da propriedade ao acesso: contributo para … · 2017-10-03 · concentração em...
Post on 10-Nov-2018
214 Views
Preview:
TRANSCRIPT
0
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
ADIRLEY MACHADO ALVES
DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO
PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE EFETIVIDADE DO
DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (DE ACESSO) À
MORADIA
POUSO ALEGRE – MG
2017
1
ADIRLEY MACHADO ALVES
DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO
PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE EFETIVIDADE DO
DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (DE ACESSO) À
MORADIA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Direito com área de
Concentração em Constitucionalismo e
Democracia, na linha de pesquisa nº 01:
Efetividade dos Direitos Fundamentais
Sociais, como requisito parcial para a
obtenção de título de mestre em Direito pela
Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Orientador: Prof. Dr. Elias Kallas Filho.
FDSM – MG
2017
2
ADIRLEY MACHADO ALVES
DA PROPRIEDADE AO ACESSO: CONTRIBUTO PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE
EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (DE ACESSO) À MORADIA
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
Data da aprovação ___/___/___
Banca Examinadora
_____________________________
Prof. Dr. Elias Kallas Filho
Orientador
Faculdade de Direito do Sul de Minas
_____________________________
Prof. Dr. Lucas das Silva Tasquetto
Universidade Federal do ABC
_____________________________
Prof. Dr. Cícero Kruppp da Luz
Faculdade de Direito do Sul de Minas
3
À minha esposa, que sempre esteve ao meu lado,
aos meus pais, exemplo de vida e força, e
aos meus filhos, que tiveram de suportar a minha ausência,
todos contribuíram para que meu sonho se tornasse realidade.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Ellias Kallas Filho, orientador do meu trabalho, pelos ensinamentos,
dedicação e paciência, sempre atento e aplicado na minha formação profissional.
Ao Prof. Dr. José Carlos da Silva Oliveira, incentivador do meu trabalho de pós-
graduação na Faculdade de Direito do Sul de Minas, pelo apoio, atenção e amizade.
Ao Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo, pelo estímulo e importantes
sugestões.
A todo o corpo docente do mestrado do PPGD da Faculdade de Direito do Sul de
Minas, cujas lições contribuíram para a minha formação acadêmica.
Aos colaboradores da Biblioteca Clovis Salgado, da Faculdade de Direito do Sul de
Minas, pelo apoio e colaboração.
À Deus, por me conceder saúde e fé.
À minha família, por ter compreendido os momentos em que não pude estar
presente, por me apoiar e acreditar no meu sucesso.
Aos estimados colegas e amigos do mestrado, pelo companheirismo e amizade.
5
RESUMO ALVES, Adirley Machado. Da Propriedade ao Acesso: contributo para Políticas Públicas de Efetividade do Direito Fundamental Social (de Acesso) à Moradia. 2017. 112f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, 2017. O direito à moradia é induvidosamente reconhecido como um direito fundamental social. Ocorre que a plena efetividade desse direito pode ser comprometida por uma compreensão que vincula o direito à moradia e o direito de propriedade. Além de cara, a propriedade valoriza um direito à casa própria, por representar um poder do homem sobre as coisas, ao mesmo tempo em que dá ao direito à moradia a característica de mercadoria. Mas Jeremy Rifkin mostra que a propriedade está dando lugar ao acesso, de modo que os bens estão passando a ser acessados/emprestados ao invés de adquiridos no mercado, permitindo que um maior número de pessoas tenha contato direto com os bens. O custo para a aquisição, além de alto, inviabiliza a substituição dos bens, por isso, a propriedade é uma instituição lenta demais para se amoldar à nova realidade dessa cultura veloz, de inovações e atualizações contínuas, dando a ideia de que ela é um problema, considerando que, sob o argumento da reserva do possível, as questões referentes às limitações de recursos públicos têm prevalecido quando o assunto é a efetividade desse direito fundamental social, tornando impossível assegurar que toda população tenha acesso à moradia digna. Portanto, esses argumentos viabilizam uma discussão sobre questões especificamente referentes à efetividade do direito à moradia, capaz, inclusive, de sugerir o investimento num instrumento diferente da propriedade, necessário para o desenvolvimento de políticas públicas de acesso à moradia. Palavras-chave: Direito fundamental social à moradia – efetividade – propriedade – acesso – políticas públicas.
6
ABSTRACT ALVES, Adirley Machado. From Property to Access: A Contribution to Public Policies for Effectiveness of Fundamental Social Right (of Access) to Housing. 2017. 112f. Dissertation (Masterof Laws). Faculdade de Direito do Sul de Minas. Postgraduate Program in Law, Pouso Alegre, 2017. The right to housing is undoubtedly recognized as a fundamental social right. The issue is that the full effectiveness of this right can be compromised when associating the right to housing to the right to property. In addition to being expensive, the property values the right to own housing, for representing man’s power over things, while constituting the right to housing as a product. Nevertheless, Jeremy Rifkin shows that property is giving place to access, so that goods have started to be accessed/loaned instead of purchased in the market, allowing a higher number of people to have direct contact with goods. The cost for purchase, in addition to being expensive, makes the replacement of goods impossible, for this reason, property is a too slow institution to be adjusted to the new reality of this fast culture, of innovations and continued updates, giving the impression it is a problem, considering that, on the pretext of possible reserve, issues referring to limited public resources have prevailed when it comes to the effectiveness of this fundamental social right, excluding the possibility to assure the access to a decent housing for the entire population. Therefore, these arguments enable a discussion on issues specifically related to the effectiveness of right to housing, also suggesting an investment in an instrument other than property, needed to develop policies for public access to housing. Key-words: Fundamental social right to housing – effectiveness – property – access - public policies.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 8
1. O DIREITO À MORADIA: FUNDAMENTOS E EFETIVIDADE........................... 12
1.1. O conteúdo do direito fundamental social à moradia........................................ 13
1.2. A moradia como bem indispensável à dignidade da pessoa humana.............. 21
1.3. A efetividade do direito à moradia..................................................................... 25
2. A PROPRIEDADE: DO PERÍODO MEDIEVAL AO ACESSO NO ESTADO
CONTEMPORÂNEO................................................................................................ 37
2.1. A descontinuidade do conceito da propriedade: do período medieval ao Estado
Liberal....................................................................................................................... 38
2.2. A mudança do papel da propriedade e a eficácia dos direitos fundamentais
sociais....................................................................................................................... 47
2.3. A propriedade na era do acesso....................................................................... 55
3. DIREITO (DE ACESSO) À MORADIA E POLÍTICAS PÚBLICAS...................... 67
3.1. Políticas públicas: relevância jurídica das ações de governo........................... 67
3. 2. Direito ao desenvolvimento e acesso à moradia: planejamento e política
pública...................................................................................................................... 75
3.3. Orçamento como instrumento de efetividade do direito fundamental social à
moradia..................................................................................................................... 78
3.4. Políticas públicas habitacionais baseadas na propriedade............................... 84
3.5. Políticas públicas para a promoção do direito fundamental social (de acesso) à
moradia..................................................................................................................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 101
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 105
8
INTRODUÇÃO
O direito fundamental social à moradia está entre os bens que compõem o
mínimo existencial e por isso contribui para a concretização da dignidade da pessoa
humana. Apesar dessa carga valorativa, esse direito enfrenta o problema da
efetividade, considerando que as atuais políticas públicas condicionam o seu
exercício à existência da propriedade.
O compromisso deste trabalho é discutir a possibilidade de maior efetividade
do direito fundamental social à moradia a partir do acesso, em consonância com as
ideias desenvolvidas pelo autor Jeremy Rifkin, afastando-se da compreensão de que
a moradia se dá apenas por meio da propriedade, no intuito de, modestamente,
oferecer um contributo para as políticas públicas, complementares aos atuais
programas, de modo a permitir que um maior número maior de famílias possa ser
beneficiado.
O problema central é analisar se a efetividade do direito fundamental social
(de acesso) à moradia pode ser buscada por meios que não estejam
necessariamente vinculados ao instituto da propriedade e sim a partir da ideia de
acesso, com a conseqüente descrição do impacto sobre a constituição de políticas
públicas mais eficientes e viáveis à efetividade desse direito.
O trabalho partirá da hipótese de que os estudos e os debates sobre direito à
moradia ainda se atrelam essencialmente ao direito de propriedade; que o direito de
propriedade passou a ter um novo significado; que a limitação dos recursos públicos
é capaz de comprometer a efetividade do direito à moradia e, por isso, o acesso
pode ser uma forma positiva e capaz de dar uma solução a esse problema, além do
fato de que políticas públicas mais viáveis e eficientes podem ser desenvolvidas em
consonância com essas ideias, de modo a permitir que um número maior de
pessoas tenha acesso à moradia.
A moradia é uma necessidade essencial para todo e qualquer ser humano,
cuja adequação está relacionada a aspectos materiais e imateriais, fazendo desse
direito um bem extrapatrimonial, ligado à personalidade, além de servir como
fomento e garantia à dignidade da pessoa humana. O direito à moradia integra
parâmetros mínimos para uma vida saudável, por estar entre os direitos que
garantem o mínimo existencial, ou seja, é um dos elementos que compõe o conjunto
9
de prestações materiais necessárias a garantir uma vida digna a cada pessoa, sem
as quais o homem não sobrevive, uma vez que morar faz parte da existência
humana.
É um direito que se constitui não apenas na faculdade de ocupar um espaço,
mas de fazê-lo em conformidade com as condições que tornam esse espaço um
local de moradia. Por essa razão, a moradia não pode representar, pura e
simplesmente, o direito a um abrigo, a uma edificação. Deve ser oferecida em
dimensões de higiene e conforto adequados, capaz de preservar a intimidade
pessoal e a privacidade familiar, visando a proteção da segurança e privacidade,
além do acesso a equipamentos públicos, às facilidades de circulação, ao
saneamento básico, água, energia elétrica, coleta de lixo, entre outros serviços
públicos essenciais. A moradia representa o direito a um teto, por isso é um valor
capaz de elevar qualidade de vida e alcançar a dignidade.
A moradia é um direito fundamental social, cuja prestação é promovida por
parte do Estado e tem como objeto possibilitar melhores condições de vida aos mais
fracos. Além de estar expressamente previsto na Constituição Federal, por força da
Emenda Constitucional n° 26/2000, é um direito com dupla concepção, uma de
significado negativo, em que ninguém pode ser privado de uma moradia, e a outra,
positivo, já que todo cidadão tem direito a obter uma moradia digna e adequada,
revelando sua natureza prestacional e de eficácia imediata, ou seja, a sua realização
conta com a participação do Estado, ao mesmo tempo em que não
dependentemente da atuação do legislador.
Assim, ao Estado é imposto o dever de desenvolver políticas públicas
necessárias à implementação desse direito, em que são coordenadas ações
públicas e privadas, em consonância com o planejamento e a previsão
orçamentária, revelando que a prestação positiva do Estado é necessária a
efetividade dos direitos sociais.
Ocorre que a implementação e o respeito do direito à moradia é um dos
maiores problemas que desafiam a realidade social brasileira, estando espalhado
por todo o Brasil, cujo fator determinante é a escassez de recursos financeiros. Um
levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro mostra que em 2013 houve um
déficit habitacional que atingiu 5,846 milhões de famílias1. A má administração e os
1 Disponível em <http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/596-nota-tecnica-
deficit-habitacional-2013normalizadarevisada/file>, acesso em 24/06/2016.
10
grandes dispêndios financeiros a serem suportados pelos cofres públicos tornam as
políticas públicas insuficientes, consequentemente pouquíssimas famílias são
beneficiadas pelos programas sociais do governo, implicando num desrespeito
constante ao direito fundamental social à moradia previsto expressamente na
Constituição.
As políticas públicas necessárias à efetividade do direito à moradia, na
maioria das vezes, são desenvolvidas em consonância com o direito de propriedade.
E, diante da preocupação de que a propriedade deve cumprir sua função social,
continua-se impondo a compreensão de que o direito à moradia e o direito de
propriedade devem coexistir.
Ocorre que o conteúdo do direito à moradia se mostra destacado do instituto
da propriedade e manter um vínculo estável entre esses dois direitos impede que um
número maior de famílias tenha acesso à moradia, já que a propriedade representa
um alto custo para os cofres públicos, inviabilizando, inclusive, o investimento em
infraestrutura e na prestação dos serviços públicos essenciais ao homem, os quais,
de certa forma, possuem uma íntima relação com o direito social à moradia.
Jeremy Rifkin, mais precisamente em seu livro “A era do acesso”, mostra que
a propriedade teve seu papel alterado no decorrer dos anos. Se durante a Idade
Moderna, período em que vigorou o Estado Liberal, a propriedade e o mercado
foram sinônimos, atualmente ela se tornou um problema, por estar inserida num
cenário em que tudo se torna quase que imediatamente desatualizado, por força da
velocidade com que as inovações tecnologias são produzidas, além do fato de que a
propriedade é muito cara, por isso é lenta. Diante destas circunstâncias, atualmente
as pessoas deixam para trás o interesse de serem donas dos bens e, por isso,
empresas e consumidores, ao invés de trocar bens no mercado, valorizam o acesso.
Por essa razão, a propriedade, apesar de não ser extinta, passa a ter uma
probabilidade bem menor de ser trocada, fazendo com que os mercados passassem
a ceder lugar às redes e a noção de propriedade começasse a ser substituída
rapidamente pelo acesso, como conseqüência do novo capitalismo. Na economia
em rede, tanto a propriedade física quanto a intelectual começam a ser
acessadas/emprestadas ao invés de trocadas/ adquiridas, já que é mediante o
empréstimo, por um período certo de tempo, que mais pessoas têm acesso aos
bens, e não por meio da propriedade.
11
A partir da ideia proposta pelo autor mencionado acima, o presente trabalho
tem como objetivo geral discutir a possibilidade da plena efetividade do direito
fundamental social à moradia a partir do acesso, considerando que a propriedade,
além de cara, está comprometida, ao mesmo, em que se sugeri a criação de
políticas públicas alternativas de acesso à moradia, em consequência da criação de
expectativa e de novos olhares à implementação desse direito.
Para tanto, serão analisados os fundamentos do direito social à moradia,
reconhecido na legislação internacional, então recepcionada pela ordem jurídica
brasileira. Previsto expressamente na Constituição Federal, a efetividade desse
direito é um assunto a ser compreendido, principalmente por ele estar entre aqueles
direitos reconhecidos como fundamentais, carregando consigo o valor de um bem
indispensável à garantia da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que
deve ser estudado a partir desse princípio, por ter em seu significado a existência de
padrões mínimos.
Além disso, será feito um estudo sobre o instituto da propriedade, que teve
diferentes significados no decorrer da história, em consonância com a evolução do
capitalismo, começando pelo período medieval, passando pelo Estado Liberal até
chegar aos tempos atuais, em que, a partir da sua função social, a propriedade
começou a exercer um papel importante para a eficácia dos direitos fundamentais
sociais, ao mesmo tempo em que ela deixa de ser o bem mais importante para a
economia capitalista, quando as pessoas não têm mais o interesse de adquirir e
começam a emprestar os bens no mercado, valorizando o acesso.
Por fim, após uma breve compreensão sobre o significado de políticas
públicas e a sua relevância jurídica, será feita uma análise nos institutos do
planejamento e do orçamento, instrumentos importante para a garantia do direito ao
desenvolvimento, e, consequentemente, à efetividade do direito fundamental social à
moradia, sem que se perca de vista que a limitação de recursos públicos, sob o
argumento da reserva do possível, não deve servir de justificativa à inércia do
Estado, impondo-se, portanto, a necessidade de se pensar em políticas públicas
alternativas a serem desenvolvidas a partir da ideia de acesso e não da propriedade,
conforme se verá. Como método para a realização desse trabalho foi utilizada a
pesquisa bibliográfica, além da análise crítica da doutrina e da legislação pertinentes
ao tema.
12
1. O DIREITO À MORADIA: FUNDAMENTOS E EFETIVIDADE
A proposta deste capítulo se limita a compreender o significado e a extensão
do conteúdo do direito social à moradia, situando-o no contexto dos direitos
fundamentais, hoje expressamente consagrado pela ordem jurídica constitucional
brasileira, em consonância com a compreensão de que esse direito representa um
suporte para a concretização da dignidade da pessoa humana, estando entre os
bens que compõem o mínimo existencial, e por isso entendido como um bem
extrapatrimonial, devendo ser assegurado de forma adequada. Nesse estudo
também será abordada a compreensão da moradia como um bem entre aqueles que
compõem a personalidade humana, representado, por isso, um direito subjetivo
público, possibilitando ao seu titular a plena exigência perante o Poder Público, tanto
na sua função de defesa, quanto na função prestacional, já que o direito à moradia
possui dupla concepção.
Também serão analisadas as questões relacionadas à eficácia e efetividade
do direito fundamental social à moradia, principalmente nas relações com o poder
público, tidas como um dos problemas mais emblemáticos no ambiente jurídico
atual, por envolver discussões relacionadas às normas programáticas, limitação de
competências outorgadas a cada um dos poderes que compõe a ordem
constitucional e questões envolvendo a limitação do orçamento público. Ainda que o
direito fundamental social à moradia seja compreendido como um bem entre aqueles
que compõem o mínimo existencial, devendo, portanto, ser reconhecido em respeito
ao princípio da dignidade da pessoa humana, vigora no ordenamento o problema da
sua eficácia e efetividade.
A realidade brasileira demonstra que grande parcela da população,
principalmente aquela que se encontra em condições de miserabilidade, vivencia
uma exclusão social cada vez mais intensa, e, consequentemente, não tem acesso
à moradia, ao mesmo tempo em que o Estado permanece inerte ou tentando
justificar a sua omissão, fato que desperta a necessidade deste estudo, que, de
forma modesta, tem a pretensão de indicar possíveis caminhos a serem seguidos
por parte do Estado, capaz de desenvolver políticas públicas necessárias à garantia
do acesso à moradia digna e de forma desvinculada do direito de propriedade, com
o intuito de assegurar a efetividade desse direito fundamental social.
13
1.1. O conteúdo do direito fundamental social à moradia
Por meio da Emenda Constitucional n° 26, de 14 de fevereiro de 2000, o
direito à moradia foi incluído expressamente no rol dos direitos fundamentais sociais
previstos no artigo 6° da Constituição Federal2, não obstante o fato de que a ordem
jurídica já reconhecia e protegia a moradia no plano constitucional, ainda que de
forma implícita. Antes da emenda, o texto do artigo 183 da Constituição Federal3, ao
prever a usucapião, já promovia o direito à moradia, ao condicionar o exercício do
direito da propriedade urbana à necessidade do cumprimento de sua função social,
o que também ocorre com relação à propriedade rural, cuja previsão consta no
artigo 191 do mesmo diploma4. Referidos dispositivos constitucionais buscam, no
instituto da função social da propriedade, proteger e assegurar a moradia às classes
menos favorecidas economicamente, principalmente porque asseguram a aquisição
da propriedade pela usucapião, desde que o possuidor não seja proprietário de outro
imóvel urbano ou rural, o que, em outras palavras, significa dizer que aquele que, no
exercício da posse por um período certo de tempo, usa o imóvel especificamente
para a sua moradia adquirir-lhe-á a propriedade5.
Além desses dois dispositivos, antes da Emenda Constitucional 26, a
Constituição Federal também contemplava a moradia no IX do artigo 236, cuja
previsão estabelece a competência administrativa comum dos entes da federação a
promover programas de construção de moradias e melhorias das condições
habitacionais, e no inciso XX do artigo 217, ao outorgar à União a competência
administrativa para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
2 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 3 “Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.” 4 “Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco
anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.” 5 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas
implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 128. 6 “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:... IX -
promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;” 7 “Art. 21. Compete à União:...XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
habitação, saneamento básico e transportes urbanos;”
14
habitação, o que significa tratar-se de um assunto a ser tutelado pelo Estado, assim
como as políticas agrícolas, cujo planejamento e execução deve levar em conta a
habitação em favor do trabalhador rural, de acordo com a previsão do inciso VIII do
artigo 1878. Já a partir da previsão no inciso IV do artigo 7°9 do mesmo diploma
legal, a moradia está entre os direitos que compõem as necessidades básicas da
pessoa humana. Finalmente e não menos importante, numa dimensão funcional de
defesa, tem-se a previsão do inciso XI do artigo 5°10, em que é assegurado o direito
à moradia contra interferências indevidas, e a do inciso X11, que assegura a proteção
da intimidade e da privacidade, direitos que possuem uma íntima relação com a
moradia.
Constata-se que a proteção constitucional do direito à moradia não demanda
uma previsão expressa e específica, sendo que a Emenda Constitucional n° 26/2000
veio apenas situar esse direito entre aqueles ditos sociais, reforçando a ideia de que
a proteção e promoção do acesso à moradia digna a todos é um dever imposto ao
Estado e aos particulares, principalmente pelo fato de que a República Federativa do
Brasil está fundada na dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que a
meta da ordem jurídica brasileira é de construir uma sociedade justa, livre e
solidária12, de acordo com a previsão do artigo 1°13 e 3°14, respectivamente, da
Constituição.
8 “Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva
do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente:... VIII - a habitação para o trabalhador rural.” 9 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social:... IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;” 10
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:... XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;” 11
“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” 12
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 86. 13
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:... III - a dignidade da pessoa humana;” 14
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
15
A dignidade da pessoa humana é o alicerce da ordem jurídica, e, portanto,
este princípio alcança todas as áreas do direito, representando a tutela integral da
pessoa humana. A partir desta compreensão, existem autores que defendem que a
moradia é tida como um direito humano fundamental, conforme será analisado de
forma mais profunda no próximo item, por tratar-se de um direito imprescindível à
satisfação das necessidades existenciais básicas do ser humano para que haja uma
vida digna. Aliás, a própria dignidade da pessoa humana clama pela satisfação das
necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade e por isso é
fundamento necessário ao reconhecimento da existência de direitos fundamentais,
inclusive para aqueles não expressamente positivados, mas destinados à promoção
da dignidade15. Por isso, de acordo com a Constituição, a moradia, expressamente
prevista entre os direitos sociais, também compõe o universo dos direitos
fundamentais, por estar fundada no princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, não há que se perder de vista a íntima conexão que esse direito social
possui com a dignidade da pessoa humana, por conter em seu significado a
existência de padrões mínimos indispensáveis para uma vida saudável, no sentido
de um completo bem-estar físico, mental e social16. Isso quer dizer que a moradia
não pode significar apenas um teto, ou um mero espaço físico, sendo o seu conceito
mais amplo e complexo do que a mera casa própria, representando um dos fatores
determinantes à qualidade de vida da pessoa humana. A moradia, portanto, significa
a observância das necessidades humanas, como por exemplo, a proteção contra
chuva, vento, calor, frio, a preservação da intimidade, ao mesmo tempo em que
deve estar inserida num ambiente servido de infra-estrutura, serviços públicos,
educação, lazer, cultura, entre outras necessidades, representando em seu conceito
a faculdade de ocupar uma habitação em dimensões adequadas, exercida de forma
digna, em condições de higiene e conforto, visando a preservação da intimidade
pessoal e da privacidade familiar17
15
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 97. 16
Idem. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 700. 17
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 318/319.
16
Ainda sobre a proteção constitucional do direito à moradia, a previsão do § 2°
do artigo 5° da Constituição18 já garantia uma proteção jurídica desse direito sob
uma condição material19, pelo fato de o Brasil ser signatário dos principais tratados
internacionais em matéria de direitos humanos, sendo que alguns deles contemplam
expressamente esse direito.
Foi na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, cujo
conteúdo o Brasil é signatário, em seu artigo XXV20, que o direito à moradia foi
reconhecido pela primeira vez. De acordo com a previsão constante no § 3° do
artigo 5° da Constituição21, somada àquela do § 1°22 do mesmo artigo, os tratados
definidores de direitos e garantias fundamentais, assim que ratificados pelo Brasil,
recebem o status de norma constitucional, irradiando efeitos imediatos na ordem
jurídica internacional e interna, dispensando, por isso, a edição de decretos de
execução, já que possuem aplicação imediata, vigorando a sistemática da
incorporação automática no caso de tratados de direitos humanos, de acordo com a
concepção monista23, uma vez que não parece razoável exigir, após todo o processo
solene e especial de aprovação do tratado nos termos da previsão do § 3° citado
acima, condicionar a incorporação dos direitos humanos no âmbito interno somente
após a edição de um decreto do Presidente da República.
A moradia também é tutelada pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, de 1966, em seu artigo 17, §1°24; pela Convenção Americana sobre
18
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:...§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 19
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 693. 20
“XXV- todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”. 21
“§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” 22
“§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 23
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 14ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 158. 24
“§ 1º Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação.”
17
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969, que em seu artigo
1125, sob o fundamento da dignidade da pessoa humana, reconhece a necessidade
do respeito aos valores inerentes à existência humana. Mas foi no Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, em seu no
artigo 11, § 1°26, que a expressão “moradia adequada”, ao ser tutelada, foi prevista
de forma expressa, significando uma referência mais qualificada desse direito, ao
invés dos textos internacionais que até então se utilizavam da expressão
“habitação”.
O tema também foi abordado pela Declaração sobre Assentamentos
Humanos de Vancouver, de 1976, um programa das Nações Unidas para
Assentamentos Humanos, cuja preocupação é a eliminação dos obstáculos ao
direito à moradia27; a Agenda 21, de 1992, produzida pela Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que, em seu capítulo 7, tratou
da preocupação sobre o desenvolvimento sustentável dos assentamentos
humanos28, dentre outros documentos internacionais, cujo conteúdo, não menos
importante, não se vai aqui tratar em razão da delimitação deste trabalho, mas faz
necessária a referência à Agenda Habitat I e II, de 1996, fruto da Conferência das
Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, que, ao prever metas universais
para uma moradia a todos em um nível mais seguro, saudável, habitável, equitativo,
sustentável e produtivo, destaca a necessidade dela ser adequada a todos como um
dos principais temas de discussão relacionados à moradia29.
25
“1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.” 26
“Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medida apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.” 27
ONU-HABITAT: programa das nações unidas para assentamentos humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/onu-habitat/>. Acesso em: 21 de julho de 2016. 28
Conferência das nações unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Capítulo 7: Promoção do desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-global/item/637>. Acesso em: 21 de julho de 2016. 29
Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/moradia-adequada/declaracoes/declaracao-de-istambul-sobre-assentamentos-humanos>. Acesso em 21 de julho de 2016.
18
Após a análise sobre a previsão constitucional do direito à moradia, é
necessário compreender algumas questões sobre o conteúdo desse direito,
principalmente pelo fato de que o legislador constitucional poupou qualquer adjetivo
ao confeccionar a norma, somado ao fato de que o conceito desse direito deve ser
compreendido a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme já
afirmado anteriormente. Não há como negar que a falta de previsão expressa de
adjetivos ao direito à moradia simboliza um acerto do legislador constitucional, pois,
de outro modo, a adjetivação seria capaz de reduzir excessivamente o objeto do
direito à moradia, além do fato de que o exercício desse direito dependeria de
regulamentação por parte do legislador infraconstitucional, pondo a previsão
constitucional sob o risco de se tornar letra morta30.
O conceito do direito à moradia não está intimamente ligado ao direito de
propriedade, no entanto a propriedade pode servir de moradia ao seu titular, ou
ainda, a moradia é um pressuposto para a sua aquisição no caso da usucapião, ou
serve como indicativo à observância da função social da propriedade, o que significa
que o direito à moradia pode assumir uma posição preferencial em relação ao direito
de propriedade. Além disso, a moradia foi reconhecida inicialmente na Constituição
Federal a partir da dignidade da pessoa humana e classificada como um direito
social, ao contrário da propriedade, que está classificada como um direito
fundamental de primeira geração31.
Nesse mesmo sentido, no âmbito internacional o direito à moradia também
possui como diretriz a dignidade da pessoa humana, conforme é possível perceber a
partir do Comentário Geral nº 4 elaborado pela Comissão da ONU para Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, que identificou os elementos básicos a serem
atendidos em termos de direito à moradia32, cujo conteúdo deve ser levado em conta
30
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 698. 31
PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo entre direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRSP, 2009, p. 181. 32 Segurança da posse: a moradia não é adequada se os seus ocupantes não têm um grau de
segurança de posse que garanta a proteção legal contra despejos forçados, perseguição e outras
ameaças; Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura: a moradia não é adequada, se os seus ocupantes não têm água potável, saneamento básico, energia para cozinhar,
aquecimento, iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de lixo; Economicidade: a moradia não é adequada, se o seu custo ameaça ou compromete o exercício de outros direitos
humanos dos ocupantes; Habitabilidade: a moradia não é adequada se não garantir a segurança
19
pelo órgão estatal responsável a estabelecer os contornos do direito à moradia e dos
meios para sua implementação, sem perder de vista a previsão das normas
internacionais, cujo Brasil é signatário, muito menos os preceitos estabelecidos pela
própria Constituição, a fim de que seja assegurada uma vida com dignidade. Diante
deste raciocínio, o direito à moradia, protegido e compreendido a partir do princípio
da dignidade da pessoa humana, constitui um direito essencial ao ser humano, ao
mesmo tempo em que serve como elemento fundamental para o reconhecimento da
própria dignidade da pessoa, por isso a moradia está intimamente relacionada a
outros direitos33, conforme se verá logo abaixo.
Seguindo este elenco de diretrizes estabelecido pela Comissão de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da ONU e em respeito ao valor da dignidade da
pessoa humana, chancelada pela ordem constitucional brasileira, o direito à moradia
abrange um complexo de posições jurídicas e assume dupla concepção, uma
negativa e a outra positiva, ou seja, representa o exercício do direito de defesa e de
prestação, vinculando as entidades estatais e também os particulares34. Por isso,
apesar de haver posições contrárias a esse entendimento, o direito à moradia pode
exercer de forma simultânea uma função defensiva e prestacional, significando dizer
que o texto da Constituição Federal que prevê o direito à moradia possui mais de
uma norma, representando um feixe de posições juridicamente protegidas.
No que tange sobre a concepção de significado negativo, o direito à moradia
tem como conteúdo deveres de abstenção erga omnes35, representando a defesa
contra toda e qualquer agressão praticada por terceiros ou pelo próprio Estado,
como no caso de invasão de domicílio, penhora, despejos arbitrários, dentre outros
exemplos. Nessa função, tanto o Estado, assim como os particulares, tem o dever
jurídico de respeitar e de não violar a moradia. Em relação à concepção positiva,
física e estrutural proporcionando um espaço adequado, bem como proteção contra o frio, umidade,
calor, chuva, vento, outras ameaças à saúde; Acessibilidade: a moradia não é adequada se as
necessidades específicas dos grupos desfavorecidos e marginalizados não são levados em conta; Localização: a moradia não é adequada se for isolada de oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais ou, se localizados em áreas poluídas ou
perigosas; Adequação cultural: a moradia não é adequada se não respeitar e levar em conta a expressão da identidade cultural (UNITED NATIONS, 1991).” 33
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.135. 34
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 168 e 169 35
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 40.
20
também chamada de direito à prestação, tem como fundamento garantir a posição
prevista no ordenamento em favor do titular do direito. No caso da moradia, o titular
desse direito pode exigir do Poder Público a estruturação de órgãos, a edição de
normas, o desenvolvimento de políticas públicas, a destinação de recursos
econômicos, a prestação de serviço público, entre outras ações, as quais são
necessárias à implementação desse direito36, sem deixar de lado o conteúdo da
norma que impõe a garantia de uma moradia compatível com as exigências de uma
vida digna, tratando-se, portanto, de uma tarefa imposta ao Poder Público, cuja
função é exercê-la positivamente, de modo a promover o referido direito.
A compreensão do conteúdo do direito à moradia também impõe um estudo
sobre a eficácia da norma constitucional que regulamenta esse direito, cuja análise
mais aprofundada se dará em um item específico, mas convém aqui adiantar que,
com relação à concepção negativa desse direito, a previsão constante no § 1° do
artigo 5° da Constituição assegura que a sua eficácia independe de concretização
legislativa, tratando-se de uma situação prontamente desfrutável, apesar de não ser
possível sustentar que se trata de um direito absoluto37. Por outro lado, em relação à
dimensão positiva, há entendimento de que o direito à moradia está enquadrado na
categoria de norma constitucional programática, mas, ainda que exista essa
compreensão, esse direito não perde a sua fundamentalidade, além do fato de que
ele representa um leque de possibilidades38, conforme destacado acima.
Ainda sobre a dimensão positiva, convém lembrar que o Poder Público editou
um conjunto de leis infraconstitucionais visando a promoção de políticas públicas
habitacionais e a proteção do direito à moradia, entre as quais se destacam, a título
de exemplo, a Lei 6.766/79, que, além de estabelecer diretrizes para o parcelamento
urbano, assegura a proteção da moradia e a segurança da posse dos adquirentes
de boa-fé, quando impõe ao Poder Público o dever de assumir a regularização
fundiária; a Lei 8.245/91, que, ao dispor sobre a locação de imóveis urbanos, possui
regras específicas aplicáveis à moradia, as quais asseguram o exercício da posse
direta e o direito de morar num imóvel em condições de habitabilidade; a Lei
10.257/01, denominada Estatuto da Cidade, que estabelece diretrizes gerais da
36
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 725. 37
Ibidem, p. 715 e 716. 38
Ibidem, p. 723 e 724.
21
política urbana, possibilitando, inclusive, a intervenção do Estado na propriedade
privada, quando esta não cumpre a sua função social; a Medida Provisória 2.220/01,
que dispõe sobre a concessão de uso especial para fins de moradia sobre imóveis
públicos; a Lei 11.481/07, que trata da regularização fundiária de interesse social em
imóveis da União; o Código Civil, que regulamenta a usucapião, cujo instituto
assegura o exercício do direito de moradia; a Lei 11.124/05, que dispõe sobre o
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, além de criar o Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social – FNHIS e instituir o Conselho Gestor do FNHIS; e,
por fim, a Lei 13.105/15, que instituiu o procedimento administrativo para o
reconhecimento do direito de propriedade por intermédio da usucapião.
1.2. A moradia como bem indispensável à dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca e individual
reconhecida a cada um, que se faz merecedor do respeito e consideração por parte
do Estado e de toda sociedade, além de representar um complexo de direitos e
obrigações que protege a pessoa contra todo ato degradante e desumano, ao
mesmo tempo em que assegura condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, cujo exercício exige o respeito em favor dos demais seres39. É na
dignidade da pessoa humana que reside o principal fundamento do conceito material
dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que a efetividade dos direitos
fundamentais sociais, econômicos e culturais representam a concretização da
dignidade da pessoa humana40.
Os direitos sociais são os frutos da segunda fase de reivindicação de direitos,
quando a sociedade era marcada por uma intensa desigualdade material, pobreza e
exclusão social, como conseqüência do liberalismo e da industrialização41. Referido
movimento representou uma reivindicação da atuação estatal, a fim de garantir um
mínimo necessário e imprescindível para cada pessoa humana, inaugurando um
novo paradigma: o Estado Social, tendo a Constituição Mexicana de 1917 e a
39
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 70 e 71. 40
Idem. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 693 e 694. 41
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 64 e 65.
22
Constituição de Weimar, na Alemanha, em 1919, como documentos precursores42.
Os direitos sociais, entre os quais se destaca o direito à moradia, representam uma
concretização do princípio da igualdade43, entendida no seu sentido material, já que
eles possibilitam a manutenção de melhores condições de vida, inclusive aos mais
necessitados, ao mesmo tempo em que servem como pressuposto para o gozo dos
direitos individuais, dando oportunidade para a concretização da igualdade material.
Mas foi num terceiro movimento, conseqüência do segundo pós-guerra, que o
ser humano foi elevado ao valor mais importante em uma ordem jurídica nacional e
internacional, cujo caminho escolhido foi a Constitucionalização, tendo a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, de 1948, seguida do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, ambos de 196644, como os primeiros documentos a expressar o referido
valor, cuja previsão, inclusive, assegura a proteção do direito à moradia em seu
texto.
Esse movimento fez com que a dignidade da pessoa humana passasse a ter
proteção constitucional, inclusive com previsão expressa, como no caso do inciso III
do artigo 1°45 e inciso III do artigo 3°46, ambos da Constituição de 1988, em que o
homem é reconhecido como o valor mais importante na ordem jurídica brasileira. É
dentro desta compreensão que os direitos fundamentais ganham destaque, tendo
em vista que são essenciais e indispensáveis à satisfação e proteção humana, pois
se tratam de situações jurídicas sem as quais o homem não se realiza, não vive em
sociedade e, talvez, sequer sobrevive47. Desse modo, diante da previsão
constitucional que protege a dignidade da pessoa humana e os direitos
fundamentais, a partir da Constituição Federal de 1988, foi instituído o Estado
Democrático de Direito48.
42
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 578. 43
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 162 e 287. 44
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 66 e 67. 45
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:... III - a dignidade da pessoa humana;” 46
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:... III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;” 47
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 180. 48
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 37.
23
Essa positivação representa o compromisso do ordenamento em assegurar a
promoção jurídica dos direitos nele previstos, tendo em vista que os direitos do
homem se desenvolvem sob a sombra das concepções jusnaturalistas, tidas como
direitos naturais, cujos valores são reconhecidos desde o início da existência
humana, mas somente ganham proteção jurídica a partir do momento em que são
reconhecidos e integrados na ordem jurídica pela Constituição49. Desse modo,
apesar de posições divergentes, há que se reconhecer aos direitos sociais,
econômicos e culturais a qualidade de direito fundamental, quando eles representam
a exigência e a concretização da dignidade da pessoa humana, conforme citado no
item anterior, pois a conexão entre pobreza, exclusão social e direitos sociais existe
em respeito e proteção à dignidade da pessoa humana50.
De acordo com essa corrente doutrinária, a que este trabalho se filia, o direito
social à moradia também é entendido como um direito fundamental, já que se
identifica uma relação íntima e indissociável entre esse direito e a dignidade da
pessoa humana, quando ele representa uma necessidade essencial ao ser
humano51. Uma moradia adequada significa exercer uma vida digna, uma vez que
deve ser assegurado um lugar para proteger a si próprio e sua família, para gozar da
intimidade e privacidade, para viver com saúde e bem estar, como exercício da
dignidade. Para viver dignamente e com o objetivo de desenvolver livremente sua
personalidade, todo ser humano necessita de uma moradia adequada.
Dentro de um universo que envolve os direitos essenciais à pessoa humana,
a moradia adequada possui uma relação de interdependência com outros bens
juridicamente protegidos, como a vida, saúde, integridade física e moral, intimidade,
liberdade, entre outros. Por essa razão ela passa a ser reconhecida como um bem
extrapatrimonial, já que ela é capaz de assegurar a integridade física, psíquica e
moral da pessoa, ou seja, o respeito a esses interesses se dá por meio do exercício
do direito à moradia adequada52.
49
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro. 13ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 31. 50
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 694 e 695. 51
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 44. 52
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 155 a 160.
24
O cidadão deve ter acesso a uma morada que assegure o atendimento de
suas necessidades básicas, como ir à escola, ao trabalho ou ao posto de saúde,
além do fornecimento de serviço público adequado, como energia, água, esgoto ou
coleta de lixo, num mínimo de segurança e em um lugar adequado e com uma
edificação estável. O direito à moradia também se manifesta ao assegurar o
sossego, a privacidade e a intimidade, sendo que a morada deve representar um
recinto de paz e tranquilidade, além do fato de que o lar é o local onde cada ser
humano pode atuar de forma mais livre, exteriorizando suas atividades mais
pessoais e intimas53.
Desse modo, assegurar um espaço adequado para um lar familiar por si só
não basta, ele deve vir acompanhado de outras ações, como garantia de acesso a
bens. Daí a conclusão de que a mera produção de unidades habitacionais não é a
solução para o problema social da habitação, já que devem ser respeitados outros
bens e direitos essenciais ao homem, os quais estão intimamente relacionados à
moradia, em respeito à dignidade da pessoa humana, tornando claro que o direito à
moradia é muito mais amplo e complexo do que o de casa própria.
Também existe uma compreensão de que o direito à moradia não recai sobre
o objeto, mas sobre o bem moradia, consequentemente esse direito não tem
natureza apenas de um direito fundamental social, mas também uma íntima relação
com os bens que compõem a personalidade do indivíduo, tornando-se inerente a
cada ser humano por mais esse motivo54. A personalidade é um complexo de
características interiores do indivíduo, capaz de revelar seus atributos materiais e
morais, cujo universo é composto por outros bens subdivididos, como a vida, a
liberdade, a honra, a intimidade, o segredo, entre outros, que juntos formam o bem
maior, que é a personalidade55. Nesse sentido, a personalidade é o primeiro bem da
pessoa, cuja origem decorre da própria existência, composta por um conjunto de
caracteres a ela inerentes e que envolve outros bens, os quais apóiam os direitos e
deveres dela decorrentes.
53
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 204 a 206. 54
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 117 e 118. 55
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 145.
25
Os bens que compõem a personalidade compreendem aqueles considerados
essenciais à pessoa humana, por isso, qualquer lesão que atinja a dignidade
também representa danos à personalidade56. Desta forma, os bens da
personalidade humana são identificados a partir da essência humana. Além disso, o
exercício da personalidade representa o exercício do direito subjetivo57, considerado
como um poder de manifestação da vontade e, ao mesmo tempo, implica no dever
jurídico de respeito por parte do outro.
Certos direitos humanos estão entre aqueles inerentes ao exercício da
personalidade, como é o caso do direito à moradia, tratando-se de um direito da
essência do indivíduo, e, portanto, emanado da personalidade humana58. Mas é
válido ressaltar que a tutela da pessoa humana sob a denominação de direito da
personalidade é algo recente, cuja ocupação se deu após a Constitucionalização,
citada acima, fenômeno que ganhou força a partir do século XX, representando a
eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, quando a
personalidade foi considerada um valor constituído em si mesmo, cujos preceitos
estão embasados no texto constitucional59, e, portanto, capaz de alcançar todos os
setores da ordem jurídica, já que o homem foi elevado um valor supremo,
representando uma nova compreensão do direito, ao contrário da visão que dividia o
direito em dois ramos distintos e independentes: o público e o privado60, superando
o problema da proteção do patrimônio e da circulação de riquezas em detrimento do
valor humano.
1.3. A efetividade do direito à moradia
A doutrina levanta uma discussão sobre a distinção conceitual entre eficácia e
efetividade das normas constitucionais, em que a primeira, também chamada de
56
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 10. ed. 1ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 153. 57
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol. I. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 130. 58
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.152. 59
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 90 a 93. 60
BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: público/privado. In: Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução: Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007, p. 115 a 137.
26
eficácia jurídica, significa que toda norma constitucional tem a capacidade de
produzir efeitos no universo jurídico, ao contrário da segunda, denominada pela
doutrina como eficácia social, cujo conceito representa a concretização do conteúdo
da norma, em que os efeitos efetivamente se produzem61.
A compreensão das questões relacionadas à efetividade dos direitos
fundamentais sociais e, em particular, do direito à moradia, remete o leitor à
necessária compreensão do conteúdo da norma prevista no § 1º do artigo 5º da
Constituição Federal62, cujo alcance e significado a doutrina ainda não se assentou
pacificamente, tratando-se de um dos temas mais polêmicos do direito
constitucional63. Essa norma abrange todos os direitos fundamentais de forma
irrestrita, tanto que o próprio constituinte não dispôs o contrário, cujo conteúdo, em
harmonia com a previsão do § 2º do mesmo artigo64, significa uma aplicabilidade
imediata de todas as normas de direitos fundamentais previstas em qualquer parte
do texto constitucional, somadas àquelas previstas nos tratados internacionais, de
modo a inexistir a necessidade da intermediação do legislador infraconstitucional,
pois, do contrário, isso significaria um esvaziamento da fundamentalidade da norma
constitucional.
No entanto, convém destacar que existe entendimento contrário sobre esse
tema, por afirmar que algumas normas da Constituição, entre elas, a previsão do §
1º do artigo 5°, são de eficácia limitada e por isso não têm condições de gerar efeitos
sem a intervenção do legislador65. Convém ressaltar que essa compreensão
divergente da doutrina decorre da concepção proporcionada pelo constitucionalismo
de índole liberal, quando afirma que todas as normas de direitos sociais são
detentoras de conteúdo programático e por isso representam meras diretrizes
61
BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 66. 62
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:... § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 63
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 707. 64
“§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 65
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 708 e 709.
27
políticas e sem força vinculante, cuja efetividade estaria a depender da iniciativa do
legislador ordinário66.
As normas programáticas surgem como conseqüência do primeiro pós-
guerra, quando os holofotes se voltaram para uma justiça social, cujo conteúdo
representa indicadores para os fins a serem alcançadas no âmbito social e por isso
se limitam a estabelecer determinados princípios ou programas de ação a serem
desenvolvidas por parte do Estado, ou seja, são linhas diretoras a orientar o poder
público67, como conseqüência da inauguração do Estado Social, conforme já citado
no item anterior. De acordo com esses autores, as normas constitucionais
programáticas devem ser compreendidas como um conjunto de regras que
estabelecem comportamentos a serem cumpridos por parte do Estado e do
indivíduo, por disporem sobre a realização da justiça social, cabendo ao Estado
realizá-las68.
No plano da eficácia e da efetivada, a norma constitucional que protege o
direito fundamental social à moradia deve ser analisada na sua dupla função
(positiva e negativa), sem perder de vista que se trata de um direito que possui
identidade com o direito subjetivo público, conforme estudado anteriormente. Apesar
da divergência sobre a efetividade das normas programática, há entendimento de
que os direitos fundamentais sociais são de pronta exigibilidade por parte de seu
titular, cuja realização se dá de forma positiva e negativa69.
Em sua concepção negativa/ defensiva, o direito à moradia significa um direito
subjetivo a uma proteção contra toda e qualquer agressão por parte do Estado ou de
terceiros. Neste caso, não há questionamentos por parte da doutrina no que tange
sobre a efetividade do referido direito, interpretado em consonância com a previsão
constante no § 1º do artigo 5º da Constituição, tendo ele aplicabilidade imediata e
plena efetividade, com dispensa à atuação do legislador70. E não poderia ser de
66
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 102. 67
BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 76. 68
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 214. 69
BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 73. 70
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 713.
28
outra forma, já que, em sua função negativa, o titular do referido direito apenas exige
o respeito e a omissão do terceiro, destinatário da norma, principalmente pelo fato
de que os direitos de defesa, como um todo, representam um direito subjetivo
individual e por isso a norma constitucional assegura ao particular um poder a ser
exercido imediatamente, cujo desfrute não depende de qualquer conduta por parte
de outrem, a não ser a sua abstenção71.
No entanto, convém lembrar que o direito à moradia, na sua função de
defesa, não pode ser considerado um direito absoluto, completamente isento de
qualquer tipo de restrição72, sendo possível, por exemplo, que o Poder Público, nas
relações públicas, promova desapropriações ou exija a desocupação de área de
preservação ambiental, nos termos previstos em lei, a fim de atender o interesse
social, ou ainda, nas relações privadas, é possível que o indivíduo seja compelido a
desocupar o imóvel, por meio das ações de reintegração de posse intentadas pelos
seus titulares contra invasores que a utilizam para a sua morada, por exemplo.
Desse modo, nas relações onde estão em jogo direitos fundamentais de
titulares diversos é possível o surgimento de colisão entre eles, impondo-se uma
restrição de direitos, cuja análise mais aprofundada não se dará neste trabalho em
razão da pesquisa proposta, mas não se pode perder de vista o dever de proteção
que deve vigorar sobre todos os direitos fundamentais, principalmente por estarem
sob os olhos do princípio da dignidade da pessoa humana73.
No que tange sobre a sua função prestacional, o problema da compreensão
sobre a eficácia e efetividade do direito à moradia gera maior dificuldade, pois neste
caso a moradia representa um direito de exigir uma prestação material por seu titular
em face do Poder Público, de modo que este garanta uma moradia adequada, e,
portanto, de acordo com os padrões dignos, conforme analisado no item anterior. A
partir de então, questiona-se se o Poder Público pode ser compelido a oferecer
moradia digna àqueles impossibilitados de acessá-la74. Segundo o entendimento da
71
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 209. 72
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 716. 73
Ibidem, p. 717 e 718. 74
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.).
29
doutrina defensiva da idéia de que as normas de direitos sociais possuem conteúdo
programático, em sua dimensão prestacional, a efetividade do direito a moradia
depende do legislador ordinário para sua concretização, significando dizer que o
indivíduo não tem acesso imediato a uma prestação efetiva, em consequência de
que inexiste um direito subjetivo do indivíduo75.
Apesar de parte da doutrina defender esse posicionamento, cujo conteúdo o
presente trabalho não comunga, não há como negar a eficácia imediata dos direitos
sociais fundamentais, mesmo que eles estejam entre as normas tidas como
programáticas76, principalmente porque o direito nelas previsto gozam de
fundamentalidade. Assim, tais normas são diretamente aplicáveis, podendo ser
extraídos os efeitos que dela se esperam independentemente da intermediação do
legislador ordinário, representando um reconhecimento do direito subjetivo do titular
do direito fundamental social77. Nesse raciocínio, a eficácia do direito fundamental
social à moradia, compreendido em sua dupla dimensão, representa um dever do
Estado em empreender esforços e se fazer presente para a proteção e promoção do
referido direito, da mesma forma como deve ocorrer no caso dos demais direitos
sociais compreendidos como fundamentais.
Não bastasse isso, a defesa da eficácia imediata dos direitos fundamentais
sociais tem propiciado o surgimento de outras discussões, entre as quais se
destaca, por exemplo, a questão ligada à separação dos poderes. Alguns defendem
que a atuação do Poder Público para garantir a efetividade de um direito depende de
previsão orçamentária, sendo esta subordina à iniciativa parlamentar, que tem o
dever de promover a aprovação da previsão dos recursos públicos. Aliás, esse
argumento tem servido como justificativa por parte do poder executivo inoperante,
que afirma a falta de previsão orçamentária no caso de não ser assegurada a
implementação de direitos fundamentais sociais78.
Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 722. 75
BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 76-77. 76
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 236. 77
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 268. 78
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008.
30
Outra discussão relacionada à inefetividade dos direitos fundamentais sociais
diz respeito à inércia do Poder Público em razão da ausência de recursos
financeiros. Neste caso, o Poder Público justifica a sua inércia com base no princípio
da reserva do possível, ou seja, a atuação do Estado na efetividade dos direitos
fundamentais sociais está condicionada à disponibilidade de recursos financeiros.
A teoria que explica o princípio da reserva do possível teve origem na
Alemanha, a partir dos anos 197079, quando seu Tribunal Constitucional Federal
julgou o paradigmático caso numerus clausus, que versava sobre o direito de acesso
ao ensino superior.
Essa teoria se difundiu por diversos países, inclusive no Brasil, passando a
ser aplicada como uma justificativa às limitações da efetividade dos direitos sociais,
inclusive àqueles com índole fundamental, no entanto num sentido diferente do
original, ao utilizar como argumento central e exclusivo as questões relacionadas à
disponibilidade de recursos financeiros. O Estado justifica sua omissão ao não
atendimento de uma pretensão subjetiva em razão da escassez de recurso
público,80 traduzindo uma ideia de que os direitos sociais só existem na medida em
que há recurso financeiro81.
Condicionar a efetividade dos direitos fundamentais, inclusive à moradia, ao
princípio da reserva do possível traz a tona uma nova discussão, principalmente pelo
fato de que não se pode negar, de forma absoluta, o direito subjetivo à prestação
estatal82, além do fato de que essa justificativa não está de acordo com a
principiologia da Constituição, que reconhece a natureza fundamental desse direito,
sob pena de esvaziar, por completo, a sua efetividade e fundamentalidade.
Diante deste impasse, como critério crucial para a solução das questões
relacionadas à efetividade dos direitos fundamentais sociais, a doutrina se utiliza do
princípio da dignidade da pessoa humana, já analisado anteriormente, que, além de
exercer uma função demarcatória, estabelece um padrão mínimo, cujo método
79
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner.Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 80
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 194. 81
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 481. 82
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 728.
31
institui a teoria do mínimo existencial, o qual reconhece em seu núcleo a eficácia
imediata dos direitos fundamentais sociais, desde que integrem o mínimo necessário
a uma existência digna do indivíduo, sem perder de vista o fato de que a sua
implementação não está subordinada à iniciativa do legislador infraconstitucional83.
O mínimo existencial está contido na ideia de liberdade, igualdade, do devido
processo legal, da livre iniciativa, entre outros princípios constitucionais, além
daqueles previstos na Declaração dos Direitos humanos, por isso sua expressão
dispensa um conteúdo específico e abrange qualquer direito na sua dimensão
essencial, além de deter um conceito imensurável, por possuir aspectos de
qualidade, ao invés de quantidade, tratando-se de um instituto sem um conteúdo
preciso, mas com condição mínima de vida, sem a qual inexiste a possibilidade de
sobrevivência84.
Foi na Alemanha que as condições materiais necessárias à garantia de uma
vida com o mínimo de dignidade teve a primeira elaboração dogmática. O Tribunal
Federal Administrativo Alemão reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente
a um auxílio material a ser prestado por parte do Estado, tendo sido utilizado como
argumento a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à vida, ou seja, ao
cidadão foi reconhecido o direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos
para a existência digna85. Além disso, o Tribunal Constitucional Federal Alemão, por
meio da decisão BVerfGE 78, 104, também reconheceu a natureza de direito
fundamental à garantia das condições mínimas, de modo que, aos necessitados
deve ser prestada a assistência em virtude das precárias condições físicas e
mentais a que se encontram, por não possuírem condições de prover sua própria
subsistência, representando uma obrigação essencial de um Estado Social.86
A doutrina alemã entende que a garantia do mínimo existencial integra a
essência do princípio do Estado Social de Direito e por isso abrange mais do que a
garantia da mera sobrevivência física, situando-se para além do limite da pobreza
83
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 104. 84
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 29 e 30. 85
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 86
SCHWABE, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Organização e introdução: Leonardo Martins. Tradução: Beatriz Hennig; Leonardo Martins; Mariana Bigelli de Carvalho; Tereza Maria de Castro; Vivianne Geraldes Ferreira. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 827 – 829.
32
absoluta, uma vez que lá esse direito tem seu conteúdo fundado no princípio do
Estado Social e no princípio da igualdade, de modo a representar um mínimo
existencial sociocultural, ao mesmo tempo em que também protege o direito à vida e
a dignidade da pessoa humana, compreendido como mínimo existencial fisiológico87.
Isso quer dizer que o mínimo existencial é uma exigência da democracia, quando a
questão representa a busca pela realização da justiça social, uma vez que a
democracia é um regime que assegura a igualdade e liberdade de todos os cidadãos
em respeito à dignidade de cada um, ao mesmo tempo em que representa uma
garantia dos direitos básicos de toda pessoa, garante condições mínimas de vida
para o necessitado e visa a limitação do arbítrio do Estado, como instrumento de
efetivação das liberdades88.
No Brasil tem prevalecido o entendimento de que o direito às condições
mínimas de existência humana digna tem como fundamento o respeito às condições
para o exercício da liberdade, como medida necessária à luta contra a miséria e à
pobreza absoluta, em respeito à garantia de condições materiais de existência,
envolvendo o problema da felicidade, já que ela representa a garantia de uma boa
qualidade de vida89. Por outro lado, a doutrina e jurisprudência alemã afirmam que o
conceito do mínimo existencial não pode ser confundido pura e simplesmente com o
mínimo de sobrevivência, ou seja, não se restringe às condições para uma
sobrevivência física apenas, tendo em seu conceito o significado do mínimo
existencial sociocultural90, conforme já citado acima. Apesar dessa divergência de
posicionamentos, é incontroverso o entendimento de que o objeto e conteúdo do
mínimo existencial devem ser compreendidos como direito fundamental, devendo
guardar sintonia com o conteúdo do direito à vida e à dignidade da pessoa
humana91.
87
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 88
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e justiça social. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, n. 12, dez./jan./fev. p. 1-28, 2008, p. 9. 89
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 30 e 31. 90
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 91
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008.
33
Em razão do seu conteúdo, o mínimo existencial independe de previsão
constitucional expressa, uma vez que está compreendido em diversos princípios
protegidos constitucionalmente, como por exemplo, o principio da igualdade, que
além de assegurar uma proteção contra a pobreza absoluta, informa a liberdade, o
princípio da dignidade da pessoa humana, entre outros ligados aos direitos
fundamentais92, e que são estendidos aos direitos sociais, quando estes adquirem a
qualidade de direito fundamental, por representarem uma parcela mínima sem a
qual o homem não sobrevive, além do que os direitos sociais não retiram do mínimo
existencial a sua condição de direito fundamental autônomo93.
Compreendido a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, o direito
a condições mínimas está entre os direitos humanos ou direitos naturais, possuindo
característica pré-constitucional, por ser inerente à própria existência humana, além
de se tratar de um direito subjetivo público capaz de condicionar a ordem jurídica e
com validade erga omnes94. Além disso, esse direito possui status negativo,
representado uma proteção negativa do cidadão contra a intervenção do Estado e
de terceiros, no mesmo instante em que assegura positivamente prestações
estatais, o qual deve atuar por meio do executivo, legislativo e do judiciário,
representando também um status positivo.
Segundo alguns autores, o direito ao mínimo existencial não se confunde com
os direitos puramente sociais, os quais levam em conta as considerações sobre
justiça, representando prestações estatais entregues para a proteção dos direitos
econômicos e sociais, necessárias ao aperfeiçoamento do Estado Social de Direito,
marcado pelo fornecimento de serviços públicos inessenciais a partir do princípio da
reserva do possível, já que não são obrigatórios95. De outra parte, o conteúdo do
direito ao mínimo existencial não é o mesmo em cada um dos direitos sociais que
adquirem a qualidade de direito fundamental, principalmente porque aquele não
possui um núcleo fechado de posições, o que representa uma necessidade de
92
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 32 93
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 94
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 33. 95
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 40 e 41.
34
contextualização no caso de proteção positiva ou negativa do direito fundamental
social, a luz das necessidades de cada pessoa e do seu núcleo familiar96.
Assim, não há como resolver o problema da efetividade do direito à moradia
pela lógica do tudo ou nada. Não há como negar que o desenvolvimento social,
econômico e cultural da comunidade jurídica deve ser levado em conta, mas a
ausência de recursos financeiros, compreendida sob a lógica da reserva do possível,
não pode servir de argumento para sustentar a supressão de direitos fundamentais
sociais97, inclusive do direito à moradia, por não estar acordo com a principiologia da
Constituição, conforme já analisado anteriormente, sob pena de esvaziar, por
completo, a efetividade e a fundamentalidade desse direito social.
Feita essas considerações, percebe-se que ao Poder Público é imposta a
tarefa de atuar de forma positiva para a realização do direito à moradia, no intuito de
assegurar a sua efetividade compatível com a dignidade da pessoa humana, por
tratar-se de um direito fundamental. É imprescindível que haja um constante
reconhecimento da efetivação dos direitos fundamentais sociais por parte do Estado,
entre os quais está o direito à moradia, ainda que em um nível mínimo, mesmo em
se tratando de meta indispensável à orem constitucional, como é tido por alguns,
uma vez que eles estão atrelados à existência digna98, o que significa dizer que a
efetividade do direito fundamental social à moradia representa uma permanente
otimização por parte do Poder Público e de toda a sociedade, em concretização do
princípio da dignidade da pessoa humana.
A moradia, reconhecida como um direito subjetivo à prestação, ao mesmo
tempo em que é compreendida sob o mínimo existencial, depende de um processo
democrático para sua realização, sem que se perca de vista o respeito à separação
e interdependência dos poderes99, por isso, exige-se um trabalho a ser desenvolvido
pelo legislativo, pela administração pública e pelo judiciário, por representar um
dever do Estado em agir com o intuito de proteger e de viabilizar a implementação
96
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 97
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 102. 98
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 732. 99
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 42.
35
dos direitos fundamentais sociais, ainda que eles estejam compreendidos no interior
de uma norma programática, conforme defendem alguns autores, pois, do contrário,
o desvio de qualquer um dos poderes no cumprimento das diretrizes lançadas pelo
comando constitucional implicaria em uma inconstitucionalidade100. Além disso, não
se pode perder de vista que os direitos fundamentais independem de lei ordinária
que o garanta, já que se vinculam à própria organização do Estado, podendo a lei
ordinária explicitar ou aprofundar o discurso sobre os direitos fundamentais, mas não
os criar101, principalmente porque o mínimo existencial não possui um rol fechado de
posições subjetivas negativas e positivas em seu elenco de elementos nucleares,
conforme já citado, estando vedado ao legislador ordinário estabelecer valores fixos
e padronizados para determinadas prestações destinadas à implementação do
mínimo existencial102.
Convém lembrar que, a partir dos anos 1990, a temática das políticas públicas
ganhou espaço no universo jurídico brasileiro, inspirada na realização dos direitos
sociais, a partir da previsão contida na Constituição de 1988, período marcado pela
compreensão de que a democracia política deve ser completada pela democracia
econômica e social103. Apesar de parecer redundante a expressão políticas públicas,
toda política tende a ser pública, pois representa a realização social104, por essa
razão, a efetividade do direito fundamental social à moradia deve se dar, num
primeiro momento, por meio de políticas públicas, cujo significado representa um
programa de ação do governo com o intuito de coordenar os meios à disposição do
Estado, além das atividades privadas, para a realização dos objetivos socialmente
relevantes e politicamente definidos105. A efetividade dos direitos de cunho
prestacional, a partir de uma estruturação, depende da atuação comissiva do
Estado, da indicação de recursos financeiros e da definição de um procedimento,
representando uma vinculação entre proteção e promoção do direito fundamental
100
BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p. 60-98, 1995, p. 76. 101
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989, p. 44. 102
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. 103
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 25. 104
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 100. 105
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. 1997, p. 91.
36
social à moradia e políticas públicas, cuja compreensão se dará mais adiante, num
capítulo próprio.
Além da atuação do executivo, por meio de políticas públicas, também são
necessárias medidas legislativas, como por exemplo, a promulgação do Estatuto das
Cidades106, além do reconhecimento por parte do poder judiciário, em observância
ao dever de respeito e aplicação imediata dos direitos fundamentais ao caso
concreto, considerando que é dever do judiciário zelar pela efetividade dos direitos
fundamentais107.
Por último, há que se destacar que a moradia não se confunde com o direito
de propriedade, pois, apesar do fato de que esta pode servir como instrumento de
efetividade daquele direito, a moradia é um direito fundamental social autônomo,
com proteção e objeto próprio, revestido da mesma complexidade atrelada aos
direitos fundamentais na sua dimensão negativa e positiva108. Diante deste
argumento, partir-se-á, no próximo capítulo, para uma análise sobre o instituto da
propriedade e da sua relação com a idéia de acesso, com vista à efetividade do
acesso à moradia.
106
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 724. 107
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 107. 108
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015, p. 344.
37
2. A PROPRIEDADE: DO PERÍODO MEDIEVAL AO ACESSO NO
ESTADO CONTEMPORÂNEO
A propriedade é um bem que sempre existiu, cujo tratamento se deu de
acordo com as circunstâncias sócio-econômicas de cada momento histórico, mas, a
partir da conveniência social vigente, sempre evidenciou um poder do homem sobre
as coisas109. Seu conceito reflete a imagem de uma sociedade, como consequência
de certos valores historicamente consolidados e autonomamente interpretados, sem
deixar de lado que se trata de um instituto com conceitos diferentes, já que, para os
economistas, trata-se de renda da coisa ou riqueza, enquanto que, para os juristas,
é um poder sobre a coisa110.
A história da propriedade e das relações sobre as coisas é marcada por uma
descontinuidade, já que ela é concebida como uma mentalidade, não se resumindo
a uma forma e conceito únicos, tratando-se de um conjunto de convicções que foram
mudando no decorrer da história111. Não há como negar o elemento histórico na
análise jurídica desse instituto, já que se trata de uma circunstância inerente ao
próprio direito, o que permite constatar que as condições econômicas e políticas
serviram como fatores determinantes à origem e ao desenvolvimento da
propriedade, dentro de uma contínua luta de classes112.
A partir da ideia de que a propriedade decorre do natural domínio do homem
sobre os bens, ela significa um poder moral e jurídico e passou a ser utilizada para
transformar a coisa comum em privada, para atender interesses individuais, fruto das
necessidades econômicas113. Ocorre que, mais tarde, inspirada na conveniência e
na circunstância sócio-econômica, a propriedade caminha para a teoria social, que
contribuiu para a denominada função social, que alterou alguns aspectos
relacionados ao uso da propriedade114, conforme se verá logo abaixo.
109
BESSONE, Darcy. A propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 432. 110
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 25. 111
Ibidem, p. 38. 112
FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 816. 113
Ibidem, p. 819. 114
Ibidem, p. 826.
38
2.1 A descontinuidade do conceito da propriedade: do período medieval ao Estado
Liberal
O período medieval ficou marcado pelos fortes laços de dependência do
homem comum ao senhor feudal, como forma de organização da sociedade. O
senhor feudal formava sua clientela ao fazer a concessão de terras, para o plantio,
aos seus subalternos, a fim de que estes, conhecidos como vassalos, tirassem dela
o seu sustento, e em contrapartida, estes prestavam serviços, inclusive militares, ao
seu senhor, já que nesse tempo inexistia um poder público forte, garantidor de
segurança e de oportunidades aos seus cidadãos115. A terra, portanto, passa a ser
um elemento real de relação pessoal entre o senhor feudal e seus vassalos, apesar
desse modelo não afastar outras formas jurídicas de propriedade que também
existiram no período medieval, como a propriedade eclesiástica, municipais, entre
outras.
Nesse período, a regulação da propriedade se refere a um estatuto da coisa e
não do sujeito, pois o fundamento desse instituto se dava a partir da compreensão
de que o domínio não recai do sujeito sobre a coisa, mas nasce da coisa, permitindo
explicar a legitimidade de mais de um proprietário sobre a mesma coisa,
considerando que o senhor feudal era o dono das terras e seus vassalos os
legitimados a trabalhar nela, ao contrário do período moderno116. Tudo isso, sem
perder de vista que o período feudal ficou marcado pela ausência de liberdade das
pessoas, principalmente pelo fato de que a produção de riquezas era baseada no
trabalho forçado, conseqüência dessa própria relação de dependência entre o
senhor e o vassalo.
Como um elemento fundamental para a organização da sociedade, a terra
também era essencial à estrutura econômica no período medieval, por se tratar de
um elemento necessário ao cultivo, ainda que restrito à subsistência, fazendo com
que essa compreensão ditasse o regime da propriedade, em que havia um vínculo
jurídico entre os que a possuíam e não cultivavam, e os que trabalhavam nela e não
eram donos, de modo que estas duas posições, a plena propriedade e o direito real
de coisa alheia, permitiram identificar duas classes distintas de proprietários do
115
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 23 a 25. 116
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 42.
39
mesmo bem117, ofuscando a linha divisória entre o exercício e a titularidade, já que o
ordenamento oferecia ao sujeito que cultiva a terra, ainda que em nome do seu
senhor, uma investidura de juridicidade118.
Trata-se de um desvio de atenção do ordenamento jurídico, que, a partir da
titularidade, legitima o exercício, sinalizando uma experiência sobre o domínio direto
e o domínio útil, com contornos anti-individualistas, em que é impossível conceber a
propriedade como relação pura, por isso o conceito de propriedade no período
medieval nada tem a compartilhar com a propriedade moderna, conforme se verá
logo abaixo, sendo aquela fracionável, admitindo a legitimidade de mais de um
proprietário sobre a mesma coisa, já que, para aquele período, a titularidade do
domínio dependia da existência do poder sobre a coisa, não importando se pequeno
ou grande, mas autônomo e imediato119.
A partir do século XVI, principalmente na França, começa a surgir a
necessidade de se modificar o sistema, no intuito de incrementar a produção, já que
as relações de troca começaram a se generalizar e a ocupar o centro econômico,
período em que a produção se volta para o mercado, e não mais para o consumo
restrito à subsistência, tornando-se fonte de produção de riquezas, fato que
representou uma necessidade sistemática de apropriação de terras, as quais
deveriam ser utilizadas de forma autônoma, plena e exclusiva, como medida
necessária ao processo de produção, ao mesmo tempo em que se tornou livre a
escolha do trabalho e a circulação de bens120.
A sistematização da produção agrícola, o crescimento das cidades e do
comércio marcaram o período de crescimento político e econômico da burguesia,
tempo em que significou o surgimento de um novo homem. Tratava-se de um
homem que não existia anteriormente, por ser ambicioso e livre do senhor, dando
origem a uma nova ideologia, diferente à da ordem feudal, pois suas relações se
baseavam na compra e venda, e não nas relações de vassalagem, no mesmo
117
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 118
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 44. 119
Ibidem, p. 58. 120
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 27.
40
instante em que a terra, uma importância socioeconômica fundamental, passou a
servir aos plenos poderes do proprietário, agora atribuído a um só indivíduo121.
O período medieval ficou marcado pela ausência de um poder central, já que
as relações eram intituladas por vários núcleos sociais, compostos pelos senhores e
seus vassalos, permitindo um pluralismo jurídico, cujas fontes de direito eram as
mais diversas possíveis, simbolizando uma insegurança jurídica constante, gerando
reflexos de instabilidade, inclusive nas atividades econômicas. Com o
desenvolvimento do comércio, a relação entre poder econômico e poder político
precisaram ser redefinidas, por isso os comerciantes foram os principais
propagadores da pretensão de libertação dos laços com o senhor feudal e da
formação da centralização da ordem jurídica, momento em que a burguesia, que
vivenciava um período de expansão, se aliasse a essa ideia, de formação de um
poder centralizado, única forma encontrada para garantir a paz social,
representando a necessidade de um Estado, que se inaugurou como absolutista,
mas que, mais tarde, foi convertido pela burguesia a seu favor, após a afirmação de
que o povo é titular da soberania e que não há poder político acima dos cidadãos122.
Esse processo culminou em um Estado moderno liberal, momento em que o poder
político passou a ser limitado juridicamente, quando surge uma visão individualista
da sociedade, marcando a construção de um discurso para a propriedade e seu
proprietário123.
O instituto da propriedade moderna fundou-se em dois grandes movimentos,
ou seja, o Renascimento e o Iluminismo, os quais também proporcionaram uma
profunda alteração no plano político, ao permitirem a formação dos Estados,
inicialmente absolutistas e depois liberais, além de contribuírem para o progressivo
desenvolvimento hegemônico da ideologia burguesa, impulsionando a mentalidade
individualista da modernidade, fazendo com que a doutrina utilizasse o fim do
feudalismo e a Revolução Francesa como marcos iniciais da era moderna124.
Na modernidade, o conceito jurídico da propriedade também passou por um
processo de renovação, que ocorreu entre o século XIV e XIX, cujo tempo não
abalou o seu conteúdo, ainda que mínimo, fundado no absolutismo e na
121
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 29 a 32. 122
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 20. 123
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33 124
Ibidem, p. 19 e 20.
41
exclusividade. O domínio era indiscutível e permitia a compreensão de que o seu
sujeito era o principal personagem, já que nessa época a propriedade significava o
sujeito em ação, como corolário da abstração, da liberdade e da igualdade formais,
uma das características marcantes na proteção jurídica dos institutos na época125.
No período em que o mercado de troca de bens se intensificava, o indivíduo
passa a ser o ponto de partida para a construção política moderna e por isso a
sociedade começa a ser vista com indivíduos isolados, principalmente porque a
orientação econômica impõe a necessidade de membros livres e iguais. O exercício
da troca pressupõe ampla liberdade, ao mesmo tempo em que o indivíduo tem o seu
direito subjetivo à inviolabilidade reconhecido contra terceiros e o próprio Estado,
representando uma limitação do poder estatal, ao mesmo tempo em que todos eram
tidos como iguais, portanto, poderiam ser titulares de direitos126.
A partir da compreensão de que a liberdade é a força que move o indivíduo e
representa um instrumento de luta contra o regime absolutista, cuja compreensão
mais aprofundada não se fará em razão do objeto deste trabalho, o Estado de
Direito Liberal, símbolo do reconhecimento dos direitos do homem, mostra-se como
de direito por fazer do respeito um corpo mínimo de direitos e garantias
individuais127, remete aos princípios da divisão de poderes, do primado da lei, do
caráter abstrato e geral da lei, da divisão entre esfera pública e privada,
considerando que, neste período, o direito se volta ao reconhecimento e à garantia
dos interesses econômicos e morais do indivíduo, momento em que os homens são
descobertos como indivíduos livres e iguais128. O cidadão não depende mais de uma
ligação orgânica, mas de si mesmo, o que representa uma valorização da autonomia
da vontade, quando o contrato e o patrimônio se tornaram atributos do sujeito,
dando origem à proteção do direito subjetivo129.
Num ambiente favorável ao mercado, em que o ideal do individuo competitivo
e empreendedor passa pela ideia de acesso aos bens, sua manutenção e
possibilidade de troca, a titularidade começa a ser regulamentada pelo direito,
125
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 82 e 83. 126
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 49 e 53. 127
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 26. 128
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 43. 129
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 540.
42
quando ele reconhece ao sujeito a possibilidade de ser proprietário. No Estado
Liberal, a propriedade passa a ser um fator de realização humana, já que, por meio
da troca de bens, o cidadão pode alcançar sua autonomia e sobrevivência,
tornando-se ela uma força motriz para o exercício da liberdade130.
Com o fim do feudalismo, surge um novo modelo de propriedade, de feição
liberal e individualista, ao mesmo tempo em que houve a construção de um sentido
de livre acesso e circulação. Por isso, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, conceituou a propriedade como um direito inviolável e sagrado,
da qual ninguém pode ser privado, salvo em caso de necessidade pública
comprovada, nos termos da previsão do seu artigo 17131. Defendeu-se a ideia sobre
a construção de um direito de propriedade que garantisse a exclusividade dos
poderes do proprietário, de modo a afastar a interferência de terceiros, cujo conceito
estava em consonância com os interesses da burguesia, representando o fim do
modelo dualista apresentado pelo período medieval132.
Na modernidade, o ser humano é reconhecido como indivíduo que é
proprietário de sua própria pessoa e tem capacidade de agir independentemente dos
outros. A liberdade confunde-se com a propriedade, já que ser proprietário é exercer
a liberdade, por isso, identifica-se a intima relação entre autonomia privada e direito
de propriedade, já que ambas são expressões da liberdade133, pretendendo-se que
a propriedade seja compreendida como complemento necessário à personalidade e
à liberdade134. Isso quer dizer que a liberdade, igualdade e a titularidade passam a
ser o centro da ordem jurídica, instituída frente às necessidades de certeza, quando
foi utilizado o modelo da técnica romana, diante da aceitação de sua razoabilidade e
da submissão política, representando o fenômeno da codificação, cujos textos são
dotados de autoridade. Criou-se um direito neutro e universal, quando previu, no
âmbito civil, uma regulamentação do exercício das liberdades individuais e da ordem
130
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 56. 131
“Artigo 17 Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.” 132
BESSONE, Darcy. A propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 430. 133
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 91. 134
BESSONE, Darcy. A propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 432.
43
econômica e social, deixando para as Constituições o exercício da liberdade no
âmbito político e a regulação da ordem estatal135.
A regulamentação jurídica acompanhou a evolução econômica136, por isso,
em 1804, o Código Civil de Napoleão foi a primeira codificação de índole
individualista e liberal que reconheceu a autonomia da vontade individual e alterou o
regime jurídico da propriedade, conhecida como propriedade moderna, cujas regras
valorizaram a esfera patrimonial dos sujeitos137, por descrever os poderes do
proprietário e os enquadrar como direito subjetivo, separando-o do direito público,
nos termos da previsão do seu artigo 544138, fortemente influenciado pelo direito
romano139. Os romanos possuíam um ordenamento jurídico único e consolidado,
período em que já qualificavam a propriedade individualista, apesar desse conceito
não ser idêntico àquele adotado na modernidade, já que naquela época ele exigia a
qualidade de cidadão romano como pressuposto para o seu exercício, sendo que,
mais tarde, foi estendido ao estrangeiro, apesar de o conceito de propriedade no
direito romano ser unitário, como aquele adotado no período moderno140. Os
romanos foram os criadores do direito de propriedade privada, um vez que, nos
primórdios, ela foi coletiva, transformando-se, paulatinamente, em individual, apesar
desse estudo ainda ser um ponto obscuro na história do direito141.
A partir do Código de Napoleão, a propriedade é compreendida como um
direito absoluto, exclusivo e perpétuo, e seu titular a exercerá da maneira que
melhor lhe convir, podendo, inclusive, torná-la improdutiva, apesar do seu exercício
poder sofrer limitações por parte da lei, sem que isso, no entanto, lhe retire a
135
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 62 e 69. 136
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 137
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 71. 138
“Artigo 544 A propriedade é o direito de fruir e de dispor dos bens materiais da maneira mais absoluta, contanto que deles não se faça um uso proibido pelas leis e pelos regulamentos.” 139
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 12. 140
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 141
FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 816.
44
essência, pois o proprietário conserva consigo o poder de dar a destinação142, sem
que se perca de vista que se trata de um conceito unitário, ou seja, sobre a mesma
coisa não deve haver mais de um proprietário. A partir dessa concepção clássica da
propriedade, chancelada pelo Código de Napoleão, extrai-se dois aspectos distintos
do conceito de propriedade, ou seja, o jurídico, que regula uma relação externa ao
assegurar o direito exclusivo do proprietário sobre a coisa, e o econômico, que
reconhece a relação interna que existe entre o proprietário e o bem143.
O Brasil também viveu uma passagem do período pré-moderno para o
moderno, cheio de particularidades, principalmente porque naquela época, a partir
de 1.500, o Brasil vivenciava um processo de colonização e de expansão comercial,
em consonância com as mudanças econômicas, culturais e políticas de Portugal, por
isso estava subordinado à legislação daquele país. Após o seu descobrimento,
houve uma aliança entre a burguesia mercantil, a coroa e a nobreza portuguesa,
representando um misto de concepções feudais e mercantis, em que as terras
brasileiras foram doadas pela coroa às pessoas privilegiadas, por meio do sistema
das sesmarias, às quais eram facultadas manter arrendatários e meeiros, cujo foco
principal consistia em assegurar a ocupação do território e produção da cana de
açúcar, período marcado pela mão de obra escrava, sem perder de vista a premissa
jurídica da supremacia proprietária da coroa144.
Com a independência em 1822, o sistema das sesmarias foi revogado e a
propriedade se viu sem um regime jurídico próprio. Nessa mesma época foi
outorgada Constituição Imperial, em 1824, reconhecida como a primeira constituição
do Brasil, cujo artigo 179 previa a garantia da inviolabilidade dos direitos civil e
políticos dos cidadãos brasileiros, tendo como base a liberdade, a segurança e a
propriedade145, e na previsão do inciso XXII do mesmo artigo, a propriedade foi
142
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 939. 143
FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 820. 144
FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, 2005, p. 106. 145
“Artigo 179 A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.”
45
eleita uma garantia em toda sua plenitude146, cujo período ficou marcado por um
paradoxo, já que a produção agrícola dependia do trabalho escravo, representando
uma herança do sistema feudal147, até 1850, quando a Inglaterra proibiu o tráfico de
escravos nos mares atlânticos.
Em 1850 foi promulgada a Lei 601, conhecida como Lei de Terras, que
inaugurou um regime jurídico da propriedade, ao indicar a compra e venda como o
único modo de aquisição das terras devolutas, acabando com a aquisição por meio
da posse148 e sujeitando o infrator dessa norma a penalidades severas149, além de
estabelecer ao governo o dever de extremar o domínio público do particular150, entre
outras previsões. Desse modo, tem-se que a Lei de Terras inaugurou o termo
proprietário, ainda que fosse o particular ou o Estado, e definiu o conceito de
propriedade no seu modo individual, enquanto poder do sujeito sobre o bem,
buscando deixar para trás os traços do antigo regime, em consonância com a ordem
econômica, uma vez que já se reconhecia que o conceito da propriedade deveria
estar vinculado a sua exploração econômica151.
Mais tarde, em 1916, foi promulgado o Código Civil , que adotou o modelo
francês, e que, nos termos do artigo 524152, centrou-se no individualismo e no
aspecto patrimonial do ser humano153, em que não se defini a propriedade, mas se
estipulam os poderes do proprietário. Desse modo, numa ordem jurídica
individualista, formalmente livre e igualitária, a propriedade privada passou a ocupar
146
“XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.” 147
FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, 2005, p. 107. 148
“Artigo 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.” 149
“Artigo 2º Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nellas derribarem mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes do prisão e multa de 100$, além da satisfação do damno causado. Esta pena, porém, não terá logar nos actos possessorios entre heréos confinantes.” 150
“Artigo 10. O Governo proverá o modo pratico de extremar o dominio publico do particular, segundo as regras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução ás autoridades que julgar mais convenientes, ou a commissarios especiaes, os quaes procederão administrativamente, fazendo decidir por arbitros as questões e duvidas de facto, e dando de suas proprias decisões recurso para o Presidente da Provincia, do qual o haverá tambem para o Governo.” 151
FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, p. 97-112, 2005, p.110. 152
“Art. 524 A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.” 153
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 2.
46
o centro da ordem social, ao mesmo tempo em que a ordem social passou a girar
em torno da propriedade privada.
Em razão do reconhecimento do caráter privado do processo de produção e
de consumo, a propriedade recebe um novo tratamento jurídico e se transforma em
um princípio norteador de toda a organização social da modernidade, quando ela
representa uma relação jurídica e uma situação subjetiva, no mesmo instante em
que simboliza um instrumento garantidor da organização e do funcionamento de
todo o sistema154. A propriedade representou um poder atribuído ao titular, como
afirmação da subjetividade, excluindo a participação de qualquer um, ao mesmo
tempo em que o exercício desse poder estava sujeito aos limites e obrigações
impostos pela lei, os quais integravam esse direito155, sem que isso, no entanto,
desnature os poderes do proprietário e o reconhecimento de que a propriedade era
um bem absoluto, estando a relação entre o proprietário e o bem apropriado
protegido contra toda e qualquer interferência, num período em que a sua
concepção individualista correspondia à estrutura econômica do capitalismo156.
O conceito da propriedade tem em seu núcleo o reconhecimento de que se
trata de um direito abstrato do proprietário, cujo modelo se manteve forte na ordem
jurídica moderna157, em decorrência do primado do Estado Liberal de Direito,
período em que a lei era abstrata e geral. Naquela época a sociedade era informada
pelo domínio econômico e o indivíduo era tido como força motriz da vida em
sociedade, devendo ser um sujeito livre, cuja garantia é a proibição de interferências
alheias, e isso só era possível por intermédio da propriedade, do contrato e da
responsabilidade civil, institutos fundamentais do direito privado, tidos como básicos
para a afirmação da subjetividade, sob pena de inexistir a garantia da liberdade. É
nesse contexto que a abstração ganha o seu papel, pois ela permite que o sujeito
possa exercitar e efetivar os poderes que lhes são atribuídos pelo direito, já que na
ordem jurídica liberal tudo é neutro158. Portanto, o sujeito de direito é aquele que é
154
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 85. 155
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 224. 156
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 938. 157
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 73. 158
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 112.
47
proprietário, homem livre e igual, e como a lei não se refere ao homem concreto,
mas abstrato, significa que todos os homens são reconhecidos como sujeitos de
direito, representando uma eficácia geral e uniforme da lei, diferente da ordem
estabelecida pelo sistema feudal, sem perder de vista que no período moderno a
sociedade se estruturou em torno do mercado, que impôs uma necessária
independência do indivíduo em garantia da autonomia econômica, cujas bases estão
fundadas na circulação de riquezas, tornando-se imprescindível o reconhecimento
da propriedade privada.
No entanto, diante da excessiva abstração do modelo apresentado durante a
modernidade, o homem se insurge de forma concreta, reivindicando suas
necessidades efetivas, em razão da realidade social, o que irá influenciar o
tratamento jurídico dado à propriedade privada, dando início à principiologia da
função social e da dignidade da pessoa humana, conforme se verá no próximo item.
2.2 A mudança do papel da propriedade e a eficácia dos direitos fundamentais
sociais
Manifestar a liberdade é, ao mesmo tempo, expressar a personalidade, o que
justifica a conclusão de que o conteúdo do conceito de propriedade nasce junto com
a noção moderna de liberdade, uma vez que o ter passa a ser fundamento da
subjetividade, e por isso tem capacidade de definir o ser, ainda que o exercício do
domínio se dê no campo abstrato159. Durante o Estado Liberal o conceito de
propriedade se liga à abstração do sujeito de direito, e, consequentemente, na
abstração do exercício dos poderes do proprietário.
O período liberal é marcado pelo recuo do Estado, então tido como mero
garantidor da segurança política, social e jurídica das relações de troca,
naturalmente regidas pelo direito privado, e do desenvolvimento da economia
capitalista, dando azo a um cenário marcado por acumulo de capital, controle
monopolístico do mercado e dificuldade de acesso às riquezas, já que o indivíduo
não sofria limites nas relações jurídicas patrimoniais160 e os direitos fundamentais
159
FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, 2005, p. 102. 160
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 32.
48
visavam proteger o indivíduo contra a ingerência do Poder Público na esfera
pessoal161.
Ocorre que esta concepção garantiu um déficit no plano econômico e social,
que implicou, mais tarde, numa ruptura ao seu próprio modelo, quando houve um
reconhecimento de que a propriedade deve ser exercida funcionalmente em razão
dos interesses da coletividade, no mesmo instante em que a igualdade formal passa
a proporcionar a desigualdade material162.
Desde então o Estado começa a atuar no processo econômico e na
estruturação da sociedade, quando a esfera econômica passou a ser moldada em
função das exigências sociais, em consequência das pressões exercidas pela
sociedade sobre o Estado, cujos primeiros sinais apareceram no ambiente jurídico a
partir das Constituições do México, de 1917, e de Weimar, de 1919.
Nesse novo período o legislador passou a intervir nas relações privadas,
limitando a autonomia da vontade dos sujeitos de direitos e visando a proteção dos
interesses coletivos, impulsionando a Constituição para o centro do Direito Privado,
haja vista o reconhecimento de sua força normativa, em especial, de seus princípios,
garantindo o reconhecimento da unidade de todo o ordenamento163, ao mesmo
tempo em que passou a assegurar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares.
Esse fenômeno ficou conhecido pela doutrina como repersonalização, ou
despatrimonialização do direito privado, e implicou em um grande impacto,
especialmente no Direito Civil, cujo conjunto de normas regulamenta as relações
privadas, dando azo a noção de um direito civil constitucional. Desde então, o
Código Civil não mais se encontra no vértice das relações jurídicas, cujo lugar foi
ocupado pela Constituição, que passou a irradiar seus princípios fundamentais sobre
toda a ordem jurídica, garantindo a unidade de todo o ordenamento164.
161
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Org.) Direitos humanos: teoria geral dos direitos humanos (coleção doutrinas essenciais). Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 394. 162
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 137. 163
SARMENTO, Daniel. A normatividade da Constituição e a constitucionalização do Direito Privado. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, vol. 6, n° 23, ano 2003, p. 272. 164
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 1-7.
49
Aplicar a Constituição diretamente nas relações jurídicas significa reconhecer
que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas deixa de ter
um efeito vertical, ou seja, do Estado para o cidadão, para ter um efeito horizontal,
em que a norma constitucional passa a ter eficácia direta, inclusive nas relações
privadas. Neste sentido, a normativa constitucional deve ser considerada como regra
hermenêutica, de comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações
entre situações subjetivas, em atendimento aos novos valores165.
No Brasil, foi a paritr de 1988 que a Constituição passou a ser tida como centro
do sistema jurídico166, reconhecida como símbolo da horizontalização dos direitos
fundamentais, momento em que passou a prevalecer a supremacia da Constituição
e a valorização da força normativa dos princípios e dos valores que lhes são
subjacentes167. A força normativa da Constituição irradia suas disposições por todo o
sistema jurídico, independentemente da área do direito, em consonância com a
compreensao de que o direito é uno, regulando relações entre particulares ou entre
estes e o poder público. Assim, se o ordenamento jurídico é único, a solução das
controvérsias deve se dar à luz do ordenamento como um todo, a partir de seus
princípios fundamentais, então tidos como base168.
Em seu texto, mais especificamente no Título II, a Constituição Federal elenca
os direitos e garantias fundamentais, imediatamente após ter enunciado os
princípios e objetivos fundamentais da República Brasileira, entre os quais está
previsto o princípio da dignidade da pessoa humana, tido como principal direito
fundamental constitucionalmente garantido, estando no ápice do ordenamento169, ao
lado da cidania, o que representa um encontro entre o princípio do Estado
Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, sendo estes elementos básicos
para a realização da democracia170.
165
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 12. 166
BARROSO, Luís Roberto. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da supremacia do interesse público. In. SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. 2ª Tiragem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. XI do prefácio. 167
SARLET, Ingo Wolfgang. Neoconstitucionalismo e influência dos direitos fundamentais no direito privado: algumas notas sobre a evolução brasileira. Disponível em <http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Sarlet-civilistica.com-a.-1.n.1.2012.pdf>. Acesso em: 02/03/2016. 168
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 5. 169
TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tombo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 48. 170
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição Brasileira de 1988. In PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Org.) Direitos humanos: teoria
50
Reconhecido como fundamento da República, conforme consta no artigo 1º
da Constituição, e como núcleo básico e informador de todo o ordenamento segundo
a melhor doutrina, a dignidade da pessoa humana norteia o aplicador do direito, pois
ela representa uma conquista da razão ético-jurídica em reação à história formada
pelo racismo, discriminação, escravidão, entre outras atrocidades que marcaram a
experiência humana. A sua definição implica na compreensão de todas as violações
que foram praticadas contra o ser humano, para que se possa, contra elas, lutar171.
A dignidade surge com o indivíduo, por isso o ser humano é digno porque é.
Mas não é só. Ele também vive em sociedade, o que implica num acréscimo de
dignidade, quando seus pensamentos e comportamentos merecem o respeito dos
outros. Mas tal fato dá origem a novos problemas, ou seja, o exercício da dignidade
pode implicar na violação da dignidade de outrem, por isso o conceito de dignidade
compreende uma qualidade social como limite à possibilidade de garantia, em que a
dignidade só é garantia ilimitada quando não ferir a dignidade de outrem172.
A eficácia imediata das normas constitucionais nas relações individuais
permite aferir a constitucionalidade da norma infraconstitucional, segundo essa nova
perspectiva, quando dignidade da pessoa humana é imposta, inclusive nas relações
jurídicas patrimoniais, o que quer dizer que será inconstitucional um diploma legal
que privilegie uma visão patrimonialista em detrimento do ser humano173. Não há
como negar que as relações entre particulares são marcadas pelo exercício do
poder econômico e social, capaz de implicar numa situação de desequilíbrio de
poder, por isso, é necessário reconhecer a efetividade e aplicação imediata dos
direitos fundamentais, implementada por meio da atuação do Poder Judiciário, se
necessário for, de modo a solucionar controvérsias174.
Seguindo esse raciocínio, a pretensão dos códigos individualistas em unificar
o direito de propriedade, em consonância com a concepção de que a propriedade
deveria ser um direito unitário, começou a ser negada, como consequência das
geral dos direitos humanos (coleção doutrinas essenciais). Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p 316. 171
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 48. 172
Ibidem, p. 50. 173
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2. ed., 2003, p. 370. 174
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 14.
51
ocorrências na ordem econômica e social175. O direito se volta para o resgate dos
excluídos e essa marca incide no instituto da propriedade, que passa a ter uma
relevante função no mundo jurídico e econômico, pois, se antes ela representava a
medida da autonomia da vontade e o exercício da liberdade, por assegurar ao
proprietário o exercício de seus poderes da forma que lhe convier, agora ela passa a
ser compreendida em favor dos desprivilegiados e dos não proprietários, que
também merecem o seu reconhecimento, ganhando um novo significado a partir da
função social176.
A função social, ao ingressar no direito privado, representou um
redimensionamento do direito de propriedade, não se tratando de mero limite aos
poderes do proprietário177, ou ao exercício desse direito, de não exercer em prejuízo
de outrem, mas representa uma alteração na própria substância do direito de
propriedade, quando impôs ao proprietário o dever de exercê-la em benefício de
outrem. Ela representa uma fonte de imposição de comportamentos positivos, com
reflexos em vários institutos, como na propriedade, que deve ser exercida de modo a
realizar o interesse social, em oposição individualismo jurídico178. Apesar de ser um
dos temas mais complexos179, havendo várias discussões sobre sua performance, o
que importa para este trabalho é destacar a idéia de que a funcionalização do direito
de propriedade representou a ruptura do discurso da propriedade moderna.
A função social remete a uma análise concreta em que se insere cada
situação proprietária, na medida em que enfrenta a abstração do conceito deste
instituto, já que seu objetivo é garantir a melhor utilização social da propriedade,
revelando o marco que representa a ruptura do conceito de propriedade entre o
período liberal e o social, quando o instituto é readaptado às novas exigências
sociais180. O termo função se refere à maneira concreta de um instituto operar, e no
caso de ser social, o exercício dos poderes da propriedade não é protegido pura e
175
GOMES, Orlando. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 940. 176
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.141. 177
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 226. 178
GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 385. 179
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 145. 180
FACHIN, Luiz Edson. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 828.
52
simplesmente para a satisfação dos interesses do particular, mas de toda a
comunidade e para certo fim, em abandono à concepção romana181.
A função social possui um conteúdo vago, representando um principio
geral182, que somado à compreensão de que o direito de propriedade não é mais
individualístico ou autorreferente, serve de inspiração à atividade do executivo, do
legislador e do juiz, tendo como medida e orientação os valores eleitos por uma
comunidade, permitindo, inclusive, a oportuna adequação do seu conceito às
modificações sociais183, uma vez que só o proprietário pode executar uma certa
tarefa social, sem se perder de vista que no Brasil essa definição deve se dar a partir
de parâmetros constitucionais, nos termos das previsões dos artigos 1° e 5° da
Constituição Federal, em proteção às situações existenciais184.
Dentro desse raciocínio, o sujeito de direito também deixa de ser abstração,
porque é o real portador dos interesses em jogo, por isso, a partir desta concepção,
impõe-se a necessidade em saber a concreta posição do sujeito nas relações, de
modo a permitir a verificação da função social da propriedade. No caso da
propriedade funcionalizada, a satisfação dos interesses de toda a comunidade
impõe a percepção de que o direito do outro também está presente, por isso, a
figura do proprietário é importante, mas não menos importante também é o não-
proprietário, o que representa uma garantia a todos de acesso aos bens185, já que a
dignidade da pessoa humana e a pretensão em reduzir as desigualdades sociais
exigem a proteção dos excluídos, considerando que a propriedade, entendida de
forma isolada, transforma o seu senhor em soberano186. Por isso, o não-proprietário
passa a ser não apenas um sujeito passivo universal, titular de um dever de
abstenção, mas também um sujeito de direito, pronto para exigir do proprietário o
cumprimento da função social da propriedade e com acesso aos bens.
Cumpre lembrar que o acesso aos bens enfrenta resistência, em
conseqüência do problema da distribuição, porque uma grande parte da população
181
GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 96 – 100. 182
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 228. 183
GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 97. 184
TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 322 e 325. 185
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 56. 186
LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./ mar. 1999, p. 106.
53
não pode usufruir riquezas e bens produzidos187, além do fato de que o acesso à
propriedade depende do mecanismo do mercado, que é regido pela lei da oferta e
da procura. Por isso, quem não tem o que ofertar, não tem acesso, ou melhor, o
indivíduo tem acesso à propriedade desde que pague o preço proposto, tornando
claro que concepção tradicional ainda tem prevalecido nas relações jurídicas, em
que a propriedade tem a função primordial de excluir os demais do uso e gozo de
uma coisa188. Desse modo, incumbe ao legislador possibilitar o exercício do acesso
aos bens189, cuja técnica é reconstruir o direito civil, inaugurando instrumentos
jurídicos aptos a dar conta dessa função social promovente190.
Para que haja a funcionalização da propriedade é importante que se leve em
conta a qualidade, quantidade e destinação dos bens, cuja análise deve ser feita de
acordo a sua situação e função, o que quer dizer que o exercício dos poderes do
proprietário passa a ser variável, não prevalecendo a utilização do modelo abstrato
de usar, fruir e gozar, conforme definição tradicional do direito de propriedade191,
envolvendo uma análise circunstancial e concreta para a realização da função
social. A função social leva em conta a relação que existe entre os poderes de
destinação do proprietário, a conformação do bem e o plano de utilização da
propriedade, além do que a atual concepção de propriedade é mais ampla do que o
tradicional domínio sobre as coisas corpóreas contidas no Código Civil, a qual foi
chancelada pela ordem constitucional atual192. Isso quer dizer que para cada bem há
um regime particular, permitindo reconhecer que não há que se falar mais em
propriedade, mas em propriedades, simbolizando uma crise da noção unitária de
propriedade, em consequência da concretude buscada na operacionalização da
função social da propriedade, abandona-se a ideia de que a propriedade é uma
relação imediata do proprietário com o bem, decorrente do liberalismo do sujeito, de
modo que o Estado passa a ser reconhecido como um distribuidor de riquezas193.
187
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 86. 188
Ibidem, p. 99. 189
Ibidem, p. 100-101. 190
Ibidem, p. 116. 191
GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 96. 192
LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./ mar. 1999, p. 107. 193
TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 322 e 323.
54
Entre crise e ruptura ao direito de propriedade, a Constituição Federal trata a
propriedade em consonância com a função social, tornando lícito o interesse
individual, desde que realizado o interesse social194. A partir da Constituição de
1946, mais precisamente em seu artigo 147195, houve a primeira preocupação196 em
condicionar o uso da propriedade ao bem estar social, a par da garantia do direito de
propriedade197. Foi no bojo da Constituição de 1964 que a Lei 4.504/64 foi editada,
conhecida como Estatuto da Terra, tido como instrumento jurídico apto a garantir a
reforma agrária no Brasil, cuja operacionalização foi obstacularizada por fatores
externos. Já a Constituição de 1967, além do reconhecimento do direito de
propriedade, como já vinha ocorrendo nas constituições anteriores, a justiça social
também passou a ser uma garantia constitucional, com base no princípio da função
social da propriedade198, fato que se repetiu na Emenda Constitucional de 1969199.
Mas foi na Constituição de 1988 que a propriedade e a função social da
propriedade receberam um reconhecimento ainda maior, conforme consta nos
incisos XXII200 e XXIII201 do artigo 5°, além da previsão do artigo 170202, em que a
propriedade privada e a função social da propriedade foram elevadas a princípios da
ordem econômica. Não bastante isso, a Constituição também trata, de forma
separada, a função social da propriedade urbana, a partir do artigo 182203, e da rural,
194
LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./ mar. 1999, p.106. 195
“Artigo 147 O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.” 196
TEPEDINO, Gustavo. SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, n. 6, p. 101-119, jun. 2005, p. 102-103. 197
“Artigo 141 ...§ 16 É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interêsse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, com a exceção prevista no § 1º do art. 147. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.” 198
“Artigo 157 A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: ..... III - função social da propriedade;” 199
“Artigo 160 A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: .... III - função social da propriedade;” 200
“XXII - a propriedade atenderá a sua função social;” 201
“XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;” 202
“Artigo 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:... II - propriedade privada; III - função social da propriedade;” 203
“Artigo 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. ... § 2º A propriedade urbana
55
conforme o artigo 186204, além de prever a desapropriação do imóvel rural que não
esteja cumprindo sua função social, nos termos da previsão do artigo 184205.
Além dos artigos que prevêem expressamente a função social, existem
aqueles que, a partir da proteção à pessoa humana, evidenciam o intuito de
ressaltar o uso solidário da propriedade, cujo conteúdo promove a alteração do
conceito tradicional da propriedade, nos termos da previsão do artigo 1°, em que os
valores existenciais da pessoa humana são privilegiados. Some-se a essa previsão
aquela constante no artigo 3º, que estabelece os objetivos fundamentais da
República; nos artigos 5º, 6º e 7°, que prevêem os direitos fundamentais e sociais;
no artigo 170, que estabelece uma ordem econômica fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, visando a garantia da existência digna, nos
termos da justiça social; e no artigo 193, que impõe uma ordem social baseada no
trabalho, cujo objetivo é o bem-estar e a justiça social.
A função social é um elemento que compõe a definição do direito de
propriedade, não se tratando, pura e simplesmente, de uma técnica jurídica limitativa
do exercício dos poderes do proprietário, por isso, afirma-se que não há propriedade
sem função social206. Trata-se de um modelo aberto e plural, cuja compreensão
deve ocorrer a partir da dignidade da pessoa humana e da igualdade com terceiros
não proprietários, em consonância com a repersonalização do direito civil,
considerando que a Constituição define apenas uma moldura, com um conteúdo
mínimo207. Desse modo, o proprietário que não faz cumprir a função social não
merece a tutela atribuída ao proprietário que atente esse interesse.
2.3 A propriedade na era do acesso
cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” 204
“Artigo 186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” 205
“Artigo 184 Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.” 206
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 184. 207
TEPEDINO, Gustavo. SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, n. 6, p. 101-119, jun. 2005, p. 103.
56
O papel da propriedade sofreu mutações durante a existência humana, as
quais trouxeram grandes implicações para toda a sociedade, conforme estudado no
item anterior. O desenvolvimento da visão iluminista no século XVIII inspirou a
transição do regime da propriedade privada da Idade Média para a Idade Moderna, a
partir de quando passou a existir uma diferenciação na concepção entre os
interesses dos indivíduos e da coletividade humana, ao mesmo tempo em que
houve o desenvolvimento do mercado capitalista208.
Assentada como princípio organizador da sociedade, o exercício da
propriedade privada era a prova da existência e da realização humana durante a
Idade Moderna, tornando-se um sinal visível do triunfo pessoal de cada homem no
mundo, em consonância com as ideias desenvolvidas por John Locke, filósofo
político iluminista do século XVII, cuja teoria se encaixava perfeitamente à economia
de mercado no final da Idade Média209. A propriedade privada se tornou um
instrumento garantidor da felicidade humana, porém o seu exercício implicou numa
total exclusão do direito de qualquer outro indivíduo, quando se consolidou um
conceito do que era “meu e seu”210. A título de exemplo, cite-se o automóvel. No
período em que a propriedade está em ascensão, ele representa a prova do sucesso
pessoal, ao permitir o ingresso do indivíduo no mundo adulto, além de ser uma
declaração de que alguém existe e que deve ser levado a sério, tornando-se uma
extensão do seu proprietário e como gostaria que os outros o percebessem.
A personalidade do indivíduo está sempre presente no objeto possuído, por
isso a propriedade se torna a extensão da personalidade, significando mais do que
uma forma de satisfazer as necessidades, por representar uma extensão da
liberdade pessoal, uma espécie de autonomia pessoal211, considerando que os
filósofos iluministas e juristas do século XVIII e XIX diziam que a liberdade era
definida em termos negativos, como um direito de excluir os outros212. Na Idade
Moderna, a economia capitalista, fundada na ideia de troca de bens no mercado,
208
RIFKIN, Jeremy. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 118. 209
Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 78. 210
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 66. 211
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 106. 212
Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 130.
57
ganhou força, no mesmo instante em que propriedade e mercado passaram a ter
uma íntima relação, já que propriedade significava o direito exclusivo de possuir,
usar e dispor no mercado. Consequentemente, se a propriedade é extensão da
personalidade, o capitalismo leva cada aspecto da vida humana para a área
econômica, devendo ser negociado como bem213. Enquanto isso, ao Estado cabia
apenas a função primária de proteger o exercício dos direitos de propriedade privada
de seus cidadãos, de modo a permitir o livre acúmulo de bens e o comércio214.
Com o passar dos anos, o termo mercado passou a significar um processo
abstrato de vender coisas, cujo processo vem se intensificando de forma fervorosa e
gradativa, fazendo com que o mundo ficasse atento ao processo de vender e
comprar no mercado, cujos efeitos atingiram todo o mundo, não sendo possível
imaginar outra maneira de estruturar os negócios humanos215. Mais tarde, ocorreu o
desenvolvimento do capitalismo industrial e os bens, antes fabricados em casa e
comercializados em pequenos mercados, mediante trocas, passaram a ser
produzidos em fábricas de forma gradual e em uma escala cada vez maior. Para que
isso ocorresse, foi necessário que pessoas, que trabalhavam nas fábricas, usassem
seus salários para comparar os itens fabricados, momento em que suas casas foram
transformadas, de um local de produção para um local de consumo, cujo incentivo,
fundado nas forças econômicas, era a máxima de que propriedade determinava o
status do cidadão, impulsionando toda sociedade para um mar de propriedade
privada, ao mesmo tempo em que a preocupação, cada vez maior, era saber como
produzir com maior rapidez.
Durante a modernidade, que perdurou aproximadamente entre o século XVIII
até o final da Segunda Guerra Mundial, a propriedade privada foi a base para a
estrutura das relações humanas e para a ascensão do racionalismo, do positivismo
científico, do materialismo, da ideologia e do progresso, no mesmo instante em que
a ordem social era impulsionada pelo o desenvolvimento capitalista.
O mercado definia as relações humanas, no entanto, as bases da vida
moderna começaram a se desintegrar, porque os trabalhadores chegaram à
conclusão de que não estavam exercendo os ganhos materiais prometidos pelos
213
RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 14. 214
Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 119. 215
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 3.
58
pensadores iluministas, dando azo ao surgimento de ideias do Estado do bem estar
social. Desse modo, com o intuito de conciliar a classe burguesa, a classe
trabalhadora e os pobres, a propriedade privada deveria ser redistribuída na forma
de benefícios sociais do governo216, momento em que se inaugurou um Estado
Social, conforme já estudo anteriormente. Na Europa, a concepção social passou a
ser repensada após a Segunda Guerra Mundial, fato que implicou em uma releitura
do direito de propriedade, quando as políticas dos governos estimulavam a
preferência por apartamentos ao invés de casas, de locação ao invés de
propriedade, ao mesmo tempo em que as habitações públicas passaram a ser muito
frequentes, já que o intuito era de harmonizar o direito de propriedade com os
direitos humanos217.
Não bastasse isso, as estruturas da base moderna também foram abaladas
pelas relações econômicas vigentes à época, as quais foram responsáveis por
impulsionar o homem a repensar os vínculos e os limites que definiriam as relações
humanas no século XXI, trazendo implicações ao fundamento que deu origem às
relações de propriedade privada. Dentre os fatores que impulsionaram essas
inovações , está o surgimento da nova tecnologia de comunicação global, que impôs
uma reavaliação as questões de espaço e de tempo218, já que o mercado passou a
se abarrotar de bens, em razão da queda na demanda de consumo, pois já não
havia nada mais a comprar219, além da grande velocidade em que as inovações
tecnológicas estavam ocorrendo, somada ao intenso ritmo das atividades
econômicas, implicando, inclusive, no surgiu de um novo tipo de ser humano.
Esses fatores, que impulsionaram as mudanças nas bases modernas,
também contribuíram para o surgimento da nova tecnologia de racionalização do
trabalho, economizadora de mão-de-obra, que, inclusive, provocou uma grande
onda de desemprego, sem perder de vista que a renda do assalariado era pequena,
o que também contribuiu para o enfraquecimento da demanda do consumo e,
portanto, do próprio capitalismo220.
216
RIFKIN, Jeremy. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 133. 217
Ibidem, p. 137. 218
Ibidem, p. 143. 219
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 86. 220
Idem. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. Tradução: Ruth Gabriela Bahr. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 24.
59
Com o intuito de manter ativa as atividades econômicas, já no século XX,
também conhecido como período do pós-modernismo, surge a preocupação com
uma técnica suficiente para a captação e manutenção da atenção do consumidor,
como um cliente fiel e a longo prazo.221 O capitalismo passou por um longo processo
de mudança, prestes a superar o capitalismo industrial, abrindo caminho para o
capitalismo cultural, quando o acesso se torna o bem mais relevante que a
propriedade222.
Nessa época surge uma nova matriz de comunicação, energia e transporte,
chamada de Internet das Coisas, a qual é baseada em uma nova infraestrutura
pública, em que conecta tudo e todos numa rede global, movida por um novo
paradigma econômico, diferente daquele que se instalou no período moderno223.
Trata-se de uma arquitetura aberta, distributiva e colaborativa, capaz de gerar uma
economia de escala, com alta eficiência e produtividade, a um custo marginal zero,
possibilitando uma produção e distribuição de bens e serviços, que, ao mesmo
tempo, está gerando uma nova visão da natureza humana.
A era do acesso do novo capitalismo eleva o tempo como elemento mais
importante que o espaço e isso traz grandes implicações aos fundamentos que
compõe o instituto da propriedade. Os mercados passaram a ceder lugar às redes,
consequentemente, a noção de propriedade passa a ser substituída pelo acesso224.
Isso está acontecendo porque empresas e consumidores estão abandonando a vida
econômica moderna, fundada na troca de bens no mercado, fazendo com que a
propriedade, apesar de não desaparecer, deixe de ser trocada, dando lugar ao
acesso, que se consolidará por meio de redes, em que os clientes e servidores, ao
invés dos compradores e vendedores, passem a ser os donos da vez.
Os mercados dão lugar às redes a partir do instante em que ficar à frente da
concorrência significa competir consigo mesmo, gerando a impressão de que o
conceito de propriedade está fora do lugar, pois não convém assumir a propriedade
de uma tecnologia ou de um bem quando ele está desatualizado antes mesmo de
221
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 68. 222
Ibidem, p. 117. 223
RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 84. 224
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 4.
60
ser pago225. Sob o fundamento de que a economia de mercado é lenta de mais226,
na economia de rede, o acesso por certo período é uma alternativa mais
interessante do que a compra e a propriedade.
As redes operam com princípios muito diferentes, já que cada indivíduo
renuncia parte de sua autonomia em troca de benefícios, como compartilhamento de
recursos, riscos, entre outros, por isso cada participante depende do outro para sua
expansão, como forma de aperfeiçoar os benefícios, onde vigora a reciprocidade a
confiança, ao invés de tirar vantagens, deixando claro que a vulnerabilidade é uma
característica e não uma fraqueza227. Trata-se de uma característica muito peculiar,
que surgiu para suprir as deficiências do capitalismo tradicional, como o aumento
dos custos, o reduzido ciclo de vida dos produtos, a preferência dos consumidores, a
concorrência e o lucro reduzido, além do fato de que, num regime a base de
mercado, a negociação comercial é um evento antagônico, em que ambas as partes
pretendem ganhar à custa da outra.
A propriedade é uma instituição muito lenta e cara para se amoldar à
velocidade a que a cultura atual é vivenciada. Ela tem suporte na ideia de que
possuir um ativo é valioso, porém a velocidade com que as inovações tecnológicas
vem ocorrendo, somada ao ritmo intenso em que as atividades econômicas tem se
desenvolvido, tornam a propriedade um problema, já que as inovações e as
atualizações contínuas impõe aos produtos um ciclo de vida cada vez mais breve,
fazendo com que tudo se torne imediatamente desatualizado228.
Essa mudança trouxe grandes alterações às concepções de diversos bens
que integram a vida econômica, por isso, nos dias de hoje, as empresas estão, cada
vez mais, se adaptando à transição da propriedade para o acesso, de forma a
contribuir com a eliminação dos bens materiais, como no caso do capital físico, por
exemplo. Trata-se de um bem que antes era tido como um dos elementos mais
importantes de uma vida industrial e que hoje começa a ser reconhecido como um
item marginal, ou seja, como mera despesa necessária operacional, ao invés de um
225
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 18. 226
Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 167. 227
Ibidem, p. 170. 228
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5.
61
ativo, já que, ao invés de ser um bem próprio, passa a ser emprestado. Nesta
mesma concepção, as empresas também estão vendendo seus imóveis, reduzindo
seus estoques, alugando equipamento, terceirizando atividades, fazendo com que
quase tudo o que é necessário para suas atividades seja emprestado. Tudo isso
porque o sucesso comercial, na economia do acesso, depende menos de trocas
individuais e mais do estabelecimento de relações comerciais a longo prazo, por
meio de redes.
Na era do acesso é possível perceber que os ativos físicos das empresas
também estão encolhendo. Os escritórios, espaço privados estão cedendo lugar ao
espaço social, onde existem equipes que trabalham juntas, compartilhando
informações, conhecimento e experiências, ao contrário da posse do espaço privado
e da capacidade de excluir os outros, que vigorou na era industrial. Outro exemplo
são os estoques, constituídos por depósitos gigantes para estocar materiais, agora
estão sendo substituídos por simples pedidos, os quais são feitos diretamente para o
fabricante, permitindo a economia na manutenção dos estoques de linhas de
produtos229. A fábrica da Toyota, montadora de carros japonesa, já adotou a
produção sem estoque, também conhecida como produção enxuta, em que os
corredores da fábrica não estão com estoques de várias semanas de produção,
como uma medida necessária para a contensão de custos, permitindo que a
produção ocorra de acordo com o consumo230.
O mesmo está acontecendo com as ferramentas, máquinas, equipamentos e
com a própria fábrica, bens que oferecem a infra-estrutura e a capacidade para a
produção, em que, numa economia de acesso, abandona-se a ideia de que ter
posse e controlar o capital são atitudes essenciais para atender a necessidade do
mercado, já que a propriedade é um peso que afeta a capacidade da empresa de se
mover com agilidade nos negócios. Por isso, o capital físico está sendo acessado e
não possuído, mediante o pagamento de uma mensalidade, por meio de contratos
que estabelecem um vínculo de médio a longo prazo, como leasing, por exemplo, ao
mesmo tempo em que o arrendador é responsável pela instalação, conservação e
229
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. Tradução: Ruth Gabriela Bahr. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 106. 230
Ibidem, p. 102-103.
62
manutenção do bem, ficando as empresas dispensadas de comprar equipamentos
caros e de montar extensas estruturas231.
Está ocorrendo a terceirização da propriedade, praticada pelas empresas que
estão alienando os ativos não relacionados as suas missões centrais, ou seja, estão
substituindo a propriedade interna e as operações pelos acesso aos recursos e
processos necessários, os quais são oferecidos por fornecedores externos,
permitindo que as empresas se concentrem mais no que fazer para ganhar dinheiro,
dando aos outros a oportunidade de exercer funções de suporte, como faz a
empresa Nike, que vende conceitos232. Para garantir a redução dos custos
imobiliários, introduziu-se a ideia do “escritório virtual” e da “hotelaria”, em que os
funcionários são equipados com escritórios móveis, com laptop, telefone celular e
são enviados para casa, sendo que, quando precisão de um escritório para reunião
com os clientes, contatam redes de hotelarias e reservam uma sala233.
O comércio eletrônico, composto por lojas virtuais, que tem pouco ou nenhum
estoque físico, também está ganhando cada vez mais espaço na nova era, ao
mesmo tempo em que vem causando uma ameaça às lojas de varejo. Os imóveis
comerciais, regulados pelo direito de propriedade, que antes foram a peça chave
para um comércio saudável, já que a localização garantia o sucesso comercial,
passaram a ser um obstáculo na busca do lucro.
Na economia de rede, as transações de compra e venda estão dando lugar às
alianças estratégicas, em que há um conjunto de recursos e acordos para a divisão
de ganhos, abrindo o caminho para a criação de grandes redes de fornecedores e
usuários. Para que isso aconteça, um grande número de empresas empresta
gratuitamente seus produtos na esperança de manter um relacionamento de serviço
a longo prazo com seus clientes, como o exemplo do telefone celular, em que o
aparelho é cedido ao consumidor a custos módicos ou zero, em troca de um
contrato, de médio a longo prazo, de prestação de serviço de telefonia e internet,
cujas mensalidades são de responsabilidade do consumidor. O relacionamento entre
o cliente e o fornecedor é contínuo e ininterrupto durante a vigência do contrato, já
que o tempo e a atenção se tornaram a posse mais valiosa, ao contrário da Era
231
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 34. 232
Ibidem, p. 39. 233
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. Tradução: Ruth Gabriela Bahr. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 163.
63
Industrial, cujo propósito era vender bens e prestar serviços gratuitos, como forma
de incentivar a compra. Os consumidores também estão mudando de propriedade
para o acesso, principalmente em se tratando de bens mais caros, como automóveis
e casas. O compartilhamento de veículos é algo que já se popularizou ao redor do
mundo, em que pessoas pagam uma pequena taxa de adesão para ter acesso aos
automóveis quando precisam234.
Muitas pessoas preferem viver em certos locais, devido às conveniências e
aos serviços que são oferecidos, e tudo isso a um custo reduzido, como as moradias
em condomínios, por exemplo, em que a propriedade é eliminada de forma sutil,
quando os residentes têm menos direitos sobre sua própria propriedade, por haver
restrições ao uso, ao tipo de móveis que compõe o lar, aos horários, aos limites de
convidados, em troca de acesso à área de lazer, jogos, segurança, academia de
ginástica, zelador e a uma arquitetura moderna, capaz de oferecer um estilo de vida.
Ou ainda, como as casas de férias, que ao invés de serem compradas, são apenas
acessadas, por meio do contrato de locação de temporada, afinal de contas, quanto
mais posse, mais escravos da própria posse, já que ela traz consigo a noção de
obrigação e compromisso235.
A era do acesso é regida por novos pressupostos de negócio bens diferentes
do mercado tradicional, em que tudo é emprestado e acessado por um período de
tempo, mediante um controle de redes de fornecedores. Isso certamente mudará a
noção de como o poder econômico será exercido nos próximos anos e na forma de
como se governará, uma vez que todo o ordenamento jurídico e político são
estruturados nas relações de propriedade e de mercado. A própria percepção da
natureza humana poderá se fundar em outra visão, já que houve um tempo em que
a propriedade foi a medida do próprio ser, conforme analisado anteriormente.
A ideia de organização estável, em que há uma estrutura fixa com regras
preestabelecidas, começa a se desintegrar numa economia baseada em redes, já
que esta faz uso da revolução digital das comunicações para se conectar ao mundo,
e num comércio eletrônico os empreendimentos precisam ser mais mutáveis. O novo
comércio ocorre no ciberespaço, um ambiente eletrônico infinitamente amplo e
distante do mercado delimitado geograficamente, também conhecido como rede
234
RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 235
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 105.
64
eletrônica global, ou simplesmente Internet, em que todos os computadores estão
conectados236. Ao contrário disso, na economia de mercado, cujas operações são
lineares, isoladas e contínuas, vendedores e compradores se unem brevemente
para promover a troca de bens e depois já se separam, enquanto que na economia
do acesso as atividades comerciais permitem uma atividade contínua, cuja medida
valoriza o tempo da produtividade e o custo comercial237.
Essa mudança na estrutura econômica decorre de uma transformação que
está se processando na natureza do sistema capitalista, que, de produção industrial,
passa à produção cultural, onde há um hipercapitalismo que comercializa o acesso a
experiências culturais, como viagens, turismo, parques temáticos, centros de
entretenimento, moda, bem estar, culinária, música, jogos profissionais, filmes,
mundos virtuais, entre outros. A partir do início do século XX, a produção cultural
vem se tornando cada vez mais importante na atividade econômica, em que a
atividade e o bem estar humano é trazida para o ambiente comercial, ao mesmo
tempo em que é garantido o acesso a vários recursos e experiências culturais,
alimentando a existência humana e tornando o homem um ser importante, ao
contrário da produção industrial, cujo cerne da atividade é voltado para a produção
de bens, tornando a propriedade essencial à sobrevivência física e ao sucesso238.
A evolução do capitalismo cultural vem acompanhada por um novo tipo de ser
humano, que está entre os jovens da nova geração, capaz de se adaptar às
mudanças facilmente, integrado a um mundo mais teatral do que ideológico, cujos
olhos estão mais voltadas para o esporte e o lazer do que para o trabalho. Para essa
nova geração, a propriedade é importante, mas estar conectado é ainda mais, já que
é desta maneira que os jovens se veem como agentes autônomos, ao mesmo tempo
em que a liberdade pessoal é exercida por intermédio da garantia de ser incluído em
redes de relações múltiplas e não no exercício da posse e na capacidade de excluir
o outro, também conhecida como a geração “ponto-com”, apesar de não haver um
236
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 14. 237
Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 167. 238
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 7.
65
desenvolvimento uniforme entre os jovens, já que ainda há uma grande maioria que
é vítima no mundo da escassez, representando uma defasagem de gerações239.
As profundas mudanças que o sistema capitalista vem passando são
responsáveis por desmantelar as tradições institucionais e reinventar novas formas
institucionais, por meio de redes, em que a propriedade continua a existir, porém
menos sujeita à troca, pois aproveitar o acesso em menos tempo é mais importante
do que comprar e ter a posse a longo prazo240. No capitalismo cultural, reconhecido
como uma nova era do capitalismo, o acesso se torna mais importante que a
propriedade, considerando que esta é importante no mundo em que a vida
econômica se funda no processamento, na manufatura e na distribuição de bens
materiais241.
Na modernidade, o conceito de propriedade significou a busca pela
autonomia e mobilidade, porém imobilizou o exercício da liberdade, por ter
representado o direito de excluir os outros242. Já na nova era, a busca pela auto
realização e a transformação pessoal são uma constante, ao mesmo tempo em que
a propriedade deve estar a serviço do indivíduo, de modo a permiti-lo viver uma vida
humana plena, em consonância com a inclusão e o acesso243. A liberdade não deve
ser pensada em seu sentido negativo, de excluir o outro, mas como medida de
acesso ao outro, por intermédio de redes e não pela posse de propriedades no
mercado, representando uma otimização da própria vida244. Por isso a propriedade
deve permanecer com o produtor e ser utilizada por uma ou mais partes, já que a
liberdade consiste em relacionamentos compartilhados e não isolados245.
Como se viu acima, a propriedade foi um dos pilares que sustentou a
existência e a realização humana durante a Idade Moderna, quando ela simbolizou
uma extensão da personalidade, ao permitir o pleno exercício da autonomia e
liberdade pessoal, representando a garantia da felicidade humana, apesar dessa
239
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 10-11. 240
Ibidem, p. 47. 241
Ibidem, p. 111. 242
RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 261. 243
idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 197. 244
Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 245
Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 175.
66
concepção ter se fundado num individualismo profundo, garantindo que o seu
exercício implicasse numa total exclusão do outro indivíduo, cuja concepção se
encaixava perfeitamente às ideias de mercado daquele mesmo período, permitindo
o reconhecimento de uma íntima relação entre propriedade e mercado.
Porém, no período contemporâneo, com a inauguração do Estado Social, em
razão da preocupação sobre a efetividade dos direitos individuais e,
consequentemente, o fim da exclusão social, os fundamentos que deram origem às
relações de propriedade privada tiveram que ser repensados, no mesmo instante em
que as bases do capitalismo começaram a passar por um processo de mudança. A
propriedade, que antes era tida como um instrumento de realização humana e de
exclusão, passou a ser reconhecida como um instrumento a serviço do pleno
exercício da liberdade e sem a exclusão do outro, cuja utilização deve se dar de
forma plena e compartilhada, de modo a conciliar os interesses das diferentes
classes.
Nesse mesmo instante, o capitalismo também passou por uma fase de
grande mudança, em que o mercado de troca de bens deu lugar às redes, cuja
técnica visa a captação e manutenção da atenção do consumidor, como medida
necessária a garantir um cliente fiel e a longo prazo, fazendo com que o acesso se
tornasse um bem mais relevante do que a propriedade. Diante dessa evolução,
constata-se que a técnica inaugurada pelo novo capitalismo pode ser utilizada como
instrumento a serviço das políticas públicas de efetividade do direito à moradia, que,
ao invés da propriedade, utilizaria do acesso.
67
3. DIREITO (DE ACESSO) À MORADIA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Apesar de ser um instituto que não possui inspiração jurídica, as Políticas
Públicas ganharam relevância para o direito a partir do momento em que passaram
a servir de instrumento capaz de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais
sociais, como o direito à moradia, em consonância com a previsão constitucional.
Compreendida de acordo com o dever prestacional imposto ao Estado e em
consonância com o direito ao desenvolvimento, as Políticas Públicas são fortemente
influenciadas pela questão econômica, principalmente pelo fato de que os recursos
públicos são finitos. Em razão deste fator, a atuação do Poder Público deve se dar
de forma planejada, sem que isso represente uma violação à lei, ou que a
efetividade do direito fundamental social à moradia esteja condicionada ao princípio
da reserva do possível.
Após uma breve exposição conceitual dos institutos referidos acima, o
presente capítulo se propõe a expor a insustentabilidade dos programas promovidos
pelo Poder Público, que condiciona a efetividade do direito fundamental social à
moradia ao exercício da propriedade. Apesar do argumento sobre a limitação dos
recursos financeiros, a moradia deve ser assegurada de forma ampla e não
funcionar como instrumento de especulação imobiliária. Assim, o objetivo é propor
uma discussão sobre a busca da efetividade do direito fundamental social à moradia
por intermédio do acesso, de modo que um número maior de pessoas tenha acesso
a esse direito, em consonância com o método utilizado nas relações do mercado
contemporâneas, conforme estudado no item anterior.
3.1. Políticas públicas: relevância jurídica das ações de governo
Política pública é um tema complexo, cujo conceito é constituído no universo
da ciência política, não possuindo inspiração jurídica, já que é fundamentado em um
tema de caráter dinâmico e funcional, e não na norma e no ordenamento, não
obstante, nos últimos anos, com a inauguração do Estado Social, política pública
passou a ser uma categoria de interesse para o direito246.
246
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98,1997, p. 89.
68
O tema ganhou relevância jurídica a partir do momento em que a democracia
passou a se vincular à realização dos direitos fundamentais, em consonância com o
paradigma estabelecido pelo Estado Democrático de Direito, onde os valores e
princípios fundamentais transitam para a esfera política247, considerando que o
Estado tomou para si a tarefa de tutela e realização dos direitos fundamentais e do
pleno desenvolvimento da pessoa248.
Política pública é a coordenação e a escolha dos meios à disposição do
Estado, visando a harmonia das atividades estatais e privadas, cuja finalidade é a
realização dos objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados249. O
conceito que aqui se utiliza não diz respeito à política partidária, mas em um sentido
mais amplo, como uma atividade de conhecimento e organização do poder250. É um
conceito abrangente, que compreende as atividades desenvolvidas por parte do
Estado, como a prestação de serviços, o desenvolvimento de atividades executivas,
a atuação normativa, reguladora e de fomento em diversas áreas, no intuito de
atingir os fins definidos como valiosos pela sociedade. O estudo sobre política
pública apresenta um mundo cheio de particularidades, o que inviabiliza uma análise
teórica única e aprofundada de todas as atividades que a compõe251.
Nesse sentido, alguns autores buscam um conceito jurídico desse instituto,
mas as tentativas dessa proposição são infrutíferas, já que se trata de uma noção
interdisciplinar, apesar do fato de a conceituação não ser um problema central e sim
o estabelecimento de uma metodologia de análise jurídica, de modo a permitir um
diálogo multidisciplinar, onde está envolvida a Ciência Política, a Ciência da
Administração Pública e a Economia252.
A análise jurídica das políticas públicas exige uma compreensão da realidade
do Estado, que é constituído por instituições jurídicas, criadas a partir do Direito,
conforme é possível concluir a partir do estudo sobre o princípio da legalidade.
247
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2009, p. 38. 248
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002, p. 54. 249
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p.91. 250
Ibidem, p. 242. 251
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 112. 252
BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 226.
69
Durante o período que vigorou o Estado Liberal, surgiu a doutrina jurídica do Estado
(tecnicização do direito público), complementar à doutrina sociológica (que
compreende o Estado como forma de organização social), decorrente da concepção
do Estado de direito, por se tratar de um órgão de produção jurídica253. No Estado
Liberal houve uma limitação do poder, como medida necessária à garantia do
exercício das liberdades individuais, ao mesmo tempo em que as instituições do
poder e a repartição tradicional de atribuições entre o legislativo e o executivo se
constituíram a partir da autoridade do Estado, e não no sentido prestacional e de
gestão, como ocorre nos dias de hoje.
Mais tarde, com a evolução do Estado Social, a compreensão do Estado
como uma forma mais complexa de organização social volta a ter prestígio e o
direito passa a ser apenas um elemento constitutivo254. O que ocorreu, na verdade,
foi que o paradigma que vigorou durante o período liberal do século XIX, baseado na
norma geral e abstrata, típico de um Estado moderno, deu lugar a uma sucessão de
modelos de Estado, caracterizado por diferentes graus e modos de intervenção
sobre as esferas privadas, por intermédio de técnicas que vão sendo criadas e
modificadas ao longo do tempo, permitindo a inauguração do Estado Social de
direito, formado por diretrizes gerais em favor das ações individuais e das
organizações, bem como para o próprio Estado, não se restringindo a mera
intervenção do Estado na atividade privada255.
No Estado Social houve o reconhecimento dos direitos sociais, também
conhecidos por parte da doutrina como direitos-meio, conforme já abordado
anteriormente, cuja principal função foi garantir às pessoas condições de exercício
dos direitos individuais, ao mesmo tempo em que a dignidade da pessoa humana
ganhou conteúdo jurídico, na medida em que novos direitos (individuais e sociais)
foram sendo agregados aos direitos fundamentais256, sem que se perdesse de vista
que os pilares dessa visão jurídica foram as constituições257, quando se atribuiu a
253
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 56 e 22. 254
Ibidem, p. 57. 255
BUCCI, Maria Paula Dallari. Política Pública e direito administrativo. In: Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 247. 256
Idem. Buscando um conceito de Políticas Públicas para a Concretização dos Direitos Humanos. In: Direitos Humanos e Políticas Públicas. BUCCI, Maria Paula Dallari. et. al. São Paulo: Polis, 2001, p. 8. 257
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 580-581.
70
elas uma papel muito mais destacado no ordenamento jurídico, como a Constituição
do México, de 1917, e a de Weimar, de 1919, que instituíram direitos de caráter
prestacional, os quais impõe atuações positivas do Poder Público e não
abstenções258.
Além disso, com o fim da Segunda Guerra Mundial, houve uma profunda
alteração qualitativa das funções do Estado, que passou a irradiar sobre o conteúdo
social da noção de cidadania, impondo um modo de agir dos governos, o qual se
daria por meio de políticas públicas, em defesa de direitos dos grupos sociais no
âmbito da saúde, seguridade social, habitação, entre outros259. Diante de inúmeras
promessas decorrentes da evolução dos modelos de Estado, surgiu a necessidade
de buscar a concretização das premissas teóricas apresentadas pelo
constitucionalismo inaugurado no segundo pós-guerra, discutindo a eficácia jurídica
dos princípios constitucionais, as possibilidades de controle das omissões
inconstitucionais, além de outros estudos que almejavam a compreensão e
interpretação da legislação ordinária a partir da Constituição. Esse movimento a
doutrina denominou de neoconstitucionalismo, ou constitucionalismo
contemporâneo260.
Apesar de ser um tema multidisciplinar, a análise sobre políticas públicas a
partir do direito pretende impor uma compreensão jurídica das estruturas e dos
processos de tomadas de decisões por parte do governo, oferecendo,
consequentemente, formas próprias que possam garantir o seu controle, uma
compreensão teórica do papel do direito na estruturação e dinâmica das políticas
públicas e modelos jurídicos para a construção de novos arranjos261, considerando
que a atuação do Poder Público ganhou um grande destaque no cenário jurídico.
Além disso, a noção de política pública oferece um ganho para a reflexão jurídica, ao
permitir a busca de uma linha de racionalidade que está num plano ideal típico, uma
vez que a aplicação da norma deixa de se fazer com base apenas no seu próprio
texto ou em decisões dos tribunais, fato que permite um trabalho mais prospectivo
258
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 62-63. 259
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p. 90. 260
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 3. 261
BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca.(Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 247-248.
71
do Direito, de modo que a atenção também se volte para a formação das normas
jurídicas262, sem que se perca de vista que o modelo de políticas públicas não exclui
o da legalidade263. As políticas públicas devem ser analisadas como arranjos
conformados pelo direito, embora não redutíveis a ele, tratando-se equívoco
compreender os direitos sociais, de base constitucional, como sinônimo às políticas
públicas destinadas a implementá-los264.
A partir deste estudo, não se pode perder de vista que o constitucionalismo
opera-se a partir de algumas características, entre as quais, destaca-se a
normatividade da Constituição, cujo processo levou essa a norma fundamental de
um documento político, composto por baixa imperatividade, a uma norma jurídica
suprema, dotada de a imperatividade; e a superioridade e centralidade da
Constituição no ordenamento jurídico, em que os demais ramos do direito devem ser
interpretados a partir dela265, inclusive o agir administrativo, que sofre limites
decorrentes de regras e princípios constitucionais266.
Some-se a essas características o fato de o texto constitucional prever
expressamente a incorporação explícita de valores, como o respeito à dignidade da
pessoa humana e aos direitos fundamentais, além de também estabelecer opções
políticas, como a preocupação em reduzir as desigualdades sociais ou prestação de
serviços de educação267. Os direitos fundamentais têm status diferenciado no âmbito
do sistema constitucional, tanto que se fala em centralidade dos direitos
fundamentais, em consequência da centralidade do homem e da sua dignidade,
permitindo a conclusão de que o Estado e o Direito existem para proteger e
promover os direitos fundamentais268. Por estarem expressamente previstas no texto
262
BUCCI, Maria Paula Dallari. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca.(Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 247-250. 263
Idem. Política Pública e direito administrativo. In: Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 255. 264
Idem. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In: Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca.(Orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 247-254. 265
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. N. 240 abr./jun. p. 1-42, 2005, p.12/13. 266
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, p. 70. 267
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 4. 268
Idem. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e
72
constitucional, estas normas gozam do status de norma jurídica dotada de
superioridade hierárquica, inclusive sobre as iniciativas do Poder Público, de forma a
neutralizar qualquer tipo de discricionariedade.
Constatou-se que Política Pública é um instrumento capaz de assegurar a
eficácia das normas constitucionais, justificando, inclusive, um estudo sobre o
controle das políticas públicas, cuja compreensão mais aprofundada não se dará
neste estudo em razão da delimitação do seu objeto. A atividade administrativa sofre
uma influência dos direitos fundamentais e do princípio democrático, reconhecidos
como pilares constitutivos e legitimadores da ordem constitucional269.
No Brasil, foi a partir da Constituição de 1988 que os profissionais do direito
passaram a se preocupar com a efetividade das promessas constitucionais e por
isso buscam um método para a sua realização de modo compatível com os deveres,
demandas sociais e limitações econômicas, permitindo a compreensão de que
políticas públicas encerram essa fórmula270, já que elas são instrumentos de ação
dos governos. Os direitos sociais são concretizados a partir das prestações positivas
do Estado, as quais, segundo a doutrina, se dão por intermédio de políticas
públicas271, em que as ações públicas e privadas são coordenadas para a realização
dos direitos dos cidadãos, considerando que os direitos sociais podem ser
realizados se forem impostas obrigações positivas272. É natural que as atividades do
legislativo e do judiciário se concentrem na aplicação da Constituição, porém o
legislador depende de atos de execução, enquanto que o judiciário produz efeitos,
na maioria das vezes, em casos pontuais. Dessa maneira, compete à Administração
Pública efetivar os comandos contidos na ordem jurídica, por intermédio de ações e
programas.
A consagração das cláusulas pétreas por parte da Constituição Federal, nos
termos da previsão constante no seu artigo 60, § 4°, inciso IV, impõe ao Poder
Público um núcleo mínimo de decisões que devem ser observadas, inclusive pelo
“reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 115. 269
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, p. 71. 270
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 116-117. 271
Idem. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 11. 272
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.21.
73
fato de que a promoção dos direitos fundamentais é uma condição indispensável ao
funcionamento do processo de deliberação democrática273. Não se pode deixar de
lado que o funcionamento do sistema de participação democrática, onde são
definidos valores e opções políticas, depende necessariamente do respeito aos
direitos fundamentais, indispensável ao exercício da cidadania274, cuja compreensão
mais aprofundada não se dará neste trabalho por fugir do seu objeto proposto.
O poder público está subordinado à Constituição275, como decorrência do
Estado de Direito, o que impõe pensar que o exercício do poder político encontra
limites na norma jurídica, sem que isso represente uma invasão sobre o espaço
próprio da deliberação majoritária, inclusive pelo fato de se impor o respeito à
promoção dos direitos fundamentais276. Todos os indivíduos são livres e iguais,
portanto, o desrespeito aos direitos fundamentais impede que os indivíduos tenham
condições de exercer sua liberdade de participação no processo político democrático
de forma consciente e, de um modo geral, ter acesso às condições básicas de
existência humana277, ante a centralidade do homem e seus direitos no contexto do
Estado e do Direito.
Não há que se deixar de lado que toda ação estatal envolve gasto de dinheiro
público e os recursos são limitados, o que impõe uma conduta por parte da
Administração Pública de escolher, por intermédio de uma deliberação político-
majoritária, onde o dinheiro será investido, desde que obedecida a prioridade
imposta pela Constituição, e por isso, nesse caso, a norma constitucional deve
vincular o ato da deliberação política278, em consonância com o Estado de Direito,
em que o exercício do poder político está subordinado às regras jurídicas279.
A própria Constituição traz em seu texto algumas regras sobre políticas
públicas, cuja norma traz em seu texto as expressões programas ou planos, como
273
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 13 274
Ibidem, p. 8. 275
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O controle judicial dos atos administrativos. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro. N. 152. abr./ jun. p. 1-15, 1983, p. 10 e 13. 276
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 115. 277
Ibidem, p. 120. 278
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p. 1-31, 2007, p. 12. 279
CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003, p. 91.
74
no caso do §1º e 2º do artigo 165280, que define o orçamento público como
instrumento de fixação das diretrizes, objetivos e metas; e do artigo174, que impõe
ao Estado o dever de fiscalização, incentivo e planejamento do desenvolvimento281.
Além disso, as políticas públicas também podem ser estabelecidas por meio de leis
criadas pelo Poder Legislativo, a serem cumpridas pelo Poder Executivo, onde se
estabelecem os objetivos da política, as metas temporais, os instrumentos e outras
condições, ou ainda, por normas infralegais, como decretos, portarias ou resoluções
editadas por parte do Poder Executivo282, considerando que cabe a este poder
elaborar as respostas às questões em matéria de políticas públicas, quando estas
não se encontram na lei283.
Política Pública encerra um modelo mais adequado para a República
Federativa do Brasil, como um Estado Social democrático de direito, que, a partir do
texto constitucional, deve atuar na ordem econômica e social, regular as relações e
promover o desenvolvimento, no intuito de garantir a efetividade dos direitos
fundamentais284. Política pública é um instituto composto por múltiplos sentidos, cuja
compreensão não será enfrentada neste trabalho por estar alheia ao seu objeto, já
que sua matriz conceitual é encontrada na Ciência Política, apesar da incontroversa
280
“Art. 165 ... § 1º A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada. § 2º A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.” 281
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.§ 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.§ 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.§ 3º O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.§ 4º As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei. 282
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p.95. 283
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 126. 284
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 102.
75
compreensão de que ela é instrumento de ação dos governos, fazendo com que a
função de governar seja o seu fundamento imediato285.
3.2. Direito ao desenvolvimento e acesso à moradia: planejamento e política pública
A efetividade do direito fundamental social à moradia depende diretamente de
políticas públicas, por tratar-se de um direito fundamental social, de conteúdo
prestacional, e representar uma necessidade básica do ser humano, conforme
estudado anteriormente. A busca por novas alternativas para resolver os problemas
sociais deve se desenvolver em consonância com a dignidade da pessoa humana, a
igualdade e a justiça.
Para uma compreensão mais completa, é pertinente articular os argumentos
que fundamentam o direito à moradia digna com aqueles que explicam o direito ao
desenvolvimento, por serem temas que tem em comum o objetivo de realizar a vida
humana de cada indivíduo de forma plena e digna, bem como a realização da justiça
social, conforme previsões constantes nos artigos 1º, 3º e 170 da Constituição
Federal.
O desenvolvimento representava uma preocupação voltada apenas para o
crescimento econômico, até que começaram a surgir movimentos voltados à
proteção dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que os conteúdos valorativos
passaram a ser incorporados ao texto jurídico, permitindo a criação das garantias
constitucionais, momento em que o direito deixou de ser compreendido como uma
operação lógico-formal.
A partir desse momento, o desenvolvimento também começou a tratar sobre
os problemas sociais, políticos, entre outros, e passou a ser debatido no interior do
direito, quando valores, como no caso da dignidade da pessoa humana, foram
identificados no interior do sistema jurídico286. Além de econômicos, o tema
desenvolvimento também passou a ter fins sociais, elegendo, entre suas metas, a
redução da pobreza, a emancipação dos direitos das mulheres, a proteção das
minorias, o exercício da liberdade, o acesso à justiça e à segurança jurídica, de
285
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98, 1997, p. 91. 286
RODRIGUEZ, José Rodrigo. O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro. São Paulo: Saraiva, 2009, apresentação, p. 16.
76
modo a servir toda população e não apenas à elite econômica, como ocorria no seu
conceito original287.
Previsto na Declaração da Organização das Nações Unidas, de 1986, em seu
artigo 1º288, o desenvolvimento é um estado de realização comum das pessoas, a
que os indivíduos e a sociedade aspiram, conforme consta nos artigos
constitucionais citados acima, simbolizando o melhor caminho para tornar mais
plena a liberdade e a existência digna, ao mesmo tempo em que elimina as
privações materiais e a ausência de acesso aos direitos sociais289. Não se
restringindo ao crescimento econômico, apesar deste fator poder ajudar, o
desenvolvimento, medido pela dignidade de existência, conta com a intervenção do
Estado, responsável pela criação de serviços, como os de educação, de saúde,
entre outros, e a distribuição de acesso, como condição de exercício de uma vida
mais saudável. Desse modo, o acesso ao direito fundamental social à moradia é um
dos fatores que permite avaliar a realização do direito ao desenvolvimento, e,
consequentemente, o exercício de uma vida digna.
Para que seja assegurado o direito ao desenvolvimento, é essencial que haja
planejamento, compreendido como um processo que visa maximizar as decisões
políticas, fixando diretrizes, considerando que este coordena, racionaliza e dá
unidade aos fins de atuação estatal. Trata-se de uma técnica instrumental e
operativa de intervenção do Estado, que indica o caminho a ser seguido para as
ações futuras de implementação dos fundamentos e objetivos da República
Federativa do Brasil290, ao mesmo tempo em que são estabelecidos os objetivos e
quantificadas as metas, a serem desenvolvidas de acordo a ideologia constitucional,
sofrendo incidência de normas jurídicas e controle jurisdicional.
As políticas públicas compreendem um conjunto heterogêneo de medidas, e,
no caso de política habitacional ou de moradia, isso significa a elaboração de leis
287
TRUBEK, David. M..A coruja e o gatinho: há futuro para o “direito e desenvolvimento”? O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro. RODRIGUEZ, José Rodrigo. (Org.) Tradução: Pedro Maia Soares. Revisão técnica: José Rodrigo Rodriguez. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 221. 288
“Art. 1° O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.” 289
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p.106 e 108. 290
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 116-117.
77
programáticas, como as leis orçamentárias, à definição de planos diretores das
cidades, o zoneamento, o estabelecimento de área de preservação ambiental, além
da edição de leis, regulamentos e atos administrativos de execução material,
significando dizer que o sucesso de políticas públicas também depende de
planejamento291.
O planejamento de qualquer política deve ser desenvolvido de acordo com os
demais planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento, a
ser instituído mediante lei e apreciado pelo Congresso Nacional, por isso essa
atividade de planejamento está submetida ao princípio da legalidade292, ou seja, o
seu exercício deve se dar de acordo com a previsão constante nos artigos 48, inciso
IV293 e 58, §2º, inciso VI294 da Constituição Federal. Além disso, cabe à União
elaborar e executar planos de ordenação do território e de desenvolvimento
econômico e social, e instituir diretrizes de desenvolvimento urbano, inclusive de
habitação, conforme consta no inciso IX e XX do artigo 21295 do mesmo diploma
legal. Em consonância com esse raciocínio, merece destaque a previsão do artigo
174 caput e seu §1º296, da Constituição Federal, ao prever o planejamento
econômico como uma atividade determinante para o Poder Público, a ser aprovado
mediante lei editada pelo Congresso Nacional. Não se pode perder de vista que
essa atividade também é papel a ser desenvolvido pelos municípios, que devem
assegurar o desenvolvimento da cidade sustentável, a fim de evitar ocupações
desordenadas, portanto, em perfeita conexão ao direito à moradia, conforme consta
291
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 110. 292
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 106. 293
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: ... IV - planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento;...” 294
“Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.... § 2º Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:... VI - apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer....” 295
“Art. 21. Compete à União:... IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;... XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;...” 296
“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento....”
78
no artigo 30, inciso VIII297 do mesmo diploma, justificando a edição de planos
diretores, leis de uso e ocupação do solo, códigos de posturas e de obras, legislação
ambiental.
Além de possuir um conteúdo técnico, o planejamento também é fruto de um
processo político, apesar de ser um instituto que caiu em desuso298, por falta de
vontade política, já que não há legislação que estabeleça diretrizes e bases para o
planejamento de um desenvolvimento equilibrado, que compatibilize os planos
nacionais e regionais de desenvolvimento, conforme determinação constante no §1º
do artigo 174 da Constituição, citado acima. Além disso, há uma desconexão entre
Planos Nacionais e orçamento público299, cujo tema não se vai aprofundar por
extrapolar os limites deste trabalho, mas que também contribui para uma crise na
função estatal de planejamento, refletindo no campo do direito à moradia digna.
Sem planejamento não existem políticas públicas eficientes, cabe ao cidadão,
que na maioria das vezes tem baixa renda, resolver sua própria necessidade,
construindo moradias nos espaços que sobram, a beira de córregos, encostas ou
em áreas de preservação ambiental. É necessário seguir as diretrizes estabelecidas
pela Constituição, a fim de garantir um processo de desenvolvimento que elimine a
pobreza, redistribua as riquezas e oportunidades, reduza as desigualdades e
ofereça as condições mínimas para uma vida digna.
A moradia é um direito fundamental de acesso a unidades habitacionais
seguras e salubres, situadas em áreas com infraestrutura segura, capaz de oferecer
saneamento, mobilidade, transporte coletivo, serviços urbanos e sociais, cuja
implementação depende de um planejamento estratégico a ser desenvolvido pelo
Poder Público.
3.3. Orçamento como instrumento de efetividade do direito fundamental social à
moradia
297
“Art. 30. Compete aos Municípios:... VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;...” 298
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 130-131. 299
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 134.
79
Além do planejamento, a questão econômica também é um fator importante
para a efetividade do direito fundamental social à moradia, já que a promoção de
políticas públicas, além do planejamento também depende de um adequado suporte
financeiro, de modo que, sem orçamento o planejamento não sai do papel e
orçamento sem plano também se torna letra morta.
O orçamento público é uma disciplina prevista na Constituição, cujas regras e
princípios tratam sobre receitas e despesas públicas, compondo aquilo que alguns
chamam de Constituição Orçamentária, de acordo com as previsões constantes nos
artigos 165 a 169; 70 a 75; 31 e 99 da Constituição Federal300. O orçamento público
não tem caráter vinculativo, sendo tratado como lei programática, por representar
projeção de receita e gasto público, em que a lei apenas autoriza e não obriga o
Poder Público a promover os gastos nela previstos301.
Sob a ótica de norma meramente instrumental, a Constituição Orçamentária
prevê regras sobre receitas e despesas, as quais não têm o condão de impor uma
ação administrativa, muito menos é capaz de assegurar um resultado, porém é uma
ferramenta necessária à atuação estatal, considerando que as decisões
fundamentais decorrentes das políticas públicas devem passar pelo orçamento302.
Por outro lado, o planejamento não pode ser reduzido a orçamento, ou seja, o
planejamento tem por objetivo fixar diretrizes, em que são traçados os caminho a
serem seguidos pelo Estado para a implementação dos objetivos da República, ao
contrário do orçamento, em que é feita uma projeção financeira de modo a viabilizar
a atuação estatal. Em outras palavras, a concretização dos programas
constitucionais de desenvolvimento não pode ser condicionada à simples alegação
de inexistirem recursos financeiros, apesar de não ser o posicionamento adotado por
muitos, inclusive em algumas decisões judiciais, que buscam, no princípio da
reserva do possível, uma justificativa à inércia do Poder Público que deve
desenvolver políticas públicas de efetividade dos direitos fundamentais sociais,
como no caso do direito à moradia. Segundo os seguidores desse princípio, a
300
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 103. 301
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 120. 302
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 104.
80
atuação do Estado para a efetividade dos direitos fundamentais sociais está
condicionada à disponibilidade de recursos financeiros303.
A teoria que explica o princípio da reserva do possível teve origem na
Alemanha, a partir dos anos 1970304, quando seu Tribunal Constitucional Federal
julgou o paradigmático caso numerus clausus, que versava sobre o direito de acesso
ao ensino superior. A questão envolvia uma análise sobre a constitucionalidade da
Lei Universitária de Hamburg e da Lei de Admissão às Universidades Bávaras,
criadas para regulamentar a admissão nos cursos superiores de medicina nas
universidades de Hamburg e da Baviera, quando foram estabelecidos limites de
admissão (numerus clausus), tendo em vista o exaurimento da capacidade de
ensino dos cursos de medicina.
Na época, foi questionada a constitucionalidade dessa norma perante aquele
tribunal, sob o argumento de que ela ofenderia a previsão do artigo 12, inciso I da
Lei Federal Alemã, cuja previsão garantia que “Todos os alemães têm o direito de
livremente escolher profissão, local de trabalho e de formação profissional. O
exercício profissional pode ser regulamentado por lei ou com base em uma lei”, a
qual deve ser interpretada a partir do princípio da igualdade e do Estado Social. O
argumento se fundava no direito à ampla liberdade profissional, cuja extensão
compreendia o direito de escolher uma profissão, o local de trabalho e o local de
formação profissional. Por isso, a limitação ao acesso à universidade representaria
uma ofensa ao direito de liberdade profissional previsto naquele ordenamento, já
que a limitação à escolha do local de formação significaria uma influência na escolha
da própria profissão.
Mas de acordo com aquele Tribunal, a partir da decisão BVerfGE 33, 303,
seria possível restringir o acesso aos cursos de medicina, considerando que os
direitos sociais de participação em benefícios estatais se encontram sob a reserva
do possível, em que deve ser estabelecido um limite àquilo que o indivíduo pode
exigir da coletividade, por isso, não seria possível conceder ao indivíduo tudo o que
ele pretende, já que há pleitos que não são razoáveis ou sensatos de se exigir. Para
303
MÂNICA. Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do Poder Judiciário na implementação de Políticas Públicas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 25, fevereiro/março/abril, 2011, p. 11-12. 304
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008.
81
aquele Tribunal, a possibilidade de restrição deve ser estabelecida por lei, desde
que condicionada aos limites estritamente necessários, após a utilização de toda a
capacidade de ensino existente, além do fato de que a escolha e a distribuição das
vagas devem ocorrer segundo critérios racionais, com igualdade de chance para
todos os candidatos qualificados para o curso superior.
De acordo com os argumentos citados acima, fica claro que a teoria da
reserva do possível, utilizada como limite à efetivação dos direitos sociais na
Alemanha, não tinha em seu significado inicial a marca da disponibilidade financeira.
Ao contrário, a análise incidia-se na sensatez da conduta do cidadão em exigir do
Estado e da sociedade a efetividade de um direito social, cabendo à sociedade
analisar a razoabilidade ou não da pretensão, já que a pretensão subjetiva ilimitada
à custa da coletividade é incompatível com a ideia do Estado Social, servindo como
limite à participação do indivíduo nos benefícios estatais305.
No Brasil, essa teoria foi adotada num sentido diferente do original, cuja
utilização foi inaugurada na paradigmática decisão proferida na ADPF n. 45, ao
expressar que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais depende de
um vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, não
sendo razoável exigir do Poder Público a imediata efetivação do comando contido na
Constituição quando há a incapacidade econômica-financeira306, apesar de a
cláusula da reserva do possível não poder ser invocada com a finalidade, pura e
simplesmente, de exonerar o Estado do dever de cumprir suas obrigações
constitucionais.
Diante dessa compreensão, criou-se a teoria da reserva do financeiramente
possível, de modo que os recursos públicos se tornaram um limite absoluto à
efetividade dos direitos fundamentais sociais, parecendo ser uma tentativa de
vincular o direito à economia307, ou impondo uma idéia de que os direitos sociais só
305
SCHWABE, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Organização e introdução: Leonardo Martins. Tradução: Beatriz Hennig; Leonardo Martins; Mariana Bigelli de Carvalho; Tereza Maria de Castro; Vivianne Geraldes Ferreira. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 656 – 667. 306
STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso Antonio Bandeira de Mello, j. 29.04.04. Disponível em: ˂http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm˃. Acesso em 22 de maio de 2017. 307
MÂNICA. Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do Poder Judiciário na implementação de Políticas Públicas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 25, fevereiro/março/abril, 2011, p. 13.
82
existem na medida em que existe recurso financeiro308. O princípio da reserva do
possível começou a funcionar como algo assustador e ao mesmo tempo
desconhecido, pois passou a impedir a efetividade dos direitos sociais em razão da
ausência de recursos financeiros309.
Condicionar o reconhecimento do direito social à moradia a partir da reserva
do possível não está de acordo com a principiologia da Constituição, principalmente
por ele se tratar de um direito fundamental, pois, do contrário, estar-se-á esvaziando,
por completo, a eficácia desse direito fundamental social, de modo a abrir espaço
para uma discussão, principalmente pelo fato de que não se pode negar de forma
absoluta o direito subjetivo à prestação estatal310.
Apesar desta compreensão, não há como negar que a efetividade do
planejamento depende diretamente da existência de recursos financeiros, em outras
palavras, sem recursos financeiros o plano não sai do papel, conforme citado acima.
Como instrumento para a administração, o orçamento possibilita a redistribuição de
renda e maior efetividade do planejamento, desde que as diretrizes do governo
estejam voltadas para a sua realização material, e isso só é possível no caso de
subordinação da lei orçamentária às leis que veiculam todos os programas de
governo311.
Como agente normativo, de acordo com a previsão do §4° do artigo 165312 e
do §1° do artigo 174313, ambos da Constituição Federal, compete ao Estado elaborar
planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição em
consonância com o plano plurianual, como imperativo da racionalização da utilização
de recursos escassos, no intuito de obter melhores resultados no seu
308
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 481. 309
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 237. 310
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 728. 311
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 108. 312
“Art. 165 … § 4º Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional.” 313
“Art. 174 ... § 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.”
83
aproveitamento, de acordo com a preocupação do constituinte que previu a
integração entre planejamento e orçamento314.
Nesse contexto, sobre a ação estatal de planejamento, o sistema
orçamentário se desdobra em três instrumentos sob a forma de lei, ou seja, o plano
plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual, conforme
previsões constantes nos artigos 165, 166 e 167 da Constituição Federal.
O plano plurianual apresenta as diretrizes, objetivos e metas globais da ação
do governo a longo prazo, ao estabelecer um plano de trabalho com vigência
intergovernamental, no intuito de garantir a continuidade de diversos programas, nos
termos da previsão do § 1º do artigo 165315 da Constituição Federal. Cumpre
asseverar que nenhum investimento, cuja execução ultrapasse um exercício
financeiro, poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, conforme
consta no § 1º do artigo 167316 do mesmo diploma, além do fato que todos os
programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição devem se
compatibilizar com o plano plurianual, nos termos da previsão constante no § 4º do
artigo 165317 da Constituição.
Dentro desta concepção de planejamento, o plano plurianual deve ser
detalhado e dividido em metas para cada ano, cuja efetividade se dá por intermédio
da lei de diretrizes orçamentárias, onde estão definidas as metas e prioridades da
atuação governamental, além de possuir orientações para a elaboração da lei
orçamentária anual, conforme consta na previsão do § 2º do artigo 165318 da
Constituição.
314
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015, p. 135. 315
“Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:... § 1º A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.” 316
“Art. 167. São vedados:... § 1º Nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade.” 317
“Art. 165.... § 4º Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional.” 318
“Art. 165.... § 2º A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.”
84
Por último, tem-se a lei orçamentária anual, elaborada de acordo com a lei de
diretrizes orçamentárias, onde estão previstas as receitas e fixadas as despesas de
cada ano de governo, nos termos do § 5º do artigo 165319 da Constituição Federal. A
meta da Constituição é promover o bem-estar do homem, por isso cabe ao Estado
garantir e preservar a dignidade da pessoa humana a partir das metas e objetivos
fundamentais estabelecidos pela Constituição.
Desse modo, o orçamento, entendido como conseqüência do planejamento, é
instrumento de efetividade dos direitos fundamentais e por isso não deve ser
utilizado como argumento de escusa para o não atendimento desses direitos, já que
ele possibilita a redistribuição de renda e uma maior efetividade do planejamento.
Por essa razão, os recursos financeiros, por serem limitados, devem ser aplicados
prioritariamente no atendimento aos fins considerados essenciais pela
Constituição320.
3.4. Políticas públicas habitacionais baseadas na propriedade
Com base na propriedade, a legislação atual oferece alguns instrumentos de
efetivação do direito fundamental social à moradia, apesar da sua concretização
ainda estar muito aquém da demanda. O primeiro deles foi a criação da Companhia
de Habitação – COHAB, empresa de economia mista, constituída sob o controle
acionário dos governos estatuais e municipais, tendo os fundos subsidiados pelo
Poder Público como principal fonte de recursos.
A partir da Lei Federal nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, foram criadas
orientação normativa e de assistência técnica direta do Serviço Federal de
Habitação e Urbanismo – Serfhau, as quais serviram de parâmetros para a
constituição das COHABs, dentre elas, a COHAB Minas - Companhia de Habitação
do Estado de Minas Gerais, instituída pelo Governo do Estado de Minas Gerais
como sociedade de economia mista, cujo objeto era de combater o déficit
319
“Art. 165.... § 5º A lei orçamentária anual compreenderá: I - o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; II - o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto; III - o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público.” 320
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 241-242.
85
habitacional por meio de construção de casas, nos termos da Lei Estadual nº Lei nº
3.403, de 02 de julho de 1965.
A iniciativa dessa lei foi inspirada na migração da população da zona rural
para as cidades, que ocorreu a partir dos anos de 1960, em busca de melhores
condições de vida. Por isso, o objetivo da COHAB Minas foi de responder ao grande
desafio de reduzir, gradualmente, o déficit habitacional em Minas Gerais, inclusive
pelo fato da maior parte da população, agora urbana, viver com uma renda inferior a
três salários mínimos mensais. Como suporte financeiro para a execução das obras,
o Governo do Estado utiliza até os dias atuais fundos instituídos por ele, mediante lei
e, em contra partida, as moradias são vendidas aos cidadãos por um preço
reduzido, mediante contrato de mútuo, com prazo para pagamento muito longo,
cujas taxas praticadas são muito baixas. Além disso, é possível que a COHAB Minas
firme parcerias com as prefeituras conveniadas, em que o município oferece o
terreno urbanizado e a Companhia promove a construção e fiscalização das obras,
além de subsidiar o custo do investimento321.
A Lei Federal 4.380/64, além de utilizar a propriedade como fundamento,
instituiu o Sistema Financeiro da Habitação – SFH, cujo objetivo era, não apenas
garantir a efetividade do direito à moradia, mas implementar políticas de
desenvolvimento urbano, abrir oportunidades de emprego, mobilizar escritórios de
engenharia e planejamento, dar trabalho para a construção civil e à indústria da
construção, que até então estavam paralisadas na economia brasileira.
O tempo revelou a inabilidade desse sistema por não atingir a meta de
garantir a efetividade do direito fundamental social à moradia digna em relação à
população mais pobre, perfeitamente visível em razão da precariedade em que vive
essa gente, de modo que o déficit habitacional não foi eliminado, principalmente pela
incompatibilidade entre a proposta social e as condições econômicas do país322. Por
outro lado, é indiscutível o sucesso do SFH em relação à mobilização da economia e
à geração de empregos, em consonância com o progresso do capitalismo,
estimulando, inclusive, o aparecimento de grandes empresas imobiliárias323.
321
BRASIL. COHAB MINAS – Companhia de habitação do Estado de Minas Gerais. História. Disponível em: ˂http://www.cohab.mg.gov.br/cohab/historia/˃. Acesso em: 20/02/2017. 322
BUCCI, Maria Paula Dallari. Cooperativas de habitação no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 61-62. 323
Ibidem, p. 63-64.
86
Outra fonte normativa criada para a efetividade do direito à moradia e que
elege a propriedade como um mecanismo essencial para o cumprimento de sua
finalidade, é a Lei Federal nº 11.124/05, que, além de instituir o Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Os recursos desse
fundo devem ser gastos com aquisição, construção, conclusão, melhoria, reforma
em áreas urbanas e rurais324, ou ainda, aquisição de materiais para construção,
ampliação e reforma de moradias325, além do fato de que, nos programas de
habitação de interesse social beneficiados com recursos do FNHIS, será assegurada
assistência técnica gratuita nas áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia,
respeitadas as disponibilidades orçamentárias e financeiras do referido fundo326.
Esta lei também traz outros benefícios, como garantia de atendimento às
famílias de menor renda327, ou seja, os subsídios financeiros, suportados pelo
FNHIS, também são destinados a complementar a capacidade de pagamento das
famílias beneficiárias328; isenção ou redução de impostos municipais, distritais,
estaduais ou federais incidentes sobre o empreendimento no processo
construtivo329; entre outros benefícios, destinados a reduzir ou cobrir o custo de
construção ou aquisição de moradias330.
A lei contempla a possibilidade de locação social e arrendamento de unidades
habitacionais, como fins de aplicação dos recursos do Fundo Nacional de Habitação
de Interesse Social331, no entanto, o objetivo central da Lei Federal nº 11.124/05 é
garantir a efetividade do direito à moradia digna por intermédio da propriedade, o
que, de fato, encarece as despesas públicas, inviabilizando o desenvolvimento de
políticas públicas satisfatórias à efetividade do direito à moradia digna, considerando
que os recursos financeiros são finitos, conforme abordado anteriormente.
Por último, cumpre destacar o Programa Minha Casa Minha Vida, instituído
pela Lei Federal nº 11.977, de 07 de julho de 2009, a qual já sofreu algumas
alterações por parte das Leis nº 12.249, de 2010, nº 12.424, de 2011, nº 12.693, de
324
Inciso I do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 325
Inciso V do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 326
§ 3º do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 327
Art. 22 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 328
Inciso I do Art. 23 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 329
Inciso III do Art. 23 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 330
Inciso IV do Art. 23 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005. 331
Inciso I do Art. 11 da Lei 11.124 de 16 de junho de 2005.
87
2012, nº 12.722, de 2012, nº 13.043, de 2014, nº 13.097, de 2015, nº 13.161, de
2015, nº 13.173, de 2015 e nº 13.274, de 2016.
O Programa Minha Casa Minha Vida conta com instrumentos, como recursos
financeiros orçamentários, isenção total ou parcial do seguro, gratuidade ou redução
das custas cartorárias para o registro imobiliário e a instituição de um fundo
garantidor que oferece a cobertura de até 36 parcelas no caso de perda temporária
de emprego ou renda, conforme consta na lei o regulamenta. Por essa razão, pode
ser um programa muito caros aos cofres públicos, capaz de se tornar ineficiente ao
atendimento de todos aqueles que precisam ter acesso à moradia digna.
A finalidade desse programa é criar mecanismos de incentivo à produção e
aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e
produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até
R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais)332, de modo que, para a
implantação desse programa, a União concederá subvenção econômica ao
beneficiário pessoa física no ato da contratação de financiamento habitacional333, a
fim de permitir a aquisição, produção e requalificação do imóvel residencial
urbano334. Além disso, no caso de prioridade no atendimento, compete aos Estados,
Distrito Federal e Municípios providenciar a doação de terrenos localizados em área
urbana consolidada para implantação de empreendimentos vinculados ao
programa335, além de promover medidas de desoneração tributária para as
construções destinadas à habitação de interesse social336.
Esse programa também tem a finalidade de subsidiar a produção ou reforma
de imóveis para agricultores familiares e trabalhadores rurais, por intermédio de
operações de repasse de recursos do orçamento geral da União ou de
financiamento habitacional com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço - FGTS, desde 14 de abril de 2009337, em que também poderá ser
concedida subvenção econômica no ato da contratação do financiamento338.
De acordo com essa lei, a União participará no Fundo Garantidor da
Habitação Popular, cuja finalidade é garantir o pagamento aos agentes financeiros
332
Art. 1° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 333
Inciso I do Art. 2° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 334
Inciso I do Art. 6° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 335
Inciso I do § 1º do Art. 3° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 336
Inciso II do § 1º do Art. 3° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 337
Art. 11° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 338
Art. 13° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009.
88
de prestação mensal de financiamento habitacional, no âmbito do Sistema
Financeiro da Habitação, devida pelo mutuário final em caso de desemprego ou
redução temporária da capacidade de pagamento339, além de assumir o saldo
devedor do financiamento imobiliário, em caso de morte e invalidez permanente, e
as despesas de recuperação relativas a danos físicos causado no imóvel do
mutuário340.
Com o objetivo de dar efetividade ao direito fundamental social à moradia
digna, a lei que instituiu o Programa Minha Casa Minha Vida também tem suas
bases fixadas no direito de propriedade, além de estabelecer linhas de crédito à
população mais carente, taxa de juros e demais custos reduzidos e subvenções
financeiras custeados pelo Poder Público, conforme consta na lei que o
regulamenta, o que inviabiliza a universalização do direito à moradia digna,
considerando estes custos ficam a cargo do Estado, que não possui recursos
financeiros ilimitados.
3.5. Políticas públicas para a promoção do direito fundamental social (de acesso) à
moradia
Apesar de a legislação e os programas de governo ainda valorizarem o direito
de propriedade como forma de garantir a efetividade do direito fundamental social à
moradia, a Lei nº 10.188, de 12/02/2001, instituiu o Programa de Arrendamento
Residencial. De acordo com essa lei, fica instituído o Programa de Arrendamento
Residencial para atendimento da necessidade de moradia da população de baixa
renda, sob a forma de arrendamento residencial341.
Essa lei, além atribuir à Caixa Econômica Federal a tarefa de promover a
aquisição de moradias, institui um fundo próprio342, a fim de que sejam adquiridos
imóveis para arrendamento residencial, nos termos do Programa nela previsto343,
cujos arrendatários são as pessoas físicas habilitadas mediante um processo
339
Inciso I do Art. 20° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 340
Inciso II do Art. 20° da Lei 11.977 de 07 de julho de 2009. 341
Art. 1° da Lei 10.188/2001. 342
Art. 2° da Lei 10.188/2001. 343
Art. 6º da Lei 10.188/2001.
89
seletivo promovido pela Caixa Econômica Federal, de acordo com os requisitos
estabelecidos pelo Ministério das Cidades344.
Ao arrendatário selecionado compete promover o pagamento do crédito
proveniente da operação de arrendamento de acordo com os critérios definidos pela
Caixa Econômica Federal345, a partir das diretrizes estabelecidas pelo Ministério das
Cidades346. Desse modo, havendo inadimplemento no arrendamento, findo o prazo
da notificação ou interpelação e não havendo o pagamento dos encargos em atraso,
fica configurado o esbulho possessório que autoriza o arrendador a propor a
competente ação de reintegração de posse347.
A Lei 10.188/01 representa um rompimento com os programas sociais
tradicionais promovidos pelo Poder Público, por se utilizar do acesso como
instrumento para a efetividade do direito fundamental social à moradia. No entanto
ela não abandonou a propriedade, possuindo raízes fortes neste instituto, quando
permite ao arrendatário a opção de compra, ao invés de arrendamento, do imóvel
objeto do contrato348, mesmo quando não há um prévio contrato de arrendamento349,
considerando que as alienações dos imóveis também devem ser promovidas
diretamente pela Caixa Econômica Federal350.
Sobre o tema, merece registro o fato de que na Constituição, desde sua
redação original, sempre esteve prevista, dentre os direitos e garantias individuais, a
proteção da propriedade, conforme consta no caput do artigo 5°351 e seu inciso
XXII352, assim como ocorreu no caso da proteção da casa como asilo inviolável do
indivíduo, previsão constante no inciso XI353 do artigo 5° da Constituição, cuja norma
representa a proteção apenas do domicílio e não da moradia propriamente dita354.
344
Parágrafo único do Art. 6º da Lei 10.188/2001. 345
Art. 4º da Lei 10.188/2001. 346
Art. 5º da Lei 10.188/2001. 347
Art. 9º da Lei 10.188/2001. 348
Art. 1° da Lei 10.188/2001. 349
§ 3° do Art. 1° da Lei 10.188/2001. 350
§ 7° do Art. 2° da Lei 10.188/2001. 351
“Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:...” 352
“XXII - é garantido o direito de propriedade;” 353
“XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;” 354
BUCCI, Maria Paula Dallari. Cooperativas de habitação no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 185.
90
Somente com a Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, que
alterou o artigo 6°355 da Constituição, é que a moradia passou a ter proteção
expressa, cuja leitura deve estar em consonância com a previsão constante no
inciso IX356 do artigo 23 do mesmo diploma, que atribui à União, Estados, Distrito
Federal e Municípios o poder dever de desenvolver programas de construção de
moradias dentro dos padrões de habitabilidade.
No entanto, mesmo após essa emenda constitucional, a moradia ainda é
tratada como um direito de propriedade de uma casa, de um apartamento ou
domínio sobre um bem imóvel, numa visão individualista e capitalista, com o intuito
de estimular a indústria da construção civil e de associá-la ao sistema financeiro357.
Tornar unidades habitacionais como mercadorias é algo atraente e acessível no
mercado, o que, na maioria das vezes, permite que somente a classe superior seja
servida, beneficiando apenas os menos necessitados, que possuem acesso a
recursos financeiros.
A previsão de recursos orçamentários para as políticas habitacionais nem
sempre se reverte para as camadas mais pobres da população em termos de justiça
distributiva, servido apenas de fomento ao crescimento econômico, o nível de
emprego de mão de obra de baixa qualificação, as atividades de construção civil, o
comércio de insumos, sem garantir a universalização do direito à moradia ou a
redução do déficit habitacional.
Além da norma infraconstitucional citada acima, existem no Brasil outras
normas que oferecem instrumentos necessários para a promoção do direito
fundamental social à moradia e que se utilizam o acesso como instrumento, ao invés
da propriedade, como no caso do Estatuto da Cidade, instituídos pela Lei 10.257, de
10 de julho de 2001, que, ao prever o desenvolvimento de programas e projetos
habitacionais de interesse social, permite ao Poder Público contratar a concessão de
355
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 356
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:...IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;” 357
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna: exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba: Juruá, 2012, p. 157.
91
direito real de uso de imóveis públicos358, reconhecido como um instrumento jurídico
e político359.
Esse é um mecanismo de política pública criado pelo Decreto – Lei 271, de 28
de fevereiro de 1967, cujo objetivo principal foi a regularização fundiária de interesse
social, mas que, indiretamente, trata-se de um instrumento utilizável nos programas
habitacionais. Seu funcionamento se dá quando, por meio de um contrato, a
Administração transfere o uso do terreno público, por tempo determinado ou
indeterminado, de forma gratuita ou onerosa, para os fins previstos em lei, como
para moradia360, por exemplo, ou seja, trata-se de um instrumento que se utiliza do
acesso, e não da propriedade, para garantir a efetividade do direito à moradia.
A partir da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, apesar de depender de
autorização legislativa, a concessão de direito real de imóvel no âmbito de
programas habitacionais dispensa a licitação361. Mas, mesmo que expressamente
previsto, esse instrumento é pouco utilizado por parte da Administração Pública.
Além desse tipo de contrato, a concessão de uso especial para fins de
mordia, prevista na Medida Provisória no 2.220, de 4 de setembro de 2001, cuja
redação foi parcialmente alterada pela Lei 13.465/17, ao regulamentar a previsão do
§1º362 do artigo 183 da Constituição Federal, promove a regularização fundiária, ao
mesmo tempo em que serve de instrumento útil à efetividade do direito fundamental
social à moradia.
358
“Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:... § 2
o Nos casos de
programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, a concessão de direito real de uso de imóveis públicos poderá ser contratada coletivamente.” 359
“Art. 4o...V – institutos jurídicos e políticos:... g) concessão de direito real de uso;”
360 “Art. 7
o É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares remunerada ou
gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas.” 361
“Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:I - quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência, dispensada esta nos seguintes casos:... f) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública;” 362
“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.”
92
De acordo essa norma, aquele que possui como sua, por cinco anos
ininterruptos e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel
público situado em área com características e finalidade urbana, cujo destino é a sua
moradia ou a de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de
moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou
concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural, conforme consta
em seu artigo 1º363.
Nos termos da previsão constitucional citada acima, esse instituto tem por
objetivo a regularização fundiária e o desenvolvimento de uma política de
desenvolvimento urbano, ao mesmo tempo em que, também de forma indireta,
garante o exercício do direito à moradia, que se dá por intermédio do acesso e não
da propriedade. Ocorre que essa medida provisória restringiu o uso deste
instrumento àqueles que exerceram a posse até 22 de dezembro de 2016. Esse
instrumento é muito próximo à usucapião especial, prevista no artigo 183 da
Constituição Federal e regulamentada pelo Estatuto da Cidade364, que, apesar de
ser instrumento que permite o exercício do direito à moradia e não tem nenhum
termo final estabelecido pela lei, tem suas bases constituídas no instituto da
propriedade e não pode ser exercida contra o Estado.
A concessão de uso especial para fins de mordia é um instrumento importante
para a garantia da efetividade do direito fundamental social à moradia, mas sofreu
restrição no seu exercício por força da própria lei infraconstitucional que a
regulamentou, em razão da limitação do tempo, por assegurar o direito à concessão
de uso especial para fins de moradia apenas àqueles que exerceram a posse até 22
de dezembro de 2016, conforme mencionado acima.
363
“Art. 1º Aquele que, até 22 de dezembro de 2016, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área com características e finalidade urbana, e que o utilize para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.” 364
“Art. 9o Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”
93
Tanto a concessão do direito real de uso, quanto a concessão de uso especial
para fins de moradia são hipóteses de direito real de habitação criadas pela lei365 e
que colaboram com a compreensão de que o exercício do direito à moradia pode se
dar de forma autônoma e por meio do acesso, independentemente do
reconhecimento da propriedade, apesar de serem instrumentos de utilização
inexpressiva por parte do Poder Público, que tem o dever de desenvolver políticas
públicas satisfatórias e eficientes à efetividade do direito social à moradia digna, sem
perder de vista que os recursos públicos são finitos.
As Políticas Públicas atuais e a própria legislação traçam um caminho para a
efetividade do direito à moradia a partir do exercício da propriedade. Isso porque, na
Idade Moderna, a propriedade foi compreendida como um princípio organizador da
sociedade e o seu exercício simbolizava a existência e a realização humana, como
forma de repúdio ao regime vigente na Idade Média366. A propriedade privada
passou a ser uma garantia do exercício da felicidade humana, apesar dela também
ter implicado numa total exclusão do direito de qualquer outro indivíduo, ante a sua
concepção individualista, quando consolidou o conceito do que era “meu e seu”367.
Desde então, o objeto possuído passou a ser compreendido como uma
extensão da personalidade do indivíduo, como no caso da propriedade, por isso ela
passou a significar mais do que uma forma de satisfazer as necessidades,
representando uma extensão do exercício da própria liberdade e da autonomia
pessoal368, já que a liberdade era definida, em termos negativos, como um direito de
excluir os outros369.
No fim da Idade Média e início da Idade Moderna, quando a atividade de
mercância passou a se desenvolver, houve uma perfeita sintonia entre propriedade
e mercado, já que o exercício da propriedade representava o direito exclusivo de
possuir, usar e dispor no mercado370. Constata-se que o capitalismo leva cada
365
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 302. 366
RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 79. 367
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 66. 368
Ibidem, p. 105. 369
RIFKIN, Jeremy. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 130. 370
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 67.
94
aspecto da vida humana para a área econômica, devendo ele ser negociado como
bem, como no caso da propriedade, que era tida como extensão da
personalidade371. A partir da era moderna, a propriedade privada foi a base para a
estrutura das relações humanas, do positivismo, do materialismo, da ideologia e do
progresso, ao mesmo tempo em que a ordem social era impulsionada pelo
desenvolvimento capitalista.
Ocorre que, com o novo capitalismo, a propriedade se tornou um problema, já
que, por ser muito cara, e, portanto, lenta, as pessoas deixam para trás o interesse
de serem donas dos bens, fazendo com que empresas e consumidores, ao invés de
trocar bens no mercado, passassem a valorizar o acesso, principalmente por
estarem inseridas num cenário em que tudo se torna quase que imediatamente
desatualizado, por força da velocidade com que as inovações tecnologias
começaram a ser produzidas372. Apesar de não ser extinta, a propriedade passa a
ter uma probabilidade bem menor de ser trocada no mercado, fazendo com que este
cedesse lugar às redes. Na economia de rede a propriedade começa a ser
acessada/emprestada ao invés de trocada/ adquirida, consequentemente, mais
pessoas têm acesso aos bens, impondo uma compreensão de que a propriedade
deixa de ser importante e começa a ser substituída rapidamente pelo acesso.
No âmbito jurídico, porém, num período em que se busca a efetividade dos
direitos fundamentais sociais, o ordenamento atual ainda sofre com os resquícios da
concepção da propriedade que vigorou durante a Idade Moderna, principalmente
pelo fato de que ela é a característica definidora do sistema capitalista, e por isso
ainda é muito forte, possuindo, portanto, capacidade de influenciar a ordem
jurídica373.
Este estudo permite o entendimento de que a propriedade não deve ser
compreendida como uma extensão da personalidade e que a concretização dos
direitos fundamentais sociais e o respeito à existência humana devem se dar por
intermédio do acesso, em consonância com a evolução dos conceitos e valores
aplicados às relações de mercado, inclusive, diferente do que é sustentado pelas
atuais políticas públicas habitacionais e pela própria legislação,.
371
RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 14. 372
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5. 373
RIFKIN, Jeremy. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 261.
95
No mercado contemporâneo já vigora a compreensão de que a propriedade
pode até ser um problema, ante a velocidade com que as inovações tecnológicas
vêm ocorrendo, somada ao ritmo intenso em que as atividades econômicas tem se
desenvolvido, em que as inovações e as atualizações contínuas tornam o ciclo de
vida dos produtos cada vez mais breve, fazendo com que tudo se torne
imediatamente desatualizado374.
Diante desta concepção, inaugura-se a era do acesso, fruto de um novo
capitalismo, regido por novos pressupostos de negócio bem diferentes do mercado
tradicional, em que tudo é emprestado e acessado por um período de tempo,
mediante um controle de redes de fornecedores, o que, certamente, mudará a noção
de como o poder econômico será exercido nos próximos anos, com condições de
trazer reflexos, inclusive, para a forma de se governar, já que todo o ordenamento
jurídico e político é estruturado a partir das relações de propriedade e de mercado,
conforma já analisado anteriormente.
Se na modernidade o conceito de propriedade significou a busca pela
autonomia e mobilidade, ao mesmo tempo em que isso representou o direito de
excluir os outros375, a era do acesso reconhece a propriedade como instrumento que
permite ao indivíduo uma vida humana plena, em consonância com a inclusão e com
o acesso, de modo a permitir a busca pela autorrealização e transformação
pessoal376.
Essa nova concepção permite que o exercício da liberdade não seja pensado
em um sentido negativo, de excluir o outro, mas como medida de acesso ao outro,
por intermédio de redes e não pela propriedade, representando uma otimização da
própria vida e uma universalização do acesso377. De acordo com essa concepção, a
propriedade deve permanecer com o produtor e ser utilizada por um número maior
de pessoas, já que a liberdade consiste em relacionamentos compartilhados e não
isolados378.
374
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5. 375
Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 261. 376
Idem. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 197. 377
Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 378
Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 175.
96
No decorrer da história, a propriedade foi compreendida como um instrumento
garantidor da existência e da realização humana, ao simbolizar uma extensão da
personalidade, quando permitiu o pleno exercício da autonomia, da liberdade
pessoal e da felicidade humana, cujas bases estavam assentadas num
individualismo profundo, pois seu exercício implicava numa total exclusão do outro
indivíduo, em consonância com a ideia de mercado.
Com a inauguração do Estado Social, surge a preocupação em dar
efetividade aos direitos individuais e sociais, como garantia do fim da exclusão
social, impondo uma alteração nos fundamentos que deram origem às relações de
propriedade privada, no mesmo instante em que, coincidentemente, as bases do
capitalismo começaram a passar por um processo de mudança. Assim, a
propriedade passa a servir de instrumento de realização humana e de garantia do
pleno exercício da liberdade e da inclusão, de modo que o seu exercício deve se dar
de forma plena e compartilhada, conciliando os interesses das diferentes classes,
desde que atendida a sua função social379.
Se no capitalismo o mercado de troca de bens deu lugar às redes, cuja
técnica visa a captação e manutenção da atenção do maior número de
consumidores fiéis e a longo prazo, de modo que o acesso é o bem mais relevante
do que a propriedade, essa mesma técnica deve servir de instrumento para as
políticas públicas de efetivação do direito à moradia. Por intermédio do acesso, ao
invés da propriedade, o Poder Público pode garantir a efetividade do direito
fundamental social à moradia, de modo que todos os cidadãos, sem exceção,
possam exercê-lo de forma digna.
Nesse caso, a propriedade dos imóveis deve permanecer sob a exclusividade
do Estado e seria mediante a cessão de uso, usufruto, arrendamento residencial,
entre outras possibilidades, que o Poder Público asseguraria ao cidadão o acesso
ao direito fundamental social à moradia. Esse raciocínio está em consonância com
as ideias desenvolvidas por Jeremy Rifkin, cujos estudos demonstram que a
propriedade está sendo substituída rapidamente pelo acesso, apesar dela não
desaparecer. Segundo o autor, a propriedade continuará existindo, porém com uma
probabilidade bem menor de ser trocada no mercado, dando lugar ao acesso entre
379
PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo entre direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRSP, 2009, p. 56 e 58.
97
servidores e clientes por intermédio de redes, pois isso ela passa a ter mais
probabilidade de ser acessada do que trocada, e isso permite que um número maior
de pessoas tenha um contato direto com os bens, satisfazendo seus desejos, já que
o custo para a sua aquisição é alto380, como é o caso, por exemplo, da terceirização
da propriedade381, muito comum nos dias de hoje.
Para a promoção do direito fundamental social (de acesso) à moradia o
Estado não financiaria a aquisição da propriedade da casa própria, como ocorre nas
atuais políticas públicas, inclusive no caso específico da Lei nº 10.188/01, que,
apesar de instituir o Programa de Arrendamento Residencial, tem fortes raízes no
instituto da propriedade, ao possibilitar a aquisição da propriedade mediante
financiamento oferecido com subsidio do governo. O Poder Público passaria a
assegurar o acesso à propriedade estatal, cabendo ao cidadão pagar um aluguel
social, por exemplo, somado ao dever de assegurar a conservação do referido bem,
ou seja, o bem deve ser acessado para garantir a efetividade do direito à moradia e,
em contra partida, ao usuário incumbe o deve pagar uma mensalidade, cujo valor
deve variar a partir de zero, a depender da condição econômica de cada família, por
meio de contratos que estabeleçam um vínculo por um período certo, exigindo uma
reavaliação de tempos em tempos, em consonância com as ideias de acesso que
surgiram com o novo capitalismo382.
Do ponto de vista financeiro, os atuais programas sociais de financiamento da
casa própria representam um grande custo para o Poder Público, que arca com a
maior parte do valor do programa, por oferecer uma isenção nos pagamentos em
caso de perda temporária de emprego por parte do beneficiário, por doar o terreno
onde é feita a construção das moradias, por garantir desoneração tributária e uma
subvenção econômica aos beneficiários, além de assegurar a quitação do contrato
de financiamento em caso de morte ou invalidez permanente do beneficiário, entre
outros benefícios, conforme consta atual na legislação que regulamenta os
programas de aquisição da casa própria. Há que se destacar, ainda, que esse tipo
de programa é criado de tempos em tempos, de modo a dar oportunidade ao Estado
380
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 3-4. 381
Ibidem, p. 39. 382
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 34.
98
constituir novos fundos de recurso, uma vez que são finitos, não sendo capaz,
portanto, de beneficiar uma parcela considerável da população. Some-se a isso o
fato de que os auaís programas de acesso à moradia têm suas bases calcadas na
propriedade e esta é uma instituição muito lenta e cara, por se basear na ideia de
que possuir um ativo é valioso, tornando-se um problema383.
Também convém destacar que os programas sociais de financiamento da
casa própria representam uma forma de as famílias constituírem patrimônio para si e
suas gerações futuras. Havendo a morte de um dos mutuantes, além do
financiamento ser automaticamente quitado, em cumprimento ao contrato de seguro
constituído previamente, o bem passa a ser objeto de inventário e partilha em
benefício dos herdeiros, que poderão disponibilizá-lo da forma como convir,
representando, por isso, uma oportunidade de lucro para as gerações futuras.
As atuais políticas públicas são desenvolvidas a partir da propriedade, de
modo a garantir a aquisição da casa própria, permitindo, indiretamente, a efetivação
do direito fundamental social à moradia a uma parcela da população, ao mesmo
tempo em que representa um custo para o Estado.
Em consonância com a concepção positiva, cabe ao Estado garantir o acesso
ao direito fundamental social à moradia, porém não se pode perder de vista que os
recursos financeiros são limitados. Esses argumentos deixam claro que as atuais
políticas públicas de efetividade dos direitos fundamentais sociais não são capazes
de garantir a toda população o acesso à moradia.
Caso os programas sociais voltados à efetividade do direito à moradia se
dessem por intermédio do acesso, com os mesmos recursos, o Estado seria capaz
de adquirir os imóveis para si, devendo ceder apenas o exercício da posse àqueles
que não têm condições de adquirir a casa própria, e não ficar investido recursos
públicos na compra, cessão ou doação de imóveis à população a custos módicos,
ou senão zero.
A busca pela auto realização e a transformação pessoal é algo muito presente
na era do acesso e a propriedade deve servir de instrumento para o exercício da
383
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 5.
99
vida humana plena384, que se dará por intermédio de redes, representando uma
otimização da própria vida385. Assim, a propriedade deve permanecer com o
produtor, mas ser utilizada por uma ou mais pessoas386.
Este estudo permite compreender que a garantia de acesso à moradia por
intermédio dos imóveis de propriedade exclusiva do Estado deve se dar em
atendimento às necessidades do beneficiário, cujo uso, porém, deve ser temporário
e não perpétuo. O cidadão deve estar autorizado a morar no imóvel público por um
período certo de tempo, mediante um contrato, por exemplo, desde que atendidos
os requisitos preestabelecidos no programa a ser elaborado pelo Poder Público, com
a possibilidade, inclusive, de haver uma renovação, após uma reavaliação daqueles
requisitos a que todos os beneficiários estarão submetidos.
Além dos atuais necessitados, esse programa também poderia atender as
famílias futuras, após uma prévia avaliação, em obediência aos mesmos requisitos,
já que ele não representaria um direito adquirido dos cidadãos que já fazem uso do
benefício, muito menos das suas futuras gerações, por se tratar de uso temporário
de bem público. Em contrapartida, caberia ao beneficiário do programa pagar um
aluguel, mesmo que mediante um valor simbólico.
Esse estudo é capaz de oferecer alternativas ao Poder Público, a fim de que
este possa criar programas capazes de garantir aos cidadãos o acesso à moradia
mediante uma cessão do exercício da posse sobre os imóveis, que devem pertencer
sob a propriedade exclusiva do Estado.
Os atuais programas do governo garantem aos cidadãos a aquisição da casa
própria a custos módicos, já que a maior parte do preço da conta é paga pelo
Estado. No intuito de oferecer um contributo ao Poder Público, que tem o dever de
desenvolver uma política pública capaz de garantir a efetividade do direito
fundamental social à moradia, o Estado não deve mais financiar a aquisição da casa
própria. As Políticas Públicas baseadas no acesso representariam um gasto
consciente dos recursos públicos, que também passariam a ser direcionados para a
garantia de uma infraestrutura de qualidade, mediante a prestação dos serviços de
384
RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 197. 385
Idem. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016, p. 262. 386
Idem. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2005, p. 175.
100
saneamento básico, coleta de lixo, fornecimentos de água, transporte, construção de
hospitais e escolas, entre outros, já que esses bens guardam uma intima relação
com o direito social à moradia, considerando que os recursos públicos são finitos e o
Estado tem o dever constitucional de assegurar a efetividade dos direitos
fundamentais sociais.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito social à moradia, expressamente consagrado pela ordem jurídica
constitucional brasileira, possui em seu significado a natureza de direito
fundamental, já que está entre os bens que compõem o mínimo existencial, por isso,
é reconhecido como um suporte para a concretização da dignidade da pessoa
humana.
Trata-se de um direito imprescindível à proteção e à satisfação das
necessidades existenciais básicas do ser humano, sem o qual não haverá uma vida
digna, ou seja, existe uma íntima conexão entre a dignidade da pessoa humana e o
direito social à moradia, tendo em vista que este direito carrega consigo o significado
da existência de padrões mínimos necessários a uma vida saudável, ante a
necessidade da preservação da intimidade, da privacidade, da saúde, do sossego,
do bem estar, entre outros, não significando apenas o exercício do direito a um teto.
É um direito extrapatrimonial, por possuir relação de interdependência com
outros bens, como a vida, a saúde, a integridade física e moral, a intimidade, a
liberdade, entre outros. Por isso o direito à moradia é capaz de assegurar o respeito
à integridade física, psíquica e moral da pessoa. Ele está entre os bens que
compõem a personalidade humana, entendida como um complexo de características
interiores e, por isso, inerente a cada ser humano. Ou seja, trata-se de um direito
subjetivo público, capaz de permitir ao seu titular o reconhecimento da sua plena
exigência em face do Poder Público, tanto na sua função de defesa, quanto na
função prestacional, de acordo com a sua dupla concepção.
Desse modo, não há como negar a eficácia imediata do direito fundamental
social à moradia, em consonância com a previsão do §1º do artigo 5º da
Constituição Federal, sob pena de se esvaziar a fundamentalidade desse direito,
apesar de a ausência de recursos financeiros interferir na plena concretização desse
direito. A solução desse impasse deve se dar a partir do princípio da dignidade da
pessoa humana, que, ao estabelecer padrões mínimos a serem garantidos aos
cidadãos, em consonância com a teoria do mínimo existencial, impõe o respeito e a
plena efetividade dos direitos fundamentais, entre os quais, o direto à moradia, não
devendo este ser tratado como uma norma programática, como acreditam alguns.
102
Mas não há como resolver o problema da efetividade do direito à moradia
pela lógica do tudo ou nada, já que, além da limitação de recursos financeiros, os
direitos fundamentais não possuem um núcleo fechado de posições, necessitando
de uma contextualização, a luz da necessidade de cada pessoa. Esse argumento,
porém, não legitima a omissão do Estado, que, ao justificar a sua inércia com base
no princípio da reserva do possível, garante a inefetividade do direito fundamental
social à moradia.
Sob os olhos do princípio da dignidade da pessoa humana, incumbe ao
Estado desenvolver políticas públicas satisfatórias, de modo a assegurar a
efetividade do direito fundamental social à moradia, inclusive em razão da natureza
prestacional deste direito, em que são coordenados os meios à disposição do
Estado para a realização dos objetivos sociais. Ocorre, porém, que, atualmente, a
maioria dos programas do governo se baseia na propriedade como instrumento para
a efetividade do direito fundamental social à moradia.
A propriedade recebeu tratamento de acordo com as circunstâncias sócio-
econômicas de cada época, cujo conceito refletiu os valores e autonomias
consolidados no decorrer da história, principalmente pelo fato de que as condições
econômicas e políticas serviram como fatores determinantes à origem e ao
desenvolvimento desse instituto.
Se no período feudal a terra serviu de elemento de relação pessoal entre o
senhor feudal e seus vassalos, permitindo explicar a legitimidade de mais de um
proprietário sobre a mesma coisa, com a evolução da produção, intensificação das
relações de troca e desenvolvimento do mercado, as propriedades passaram a
servir aos plenos poderes do proprietário, a partir de uma visão individualista, num
período em que os homens são descobertos como indivíduos livres e iguais. Em
consonância com o desenvolvimento econômico e o capitalismo, a propriedade
representava um elemento de realização humana, já que por meio dela o indivíduo
podia exercer sua liberdade e autonomia, significando um poder do sujeito sobre o
bem.
Com a inauguração do Estado Social, inspirada na conveniência e na
circunstância sócio-econômica, a propriedade passa a ter uma função social, em
consonância com os ditames do principio da dignidade da pessoa humana, em
comunhão com a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações
privadas, cujos fundamentos alteraram alguns aspectos relacionados ao uso da
103
propriedade, que agora também deve ser exercida em favor dos desprivilegiados e
dos não proprietários, de modo a reduzir as desigualdades e permitir que todos
tenham acesso.
A evolução do capitalismo também contribuiu para a modificação do
tratamento dado à propriedade, por se tratar de um instituto de grande relevância
para o capitalismo. Por essa razão, no novo capitalismo a propriedade deixou de ser
o bem mais importante, uma vez que as relações de empréstimo de bens por um
período certo de tempo passou a ser mais interessante, do que trocá-los no
mercado. Trata-se de uma estratégia decorrente da percepção de que a propriedade
é um instituto muito caro e, portanto, lento, principalmente em razão do acelerado
ritmo das grandes inovações tecnologias, as quais tornam os bens imediatamente
desatualizados.
Instaurou-se uma economia de redes, onde é possível assegurar que um
número maior de usuários tenha acesso aos bens, totalmente condizente com a
nova era, em que a busca pela autorrealização e a transformação pessoal é uma
constante. Por isso, a propriedade deve estar à disposição do cidadão, ao mesmo
tempo em que a liberdade não deve ser pensada de modo a excluir o outro, por isso
o exercício da propriedade passa a ocorrer num relacionamento compartilhado,
aliás, em consonância com a função social que lhe foi imposta.
E é seguindo essa evolução de conceitos, em consonância com o respeito
aos direitos fundamentais, que as políticas públicas devem ser desenvolvidas, de
modo a assegurar a plena efetividade do direito fundamental social à moradia.
Reconhecidas como instrumento a disposição do Estado, que tem de garantir o
cumprimento do seu dever prestacional, em consonância com o direito ao
desenvolvimento, as políticas públicas devem ser implementadas sem que se perca
de vista os fatores econômicos, já que os recursos públicos são finitos. Por esse
motivo, a atuação do Poder Público deve se dar de forma planejada, sem que isso
represente uma negativa à efetividade do direito fundamental social à moradia, o
qual não deve estar condicionado ao princípio da reserva do possível.
Baseado na ideia de acesso, este trabalho propôs o desenvolvimento de
políticas públicas alternativas de efetividade do direito fundamental social (de
acesso) à moradia, que não devem estar fundamentadas pura e exclusivamente na
propriedade, tida como cara e lenta, inclusive com o repúdio ao argumento de que a
ausência de recursos públicos justifica a inércia do Estado.
104
A realidade brasileira demonstra que grande parcela da população,
principalmente aquela que se encontra em condições de miserabilidade, vivencia
uma exclusão social cada vez mais intensa, e, consequentemente, não tem acesso
à moradia, ao mesmo tempo em que o Estado permanece inerte ou tentando
justificar a sua omissão, fato que desperta a necessidade deste estudo
A moradia ainda é muitas vezes tratada como um direito à propriedade de
uma casa ou de um apartamento, ou o domínio sobre um bem imóvel, numa visão
individualista e capitalista. E esse significado, associado ao sistema financeiro, está
presente nas atuais políticas públicas, as quais são desenvolvidas no intuito de, na
maioria das vezes, estimular a indústria da construção civil, de modo a identificar as
unidades habitacionais como mercadorias, já que é um negócio atraente e acessível
no regime de mercado, ao invés de garantir a efetividade da moradia digna como
objetivo principal.
As políticas públicas atuais têm servido mais para fomentar o crescimento
econômico, o nível de emprego de mão de obra de baixa qualificação, as atividades
de construção civil, o comércio de insumos, do que garantir a universalização do
direito à moradia ou a redução do déficit habitacional. Por arcar com a maior parte
do preço e pelo fato de a moradia ser compreendida como sinônimo de propriedade,
os atuais programas sociais de financiamento da casa própria representam um
grande custo para o Poder Público, fato que impede que um número maior de
pessoas exerça seu direito fundamental social à moradia.
A era do acesso reconhece a propriedade como instrumento que permite ao
indivíduo uma vida humana plena, em consonância com a inclusão e com o acesso,
já que viabiliza a busca pela autorrealização e transformação pessoal, cujos
fundamentos comungam as ideias do Estado Social, o qual destaca a preocupação
em dar efetividade aos direitos individuais e sociais, de modo a garantir o fim da
exclusão social, sem que se perca de vista que os recursos públicos são finitos.
A concretização do direito fundamental social à moradia pode se dar por meio
do acesso, por isso, pretende-se com este estudo oferecer um contributo para as
atuais políticas públicas habitacionais, de modo a disponibilizar uma alternativa ao
Poder Público, que deve desenvolver políticas públicas satisfatórias à efetividade do
direito à moradia digna.
105
REFERÊNCIAS
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e
controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador. N. 15 jan./mar. p.
1-31, 2007. Disponível em:
˂http://www.direitopublico.com.br/pdf_seguro/artigo_controle_pol_ticas_p_blicas_.pd
f˃. Acesso em: 02/02/17.
_____. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos
fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático.
In: Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. SARLET, Ingo
Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti. (Orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008,
p. 111-147.
_____. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada.
Revista de direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 48, p.
60-98, 1995.
_____. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. N.
240 abr./jun. p. 1-42, 2005. Disponível
em:˂http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618/44695˃.
Acesso em: 08/02/2017.
_____. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da
supremacia do interesse público. In. SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos
versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse
público. 2ª Tiragem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, prefácio, p. 7-18.
106
BELTRÃO, Demétrius Amaral. Direito Econômico, planejamento e orçamento
público. Defesa: 2015. 148 f. Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) –
Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, 2015.
BESSONE, Darcy. A propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.).
Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011, p. 427 – 441.
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais,
democracia e constitucionalização. 2. ed.. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política.
2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
_____. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro. 13ª
reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
_____. A grande dicotomia: público/privado. In: Da estrutura à função: novos
estudos de teoria do direito. Tradução: Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole,
2007.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 30ª Ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2015.
BRASIL. COHAB MINAS – Companhia de habitação do Estado de Minas Gerais.
História. Disponível em: ˂http://www.cohab.mg.gov.br/cohab/historia/˃. Acesso em:
20/02/2017.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas
públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
_____. Políticas públicas e direito administrativo. Revista Trimestral de Direito
Público. Brasília a. 34 n. 133 jan./mar. p. 89-98,1997. Disponível em:
˂http://direito.unb.br/images/Pos-
107
Graduacao/Processo_Seletivo/Processo_Seletivo_2016/Prova_de_Conteudo/politica
s_publicas_e_direito_administrativo.pdf˃. Acesso em: 03/02/2017.
_____. Notas para uma metodologia jurídica de análise de políticas públicas. In:
Políticas públicas: possibilidades e limites. FORTINI, Cristiana. ESTEVES, Julio
César dos Santos. DIAS, Maria Tereza Fonseca.(Orgs.). Belo Horizonte: Fórum,
2008.
_____. Buscando um conceito de Políticas Públicas para a Concretização dos
Direitos Humanos. In: Direitos Humanos e Políticas Públicas. BUCCI, Maria Paula
Dallari. et. al. São Paulo: Polis, 2001.
_____. Política Pública e direito administrativo. In: Direito administrativo e políticas
públicas. São Paulo: Saraiva, 2002.
_____. Cooperativas de habitação no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.
ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas:
uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol. I. 30. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2.
ed., 2003.
_____. Conceituação do direito de propriedade. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA,
Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e políticos. Vol. II. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p. 813 – 852.
_____. Estatuto do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
108
_____; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da
pessoa humana e o novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006.
FONSECA, Ricardo Marcelo. A lei de terras e o advento da propriedade moderna no
Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, nº. 17, p. 97-112, 2005. Disponível
em: <https://revistas-colaboracion.juridicas.unam.mx/index.php/anuario-mexicano-
historia-der/article/view/29680/26803>. Acesso em: 20 de dezembro de 2016.
GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed.. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
_____. Introdução ao direito civil. 10. ed. 1ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
_____. Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade. In:
PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (Orgs.). Direitos humanos: direitos civis e
políticos. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 937 – 950.
GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Luiz Ernani
Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./ mar. 1999.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1998.
MÂNICA. Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a
prestações e a intervenção do Poder Judiciário na implementação de Políticas
Públicas. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto
Brasileiro de Direito Público, n. 25, fevereiro/março/abril, p. 1-17, 2011. Disponível
em: <http://direitodoestado.com/revista/REDAE-25-ABRIL-2011-FERNANDO-
BORGES-MANICA.pdf˃. Acesso em: 16 de fevereiro de 2017.
109
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça
social. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais,
culturais e ambientais. Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
_____. O controle judicial dos atos administrativos. Revista de direito administrativo.
Rio de Janeiro. N. 152. abr./ jun. p. 1-15, 1983. Disponível em:
˂http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43770/42561˃. Acesso
em: 21/02/17.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002.
PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo
comparativo entre direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto
Alegre: EDIPUCRSP, 2009.
PERLIGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2ª ed. Rio de janeiro: Ed. Renovar, 2002.
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Contrato e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá,
2009.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana e
a Constituição Brasileira de 1988. In PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (Org.)
Direitos humanos: teoria geral dos direitos humanos (coleção doutrinas essenciais).
Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 305-322.
_____. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 14ª. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos
e a redução da força global de trabalho. Tradução: Ruth Gabriela Bahr. São Paulo:
Makron Books, 1995.
110
_____. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o
nascimento de uma nova economia. Tradução: Maria Lucia G. L. Rosa. São Paulo:
Makron Books, 2001.
_____. O sonho europeu. Tradução: Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Makron
Books do Brasil Editoras, 2005.
_____. Sociedade com custo marginal zero. Tradução: Monica Rosemberg. São
Paulo: Makron Books do Brasil Editoras, 2016.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e
futuro. São Paulo: Saraiva, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas
anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: PIOVESAN,
Flávia; GARCIA, Maria. (org.). Direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Vol. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
_____. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In PIOVESAN, Flávia;
GARCIA, Maria (Org.) Direitos humanos: teoria geral dos direitos humanos (coleção
doutrinas essenciais). Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 383
– 441.
_____. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 10. Ed. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2015.
_____. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 12. Ed. Porto Alegre: livraria do
Advogado, 2015.
_____; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e
direito à saúde: algumas aproximações. Revista de doutrina da 4ª Região, Porto
Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em:
111
˂http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br
/artigos/edicao024/ingo_mariana.html˃. Acesso em: 14 out. 2016.
_____. Neoconstitucionalismo e influência dos direitos fundamentais no direito
privado: algumas notas sobre a evolução brasileira. Disponível em
<http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Sarlet-civilistica.com-a.-
1.n.1.2012.pdf>. Acesso em: 02/03/2016.
SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e justiça
social. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, n. 12, dez./jan./fev.
p. 1-28, 2008.
_____. A normatividade da Constituição e a constitucionalização do Direito Privado.
Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, vol. 6, n° 23, p. 272-297, ano 2003. Disponível
em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista23/revista23_272.pdf
>. Acesso em: 13 de janeiro de 2017.
SCHWABE, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal Alemão. Organização e introdução: Leonardo Martins. Tradução: Beatriz
Hennig; Leonardo Martins; Mariana Bigelli de Carvalho; Tereza Maria de Castro;
Vivianne Geraldes Ferreira. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2005.
SERRANO JÚNIOR. Odoné. O direito humano fundamental à moradia digna:
exigibilidade, universalizacao e políticas públicas para o desenvolvimento. Curitiba:
Juruá, 2012.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 38ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2015.
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise
comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos da
personalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
112
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
_____. SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro.
Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, n. 6, p. 101-119, jun. 2005.
_____. Temas de direito civil. Tombo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de
Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 177, jul./set. p. 29-49, 1989.
TRUBEK, David. M..A coruja e o gatinho: há futuro para o “direito e
desenvolvimento”? O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. (Org.) Tradução: Pedro Maia Soares. Revisão técnica:
José Rodrigo Rodriguez. São Paulo: Saraiva, 2009.
top related