a form invisible to users”. 127
“refers to the vision of devices or computers pervading lives”.
75
combinação de computação móvel (uso de computadores vestidos ou carregados pelos
usuários) e computadores fixados em objetos do ambiente” 128
.
Dando seguimento aos formatos de construção de computadores digitais móveis citamos a
Invisible computing [computação invisível] que de acordo com Loke (2006, p. 2-3) está ligada
ao “uso de computadores de forma que o foco esteja na facilitação de realização da tarefa e
não no uso da ferramenta” 129
, o que nos permite afirmar que esse tipo de sistemas representa
um avanço à ideia de computação ubíqua, já que além de invisíveis e pervasivos, essas
máquinas são planejadas de forma que o foco do usuário seja maior no resultado do que nas
habilidades cognitivas necessárias para o uso do sistema. O autor citado (2006) explica que há
muitos computadores no ambiente diário com os quaiso usuário interage que são apenas
ferramentas para resolver tarefas específicas.
Loke (2006, p. 3) cita também a existência de um grupo de trabalho europeu chamado de
The European Union-funded dissappearing-computer initiative que visa “criar artefatos
comuns do cotidiano dotados de capacidades computacionais e habilidade de trabalharem
juntos para produzirem novos comportamentos” 130
. O autor citado apresenta também a
Proactive computing como uma busca para diminuir o foco da relação entre homens e
máquinas na interatividade, assim, os computadores são pensados de forma que antecipem as
necessidades dos usuários.
Citamos ainda entre os formatos de construção de computadores digitais móveis a
Autonomic Computing que para Loke (2006) é a pesquisa na construção de sistemas com
capacidades de automonitoramento, autorreparo, e autoconfiguração, a Ambient intelligence
que para o mesmo autor (2006, p. 3-4) “trabalha com a ideia de computadores ubíquos e
interfaces simples para obter maior eficiência na utilização” 131
, e por último a sentient
computing que pode ser a construção de sistemas de sensores com capacidade de captar e
interpretar informações do contexto do usuário.
Entendemos que cada uma dessas formas de computação traz como base a ideia da
construção de sistemas que respondam de alguma forma ao contexto do usuário. Vale ressltar
128
“can be viewed as a combination of mobile computing (use of computers worn on or carried by users) and
computers embedded in the fixed environment”. 129
“use of computers in such a way that the task is focused on and facilitated without too much focus on the tool
(i.e., the computer system) itself”. 130
“create artifacts commonly seen or used in everyday life with computational capabilities and the ability to
work together to produce new behaviors”. 131
“builds on ubiquitous computing and intelligent user interfaces to obtain greater user friendliness and
eficiente services for users”.
76
que as primeiras pesquisas pensavam em contexto apenas com referência ao posicionamento
do usuário. Loke (2006), entretanto afirma que a ideia de contexto pode ser mais do que a
determinação do local.
O contexto é um conceito fundamental para o trabalho locativo, pois é a partir das
informações captadas dos usuários que os softwares locativos trabalham. O contexto pode ser
definido como “o que rodeia e dá sentido a alguma outra coisa” 132
(Free Dictionary of
Computing, apud LOKE, 2006, p. 4). Schilit et al (1994, apud, LOKE, 2006, p. 4) acrescenta
que “uma pessoa é essa ‘outra coisa’ e o contexto se refere à informação sobre o ambiente
próximo dessa pessoa, informações como localização e identidade de outras pessoas ou
objetos próximos” 133
.
Essa ideia de contexto ainda é insuficiente, pois apenas diz respeito a posicionamento,
e identificação. Dey (2001) expande a ideia de contexto para qualquer informação sobre uma
entidade em determinada situação. Ele explica que o contexto existe em relação a uma
entidade que pode ser um objeto, uma pessoa, um local, relacionado a uma situação
específica. Loke (2006) completa que o contexto pode incluir informações relacionadas a
posicionamento, tempo, estado de funcionamento de aplicações, recursos computacionais,
banda da rede, atividade, intenções do usuário, emoções do usuário, e condições do ambiente.
A possibilidade de que todas as informações citadas no parágrafo anterior possam ser
tratadas como contexto demanda que o construtor do sistema tenha em mente quais aspectos
podem ser melhor utilizados em uma situação dada. Para Loke (2006) essa construção implica
três fases: (a) que pode ser adequadamente captado, ou seja, qual das possíveis informações
relacionadas ao contexto será captada; (b) a melhor forma de adquirir as informações, ou em
outras palavras planejamento dos métodos de captação das informações; (c) como trabalhar as
informações adquiridas pelos sensores para inferir no contexto, que representa a forma que o
sistema reagirá às informações captadas 134
.
A partir da ideia de contexto Loke (2006) define context-aware pervasive computing
[computação pervasiva atenta ao contexto] como “um estudo de sistemas de computação
pervasivos (uma combinação de hardware e software) atenta ao contexto e que pode se
132
“that which surrounds, and gives meaning to something else”. 133
“a person is that ‘something’, and context refers to in formation about a person’s proximate environment,
such as location and identities of near by people and objects”. 134
“(1) what can be feasibly sensed; (2)the best way to acquire sensor information; (3)how to reason with sensor
information to infer context”.
77
adaptar automaticamente a tal contexto” 135
(p. 7). Ele Ainda afirma que um sistema pode não
parecer com um computador, portanto, uma geladeira, um celular, uma porta que abre sozinha
podem ser sistemas segundo esse conceito. Ressaltamos que as narrativas locativas se
apropriam desse formato de sistemas, ou seja, as obras são softwares que funcionam por meio
de sistemas atentos ao contexto.
Loke (2006, p. 14) propõe a existência de inteligent software que são sistemas
“proativos, autônomos, comunicativos (com pessoas e outros sistemas) e adaptativos. Esses
sistemas também estão situados no ambiente e reagem a estímulos desse ambiente” 136
, são,
portanto, equipamentos dotados de capacidades de processar dados inseridos em objetos do
ambiente e que tem a função de responder às demandas desse ambiente.
Destacamos que no caso específico das mídias locativas apenas interessam os sistemas
inteligentes móveis. Esses sistemas respondem da mesma forma que outros, porém, para Loke
(2006, p. 31) “implicam a tendência dos usuários de mudar sua situação com frequência (ao
menos sua localização, por exemplo), e tais mudanças podem ser exploradas pelo sistema para
tecer ou apresentar proativamente serviços de acordo com a atual situação do usuário” 137
.
Percebemos que em sistemas móveis inteligentes as mudanças no contexto devem
servir de gatilho para mudanças no comportamento do sistema, e ainda que especificamente
para os sistemas citados a localização é tratada como uma informação chave, principalmente
por ser a que mais facilmente se altera. De acordo com Loke (p. 33) a localização é vista
como “um ponto no espaço ou uma área geográfica com limites definidos” 138
.
Localização, como já citamos, não é a única informação utilizada na construção de
contextos móveis. Outras informações como o tempo e a atividade atual do usuário,
proximidade a outros objetos e pessoas, intenção dos usuários e dados de sensores instalados
no ambiente também podem ser explorados na construção do contexto.
Outros autores limitam a ideia de contexto a apenas posicionamento, Harle e Hopper
(2005) por exemplo delimitam esse tipo de sistemas sob a alcunha location-aware computing
135
“a study of pervasive computer systems (a combination of hardware and software) that are aware of context
and can automatically adapt and respond to such context”. 136
“proactive, autonomous, communicative (with people and other agents), and adaptative. These software
systems are also situated in their environment and react and respond to stimuli from their environment”. 137
“implies the tendency for users to change their situation often (at least their location, for instance), and such
changes can be exploited by the system to proactively tailor services or to presente services according to the
user’s current situation”. 138
“a point in space or an area with comprehensible geographic boundary”.
78
[programação atenta à localização], conforme os autores citados (2005, p. 219) nesse modelo
de sistemas “a localização de pessoas e objetos podem ser usados por máquinas para extrair
informações contextuais com as quais melhorar e auxiliar usuário em qualquer aspecto de
suas vidas” 139
. Estes autores discutem um sistema chamado Bat System em que o “Bat” é um
colar com um emissor de ondas ultrassônicas que se comunica com receptores espalhados no
ambiente em que o sistema foi testado, entretanto, esse sistema foi projetado para funcionar
apenas em uma pequena área da universidade de Cambridge.
Schmidt et al (1999, p. 1) já trazia uma possibilidade mais abrangente, ao tratar do que
ele chamou de Ultra-Mobiledevices [aparelhos ultra móveis] que são “uma nova classe de
pequenos computadores móveis, definidos como aparelhos processadores de dados que
podem são operacionais e operados enquanto em movimento” 140
, os autores referem-se a
celulares, PDAs e o que eles chamam de Weareable Computers algo como computadores
vestíveis. Para esses mesmos autores o contexto pode beneficiar o sistema de duas formas,
sendo que a primeira é “adaptação a mudanças no ambiente” 141
(Schmidt et al, 2009, p. 4) e a
segunda a “melhora das interfaces” 142
.
Scmidt et al (1999, p. 4) explica que “a utilidade de estilos de interação e modos de
exibição dependem largamente do ambiente; estar atento ao contexto pode facilitar adaptação
às condições ao redor” 143
. Context-aware também funciona como uma forma de filtrar,
reencaminhar e entregar mensagens, em um contexto em que o fluxo de informações é
contínuo. Esses filtros evitam interrupções e, ao mesmo tempo, detectam o que é urgente
(SCHIMDT et al, 1999).
Essas informações sobre computação digital móvel e contexto são suficientes para que
possamos compreender as mídias locativas.
139
“the location of people and objects can be used by machines to derive contextual information with which to
enhance and assist users in all aspects of their lives”. 140
“a new class of small mobile computer, defined as computing devices that are operational and opperated
while onthe move” 141
“adaptation to changes in the environment”. 142
“improvement of the user interface”. 143
“the utility of interaction styles and display modes depends largely on the surrounding environtments;
context-awareness can facilitate adaptation to surrounding conditions”
79
3.2 As mídias locativas: definições, funções e formas de uso
As Mídias Locativas são “um conjunto de tecnologias e processos info-
comunicacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a um lugar específico” (LEMOS,
2008, p. 1). Esse mesmo autor explica que “trata-se de processos de emissão e recepção de
informação a partir de um determinado local”. O que nos permite afirmar que em primeiro
lugar para o autor citado o termo mídia locativa implica tanto os aparelhos quanto as suas
possibilidades de uso, e em segundo lugar que o posicionamento é característica chave.
Lemos (2008, p. 1) em sua definição de mídias locativas delimita o contexto ao local,
pois segundo esse autor “locativo é uma categoria gramatical que exprime lugar, como ‘em’,
‘ao lado de’, indicando a localização final ou o momento de uma ação”, tal delimitação fica
ainda mais explicita na afirmação desse mesmo autor (2008, p. 1) de que “esse conjunto de
processos e tecnologias caracteriza-se por emissão de informação digital a partir de
lugares/objetos”.
Ao afirmar que a emissão de informações acontece a partir de objetos, Lemos (2008,
p. 1) propõe que há uma sobreposição de camadas em que os objetos são a camada do
concreto, e a eles são atreladas camadas virtuais, de forma que “
as mídias locativas são utilizadas para agregar conteúdo digital a uma
localidade (...) Dessa forma os lugares/objetos passam a dialogar com
dispositivos informacionais, enviando, coletando e processando dados a
partir de uma relação estreita entre informação digital, localização e artefatos
digitais móveis
Sendo que Lemos (2008) chama de artefatos digitais móveis GPS, telefones celulares,
palms e laptops em redes Wi-Fi ou Wi-Max, Bluetooth ou etiquetas de identificação por rádio
frequência, RFID.
No trabalho citado Lemos (2008) apresenta uma classificação possível para as mídias
locativas de acordo com sua função, segundo essa classificação as mídias locativas podem ser
realidade aumentada, mapeamento e monitoramento, geotags, e anotações urbanas. A
realidade móvel aumentada trata de “informações sobre uma determinada localidade
visualizadas em um dispositivo móvel, ‘aumentando’ a informação” (LEMOS, 2008, p. 4), já
mapeamento e monitoramento de movimento são as funções locativas relativas a essas duas
atividades, este autor explica que as geotags são as mídias locativas cujo “objetivo é agregar
informação digital em mapas, podendo ser acessadas por dispositivos móveis” (LEMOS
80
2008, p. 6), por fim as anotações urbanas são as mídias locativas que “possibilitam formas de
apropriação do espaço urbano a partir de escritas eletrônicas” (LEMOS, 2008, p. 8).
Percebemos que nas discussões de Lemos (2008) o conceito de mídias locativas parece
não englobar a ideia de contexto, como discutida na sessão anterior, mas apenas o
posicionamento. Parece-nos que esse autor não debate a interação homem/máquina já que os
aparelhos são apenas meios que permitem a comunicação entre as pessoas, de forma que
observamos que para o autor citado o processo de interação acontece entre as pessoas por
meio dos aparelhos móveis digitais e de informação atrelada ao lugar. A partir do exposto
podemos afirmar que o autor ignora o potencial de resposta a alterações do contexto como
esse foi discutido anteriormente, ou seja, ignora a interação direta que acontece entre
homem/máquina.
Já para Nova (2004, p. 2) as mídias locativas são “um tipo específico de AT:
ferramentas locativas de reconhecimento”, além disso esse autor propõe que o termo mídias
locativas “refere-se a toda informação sobre uma localização física e outros dados
contextuais”, sendo que AT é uma sigla que designa Awareness Technology, algo como
tecnologias de reconhecimento, essas tecnologias são definidas por Gutwin & Greenberg
(1999, apud NOVA, 2004) como “o entendimento da interação de outra pessoa com um
espaço comum”. Vale ressaltar também que segundo Nova (2004) o posicionamento é o dado
mais comum por ser fácil de determinar, e essa informação pode ser importante para adaptar o
comportamento da aplicação móvel.
Ressaltamos que Nova (2004) muda o foco da discussão de Lemos (2008) dos
processos para a tecnologia. As mídias locativas em Nova (2004) são decompostas em três
componentes de reconhecimento: presença (quem estava presente e quando), posicionamento
e direção. Ao tratar dos processos esse autor os divide em duas categorias, as quais afirma
funcionarem tanto em sincronia quanto em assincronia temporal. A primeira categoria é
chamada de collaborative mapping/spatial annotation e é definida como “informação ligada
localmente (texto ou áudio), permitindo várias aplicações como mapas colaborativos de uma
área, blogging móvel, navegação social, novas formas de guias de turismo, anotações
espaciais, narrativas locativas e outros”. A segunda categoria é a possibilidade de finding and
tracking pessoas, grupos ou artefatos, o autor exemplifica essa categoria com sistemas de
encontro. (NOVA, 2004, p. 7)
Ainda a guisa de conceituação, Lenz (2007, p. 1) afirma que as mídias locativas
81
concentram-se na interação de pessoas ou grupos com os locais e com a
tecnologia. (...) ML permitem diferentes formas de interação com as coisas
ao redor. Sobrepondo tudo com novas camadas invisíveis de informação.
Informação textual, visual e audível torna-se disponível com a aproximação,
ditada pelo contexto ou quando requisitada [tradução nossa]
O autor citado concorda com a ideia de sobreposição de informações sobre os objetos
e lugares como em Lemos (2008). Para Lenz (2007), no entando, à questão do lugar
acrescenta-se a ideia de contexto como objetivo das mídias locativas, esse autor lista, de
maneira não exaustiva, e discute projetos de mídias locativas existentes até o ano anterior à
publicação de seu artigo.
Lenz (2007, p. 2) propõe uma categorização diferente das apresentadas por Lemos
(2008) e Nova (2004), ele categoriza as mídias locativas em: arte, narrativas, blogging, jogos,
MoSoSo’s, Anotação espacial e Geodrawing, e serviços. Com arte o autor refere-se a
“projetos que combinam código de computador e caminhadas psicogeográficas”. Já sobre as
narrativas o autor (2007, p. 2) afirma que “podem facilmente ser uma característica de um
projeto de mídias locativas mais do que uma categoria”, porém justifica essa categoria para
enquadrar projetos mais “teatrais”. O autor explica que esses projetos “apoiam-se na
psicogeografia, um tipo de práticas de andanças meditativas pelas paisagens urbanas” (LENZ,
2007, p. 2) essa forma de andar “encoraja que o praticante se perca de forma a quebrar
padrões de rotina e perceba essas paisagens urbanas como fonte de infinitas possibilidades nas
quais vários caminhos abrem-se para remapear a cidade”.
Em relação ao Blogging Lenz (2007, p. 8) cita a possibilidade de incorporar histórias
aos locais por meio de informação geo-locativa. Para tratar dos jogos locativos, Lenz cita
Russel (2002) e afirma que esses trazem a possibilidade de “correr e escalar coisas para jogar
jogos de computador ao invés de ficar sentado em uma sala ouvindo com fones de ouvido”, e
que esses jogos são tratados ainda como desafios espaciais comunitários.
MoSoSo’s é uma sigla para rede social móvel que é definido por Lenz (2007) como
uma aplicação que associa posicionamento geográfico e tempo com uma rede social. Quanto a
Anotação espacial e Geodrawing esse mesmo autor (2007) explica que englobam projetos
inspirados pelas possibilidades do Google Maps. Já na categoria de serviços Lenz (2007)
82
inclui serviços baseados em localização que permitem aos usuários conseguir informação
localmente.
Lenz (2007) expõe também que para a realização dos projetos incluídos nas categorias
citadas, são necessários alguns sistemas e aplicações tecnológicas específicas, emtre eles estão
o desenvolvimento Web, os aparelhos móveis, o posicionamento e metadados locativos. Para
o autor citado as mídias locativas se apropriam do desenvolvimento da web 2.0 e do
lançamento do Google Maps de forma que eventos em tempo real passam a ser marcados em
mapas no navegador web, abrimos um parêntes para explicar que para Anderson (2007) a
Web 2.0 possui seis princípios listados a seguir: é resultado de produção individual e
conteúdo criado por usuários; engloba aproveitamento do poder da multidão; trata de dados
em grandes escalas; é construída por meio arquitetura de participação; possui efeitos de rede e
é dotada de abertura. Já em relação aos aparelhos móveis Lenz (2007) faz uma previsão que
veio a se tornar realidade. Ele prevê que nos anos seguintes se esses aparelhos se tornariam
mais atentos ao contexto, o que significa que além do posicionamento absoluto se tornar mais
preciso, também a detecção dos movimentos pessoais se tornaria mais precisa.
Ao analisar a questão tecnológica relacionada ao posicionamento Lenz (2007, p. 5)
declara que o plano de fundo tecnológico das mídias locativas é as vezes referido como
‘location-aware computing144
. O autor apresenta algumas formas de detecção de
posicionamento entre elas e nos interessam os GPS, triangulação de celulares e WiFi, pois são
as tecnologias mais comumente utilizadas para a função narrativa.
Apesar dos trabalhos apresentados, percebemos que nenhuma dessas definições é
abrangente o suficiente para englobar todas as possibilidades das mídias locativas e
principalmente seu uso para as narrativas locativas. Rowan & Goggin (2014, p. 2), entretanto
apresentam um conceito de mídias locativas mais amplo. Para esses autores, as mídias
locativas envolvem qualquer uso de informações, dados, sons e imagens sobre uma
localidade, e que, apesar dessa simplicidade aparente, os conceitos de locativo e de média são
tanto mais complexos, prosaicos, frustrantes e desapontantes do que aparentam, de forma que
para eles, as mídias locativas envolvem não apenas GPS, celulares, telefones, serviços
baseados no local, aplicações de redes sociais, e os chamados aplicações de check-in do
Dodgeball e Foursquare, FacebookPlaces, Twitter e Weibo, englobam uma existência muito
maior e mais relevante, e são o percursor das mídias emergentes de nossos tempos, de big
144
Já discutido com base em Loke (2006)
83
data aos drones, da Internet das Coisas a logística, todas com suas implicações culturais,
sociais e políticas urgentes.
O uso do locativo como adjetivo para esses processos discutidos segundo Rowan &
Goggin (2014, p. 3) foi uma atitude crítica para “estrategicamente reposicionar as práticas de
‘media arts’ mudando a ênfase do ponto de ação (local ou espaço) para o agenciamento de
ações de sujeitos e para as dimensões temporais de ação”. Assim, ao cunhar o termo mídias
locativas, a artista Karlis Kalnins afirmava a precedência da ação sobre o local (ROWAN &
GOGGIN, 2014). A precedência da ação sobre o local é endossada pelos autores citados
(2014, p. 3-4) que, no entanto, declaram
nossa preferência é para os dois – ações e locais em que essas ações
temporalmente situadas acontecem – sejam colocados em uma tensão
produtiva que também leve em conta as várias tecnologias (torres de
celulares, sinais de rádios, handsets, wi-fi, etc.) e outras infraestruturas
(sendo muitas dessas arranjos de corporações) que mediam nossa que meiam
nossas interações tecnosociais localmente situadas
A partir do citado, entendemos que o termo locativo em mídias locativas adquire um
caráter quádruplo que considera as ações, categorias de Lenz (2007) ou as funções de Lemos
(2008), em “tensão produtiva” com os locais, as tecnologias – sensores, computadores
portáteis, etc. Rowan e Goggin (2014) acrescentam ainda aos outros conceitos discutidos a
ideia de infraestruturas, como possíveis normas ou determinações econômicas/sociais que
determinam as formas de apropriação das tecnologias.
Pensamos ser relevante nas próximas linhas apresentar uma breve conceituação de
mídia que complete o termo mídia locativa. Trazemos como ponto de partida para essa breve
conceituação a afirmação de McLuhan (1964 p. 8 e 11) de que “o conteúdo de uma mídia é
sempre outra mídia”, e ainda de que a mídia é uma extensão dos homens, de forma que
podemos afirmar que esse autor já havia percebido as implicações da própria existência das
mídias ao declarar a necessidade de estudo não só do conteúdo, mas também, a própria mídia
e o meio cultural em que ela se encontra.
Nesse contexto, Siapera (2011) apresenta a ideia de que o termo “novas mídias” é
indiscriminadamente utilizado para nomear tipos bastante diferentes de tecnologias e funções.
Esta autora (2011) afirma então três termos diferentes: online media; digital media e novas
84
mídias. Apesar dessa discussão de conceitos, os termos mantêm características comuns.
Assim a ideia de mídia apropriada por Rowan e Goggin (2014) diz respeito a ter os preceitos
discutidos por Anderson (2007) sobre a internet 2.0 como foco.
Na primeira parte desse capítulo discutimos as tecnologias móveis digitais,
apresentamos os diversos conceitos e tipos de projetos possíveis, em seguida discutimos a
existência das mídias locativas e seu funcionamento, destacamos que ainda que não exista
uma unicidade no conceito, a ideia engloba toda uma série de possibilidades de interações
criativa entre locais, processos e tecnologias móveis. Dando seguimento ao trabalho
discutimos as narrativas locativas em seus aspectos práticos, apresentamos conceitos, como as
mídias locativas funcionam para o recebimento das obras e destacamos como o gênero
funciona.
3.3 Discussão das narrativas locativas: Conceituação, funcionamento, especificidades
do gênero
As narrativas locativas para Whittaker (2011, p. 8) são histórias posicionadas em
localizações geográficas específicas, por meio de mídias locativas, ou seja, “histórias (ou
sequencias de informação) definidas em uma localização física específica cujas sequências
narrativas são afetadas pelas decisões dos participantes” 145
, essa autora (2011, p. 1) aponta
também para a interatividade ao afirmar que nesse formato de obras “a audiência se torna
participante, pois suas decisões afetam a trajetória da narrativa” 146
.
Whittaker (2011) destaca o uso do som, seja de voz gravada ou sons de paisagens
misturados com os sons do local físico, como estímulo para aumentar a imersão, entretanto o
som não é a única mídia possível nas narrativas locativas, pois o uso das mídias locativas
permite que a interação do usuário com os locais torne-se um gatilho para os sons e também
para vídeos, imagens, gráficos ou qualquer outra possibilidade de construção da história.
As narrativas locativas, segundo Whittaker (2001), existem em uma trama que engloba
uma série de práticas locativas (no sentido do local, mas sem a necessidade do uso de mídias
locativas). Entre esses gêneros estão os jogos locativos, RPGs em liveaction, passeios
145
“story (or sequence of information) that is set in a specific physical location and whose narrative sequence is
affected byt he participant’s choices”. 146
“the audience becomes a participant as their choices affect the narrative trajectory”.
85
históricos ou educacionais com áudio, instalações artísticas, performances ou teatro locativo,
e eventos de performances em grupo (Flash Mobs). Podemos já destacar aqui esses gêneros
como elos na cadeia de gêneros que permitiram a existência das narrativas lcoativas.
A interatividade é tratada por Whittaker (2011, p. 7) como “um espectro de
participação da audiência” 147
. A autora (2011) explica que existem várias possibilidades de
utilizar a interatividade de forma que “o grau e a natureza da interatividade varia em relação
as formas e capacidade da tecnologia” 148
, ou seja, interatividade não é uma prática única, mas
existe em vários níveis149
e em várias formas. Os diversos níveis e formas alinham-se para
otimizar usabilidade, o engajamento dos usuários com o conteúdo e a imersão.
A interatividade pode ser conseguida por diversos meios, performance, anotações,
digitais ou a mistura de mais de um desses meios. Além da interatividade, as narrativas
locativas objetivam, por meio do som e de outras mídias, que o interlocutor experimente graus
diversos de imersão e agenciamento. É preciso que as narrativas sejam construídas de forma a
levar em consideração a subjetividade individual. (WHITTAKER, 2011)
Deixamos registrado aqui que enquanto um elo em uma cadeia de gêneros, as
narrativas locativas são construídas sobre uma série de outros gêneros e campos da cultura e
da tecnologia, entre eles games theory, narratologia, ludologia, teorias do drama, teoria do
cinema, história da arte e das mídias, teorias literárias, filosofia e computação. A esses
gêneros e áreas se somam áreas específicas de cada história e ainda as linguagens da
comunicação, geografia, arquitetura.
Por fim, de acordo com Whittaker (2011) em narrativas locativas o leitor é requisitado
andar entre escolhas. Nesse sentido as postulações de Whittaker (2011) nos permitem afirmar
que as escolhas representam nós na história, pontos-chave para a continuação da narrativa.
Sendo que a escolha desses pontos é definida por critérios narrativos, além da tecnologia e
dos locais físicos em que a história se desenrola.
Já Para Hight (2006, p. 1) o objetivo das narrativas locativas é “permitir ao próprio
lugar funcionar como gatilho para suas próprias histórias e artefatos apagados pelo tempo” 150
147
“a spectrum of audience participation”. 148
“the degree and nature of interactivity varies between forms and the capabilities of the technology 149
A interatividade pode ser pensada de acordo com Lévy (1999) em relação a quantidade de liberdade do
receptor. É possível pensar em um programa de auditório que pede aos interlocutores para escolher entre dois
candidatos a um prêmio, como um grau baixo de interatividade. Enquanto, em um jogo como Second Life em
que o interlocutor pode agir da forma como quiser, a interatividade é alta. 150
“to allow the place itself to trigger all of its lost incarnations and their artifacts awash in time”.
86
Este autor (2006, p. 1) aponta para a transformação do espaço de forma que os lugares se
tornam possíveis de serem lidos, portanto “narrativas, história, e dados científicos tornam-se
uma paisagem híbrida, não um aumento digital, mas uma ressonância, profunda, maleável e
em diversas camadas do lugar” 151
.
Para Hight (2006, p. 1) as narrativas locativas oferecem “camadas de informação e
uma sensação hipertextual de ligação e fluxo” 152
. O que nos traz o entendimento de que o
fluxo de informações é acionado pela movimentação pelos locais, de maneira que a história e
o local se fundem em uma série de camadas que vão do concreto ao virtual, em que as
camadas virtuais se sobrepõem e se encaminham à medida que o leitor/receptor/interlocutor
relaciona-se com o espaço físico.
Partindo dessa construção inicial Hight (2006, p. 2) define as narrativas locativas
como
narrativas escritas utilizando GPS e redes sem fio planejadas para serem
ativadas em laptops, PDAs, ou celulares (eventualmente, talvez, até em
espetáculos) que representam uma ‘arqueologia narrativa’, uma leitura do
espaço físico enquanto o leitor se move pelo mundo, com elementos e
trechos da história sendo acessados em locais específicos 153
[Tradução
nossa]
A partir do exposto afirmamos que as narrativas locativas são definidas como um
gênero em que o espaço fala e é a estrutura principal a ser lida. O autor citado explica que as
narrativas locativas são um formato que apresenta ao mesmo tempo uma arquitetura narrativa
aberta em obras sempre não finalizadas e a coesão de estruturas narrativas mais tradicionais.
Hight (2006) nos permite perceber o local, objetos físicos do cotidiano ou construções
como conteúdo temático de narrativas locativas, de forma que não são detalhes ficcionais ou
virtuais da narrativa que criam a sensação de espaço, mas o próprio espaço concreto. Segundo
este autor, as diversas possibilidades de se chegar a um local determinado, criam uma não
151
“narrative, history, and scientific data are a fused landscape, not a digital augmentation, but a multi-layered,
deep and malleable resonance of place”. 152
“layers of informationand a hyper-textual sense of linkage and flux”. 153
“narrative written utilizing GPS and wireless is designed to be triggered on a laptop, PDA, or cellphone
(perhaps eventually even with spectacles) represents a ‘narrative earcheology’ [grifo do autor], a reading of
physical place as one moves thourgh the world with story elements and sections accessed at specific
locations”.
87
linearidade na recepção da história, e ainda que essa necessidade de movimentar-se pelos
espaços faz com que o movimento possa ser considerado coautor.
Ressaltamos que as narrativas em obras de narrativas locativas são construídas em
blocos e recebidas pelas pessoas enquanto se movimentam portando os aparelhos móveis.
Resulta que o andamento da história é controlado pelo leitor, por “suas escolhas, sua
abordagem estética do mundo físico em relação a algumas seções, construções ou objetos para
se direcionarem e investigarem e a duração e quantidade de movimento” 154
(HIGHT, 2006, p.
2).
Quanto à forma, as histórias de narrativas locativas são especializadas, o que significa
dizer que os textos “são trazidos de outros tempos, a partir de construções e artefatos antigos,
são formados pela fusão da narrativa com dados científicos e históricos” 155
(HIGHT, 2006, p.
2). Ele propõe, ainda, que os nós da história resultem em uma estrutura de “experiências
narrativas múltiplas, não lineares e informacionais em um local” 156
. Nesse sentido
destacamos que não há um começo, meio e fim adequado, mas múltiplos caminhos, e ainda
que a multiplicidade de possibilidades da história e de possibilidades de percepção dos
espaços em que a narrativa acontece, torna esse espaço em um híbrido de mundo físico e de
realidade virtual.
Já em Greenspan (2011) as narrativas locativas deixam de ser pedaços de informação
que se apresentam em lugares específicos, e passam a responder não só a mudanças de
posicionamento, mas também à especificidades no caminho escolhido, pelo leitor, para chegar
ao ponto chave, e a sua forma de movimentação, assim, a continuidade da narrativa
acompanha a continuidade da localização do leitor no espaço físico real.
Para Greenspan (2011, p. 1) as narrativas locativas são uma produção derivada de uma
série de outros gêneros
como prática artística, as mídias locativas representam uma hesitação
produtiva entre ficção literária, documentários, instalações audiovisuais, e
performances teatrais locativas; enquanto prática cultural está localizada nos
locais diários de comércio e lazer em ambientes naturais ou construídos, no
154
“their choices, aesthetic bias in the physical world toward certain sections, buldings or objects to move
toward and investigate and their duration and breadth of moviment”. 155
“are pulled from eras in time, from lost buildings and artifacts formed by fusing narrative with historical and
scientific data”. 156
“multiple non-linear experiences and informational narratives in a space”.
88
ponto de intersecção das identidades privadas e públicas dos usuários 157
[Tradução nossa]
Entendemos que as narrativas locativas além de criarem um público específico, falam
a públicos já existentes, que englobam os usuários de mídias locativas para qualquer
propósito, e ainda “aqueles que usam diariamente aplicações apoiadas em GPS para ativismo,
flash mobs e outras perturbações civis, e qualquer um que use aplicativos e serviços de
localização móveis para compras, localização turismo ou recreação”. 158
(GREENSPAN,
2011, p. 1). Além dos usuários citados aos públicos possíveis de narrativas locativas podem
ser acrescentados os leitores de ebooks ou audio books.
Apesar de já existirem públicos que possuem o domínio do uso da tecnologia, as obras
de narrativas locativas ainda não se popularizaram. Segundo Greenspan (2011) a resistência
por parte de autores e leitores situa-se nas limitações da tecnologia, que demandam a leitura in
loco. Outro fator é a aparente discrepância entre as noções tradicionais de literatura e as
praticadas em obras eletrônicas, de forma que mesmo os críticos de literatura tendem a afastar
as obras de narrativas locativas da esfera da literatura e aproximarem-nas de esferas de
conteúdo não necessariamente narrativo como games, psicogeografia situacionista ou teatro
locativo.
Para Greenspan (2011, p. 1) uma das características relevantes de obras de narrativas
locativas é apontar ao mesmo tempo para performance e para “características convencionais
da literatura impressa às quais mantém, incluindo uma primazia de ênfase textual, um arco
narrativo, dependência de discurso romanesco, focalização e identificação e a experiência de
ser transportado para um mundo ficcional” 159
. Daí deduzirmos que nem uma nem outra
abordagem separadamente da conta de apreender todos os fatores das narrativas locativas.
Destacamos que Greenspan (2011, p. 1) detecta uma diferença relevante entre
narrativas locativas e narrativas impressas. Para ele, nos gêneros literários impressos, a
157
“as artistic practice, locative media represent a productive hesitation between literatry fiction, documentary,
audio-visual installation, and site-specific theatrical performance; as cultural practices, they are located in the
everyday sites of commerce and leisure within both natural and built environments at the crux of the user’s
public and private identities 158
“those who daily use GPS-enabled applications for activism, flash mobs and other civil disturbances, and
anyone who uses new mobile location-based apps and services for shopping, way finding tourism or
recreation”. 159
“conventional features of printed literature which they reatin including a primarily textual emphasis; a
narrative arc; a reliance on novelistic discourse, focalization and identification; and, the experience of being
transported to a fictional word
89
questão do transporte entre real e ficcional é uma atividade cognitiva, sendo que esse processo
é explicado por meio de analogias com o espaço real; já em narrativas locativas “os passeios
metafóricos são experimentada no concreto” 160
, podemos, portanto pensar uma “relação entre
as definições e cronotopo representados nas narrativas, e aqueles espaços atuais nos quais os
leitores estão situados” 161
(GREENSPAN, 2011, p.1). Essa relação torna-se mais evidenciada
na leitura de narrativas locativas, já que ser transportado pelo mundo virtual significa
literalmente locomover-se pelo mundo real.
Greenspan (2011) propõe uma mudança dos modelos de leitura em que há um
desprendimento do leitor em relação ao mundo real, por meio da hibridização entre o espaço
físico e o espaço ficcional. Segundo esse autor (2011, p. 1) os modelos de narrativas locativas
anteriores, como o de Whittaker (2011) ou Hight (2006) ainda mobilizam o
modelo de engajamento descontextualizado da literatura impressa em novos
contextos espaciais de forma que interferem com frequência na performance
do local, antecipando uma tensão produtiva entre a experiência tradicional de
ser transportado para um mundo ficcional e novas modalidades de
mobilidade que constituem as condições midiáticas atuais 162
[Tradução
nossa]
De acordo com o exposto podemos afirmar que os modelos criticados apenas levam
em consideração na construção do contexto do leitor, o espaço físico, ignorando outros fatores
relevantes no processo imersivo como o caminho escolhido ou a forma de movimentação
desse leitor. De forma que a maioria das obras de narrativas locativas são apenas construções
de áudio ativadas em locais específicos. Chama a atenção, porém, que a história para,
enquanto os leitores não atingirem esses locais.
Resssaltamos que para Greenspan (2011) a locatividade é, ao mesmo tempo, a maior
qualidade e a maior limitação técnica das obras de narrativas locativas, pois o fato de a
maioria dos sistemas locativos funcionar apenas em localidades específicas, limita o alcance
das obras. Esse modelo de locatividade pontual, em que o GPS ativa informações em pontos
160
“the metaphorical departure is experientially real”. 161
“relation between the settings and chronotopes represented within naratives, and those actual spaces in which
readers are themselves situated” 162
“printed literature’s traditional mode of decontextualized engagement within new spatial context in ways that
often interfere with the performance of place, foregrounding the produtctive tension between the traditional
experience of fictional transportation and new modalities of mobility that constitutes our present medial
condition”.
90
específicos deixa na responsabilidade do leitor “inferir as conexões, espaciais e narrativas,
entre pontos de interesse isolados” 163
(GREENSPAN, 2011, p. 1).
Esse formato de navegação ponto a ponto apresenta uma tendência a privilegiar “nó
em detrimento do fio, local em detrimento da duração, apresentando menos uma história do
que um passeio por diferentes pontos” 164
(GREENSPAN, 2011, p. 1). Ainda que alguns
autores consigam apresentar narrativas bem estruturadas mesmo nesse modelo o comum é que
enquanto usuários inevitavelmente perceberão conexões entre os segmentos
narrativos ativados nos pontos específicos, tais sistemas locativos fazem
pouco algoritmamente para encorajar autores e leitores a fazerem essas
conexões esquemáticas mais explícitas. São [as obras] incapazes de
responder a padrões mais complexos no contexto físico, estilo de movimento
sempre em mudança, e interações corporais com o ambiente dos usuários165
(GREENSPAN, 2011, p. 1) [Tradução nossa]
Essas obras usuais falham em utilizar o potencial das tecnologias locativas para
construir obras mais responsivas a mudanças de contexto. Nem quebram o padrão de leitura
desconectada, nem conseguem construir histórias fluidas. Erram ao repetir as concepções
locativas adequadas a serviços e navegação, fracassando na busca por interatividade,
responsividade e consciência espacial. (GREENSPAN, 2011)
Em suma, nesse capítulo apresentamos as tecnologias digitais utilizadas nas mídias
locativas, conceituamos as mídias locativas e explicamos o seu funcionamento, e, por fim,
conceituamos as narrativas locativas como obras narrativas recebidas por meio de mídias
locativas e como tal situadas geograficamente.
No próximo capítulo partimos desse conceito de narrativas locativas e das
características apresentadas aqui para construir efetivamente este gênero segundo as
características coercitivas das esferas de atividade, além de discutir a existência de um estilo,
de um conteúdo temático e de uma forma composicional, também discutimos a existência de
163
“to infer the spatial and narrative connections between isolated points of interest”. 164
“the node over the edge and site over duration, presenting not a story so much as a tour of disconnected sites”. 165
“while users will inevitably perceive connections between the narrative segments triggered at distinct
waypoints, such locative systems do little algorithmically to encourage either their authors or readers to make
the seschematic connections more explicit. They are incapable of respoding to more complex patterns in the
user’s physical context, ever-changing style of motion, or embodied interactions with the environment”.
91
um cronotopo específico no gênero que chamamos de cronotopo locativo e finalizamos com
uma análise da obra Haunted London.
92
4 AS NARRATIVAS LOCATIVAS EM UMA PERSPECTIVA GENÉRICA E
CRONOTRÓPICA
Nesta última parte deste trabalho, retomamos nosso objetivo, qual seja, discutir as
narrativas locativas, tendo como base os conceitos de gêneros discursivos e cronotopo
propostos por Bakhtin. Demonstraremos, a partir daí, como as coerções específicas do gênero
narrativas locativas atuam para a formação dos enunciados-obra. Em seguida, expusemos em
quais pontos a liberdade do autor e a unicidade de cada enunciado-obra aparecem. E, por fim,
defendemos a existência de um cronotopo locativo, que reflete e refrata a existência de um
homem locativo.
Se pensarmos em literatura impressa, os gêneros literários são especificamente
definidos por suas características enquanto enunciados, isto é, quanto ao seu conteúdo
temático, estilo e forma composicional. Já os gêneros digitais, aparentemente são muito
recentes, para que essas características de gêneros tenham se estabilizado. Assim, entendemos
que são enunciados definidos principalmente por sua estrutura de software, pela tecnologia
que demandam, ou na construção, ou na recepção ou em ambos.
Definimos, ao longo do trabalho, as narrativas locativas como obras narrativas
recepcionadas por meio de mídias locativas. A partir dessa definição, percebemos que a
primeira característica essencial para a constituição do gênero é a recepção por meio de
mídias locativas, de forma que propomos uma relação reflexiva entre o uso da tecnologia e a
relação de gênero. Portanto, para ser uma narrativa locativa, é preciso que a narrativa seja
recebida em mídias locativas, ao mesmo tempo em que toda narrativa recebida por meio de
mídias locativas é um enunciado-obra de narrativas locativas.
93
A partir do conceito de gêneros, acreditamos que as coerções podem funcionar como
características mínimas e essenciais, para que um enunciado pertença a um determinado
gênero. Ainda que Bakhtin (1997), em seu estudo sobre os gêneros, não possa ter previsto
gêneros modernos, ou diríamos contemporâneos, que se apropriam das possibilidades
eletrônicas, muito menos a construção de computadores tão pequenos que caberiam em
celulares ou em objetos do cotidiano, acreditamos que a forma como descreveu o conceito de
gêneros previa o surgimento de novas esferas de atividade e, como consequência, de novos
gêneros. E nesse contexto, afirmamos que a recepção em mídias locativas funciona como uma
coerção específica da esfera da literatura eletrônica para as narrativas locativas.
Partindo desse entendimento, destacamos que as narrativas locativas, além da
tecnologia, também se ancoram em gêneros narrativos temporalmente anteriores, literários ou
não, para produzir um formato novo. É relevante ressalvar que as mídias locativas não são a
primeira nem a única forma de tecnologia locativa, entretanto são as primeiras que, além de
utilizar dados digitais, têm, em seu processo de funcionamento, a capacidade de resposta
independente da copresença dos parceiros do processo de comunicação. Percebemos,
entretanto, que o livro impresso e outros formatos impressos, também independem de
copresença. A materialidade do livro é suficiente, para que o autor e o leitor se comuniquem,
ou seja, a própria obra funciona como um enunciado completo sobre um tema qualquer,
pertencente a um gênero qualquer, que utiliza de uma tecnologia específica.
Do exposto, resulta que existe no locativo, que cronologicamente surge depois, algo
do impresso, de forma que as narrativas locativas funcionam como mais um gênero numa
cadeia de gêneros possivelmente ilimitada. Os gêneros impressos não são os primeiros nem os
únicos gêneros na cadeia de gêneros que resulta nas narrativas locativas. O drama grego
(cronologicamente anterior ao livro impresso), por exemplo, possui características de
performance que são refratadas pelas narrativas locativas.
A questão da performance extrapola o escopo deste trabalho, já que nossa proposta é
discutir apenas a abordagem linguística dos enunciados, apesar de que os gêneros
performáticos são de importante influência para o surgimento das narrativas locativas. Não
discutiremos aqui a questão da hibridição, porque, em realidade, não são gêneros que se
misturam para o surgimento de novos gêneros. E sim, um gênero que divide com outros
gêneros semelhanças em relação ao estilo, forma composicional e conteúdo temático.
94
Seguimos algumas dessas características das narrativas locativas e remontamos a um
ou mais gêneros que dividem com as primeiras características semelhantes. Essa não será uma
tarefa enciclopédica; apenas escolhemos alguns gêneros que tenham sido citados pelos autores
discutidos, ou que, para nós, sejam elos mais próximos nessa cadeia de gêneros que resulta
nas narrativas locativas.
A primeira, e mais óbvia característica que define os enunciados de narrativas
locativas, é o fato de os textos serem narrativos. Remontando a gêneros narrativos, temos uma
série extremamente longa de influências: o romance, contos, drama, teatro etc, sendo que
desses citados destacamos os contos, que são a influência mais direta, devido ao tamanho das
histórias, e o romance, por ser tratado por Bakhtin (2014) como o gênero narrativo por
excelência.
No romance, muitas técnicas narrativas foram desenvolvidas, e nos reportamos a
características que podem ser definidas em termos de estilo, conteúdo temático e forma
composicional, reinventadas, modificadas, sempre sendo definidas cronotopicamente. São
essas diversas mudanças que levaram Bakhtin (2014) a distinguir diversos tipos de romance
como: o de aventura grego; o romance de costumes; o romance de educação, entre outros.
A literatura eletrônica, principalmente os formatos baseados em hipertexto, baseia-se,
enquanto narrativa, num formato não linear de escrita, que não é exclusiva do hipertexto, ou
dos meios eletrônicos, o que leva Neitzel (2000) a propor que a escrita do hipertexto também
seria aplicável ao impresso. Essa autora cita O Jogo da Amarelinha de Cortázar e As Cidades
Invisíveis de Calvino como exemplos de obras impressas hipertextuais.
Como já foi dito, não está no escopo deste trabalho discutir obras impressas, mas
especificamente o gênero narrativas locativas. Percebemos, entretanto, que, enquanto elos
numa cadeia de gêneros, essas obras se relacionam. Ainda que a escrita hipertextual não seja
característica relevante para as narrativas locativas, a não linearidade é possível e relevante, já
que é o leitor que, por meio de escolhas específicas, cria a rede textual da obra.
Em narrativas locativas a não linearidade é apenas um acidente potencial. Em
Whittaker (2011), por exemplo, essa característica surge por meio da escolha do leitor por
algum dos caminhos possíveis para um mesmo fim. A história, dividida em nós, segue uma
única direção por, pelo menos, dois caminhos possíveis, não necessariamente há ausência de
linearidade, mas apenas uma construção textual potencial.
95
Greenspan (2011) propõe um modelo de narrativa locativa totalmente responsivo a
qualquer mudança do contexto do leitor, mas, ainda assim, as obras seguem sempre numa
mesma direção, mesmo que por caminhos diferentes. O início e o fim são sempre os mesmos;
não é possível ao leitor começar pela metade, ou terminar no início. As opções se restringem
ao que acontece entre início e fim.
Ao invés de não linearidade, propomos que o ergodismo de Aarseth (1997), discutido
no primeiro capítulo, é a principal característica na estrutura narrativa em narrativas locativas.
Enquanto a não linearidade diz respeito à liberdade de começo, meio e fim, o ergodismo cria
possibilidades distintas na estrutura textual da narrativa, mas refere-se principalmente a uma
necessidade de ação para a sua construção.
Assim, ainda que percebamos as semelhanças entre a estrutura não linear da literatura
impressa, principalmente dessa literatura de Cortázar e Calvino, por exemplo, acreditamos
que a não linearidade seja uma característica secundária e acidental em narrativas locativas. É
verdade quem com o desenvolvimento da tecnologiam essa característica possa assumir um
papel mais relevante. Por exemplo, o Storytrek (GRENSPAN, 2007) tem potencial para
permitir a construção de obras completamente não-lineares em que o texto é definido
completamente pelas escolhas do leitor.
Ressaltamos que as obras com as quais tivemos contato apresentam no ergodismo a
principal característica da construção do texto, portanto o que interessa é que os leitores
realizem trabalho para a construção textual. Deve ficar claro que o trabalho não é somente
semiótico como em Eco (1994), mas também a realização de alguma tarefa por meio das
mídias locativas, para que o texto que já existe como potência literária e como concretude em
linguagem de programação se realize, enquanto texto literário.
Em Haunted London (2012), por exemplo, o leitor precisa se locomover entre os
locais-chave para ir liberando trechos da história e também precisa desvendar certos desafios,
tais como bater em portas, descobrir símbolos amaldiçoados, tudo isso por meio de um
smartphone funcionando como mídia locativa.
96
Figura 3. Trecho de Haunted London. Uso de realidade aumentada em um iPhone.
Na imagem da figura 3, o leitor utiliza um smartphone para desvendar um dos quebra-
cabeças em Haunted London. O smartphone, rodando o aplicativo da obra, por meio de
realidade aumentada, demanda que o leitor encontre um símbolo mágico, que existe de forma
híbrida entre virtual e concreto.
Apesar de ser uma obra digital/virtual, o texto extrapola o espaço virtual e invade o
espaço concreto do leitor. Pela realidade aumentada, virtualidade/concretude se misturam,
permitindo-nos pensar que o leitor passeia pela obra em três níveis distintos: o primeiro nível
é o semiótico; nesse nível, está a não linearidade e a construção do sentido; no segundo nível
está a espacialidade, característica discutida de acordo com Murray (1997) no capítulo 1;
como uma obra virtual, ela pode ser navegada; por fim, o terceiro nível, específico das mídias
locativas, é o nível em que o virtual e o concreto se confundem, como na figura 3 que
apresenta a realidade aumentada.
Ressaltamos, entretanto, que essa separação em níveis não representa uma separação
literal, já que durante o processo de leitura, os três níveis se confundem e se realizam ao
mesmo tempo. O leitor não separa o processo semiótico da sua relação com o espaço virtual
da narrativa e nem de sua relação com a construção híbrida de concreto e virtual da obra. É
interessante notar, ainda, que, em todos os três níveis, o espaço pode ser usado como uma
metáfora pertinente.
Em relação ao nível semiótico, referimo-nos especificamente à construção do sentido
que, como já foi discutida no capítulo 2, acontece por meio de enunciados concretos, e é
97
dividida entre os participantes do processo de comunicação. No segundo nível, Murray (1997)
discute os ambientes virtuais como sendo espaciais, traz a ideia de que a internet é navegável.
Por fim, o nível que tratamos como locativo é a mistura dessa espacialização do virtual com o
espaço concreto, por meio de mídias locativas.
As semelhanças que existem nos três níveis apresentados, que permitem a utilização
da mesma metáfora espacial, atuam como forças que indicam a continuidade nos elos da
cadeia de gêneros. Assim, apesar de diferentes, os gêneros possuem semelhanças tanto em
suas características básicas de estilo, conteúdo temático e forma composicional quanto na
relação de construção do sentido.
Não há lógica, entretanto, em destacar a existência de três níveis, se apenas houvesse
semelhanças entre eles. Tanto semelhanças quanto diferenças somente surgem em uma
relação com o ponto de vista sobre o qual os gêneros são analisados. Neitzel (2006), por
exemplo, observa os enunciados em função de sua ordenação textual possível e constata que,
apesar de o hipertexto ser tido como uma inovação, a sua característica de não linearidade já
existia em obras impressas anteriores.
Longe de discordar com a autora, percebemos que essa semelhança existe, e que tal
acontecimento era previsto por Bakhtin (1997) em seu estudo sobre os gêneros, já que os
gêneros se misturam e se transformam para dar conta de novas esferas de atividade, sem, no
entanto, perder completamente a ligação com os gêneros anteriores que o formaram. Assim,
nas narrativas locativas existem forças que atuam no gênero, para que ele mantenha
características em comum com os gêneros que o formaram. Essas forças são necessárias,
inclusive, para o entendimento por parte do alocutário166
.
O nível espacial é dividido pelas narrativas locativas com os demais gêneros dos
ambientes digitais, ou seja, da literatura eletrônica. Nesse nível, a espacialização da
construção do enunciado extrapola o espaço do sentido e atinge o próprio texto. Muitas das
obras eletrônicas demandam a realização de ações específicas para a finalização possível do
texto, sendo que essas ações vão desde as mais simples como o click do mouse, a outras mais
complexas como o desvendar de verdadeiros labirintos, como nos games.
166
Relembramos que a construção do sentido de um enunciado, para Bakhtin (1997), divide-se em significação e
tema. O primeiro representa a parcela do sentido repetível, quase que o significado do dicionário e o segundo a
relação com a realidade direta do enunciado, a parcela irreiterável do mesmo.
98
Também no nível da espacialização167
se situa a não linearidade, mas não se resume a
ele. A espacialização significa, além de não linearidade potencial, ergodismo. É preciso que o
alocutário desenvolva e utilize uma série de estratégias de relacionamento com os enunciados-
obra. Em narrativas locativas, por exemplo, é preciso que o leitor se utilize de aplicativos de
smartphones e lide com as funções de mídias locativas.
O ergodismo, segundo Aarseth (1997), diferencia a literatura eletrônica da literatura
impressa. Esse autor acrescenta, à questão semiótica, um outro nível de atuação do leitor,
necessário, não só para a construção do sentido, mas para a construção da rede textual. É
preciso levar em consideração que, em 1997, quando o autor criou o conceito, as narrativas
locativas ainda não existiam, pois as mídias locativas só se tornaram possíveis com o
desenvolvimento de processadores portáteis.
O ergodismo é uma função importante para as narrativas locativas, entretanto é no
espaço hibrído entre concreto/virtual que esse gênero tem sua característica estrutural
linguística principal. Tanto a construção do sentido, quanto as ações ergódicas necessárias são
construídas em função do hibridismo entre concreto e virtual, de tal maneira que o resultado
final do texto é sempre um híbrido entre a realidade concreta mais próxima do leitor, não só
aquilo que Bakhtin (1997) generaliza enquanto tema, mas também, em mais especificamente,
os locais e objetos em contato direto com esse leitor.
Além do ergodismo, a espacialização semiótica diferencia-se da espacialização digital
pela própria constituição desses espaços. O espaço semiótico de cada enunciado-obra é
delimitado pela extensão da obra. O livro só significa dentro das possibilidades do que está
escrito, ainda que se possa argumentar que cada leitor, a cada leitura, traga uma gama de
possibilidades de construções de sentido; esses sentidos não podem extrapolar uma
quantidade finita de possibilidades, a partir da materialidade do texto.
Já a espacialização digital soma-se ao enciclopedismo168
do espaço digital e cria obras,
potencialmente ilimitadas. Não se trata aqui somente do ordenamento do texto, mas de textos
que se somam ad infinitum por meio de links. À dimensão da organização do texto acrescenta-
se outra dimensão, na que outros textos complementam, e acrescentam, aos sentidos do texto
primeiro. Todas as imagens, sons, vídeos e outros textos, que complementariam ou
167
Novamente nos referimos a Murray (1997). 168
Também nos referimos a Murray (1997).
99
aumentariam o sentido de qualquer trecho do texto inicial, podem ser acessadas nesse grande
banco de dados da internet.
A relação entre os diversos espaços frequentados por leitor durante a leitura de
narrativas locativas, semiótico, ergódico, concreto/virtual, concreto, é condição necessária
para a existência das obras de narrativas locativas. É possível fazer essa discussão por duas
vias de pensamento: em uma via, o software, quando completado pelo autor, já apresenta
todas as possibilidades de textualidade que a obra pode tomar, e, assim, esse software já é o
texto completo; por outra via, o software apenas contém um potencial de obra, que somente se
atualiza durante o processo de leitura.
A segunda via representa uma diferença marcante de gênero entre o software e a
narrativa locativa. Ainda que em primeira instância, uma obra de narrativas locativas seja um
software, a relação oposta não é verdadeira. Há uma diferença sutil aqui, entre o código de
uma obra impressa e o código de uma obra digital, já que ambos são formas de codificação
que precisam ser atualizados por meio da leitura. A diferença reside exatamente na natureza
desse processo de leitura: enquanto no impresso é uma ação semiótica/cognitiva, na digital é
um processo de natureza mecânica. No software, a linguagem não apresenta diferentes
possibilidades de “significação” para um mesmo código em função da mudança do tema169
.
Essa diferença na maneira de significar, apesar de sutil, é de extrema importância para
determinar a existência de dois enunciados: o software, que pertence a um gênero específico;
e a sua posterior existência como uma narrativa locativa, que pertence a outro gênero dotado
de estilo, conteúdo temático e forma composicional característicos. A formalidade da
estrutura da linguagem do software significa que, independentemente das características
sócio-históricas que norteiam o processo de escrita/leitura, o código terá sempre a mesma
significação: qualquer erro de sintaxe representa uma impossibilidade de comunicação;
enquanto que qualquer erro semântico impossibilita o entendimento.
A ausência de possibilidades diversas de significação no software, linguagem da
programação de softwares, independentemente de qual170
seja, é uma linguagem formal, ou
seja, apenas aceita uma forma estrutural específica. A execução dessa linguagem, em uma
máquina adequada, resulta na obra de narrativas locativas, é um processo que transforma um
código em outro. O enunciado que resulta desse encadeamento representa uma mudança da
169
Nos referimos aqui ao conceito Bakhtiniano (1999) que diz respeito a parcela da formação do sentido. 170
Existem várias linguagens de programação que utilizam sintaxes diferentes, entre as mais conhecidas estão:
C; C++; Java.
100
linguagem formal em linguagem informal, que precisa de sua realização em uma situação
concreta para a formação de sentido.
Outra característica das narrativas locativas que aponta para outros gêneros em uma
cadeia é a existência de várias mídias na composição das obras. Essas obras são compostas de
áudio, imagem, vídeo, texto, tendo semelhanças com a televisão que utiliza áudio, vídeo, texto
e imagem. O cinema, que assim como a televisão, utiliza as quatro mídias: revistas, jornais e
livros que possuem texto e imagens. Há, entretanto, nos gêneros não digitais uma limitação
quanto ao formato: nesses gêneros a seleção das mídias utilizadas e das informações
transmitidas por cada uma fica a cargo do locutor de cada enunciado.
Nos enunciados de narrativas locativas e nos digitais em sua maioria há uma divisão
do processo de construção do enunciado. Não nos referimos nesse ponto a uma metáfora
semiótica, como a metáfora da ponte de Bakhtin (1997) em que cada um dos parceiros da
comunicação constrói o sentido a partir de seu posicionamento sócio-histórico-específico,
sendo esse sempre um processo de coautoria, mas, sim, a uma relação concreta em que o
leitor aponta caminhos, escolhe textos de apoio e completa a obra, a partir dos diversos
enunciados nas diversas mídias disponíveis na rede.
Nos enunciados não digitais, um enunciado é composto por diversas mídias; seu
sentido é produção pela relação dos sentidos transmitidos por imagem, som, texto escrito e
vídeo. Já os enunciados de narrativas locativas são constituídos por diversos outros
enunciados que têm sentido independente: imagens, sons, textos, vídeos produzidos como
enunciados completos, passíveis de resposta, com alocutários variados, não necessariamente
os mesmos da narrativas locativas.
Tratamos de dois formatos distintos: um constituído por uma mistura de várias mídias,
e outro constituído por vários enunciados nas diversas mídias. Essa possibilidade de formação
de enunciados à semelhança do hipertexto leva o nome de hipermídia, uma mídia que, além
de suportar qualquer outra mídia, seus enunciados são efetivamente compostos de diversos
outros enunciados que não mantêm, uns com os outros relação alguma de pertença ou de
sentido.
Outras características, menos relevantes das narrativas locativas, também ressoam em
gêneros já existentes. Hight (2006) trata as narrativas locativas como um formato que permite
que o espaço fale. O autor retoma, cita as esferas da história e da arquitetura como esferas que
101
refratam nos enunciados de narrativas locativas. Os gêneros da história, por exemplo,
aparecem na forma em como os enunciados emitidos sobre os lugares afetam a percepção do
leitor que os vivencia durante a leitura de narrativas locativas. Já os enunciados da arquitetura
participam da forma como os lugares são apropriados como espaço pelos enunciados de
narrativas locativas.
Greenspan (2007) também acrescenta elos na cadeia de gêneros que formam as obras
de narrativas locativas. Para esse autor o leitor é um intérprete de si mesmo, e o ato de leitura
seria uma espécie de “performance”. Ou seja, não existem avatares, nem roteiros para o
acabamento de um personagem; o leitor, ao extrapolar o processo de leitura contemplativa,
experimenta a ficção na concretude.
Para Greenspan (2007), durante a leitura de narrativas locativas, o leitor vivencia
imersão no universo ficcional da narrativa. Quanto mais parecidos os espaços concretos e os
espaços ficcionais, mais forte será a sensação de estar vivendo a narrativa. Percebemos, no
entanto, que esse processo é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que o leitor se sente
imerso no espaço ficcional, esse espaço narrativo vai se construindo como uma teia, pinta de
cores diferentes os locais concretos, diretamente ligados ao leitor.
Há, nos enunciados de narrativas locativas, um processo duplo de imersão do leitor no
universo ficcional e emersão do universo ficcional na realidade concreta mais próxima do
leitor. Ambos os processos se realizam, ao mesmo tempo, e são inseparáveis; um resulta
diretamente do outro. Só há imersão porque o leitor observa, em seu local imediato,
características iguais às da narrativa, da mesma forma que a narrativa emerge no concreto,
quando as características que determinam o enredo podem ser encontradas nos locais
concretos.
Existem, ainda, algumas relações com a tecnologia que auxiliam nessa relação entre
concretude/virtualidade, realidade/ficção. O contraste entre concretude e virtualidade é
aparentemente óbvio. A concretude é o que está em contato direto, não intermediado com o
leitor, enquanto que a virtualidade é o que tem potência a se concretizar, no caso específico
das narrativas locativas, é o que é mediado pelas mídias locativas.
Já a relação dicotômica entre realidade e ficção se mostra frutífera, mesmo levando em
consideração gêneros como a literatura de testemunho, as biografias, ou os gêneros literário-
jornalísticos. Para Bakhtin (1997) todo enunciado é uma representação da realidade, tendo
102
menor ou maior liberdade de estilo, conteúdo temático e forma composicional, mas sempre é
uma forma de representar uma realidade específica, a partir de um ponto de vista sócio-
histórico, de forma que o enunciado nunca alcança o todo de toda a realidade, mas apenas
propõe certo acabamento aos acontecimentos, a partir do ponto de vista do autor.
Assim, em narrativas locativas, a ficção, o acabamento do autor sobre um
acontecimento qualquer, é conduzida em função da realidade dos leitores prováveis. Essa
realidade é, principalmente, mas não exclusivamente, o local em que o leitor se encontra.
Lembramos da discussão de Loke (2006) sobre o contexto: todas essas informações podem
ser usadas nas obras de narrativas locativas para integrar real/ficcional e concreto/virtual.
A textualidade da narrativa de quaisquer narrativas locativas deve sempre levar em
consideração a localidade em que será lida. Não basta contar uma boa história, ou utilizar=se
de forma diferente a tecnologia, e sim utilizar a tecnologia para agregar a história ao contexto
do leitor. Apesar de existirem possibilidades ainda por descobrir para escolhas lexicais, para a
estrutura composicional e para os possíveis tratamentos do conteúdo já é possível cravar que a
relação de tempo e espaço é o centro da existência das narrativas locativas.
Percebemos que as histórias que podem ser contadas podem inspirar-se em qualquer
gênero da literatura impressa, e desse gênero buscar as escolhas lexicais adequadas à história
a ser contada; a escolha das mídias em que cada trecho será contado permite a construção de
várias estruturas diferentes de organização; e as possibilidades de tratamento de qualquer
conteúdo, de “deformação” de um determinado enredo dependem do autor. Apesar de tal
liberdade, o hibridismo entre concreto/virtual é regra determinante.
Para aprofundar o tratamento dessa relação entre o espaço real/ficcional
concreto/virtual apropriamo-nos da discussão sobre o cronotopo. Demonstramos como a teia
temporal transpassa o espaço das narrativas locativas e cria um cronotopo único que
chamamos de cronotopo locativo e também cria uma representação única de homem.
Retomando o que já dissemos, as narrativas locativas são obras com aspectos
literários, recebidas por meio de mídias locativas; utilizam-se das possibilidades de
processamento de dados de computadores. Têm como principais atributos ser software,
interativas, responsivas, espaciais. Nenhuma dessas características, entretanto, aponta para
usos linguísticos ou literários específicos, em termos de gênero.
103
As narrativas locativas são um gênero híbrido, no sentido de que para sua formação
minsturam-se: a arte, a literatura, a ciência da computação, as ciências da informação,
arquitetura, sociologia, história, geografia, cinema, música, jornalismo etc. Os enunciados
desse gênero variam nas características apresentadas dos gêneros das esferas citadas.
Citamos essas diversas esferas, para poder afirmar que o gênero apresenta, em sua
fundação, um caráter dialógico. Entretanto, limitar-nos-emos, em nossa definição, a algumas
dessas esferas. As narrativas locativas estão situadas, principalmente, em uma relação
dialógica entre literatura e tecnologia. Daí a nossa definição: obras com aspectos literários,
recebidas171
por meio de mídias locativas.
Para a construção teórica do gênero, essa definição pode ser dividida em duas partes.
Retomamos com Bakhtin, que essa separação é apenas uma abstração com fins teóricos,
sendo que qualquer enunciado de narrativa locativa é dialógico entre esses aspectos e todos os
outros aspectos das esferas citadas. Como um trabalho inicial, trabalharemos a ideia de
aspectos literários, como apresentados em narrativas locativas, e as mídias locativas que
determinam uma existência cronotrópica típica.
Retomando Francisco (2014), é possível afirmar que a escolha, por agrupar os
enunciados de narrativas locativas, significa uma filiação a uma linha de pensamento. Apesar
dessa filiação, a ideia de que as narrativas locativas são um gênero literário, acompanhamos
Hayles (2007), ao evitar a polêmica em relação a essa ideia, daí, o argumento pela existência
de aspectos literários172
, independentemente do julgamento entre ser literatura ou não.
Esses aspectos literários variam, mesmo em um mesmo gênero, mas Bakhtin (1997)
afirma que os gêneros literários apresentam uma maior liberdade de estilo, ou seja, uma maior
quantidade de escolhas lexicais possíveis. Na mesma proporção, os gêneros literários também
171
Não está no escopo desse trabalho discutir a diferença entre “recepção” e “leitura” utilizaremos ambos como
sinônimos. Esse é um questionamento que pode vir a ser discutido em outros trabalhos. Apontamos, entretanto,
para um caminho intermediário, já que recepção aponta para “receptor” inativo, enquanto que “leitura” pode
não estar de acordo com o uso de vídeos, imagens, áudio e do lugar como características. Nos parece que nas
narrativas locativas o “o outro” agiria diferente da recepção e da leitura. 172
Reforçamos nossa filiação a essa posição, apesar de não discutirmos o que são aspectos literários com
profundidade, mas concordamos com Hayles (2007) que há nos gêneros eletrônicos uma busca pela
apropriação das capacidades do computador para (re)construir inspiradas no estilo e conteúdo temático de
gêneros impressos.
104
possuem maior liberdade de forma composicional e conteúdo temático; esses gêneros podem
também englobar outros gêneros não literários173
.
As potencialidades de narrativas locativas, para contar histórias, ainda não estão
totalmente atualizadas. Como um campo relativamente novo, não existem histórias
suficientes, para que exista um tratamento como o do romance, ou da poesia, em que existem
períodos e gêneros diferentes para o mesmo formato de mídia. Ao tratar narrativas locativas, é
possível propor qualquer história sobre qualquer tema.
Seria plausível discutir a existência de diferentes gêneros dentro das narrativas
locativas, baseado nos aspectos que são, atualmente, relevantes para a literatura eletrônica: a
desconstrução do signo, o agenciamento, a interatividade, a imersão etc.. Tal discussão,
entretanto, contribuiria muito pouco para um gênero cujos enunciados são raros e esparsos.
Acreditamos que as discussões já realizadas sobre outros grandes gêneros do romance dão
conta dessa aresta.
O que há de efetivamente diferente é o uso da tecnologia para contar histórias, de
forma que se somam áudio, vídeo e texto à característica de locatividade. O caráter
multimídia existe na TV, no cinema, nos usos mais conhecidos de internet, e nas
possiblidades dos computadores. Os computadores móveis permitem uma mudança, ao invés
de essa informação multimídia estar descontextualizada, relacionada a um espaço diferente do
espaço do leitor, essa informação se reterritorializa.
Essa reterritorialização da informação, não só no sentido de uma mudança de espaço,
mas no sentido de uma mudança para um espaço específico, sempre para o espaço ocupado
concretamente pelo leitor, é a principal característica que define as narrativas locativas.
Independentemente da história contada, há ao menos três espaços em dialogismo entre si: o
espaço da história, o espaço como concebido genericamente no tempo nos contextos de leitura
e escrita e o espaço do leitor.
Essas novas apropriações do espaço também fazem parte da apropriação pelo gênero
narrativas locativas de discursos utilizados na esfera da sociologia e da geografia, por
exemplo. Por meio da agregação de informação, o “espaço” da narrativa, que poderia ser um
173
Bakhtin em sua obra apresenta o romance como o gênero narrativo por excelência, mas nós percebemos que a
literatura eletrônica e, portanto, a narrativa locativa também tem essa característica.
105
não-lugar para o leitor transforma-se em um lugar174
. A informação “transmite”, “atribui”,
“dá” ao espaço um caráter menos impessoal.
A relação entre espaço, informação e lugar acontece, ao menos, em dois níveis
diferentes, não sobrepostos, mas refratados um no outro: o nível do leitor e o do enredo. Esses
dois níveis espaciais somente existem, na experiência de narrativas locativas, em dialogismo,
um como refração do outro. São representações diferentes, mas que não existem, na realidade
concreta, separadas uma da outra.
A história se desenvolve nesse espaço híbrido entre concreto e cibernético/virtual. E
esse espaço é desenvolvido por um tempo genérico como contextualizador, e, por outro tempo
qualquer dos gêneros literários anteriores, de forma que, a priori, as narrativas locativas têm
características cronotópicas comuns a outros gêneros literários.
O tempo do leitor é sempre um tempo mais ou menos genérico, comum, sócio-
histórico. Cada leitor ou, ainda, a cada leitura, o sentido é construído, a partir tanto do
posicionamento sóciohistórico do autor, das possibilidades de significação das palavras e
desse mesmo posicionamento sóciohistórico do leitor. Retomamos Campos (2006), em sua
leitura de Bakhtin em que aponta ser o sentido dialógico, entre, no mínimo, dois
posicionamentos axiológicos.
O autor constrói o sentido do seu texto, a partir de seu posicionamento único; atribui
ao enunciado certo tema. E ao leitor cabe, de acordo com Bakhtin, construir o mesmo, sentido
ainda que em conflito com o sentido do autor, a partir de seu posicionamento único. Essa
construção não é individual, mas refrata toda uma ideologia do cotidiano, ou ideologias das
esferas dominantes relacionadas a tal enunciado.
É assim que utilizamos discursos e ferramentas teóricas, principalmente, das esferas da
literatura, da comunicação e da computação móvel para discutir as narrativas locativas. Além
do sentido construído pelo autor e pelo pesquisador, estão os sentidos dos diversos discursos
que tangenciam, cruzam ou existem em paralelo aos enunciados e gêneros analisados.
As narrativas locativas, enquanto grande gênero, podem apresentar uma diversidade de
tempos diferentes. Há sempre a cronologia do tempo do movimento do leitor, do tempo da
174
As relações entre “espaço” e “lugar” são discutidas por Tuan (2001), para esse autor o lugar é o espaço
somado às experiências vividas. O não lugar é uma construção teórica de Augé (2008) refere-se a lugares de
passagem, com o mínimo de envolvimento sentimental, como quartos de hotéis, supermercados. O termo foi
apropriado por teóricos do ciberespaço para discutir as relações de pertence em ambientes virtuais.
106
tomada de decisões e da realização das tarefas propostas; há o tempo da história que se
apropria de qualquer modelo de representação temporal; há o tempo específico para a
recepção do texto.
Esses três tempos podem se desdobrar em tantos outros, a depender da história
contada; por exemplo: Haunted London é um conto de horror que apresenta um tempo
cronológico, e ao mesmo tempo, místico. As ações dos personagens seguem uma ordem
cronológica, sempre no sentido presente-futuro, mas, ao mesmo tempo, interagem com
acontecimentos do passado.
Esses desdobramentos relacionam-se com o que Murray (1997) trata como
agenciamento e imersão. A relação de gênero e cronotrópica existem em enunciados-obra de
narrativas locativas, em constante com essas duas características. O tempo e os espaços,
apesar de terem características em comum, alteram-se em busca de um ou outro objetivo. O
agenciamento total e a imersão total são dois extremos, dois modelos genéricos. Os
enunciados-obra ocupam, geralmente, posições intermediárias entre esses modelos.
As obras que se aproximam mais do agenciamento apontam para a característica do
jogo. Nessas obras, as fronteiras entre o jogo e o literário são reduzidas; ao jogo soma-se o
estilo, o tratamento do conteúdo e características da forma do literário, enquanto que às
características do gênero narrativo se acrescentam características do jogo. São obras
narrativas em que o sequenciamento, ou o enredo são sempre potenciais, dependem das ações
realizadas pelos leitores em momentos chave.
Todos os enunciados de narrativas locativas são obras de literatura ergódica, no
sentido de que demandam ação, além da relação direta com os seguimentos lexicais, para
construção do sentido. Os enunciados estão sempre incompletos, durante o processo de
leitura. Essa incompletude não é uma metáfora relacionada a tema e significação, mas como
concretude lógica e material.
O sentido da incompletude a que chamamos de metafórico aplica-se, aqui, o
entendimento das narrativas locativas é similar ao entendimento de qualquer outro enunciado.
Passa pela existência cronotópica, pelo conhecimento do gênero, por uma localização sócio-
histórica concreta de autor e leitor, além, obviamente, dos significados possíveis para as
palavras utilizadas.
107
A incompletude dos enunciados de narrativas locativas está para além da necessidade
do leitor de construir o sentido a partir de seu posicionamento sócio-histórico. Envolve, em
primeiro lugar, a inexistência do texto como atualização; a materialidade do texto apenas
existe enquanto enunciado de software. A obra atinge seu ápice somente na interação com o
leitor, no momento em que esse leitor acessa o software por meio das mídias locativas.
As mídias locativas apresentam a linguagem de programação como um projeto
artístico. Além do processamento do software, as mídias locativas também medeiam a relação
do leitor com o trabalho necessário para a atualização da linguagem de programação no
enunciado artístico que é seu objetivo. Essa análise apresenta os enunciados de narrativas
locativas como uma sequência em uma única direção: software, execução nas mídias locativas
e apresentação do enunciado.
Qualquer separação sequenciual entre momentos, na execução das narrativas locativas,
como demonstrada no parágrafo anterior, é apenas teórica, pois o processo de execução, ou
seja, processamento dos dados do software é contínuo, a obra só se completa nessa relação,
que é dialógica, entre o leitor, software e computador175
. Cada enunciado é realizado pelo
autor-criador como software. Essa existência é o maior grau de concretude material do texto
de narrativas locativas.
Apesar da tentativa de determinar limites, fronteiras, todos esses momentos que
aparecem, de forma distinta, são uma única existência dialógica, mas que demandam dos
autores e leitores posturas diferentes, em relação a autores e leitores de obras não eletrônicas.
Aos leitores é dado o direito, maior ou menor, conforme a estrutura da obra, de determinar o
seguimento textual, visual e linguístico da obra.
O trabalho do leitor determina a continuidade do texto, não só da construção de
sentido, mas, do texto em si. A relação cronotrópica do leitor e da obra não aparecem como
uma relação de fundo, que permite a construção do sentido, mas como uma relação que
antecipa a própria determinação do cronotopo da narrativa. O tempo e espaço do leitor se
hibridizam com o tempo e espaço propostos pelo autor na construção do cronotopo locativo.
O autor-criador contribui com a apresentação de possibilidades. Esse autor-criador é o
construtor da virtualidade da obra, enquanto o leitor é o responsável por sua atualização,
transformação, de virtual em concreto. É claro que, ao discutirmos uma existência concreta de
175
Recordamos que as mídias locativas são computadores móveis.
108
um texto virtual, é apenas uma analogia que representa a mudança de um estado de existência
do possível para o acontecido. O virtual é também uma possibilidade cronotópica.
Mas o possível cronotopo virtual é insuficiente para dar conta das narrativas locativas,
de sua existência híbrida, tanto no tempo quanto no espaço. O leitor de narrativas locativas
interage com três espaços: 1) metafórico176
– a busca pela construção do sentido, o passeio
pelo universo da narrativa; 2) virtual – todo o texto existente na internet existe em forma de
virtual, como a espacialização proposta por Murray (1997)177
; 3) concreto ou geográfico – os
centros urbanos delimitados pelas mídias locativas.
Cada um desses espaços é experimentado pelo leitor em uma conexão necessária com
características temporais. O espaço metafórico determina um tempo também metafórico
específico do gênero e da construção do enunciado. O espaço virtual relaciona-se com uma
ideia de “todo o tempo” ou “qualquer tempo”. Por fim, o espaço concreto demanda a
existência de um “agora”.
Apesar de destacarmos essa hibridez de noções de tempo e espaço de leitor e das obras
em narrativas locativas, retomamos a proposição de Holquist (2006) de que existe um
crontopo genérico, comum, como pano de fundo contra o qual todos os outros cronotopos são
percebidos. O leitor experimenta no processo de leitura um cronotopo que não é puro, não é
um desses citados em cada momento, mas sempre o seu próprio e o da obra percebidos em
relação a esse cronotopo genérico, durante todo processo de leitura.
Nosso foco no leitor significa que esse papel discursivo é mais significativamente
alterado na interação por meio de narrativas locativas. Parece-nos que o autor, enquanto
criador, apresenta mais semelhanças do que diferenças com os formatos não eletrônicos. As
obras de narrativas locativas são enunciados, de um gênero específico, voltados para um
público específico e como tal podem ser entendidos, do ponto de vista da autoria como outros
gêneros.
Mas o processo de leitura é semiótico, como em outros gêneros não eletrônicos, e, ao
mesmo tempo, ergódico. E ergódico em um sentido específico e único. É um trabalho que
envolve principalmente o uso da tecnologia e de geolocalização, mas, não exclusivamente. A
176
Usamos esse termo como uma referência a Aerseth (1997) e como ele diferencia a espacialização no texto
impresso e no universo virtual. 177
No capítulo 1 discutimos características dos ambientes virtuais e uma dessas características é a
espacialização.
109
relação com a realidade aumentada, com as geotags e outras das funções das ML também
aparece.
As narrativas locativas e a literatura eletrônica, no geral, permitem perceber
claramente como os gêneros se formam como elos em uma cadeia. A narrativa locativa
analisada, e conceituada, aparenta ser experimento, tentativas de entender as possibilidades de
construir um cronotopo específico por meio dessas tecnologias locativas, em busca da imersão
do leitor no universo da narrativa.
Nesse momento do desenvolvimento do gênero, as histórias ainda são concebidas
apenas como pequenos pedaços de filmes, áudio e texto escrito que devem levar entre 15
minutos e 1 hora para a leitura completa. Entretanto é possível pensar com Greenspan (2007)
na construção de verdadeiras novelas locativas. Cada vez que o leitor retoma seu caminho
comum, digamos de casa para o trabalho, o ritmo de seu andar, o tempo, o horário,
informações sobre o tráfego podem ser usadas em uma obra potencialmente inacabada.
Mesmo levando em conta o possível direcionamento para o agenciamento, as obras
locativas apontam para uma busca maior por imersão. Baseado no conceito de que, quanto
mais parecidos os espaços metafóricos e os espaços geográficos, maior a sensação de imersão,
sendo que, mesmo em histórias em que o agenciamento é grande, a semelhança entre os
espaços é capaz de criar uma sensação de imersão.
A interação do leitor com a história acontece, sempre por meio das mídias locativas,
mas em momentos distintos, momentos esses entendidos como parte de um cronotopo real,
concreto, vividos no tempo cronológico e no espaço concreto. Esses leitores recebem trechos
da história em momentos-chave, em que alguma ação é requerida, ou o texto é apresentado no
aparelho. Mas esses momentos-chave são intercalados por momentos de ausência de
interação, em que o leitor se movimenta entre os momentos-chave.
Em um primeiro momento, pensamos na analogia entre esses momentos de ausência
de interação, ou seja, o ato de caminhar de um local-chave para outro local-chave, com a ação
de passar a página. Os dois momentos parecem ser momentos de interrupção da leitura, de
interrupção da recepção da parcela de construção do sentido que cabe ao autor.
110
O ato de passar uma página pode ser entendido como um trabalho, no sentido
ergódico, porém esse ato, geralmente178
, não interfere no resultado final da narrativa. Parece
inexistir uma relação de conexão entre a quantidade de páginas passadas e outras
características relacionadas ao material concreto que interfiram na construção do sentido por
parte do leitor.
Talvez essa inexistência de relação esteja relacionada ao hábito ou algo nesse
sentido179
, mas o que nos interessa aqui é evitar que algumas analogias ou metáforas como
essa confundam o entendimento da diferença entre os dois processos de leitura. Apesar da
possibilidade de imersão no sentido metafórico, “Em seis passeios pelo bosque da ficção”, de
Eco, no entendimento bakhtiniano, estamos tratando de um grau de imersão em que esse
sentido metafórico assume um grau maior de concretude.
Trabalhamos a ideia de imersão em níveis de concretude para situar as narrativas
locativas como um elo em uma cadeia de gêneros literários/eletrônicos que ainda não
atingiram seu auge. Um gênero que é híbrido não somente na mistura de gêneros, mas
também está entre o habitual e o inovador. Qualquer gênero tem possibilidades de variações
em seus enunciados específicos, de forma que eles não são todos iguais e, ao mesmo tempo,
nem todos diferentes.
É o que acontece com os enunciados de narrativas locativas, que caminham junto à
literatura eletrônica em busca das possibilidades estéticas do uso de novas mídias. Alguns
desses enunciados podem apresentar grandes parcelas de texto narrativo, ou seja, dividem
uma semelhança de forma com gêneros impressos, enquanto outros enunciados-obra são
construídos visando explorar nas novas tecnologias os conceitos de signo, de materialidade,
de texto etc.
Nos subcapítulos seguintes, discutimos como esses conceitos se relacionam com a
obra de narrativas locativas: Haunted London. Demonstramos a existência do cronotopo
locativo e sua relação necessária com a forma como o tempo e o espaço são vistos no
momento da leitura. Ainda tratamos da formação do enunciado e como os diversos discursos
relacionados interagem com a construção da obra.
178
Levamos em consideração aqui a poesia concreta ou os textos modernos, ou outros exemplos de enunciados
não eletrônicos em que o espaço dá página, o formato material interfere na construção do sentido. 179
O que nos interessa é demonstrar que o processo de leitura das Narrativas Locativas é inovador.
111
4.1 HAUNTED London
A obra Haunted London é uma “collaborative experience based upon a haunted trail
in the heart of old London city. A locative and interactive storytelling experience that
promotes theexploration of a ‘Hidden London’”180
(PROFUMO, 2011, p. 1). A obra se situa
em um ponto de intersecção entre o jogo, um guia turístico e um filme interativo. Haunted
London materializa-se na forma de um aplicativo para iOs, executado por meio de mídias
locativas.
Duas histórias são contadas ao mesmo tempo: a história (real) dos locais visitados e a
história (ficcional) de Emma. Como um aplicativo de guia turístico, Haunted London tem
como objetivo principal levar os leitores para pontos turísticos secundários de Londres. O
aplicativo é indicado para visitantes que já conhecem os pontos turísticos clássicos e
procuram uma nova abordagem turística para a cidade.
Tanto a parte histórica como a parte ficcional são entregues aos leitores em blocos de
áudio recebidos em locais específicos. A localização dos leitores é detectada por meio do
GPS. As instruções são dadas em áudio e em texto escrito. Quando em áudio, as informações
são dadas por personagens da história; quando em texto, é uma voz que não é nem
necessariamente a do autor ou a do narrador. As instruções condicionam a interação entre os
leitores e a obra, indicam ações, caminhos e limitam as escolhas possíveis.
Escolhemos essa obra para análise porque apresenta um extremo possível em relação
aos elementos discutidos no nível de literatura eletrônica e no nível de narrativas locativas.
Nessa obra, o grau de interatividade é pequeno. Aos leitores apenas é oferecido um único
caminho possível, tanto em relação ao movimento no espaço concreto, quanto
metaforicamente, em relação ao movimento no “bosque ficcional”. Os leitores interagem com
a história, direcionando-se aos locais indicados e resolvem os desafios propostos.
Entretanto o pouco agenciamento, relacionado ao pequeno grau de interatividade,
aumenta a experiência de imersão por parte dos leitores. A história se passa exatamente no
180
“Uma experiência colaborativa realizada em um caminho assombrado no coração da Londres antiga. Uma
experiência narrativa interativa e locativa que promove a exploração de uma ‘Londres Escondida´”. [Tradução
nossa]
112
lugar de leitura. Todos os movimentos dos leitores, indicações da quarta voz, tarefas etc., tudo
que, enfim, está na história, aponta para o local físico e concreto em que se situam os
locutores.
A leitura inicia-se, após os leitores selecionarem no menu principal a opção “start
walk”. Os leitores são instruídos a sincronizar seus aparelhos por meio de rede bluetooth. A
sincronização demanda apenas que ambos os leitores ativem a função de bluetooth em seus
smartphones. Após a realização dessa primeira tarefa, um mapa é mostrado pelo software nas
telas dos dois aparelhos. Esse mapa indica o caminho para a primeira localização chave na
história.
Assim que ambos os leitores cujos aparelhos estão sincronizados pelo aplicativo da
obra chegam ao primeiro ponto-chave, um narrador começa a falar. Esse primeiro local é uma
igreja católica a Christ Church Newgate Street. Por meio do GPS, o aplicativo sobrepõe ao
espaço concreto um espaço virtual, em que os leitores precisam estar concretamente para
continuar o processo de leitura.
A voz do narrador é transmitida aos leitores em forma de áudio que é tocado
automaticamente no momento em que o GPS detecta que esses leitores estão na localização
correta. Esse primeiro áudio explica aos leitores que a igreja “was destroyed by the blitz in
1941”181
, e indica aos leitores um caminho lateral a uma porta que leva a um jardim da igreja
em que “eight hundred years ago, queen Isabella182
wife of the english king Edward II was
buried”183
.
O narrador inicia a apresentação da igreja com o sintagma “in front of you there is”184
.
Essa frase é em si uma apresentação de um tempo e espaço; o objeto da narrativa está
concretamente situado no lugar em que os leitores, concretamente estão situados. Estar “em
frente” a algo indica uma posição relativa de algo em relação a outro algo, sendo que essa
característica é detectada por meio do virtual, mas existe no concreto.
A segunda parte do sintagma possui um verbo no presente, “lá está”. A ação não está
sendo exatamente contada, mas está acontecendo à medida que os leitores cooperam para a
construção da obra. Essa coautoria ficará mais clara no prosseguimento da história. Nesse
181
“Foi destruída pela blitz de 1941” [Tradução nossa] 182
Isabella of france (1295-1358) 183
“Oitocentos anos atrás, rainha Isabella esposa do rei inglês Edward II foi enterrada” 184
“Em sua frente está” [Tradução nossa]
113
instante, ela é reduzida, pois o universo da narrativa “ficcional” está misturado com o
universo histórico real.
O que interessa aqui é o caráter cronotópico atual das narrativas locativas. Aqui como
em Hight (2011), a história do lugar ressoa na narrativa, não somente como um acontecimento
do passado, mas como um acontecimento em construção no momento da leitura. Atual como
em aqui e agora, mesmo o uso do passado na apresentação da igreja como em “foi destruída
pela blitz em 1941”, resulta na ressonância no presente de um acontecimento passado.
Surge, segundo Lemos (2006), a sobreposição de camadas virtuais de informação
sobre o espaço real. Nesse caso, essa informação é apenas um texto narrado, gravado em
áudio com um trecho da história do local. A fala do narrador acrescenta ao lugar informação
que não existe concretamente. Essa informação se hibridiza com o espaço concreto, durante o
processo de leitura.
A importância do “aqui”, do direcionamento no espaço concreto dos leitores refrata
nas indicações constantes do narrador sobre os próximos caminhos, como em “at the end of
the ale on the right”. Essas informações apenas fazem sentido porque o local do leitor e o
espaço da narrativa são os mesmos. A porta indicada pelo narrador realmente está no fim do
caminho ao lado direito dos leitores. Essa porta leva a um jardim onde se encontra
concretamente o túmulo da rainha Isabella.
O narrador prossegue
the legend writes that she had the king imprisioned and brutally killed by her
lover Roger Mortimer. At twillight her beatiful and angry ghost had been
seen fleet amongst trees and bushes, clutching the beating heart of her
murdered husband before her.
Essa narrativa completa, incluindo a apresentação da igreja e as informações
anteriores, são constituídas de uma única gravação em áudio, tocada automaticamente no
primeiro ponto-chave. Esse formato é problemático, entretanto, pois apenas funciona, quando
o tempo que os leitores levam para se locomover pelo espaço concreto condiz com as falas do
narrador.
No cronotopo locativo, interessa pouco a posição discursiva de leitor, como “o outro”
se a informação é real ou ficcional, pois nesse cronotopo não é o leitor que imerge no
universo ficcional, mas o universo ficcional que emerge sobre o real, na forma de camadas
114
virtuais de informação. Ainda que toda a história da rainha seja somente uma lenda, a
existência do túmulo no local indicado serve como ambiência, para que a narrativa ultrapasse
a fronteira que a separa dos leitores.
Em seguida, a obra, por meio da terceira voz, indica o caminho a ser seguido: uma
trilha “assombrada”. Em determinado momento, enquanto os leitores estão seguindo o
caminho, seus smartphones são “possuídos”. Um novo local-chave, detectado pelo GPS,
aciona mais um trecho da obra. Um dos dois leitores ouve um chiado no celular.
A trilha assombrada, a fama da cidade de Londres de ser a “cidade mais assombrada
do mundo”, a escolha de caminhos desconhecidos e a iluminação do local-chave criam uma
ambiência, para que a experiência do terror extrapole o ficcional. O chiado inesperado faz
parte da continuação da obra. Esse segundo trecho é enviado em forma de um vídeo do gênero
do cinema de horror.
No trecho, uma garota vestida de branco aparece na tela e se movimenta, de forma
inesperada, criada por efeitos de câmera. A garota surge como uma das personagens da
história, no momento em que o ficcional suplanta o real na narrativa e utiliza a continuidade
para emergir no concreto. A relação dos leitores com os aparelhos contribui nessa emersão.
Até esse ponto, a participação dos dois leitores é restrita ao entendimento ativo de que
fala Bakhtin (1997). É um processo análogo ao da leitura, da recepção de um filme ou da
audição de música. Toda atividade é apenas cognitiva, sem demandar uma resposta ativa que
seja situada no mesmo tempo e espaço da recepção. Há um pequeno grau de interação.
Novamente o problema do formato, demanda um leitor que entenda quais as ações
devem ser feitas. O vídeo seguirá o chiado independentemente das ações seguintes do leitor.
O autor espera, nesse momento, que o leitor olhe a tela do aparelho, e não apenas continue
seguindo as instruções do áudio. Um leitor inexperiente no uso da tecnologia poderia perder
um pedaço do vídeo e da narrativa.
Assumindo que o leitor entenda, reaja adequadamente ao “chiado”, ele verá a garota
“possuindo” o aparelho. A história, então, tem uma reviravolta - a garota, aparentando ser um
fantasma ou algo parecido, fala que “they hurt me, now i’m gonna hurt them”. Então, a
“possessão” torna-se compartilhada por meio da conexão entre os dois aparelhos. O segundo
leitor também ouve um chiado e precisa também agir aqui como leitor previsto, seguindo as
estratégias previstas pelo autor e pelo software.
115
A reação correta por parte dos leitores resulta em um dos momentos de emersão mais
importantes da história. Ao colocarem os iPhones lado a lado, a garota movimenta-se de uma
tela para a outra. O sucesso desse momento demanda a existência desse leitor que é capaz não
só de “passear pelos bosques da ficção”, mas de se apropriar e agir corretamente em relação
às mídias locativas.
E, é, ainda, exatamente esse leitor que terá a sensação de que o ficcional e o não
ficcional se hibridizam na mistura entre virtual e concreto. A resposta esperada dos autores
demanda dos leitores o conhecimento do gênero de filmes de terror, além do conhecimento do
funcionamento de aparelhos smartphones. É preciso que esses leitores “acreditem” que o
celular está sendo possuído. E essa crença surge como resultado do hábito de uso dos
aparelhos.
Em seguida, os leitores são efetivamente convidados a tomar parte na ficção. Um novo
mapa é apresentado em ambas as telas. Esse é um “mapa assombrado” que servirá de guia
para os leitores. Esse mapa é a primeira forma de colapso da fronteira que separa o ficcional e
o não ficcional. A partir desse mapa, o sujeito leitor passa a tornar-se, também, personagem
da história, assume papel ativo no desenvolvimento da narrativa.
O novo local-chave apresentado difere dos anteriores, pois deixa de ser somente um
caminho, um guia e se torna uma peça em um quebra-cabeça. A narrativa deixa de ser só
narrativa e ganha contornos também de jogo, sendo que, locomover-se entre os pontos-chave
deixa de ser uma ação natural e passa a ser uma ação forçada como um desafio para os
leitores.
Além do desafio óbvio de chegar de um lugar-chave a outro, os leitores também são
guiados a realizar tarefas específicas em cada um desses locais-chave. Essas tarefas são
divididas em tarefas individuais, em que cada leitor realiza em separado e em tarefas em
dupla, em que os dois leitores devem realizar ações simultâneas, ou em uma ordem específica
para continuar o recebimento da obra.
No local-chave seguinte, a voz da garota guia os leitores “find the symbol that is
sealing this place”. Novamente, torna-se necessário o leitor para o desenrolar da história. Esse
leitor precisa perceber que o símbolo não existe no mundo concreto, mas, de alguma forma,
sobrepõe-se a esse. Ao olhar a tela do iPhone, uma imagem é mostrada com os dizeres “find
and capture the magic symbol”.
116
Essa instrução, somente, pode ser insuficiente para um leitor que não seja leitor
previsto ou desejado. Pode indicar que o símbolo está no espaço concreto ou que o símbolo
seja uma palavra secreta ou qualquer outro quebra-cabeça. O símbolo que sela o local é
descoberto por meio de realidade aumentada como em Lemos (2007). Existe como uma
camada de informação virtual atrelada ao local real, que somente aparece nas telas dos
iPhones, enquanto estes estiverem executando o aplicativo da obra.
É esse tipo de ação que Aerseth (1997) tinha em mente ao cunhar o termo Ergodic
Literature, o trabalho do leitor extrapola o cognitivo. Ele precisa realizar tarefas que vão
desde interagir com os mapas e descobrir os locais-chave até a buscar, por meio da realidade
aumentada, pelo símbolo na história. Esse símbolo é uma estrela de cinco pontas dentro de
um círculo.
É exatamente a partir dessa primeira instrução que o formato de participação dos
leitores na narrativa se define. Eles se tornam personagens da história. A voz da garota dirige-
se diretamente a um deles, indicando que sua existência no momento da leitura é híbrida de
leitor/personagem; concreta/virtual; não-ficcional/ficcional, assim como sua ação, que se
realiza por meio de objetos concretos e específicos mas que tem resultado em um espaço
virtual. Os cronotopos de leitor, como uma forma de entendimento generalizado de tempo e
espaço, e obra se misturam.
O leitor age sempre em um aqui e um agora cujo entendimento é específico de sua
época, nesse caso concreto. Entretanto sua ação ressoa em outro aqui e agora, que é virtual e
existente no universo da narrativa. O tempo e espaço da narrativa emergem sobre o tempo e
espaço do leitor, e as ações do leitor imergem no universo da narrativa, permitindo a
continuidade.
Assim que um dos leitores encontra o símbolo, o outro leitor é enviado a outra tarefa
individual. As ações dos leitores são sincronizadas por meio da conexão bluetooth realizada
no começo da leitura. A voz da garota surge apenas para o leitor que estava inativo e manda
que esse “counter the seal”, uma instrução que é pouco óbvia para qualquer leitor diferente do
leitor previsto. O que a personagem está querendo é que esse leitor desenhe o símbolo, que
estaria selando sua alma, na tela de seu aparelho.
Realizada essa tarefa, os leitores atingem mais um ponto-chave da história e são
premiados com um novo áudio. Surge um novo personagem, uma voz masculina que exclama
117
“what are you doing? Why did you remove the ward”. Já como participantes efetivos da
história, os leitores experimentam o diálogo entre a garota e a voz masculina que se
desenvolve como a seguir:
A garota pergunta “where are they? Where are my friends?”
A voz masculina responde “if they were taken by the plague they will be here,
otherwise I don’t know”
Novamente a voz da garota “don’t lie to me”
Os leitores, agora como personagens da narrativa, são guiados a outro local-chave. O
tour pela cidade ainda persiste, entretanto a importância dos caminhos seguidos é superposta
pela interação com a narrativa. A informação que emana naturalmente dos lugares, pela
história, hábitos, usos etc. hibridiza-se com a informação acrescentada pela narrativa
experimentada.
O próximo local-chave é The Priory Church of St Bartholomew the Great, localizada
em West Smithfield. Logo ao adentrar o pátio da igreja, a voz da garota fala diretamente a um
dos leitores/personagens: “you, go there to the side entrance and see if the priest is there”.
Nesse caso, apenas a instrução pela fala da personagem é insuficiente para explicitar qual a
ação necessária.
O aplicativo assume a função de explicar as regras do jogo. Na tela do iPhone do leitor
indicado na fala anterior aparece uma imagem com os dizeres: “find the side door on the right
and knock twice to see if he’s there”, outro trecho problemático para o leitor que não seja o
leitor previsto. Existe uma porta visível no espaço concreto, que também existe no espaço
virtual e no espaço da narrativa.
Essas instruções que chamamos aleatoriamente de 3ª voz não fazem parte da narrativa,
mas são indispensáveis para a interação entre o leitor e o texto; fazem parte do todo da obra,
estão escritas como linha de programação no aplicativo. Essa voz é a voz da tecnologia como
mediadora; são as mídias locativas, programadas pelos autores, para simplificar os desafios
para o leitor.
O autor constrói um leitor que domina a tecnologia apenas em um grau mínimo
necessário, mas que necessita dessas informações para entender como se relacionar com esse
novo cronotopo locativo. A hibridização entre a demanda narrativa e a ação no espaço
118
concreto, em alguns momentos torna-se confusa, por isso a necessidade de instruções claras
de como manusear as mídias locativas.
A ação de bater na porta é possível em todos esses três espaços: com as mãos na porta
concreta; de alguma forma com o iPhone no virtual; e por meio da imaginação no universo da
narrativa. Entretanto apenas uma dessas ações é a adequada para dar continuidade ao processo
de leitura. O leitor nesse momento já está suficientemente familiarizado com os processos
virtuais para entender que sua ação deve ser realizada por meio do smartphone.
Daí a pergunta: como bater numa porta concreta/virtual/narrativa usando um iphone?
O leitor precisa simular o movimento de bater na porta com o aparelho na mão, balançando o
suficiente, para que esse movimento seja detectado pelo smartphone e interpretado pelo
aplicativo da obra. Essa ação resulta novamente no contato da garota que fala ao outro leitor
“find his resting place and summon that foul out”.
Somente a interação com narrativa é insuficiente, para que o leitor compreenda que
ação tomar. Novamente a terceira voz surge como uma imagem no celular, com instruções
claras de como invocar a personagem do padre. Assim que o leitor resolve esse último
quebra-cabeça, uma nova personagem, o padre, fala “Why have you summon me? I have your
order near? You fouls! You do not know what demon you have unleashed. Run! I tell you!
Run! Run!”.
Todos os diálogos acontecem por meio de áudios previamente gravados que não
podem ser interrompidos ou pausados. Diferentemente da literatura impressa, o enunciado de
narrativas locativas possui momentos-chave em que o processo de leitura
(experiência/recepção) não pode ser interrompido. Não há em Haunted London uma opção
para ouvir novamente ou rever um trecho em vídeo.
A leitura pode ser interrompida no caminhar entre os momentos-chave, o que nos
levou a princípio a pensar nesse caminhar como uma alegoria relacionada ao passar de uma
página. Entretanto, em Haunted London, todos os lugares escolhidos, mesmo os que não
contêm momentos-chave trazem agregados a si, como informação virtual, seja analógica ou
digital, uma série de discursos e enunciados anteriores, com os quais os leitores interagem.
O que a princípio pareciam intervalos entre momentos chave, em Haunted London
fazem parte do processo de leitura. O caminhar entre os locais-chave contribui para a
construção da materialidade do enunciado-obra. Se o leitor escolhe um atalho, para por um
119
instante, entra em alguma casa, esbarra com alguém, ou ainda qualquer outra forma de
interação com o ambiente urbano. Enquanto lê a obra, ele está alterando o resultado final.
O desconhecimento do contexto mais amplo da história, a inexistência de objetivos
específicos, o segredo etc. são estratégias utilizadas pelo autor para aumentar a sensação de
imersão na narrativa. Já discutimos que, em obras de narrativas locativas, há um duplo
movimento: imersão do leitor no universo narrativo e emersão do universo narrativo no
mundo concreto. A imersão na narrativa só existe devido à emersão do tempo e espaço da
narrativa no cronotopo concreto do leitor.
É essa sobreposição de camadas de tempo e espaço, cronotopo genérico do leitor,
cronotopo locativo da tecnologia, cronotopo ficcional da narrativa (nesse caso uma narrativa
de terror) que resulta no cronotopo das narrativas locativas. Esse cronotopo é apenas
relativamente estável, já que, os cronotopos sociais, de tecnologia e, mesmo de formas de
narrativas, mudam com o passar do tempo.
Cada novo “passeio” significa a construção de um novo enunciado, a partir do
potencial da obra. Esse novo enunciado contempla uma série de dizeres dos personagens, dos
leitores etc., mas também contempla dizeres anteriores sobre os espaços. É a ressonância do
espaço como Hight (2006) explica; são os discursos históricos, fictícios, criados pelo hábito,
pela própria existência que passam a fazer parte do local, que transformam um espaço em
local.
O tempo de experimentação da obra varia em função da velocidade de andar dos
leitores, de sua maior ou menor permanência em determinados lugares e ainda do tempo
demandado para a realização das tarefas ergódicas. O processo total é limitado pela distância
entre os pontos-chave. Os caminhos devem ser planejados, para que os locais entre os locais-
chave possuam atrativos relacionados à experiência narrativa e que os momentos-chave não
estejam distantes, para que o andar não se torne cansativo.
Haunted London é uma obra que parte da ideia de labirinto: um espaço fechado com
um número limitado de caminhos a seguir, inimigos à espreita e quebra-cabeças a serem
desvendados. A espacialização de Murray (1997) deixa de ser uma característica apenas do
espaço virtual, por meio da emersão desse espaço virtual no espaço concreto. Em mais uma
das características do cronotopo locativo, essa espacialização cria no mundo concreto um
espaço de jogo. O aqui é concreto, mas é mais que concreto, é também narrativo e de jogo.
120
Como Bakhtin (2014) deixa bem claro, a representação do espaço e tempo determina
representações específicas dos indivíduos nas obras. No cronotopo locativo e em Haunted
London, não é diferente. A construção relevante no cronotopo locativo ignora os personagens
construídos pelos autores: a garota sem nome, seu pai, e o padre, mas dos leitores
participantes.
Em Haunted London, o espaço visitado por esse homem locativo é um espaço que é
conhecido e desconhecido. Por se tratar de um guia turístico, admite-se que o leitor
desconhece a maioria dos locais pelos quais vai percorrer. Os autores (2012) deixam claro que
é um passeio por pontos turísticos menos conhecidos da cidade, pontos que tenham relação
com a fama de Londres de ser uma cidade mal-assombrada.
Os autores (2012) propõem esse guia turístico como uma alternativa a quem já
conhece outros pontos mais conhecidos da cidade de Londres, o que acarreta que esse homem
locativo, conhece seu espaço. Interage com ele, de forma íntima; é um espaço efetivamente
urbano. Nessa obra, o homem locativo é um híbrido, familiarizado não necessariamente com
o local em que está, mas se relaciona com ele por analogia ou comparação com outros locais
urbanos.
É possível que esse leitor/personagem esteja em Londres pela primeira vez, mas
inferimos que, mesmo desconhecendo os locais específicos com os quais irá se relacionar, the
Christ Church of Newgate Street, por exemplo, esse não é um ambiente totalmente
desconhecido. Igrejas e outras localidades existem em outros centros urbanos.
A história não é longa o suficiente para perceber como o tempo interfere na construção
do homem. É um tempo que se relaciona com o tempo cronológico concreto, o tempo
virtual/narrativo passa, de acordo com o tempo dos leitores. Na narrativa não há indicações
concretas da relação do tempo com a história. No início do passeio, os leitores são levados ao
passado pelo narrador que conta as histórias da Church of Newgate Street; da rainha Elizabeth
II e de seu amante.
Essas informações do passado atualizadas pelo narrador combinam exatamente com as
informações do tempo presente e com o espaço ocupado pelos leitores, no momento da
narrativa, alcançando um grau alto de imersão. Logo que a obra muda de objetivo, o guia
turismo cede lugar à narrativa ficcional, o tempo passado transforma-se em um tempo
presente: a história ficcional está acontecendo agora.
121
É uma história que acontece no presente que remete a outra história a qual aconteceu
no passado: a história de Emma. São duas histórias que se misturam: uma ocorrida em um
passado não determinado, e outra que acontece, à medida que os leitores interagem com a
obra. Duas leituras acontecem, ao mesmo tempo: uma locativa na qual o tempo e o espaço
vão se desenrolando sempre a partir de um aqui e um agora; e outra na qual o espaço é o
mesmo da locativa, mas recortado, rememorado, presentificado por um tempo passado.
A narrativa histórica que inicia a obra serve apenas como prefácio para a história de
Emma. Essa narrativa é acompanhada por um cronotopo histórico concreto. São
acontecimentos reais, passados sendo recontados por meio de narrativas locativas. A
diferença desse formato digital para o analógico pode ser comparado com ouvir um áudio
sobre o lugar estando no lugar e ler um texto sobre esse mesmo lugar em condições iguais.
Essa parte inicial é irrelevante para a existência do cronotopo da narrativa, pois não
demanda a existência de um leitor capaz de realizar trabalho “ergódico” para a realização do
texto. A necessidade de caminhar a um local específico para iniciar a obra pode ser
relacionada mais com a visualização turística do que com o trabalho necessário para a
construção da obra.
Em uma obra que é representada em um período de tempo tão curto, as mudanças, ou
não, no indivíduo representado são difíceis de ser percebidas. É perceptível que há uma
mudança no indivíduo em sua relação com o espaço. Esse indivíduo, que é o leitor, acrescenta
ao seu cabedal de enunciados conhecidos sobre os locais essa nova possibilidade de interação.
Há aqui uma ligação inseparável entre noções qualitativas de tempos e espaços que
determinam toda a construção do gênero. Ainda não nos é possível determinar um número
grande de possibilidades devido à pequena quantidade de obras disponíveis, o que nos indica
a tomar um caminho mais genérico do que específico, em relação ao gênero enquanto
conjunto, relacionado a um grupo menor de obras.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao fim deste trabalho e iniciamos estas considerações destacando que,
mesmo completo, todo enunciado apenas é acabado dentro de certo limite, partindo da não
finalizabilidade. Já podemos perceber, entretanto, que ambos os conceitos de gêneros e de
cronotopo apresentam enorme produtividade, mesmo quando utilizados como ferramentas
para pensar enunciados que Bakhtin e seu círculo dificilmente poderiam ter previsto.
Aceitamos que os próprios conceitos apresentam uma abertura a qual permite aos
diversos autores seguintes poder trabalhar novas construções estilísticas, de forma e de
tratamento de conteúdo, e também de estruturações de tempo e espaço. Partindo dessa ideia,
percebemos que novos gêneros, relacionados à nova tecnologia também apresentam
configurações cronotópicas específicas.
Retomamos e reafirmamos nosso objetivo proposto de discutir o cronotopo em
narrativas locativas, sendo que, para atingir esse objetivo, foi-nos necessário partir do
conceito de gêneros do discurso e apresentar as características do gênero narrativas locativas.
Apresentamos como resultado de nossas discussões a existência de um cronotopo
locativo, por meio da análise de objetos literários, bem como afirmamos que esse cronotopo
não é exclusivo desses objetos, mas, do uso da tecnologia, uma forma de tempo e espaço que
hibridiza virtual e concreto, de forma que ambos, tornam-se facetas de uma mesma existência.
O tempo concreto e real do leitor corta o tempo virtual da obra, o guia delimita sua
existência e resulta no tempo locativo, um tempo híbrido entre uma forma de passar, virtual,
relacionado com a história, com a narrativa, e uma forma concreta, medida pelo tempo de
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interação do leitor com a obra, o tempo do caminhar, do desvendar os desafios, de receber as
informações.
O espaço acompanha o tempo, mas se hibridiza em um sentido oposto; é o espaço
virtual que inunda o concreto, que emerge, sai de seu estado de potência e se atualiza no
processo de leitura. O espaço virtual, dotado de ficção sobrepõe, como camadas de
informação; o espaço concreto recria, reconstrói, propõe novas possibilidades.
Por fim, conclui-se que existem ainda muitas lacunas a serem investigadas. Sendo
assim, espera-se que esse estudo possa contribuir com outras pesquisas, envolvendo essa
temática, como por exemplo, a criação e experimentação de uma narrativa locativa para
observação de resultados mais profundos quanto ao cronotopo. Esse caminho ainda pode
proporcionar observações mais completas quanto a questão da autoria e coautoria nas obras
locativas.
É possível, também, propor um estudo arquitetônico das narrativas locativas, buscando
nessas obras a completude de seus formatos. Sobre essas e outras reflexões possíveis, assim
como Bakhtin (2014) deixou à posteridade o complemento de seus estudos sobre o cronotopo,
deixemos que o futuro as resolva.
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