2007 silveira educacao patrimonial

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Educação Patrimonial

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    EDUCAO PATRIMONIAL:PERSPECTIVAS E DILEMAS

    Flvio Leonel Abreu da Silveira1

    Marcia Bezerra2

    O presente artigo visa reflexo de questes originadas no Grupode Trabalho Educao Patrimonial: perspectivas e dilemas3 , coordenadopelos autores durante a 25 Reunio da Associao Brasileira deAntropologia, realizada em 2006, na cidade de Goinia4 . Os trabalhos,cujas temticas percorreram a Antropologia, a Arqueologia, a Histriae a Educao, deram-nos a medida do carter interdisciplinar e dialgicoda Educao Patrimonial. As experincias apresentadas ao longo doGT, ao se inserirem em contextos geogrficos distintos5 e trataremde diferentes sujeitos, permitiram reconhecer que, a despeito dassingularidades, h pontos recorrentes que merecem a nossa ateno.Alguns emergiram no desenrolar do prprio GT, enquanto outros sedelinearam em momentos posteriores ao evento.

    Em primeiro lugar, consideramos fundamental tratar da prpriaexpresso Educao Patrimonial e de seus desdobramentos no Brasil.Em seguida, partimos para uma reflexo sobre a relao entre aEducao Patrimonial e o Outro, considerando a Antropologia e aArqueologia. Num terceiro momento, apresentamos algumasdiscusses acerca do papel interdisciplinar da Educao Patrimonial e,por fim, tratamos das paisagens patrimoniais.

    1 Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor doDepartamento de Antropologia da Universidade Federal do Par.

    2 Doutora em Arqueologia pela Universidade de So Paulo e Professora Visitante do MestradoProfissional em Gesto do Patrimnio Cultural da Universidade Catlica de Gois.3 Os resumos e trabalhos completos do GT encontram-se disponveis nos Anais da 25 RBA. Vols.1 e 2, 2006.4 Participantes do GT: Carlos Xavier A. Netto, Fernando Marques (et al) , Jorge Najjar, Luciano P.Silva, Maria Beatriz P. Machado, Olavo R. Marques, Rosana Najjar.5 Rio Grande do Sul, So Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Par.

  • MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE BELTRO (Organizadores)

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    Educao Patrimonial

    Afinal, o que Educao Patrimonial? Com esta pergunta,pretendemos instigar as pessoas a pensarem sobre o seu estatuto noque tange ao processo de ensino-aprendizagem em interseco com ocampo do patrimnio. A Educao Patrimonial situa-se nos interstciosdisciplinares. Portanto, estamos longe de propor qualquer tipo dedefinio. Alm disso, entendemos que no h como dissociar a prticaeducativa da idia de cultura e de patrimnio, o que acaba por tornar aexpresso Educao Patrimonial um pleonasmo (CHAGAS, 2006;BEZERRA, 2006) que, segundo Chagas (op.cit.), caiu no gostopopular mas, em nossa avaliao, de forma acrtica.

    Perceber a educao dentro de uma perspectiva que aposta nacultura como princpio norteador no novidade no Brasil. No inciodos anos 1980, criado, pela Fundao Nacional Pr-Memria, oprojeto Interao entre a educao bsica e os diferentes contextosculturais existentes no pas (FONSECA, 1996: 157), que procuravadiminuir a distncia entre a educao escolar e o cotidiano dos alunos[conferindo o] estatuto de cultura s experincias que o aluno traziapara a escola (op.cit.). Isto implicava a utilizao das artes em geral,assim como dos esportes, dos museus e dos locais histricos, comoferramentas pedaggicas que potencializassem o processo ensino-aprendizado6 (BEZERRA, op.cit.).

    Somado a isso, para a escola freiriana de educao, um dos pontosfundamentais nessas discusses o conceito antropolgico de cultura.Em suas experincias, Freire (passim) observou que este tema indispensvel em qualquer contexto. O argumento de que, ao discutirsobre o mundo da cultura e seus elementos, os indivduos vodesnudando a sua realidade e se descobrindo nela. A cultura materialtorna-se elemento do processo de alfabetizao cultural empreendidopor Freire, assim como uma concepo de cultura que inclui asmanifestaes eruditas e populares.

    Nosso propsito no o de discutir as idias de Freire, mas mostrarque a viso de uma prtica educativa fundamentada na cultura no

    6 Aula ministrada no mdulo Poltica de Preservao do Patrimnio Cultural por Luiz AntnioBolcato Custdio, no Curso Patrimnio Cultural e Educao, promovido pelo Iphan, SecretariaMunicipal de Educao de Goinia, Universidade Catlica de Gois e Universidade Federal de Gois,em 2004.

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    surge com a Educao Patrimonial. Na verdade, o prprio Guia Bsicode Educao Patrimonial, publicado pelo Iphan em 1999 (HORTA,GRUNBERG & MONTEIRO), inspira-se de forma inequvoca emFreire ao afirmar, em suas primeiras pginas, que a EducaoPatrimonial um processo de alfabetizao cultural (Idem: 6). Emartigo posterior, Horta (2003: 1) deixa claro que a Educao Patrimonialpode ser um instrumento de alfabetizao cultural (...) como propePaulo Freire em sua idia de empowerment7 .

    O que queremos dizer que os germes da chamada EducaoPatrimonial j se encontravam presentes em aes educativas no Brasil,mas a sua introduo oficial costuma ser datada dos anos 1980 eassociada a um evento organizado pelo Estado.

    A expresso Educao Patrimonial foi formulada pela primeiravez no pas em 1983, a partir de um seminrio realizado no MuseuImperial, em Petrpolis, no Rio de Janeiro (HORTA, 2005; HORTA,GRUNBERG & MONTEIRO, op.cit.). O encontro tinha por objetivoa apresentao de uma metodologia inspirada em uma iniciativapedaggica adotada na Inglaterra e cujo mote era o uso educacionaldos museus e monumentos (HORTA, op.cit.: 221). A idia central eraa de utilizar as fontes primrias como ferramenta didtica nas escolas,o que ocorria na Inglaterra desde os anos 1970, especialmente pormeio da noo de evidence-based history para o ensino da Histriadaquele pas (BEZERRA, 2006).

    O uso de fontes primrias na escola era a piece de resistence doSchools Council Project desenvolvido na Inglaterra nos anos 1970. Oconselho no existe mais; no entanto, a proposta de apropriao dacultura material como instrumento de aprendizado , ainda hoje,adotada em muitas escolas (PLANEL, 1994).

    A utilizao de fontes primrias por meio de visitas a museus,stios arqueolgicos, cidades histricas e arquivos para o ensino de His-tria tambm est prevista nos Parmetros Curriculares do EnsinoFundamental no Brasil (BRASIL, 1998)8 , o que por si s no tem ga-rantido a sua incluso de forma crtica nas escolas. Para Machado(2006), h pouca participao da escola como produtora de aes de e

    7 O grifo da autora. Est em negrito no original.

    8 Ver PCNs de Histria para o Ensino Fundamental 3 e 4 ciclos Seo: Visitas a Exposies,Museus e Stios Arqueolgicos. 1998. Pgina 89.

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    sobre a EP, restringindo-se a sua atuao, em geral, como receptoradestas iniciativas.

    O que se v um modismo no uso da expresso EducaoPatrimonial (CHAGAS, 2006; BEZERRA, 2006), o que, por um lado,aponta para a multiplicao do nmero de projetos baseados nos benspatrimonais e, por outro, indica a urgncia de se discutir sobre o tema,que tem desdobramentos importantes para a dinmica de constituioe de preservao do patrimnio cultural como um todo.

    Percebemos que a chamada Educao Patrimonial um temacomplexo, entendido aqui, nos termos de Morin (1990), como umaquesto problema e no meramente como uma soluo, uma vez queanuncia tanto reflexes em aberto, porque prprias de um campo dediscusso e de pesquisa que se define historicamente, como, ao mesmotempo, aponta para um conjunto de aes de carter tcnico a seremavaliadas dentro de uma perspectiva tica, mas no de uma tica quedesconsidera a viso do Outro e toma o olhar do tcnico como algoque basta em si mesmo, e sim de uma tica de reciprocidade que situa odilogo e a troca cultural como um horizonte possvel. Tal questo crucial para as Cincias Humanas, o que nos leva prxima discusso.

    Educao Patrimonial e a Questo do Outro

    Parece-nos que a Educao Patrimonial implica uma discusso,se no perifrica, pelo menos nova, tanto para a Antropologia quantopara a Arqueologia, por isso sujeita a alguns preconceitos. O dilogodas Cincias Sociais com os temas relativos educao surge no cen-rio de ambas as disciplinas como uma questo que tem a sua relevn-cia, mas que ainda sugere um carter secundrio. No entanto, coloca aimportncia do tema quando indica caminhos para as reflexes sobreuma tica de interveno em projetos de conservao patrimonial juntos paisagens do Outro9 .

    Se a Antropologia, paulatinamente, parece abrir-se discusso,a Arqueologia, por sua vez, j adentrou no terreno de dilogo tensoentre diferentes campos do saber, ou seja, da interseco entre temas

    9 O trabalho A percepo do bem arqueolgico e sua preservao: a experincia de intervenoacadmica e gesto comunitria no stio de Joanes, PA apresentado no GT por Marques, Schaan,Lima, Gomes, Silva e Dias trata da relao entre pesquisadores e comunidade local, apontandocaminhos para estas intervenes.

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    educacionais e arqueolgicos. O que fica claro, neste caso, a presenade uma certa resistncia, por parte de uma Arqueologia maistradicional, no que se refere aos arquelogos que trabalham com otema Arqueologia e Educao, ou, de forma mais ampla, com a chamadaArqueologia Pblica, indicando ser esta uma questo menor na rea.

    A Arqueologia com o pblico, ou a Arqueologia Pblica, surgedcadas atrs como um conjunto de aes e de reflexes que objetivasaber a quem interessa o conhecimento produzido pela Arqueologia,de que forma nossas pesquisas afetam a sociedade, como esto sendoapresentadas ao pblico ou seja, mais do que uma linha de pesquisadentro da disciplina, a Arqueologia Pblica inerente ao exerccio daprofisso (BEZERRA DE ALMEIDA, 2002; FUNARI, 2001). Seudesenvolvimento no Brasil ainda incipiente e encontra muitas reaes,sobretudo de um grupo mais conservador que ainda no se ps a refletirsobre o impacto que causa na sociedade e sobre o fato de que assumir aperspectiva de uma based-community archaeology apostar nasobrevivncia da prpria disciplina10 .

    A Arqueologia Brasileira, na anlise de Minetti e Pyburn (2005:100), apresenta-se como extremely hierarchical with a strongpaternalist/patronizing component. Esta atitude reproduzida narelao entre os arquelogos e o pblico, a qual se caracteriza pelodistanciamento e pelo paternalismo, implicando a desvalorizao darelao entre Arqueologia e Educao e, em conseqncia, da EducaoPatrimonial.

    Contudo, desde 2002, um dispositivo legal do IPHAN tem criadocondies propcias para que o Outro faa parte da agenda daArqueologia11 . A portaria 230 do IPHAN12 recomenda a elaboraode projetos de Educao Patrimonial13 no mbito dos projetos da

    10 Pyburn, 2006. Comunicao pessoal.

    11 Najjar apresentou no GT o trabalho O Iphan e a Educao Patrimonial: a arqueologia pblicanos projetos de restaurao, que discute o papel do Estado como educador coletivo. Ver Najjar;Najjar (2006)

    12 Portaria 230, de 17 de dezembro de 2002, do Departamento de Proteo, do Instituto doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional. Ver Iphan. Coletnea de Lei Sobre Preservao do Patrimnio.Iphan: Rio de Janeiro, 2006 (pp. 183-186).

    13 Trabalho apresentado no GT As Duas Faces da Educao Patrimonial de C.X.A. Netto trata daEP dentro dos projetos de contrato.

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    chamada Arqueologia de Contrato14 , que hoje responsvel pelamaioria das pesquisas arqueolgicas no pas (PROUS, 2006).

    Mas h de se perguntar: ser que tais projetos tm conseguidoalcanar os objetivos traados? Ser que se tm preocupado em revelarconflitos ou apenas em mostrar distintas manifestaes culturais? Serque apostam numa histria nacional formada por uma rede de fioscom nuances e matizes diferentes ou perpetuam a idia da supremaciade um grupo sobre os demais contribuintes da nao? Ser quepercebem a diversidade cultural a partir de uma relao deinterdependncia ou reproduzem a viso partida, de dominao, dedependncia? Ser que ouvem todas as vozes ou apenas uma? Ser quereforam o sentimento de comunidade ou perpetuam a noo deunidade? Ser que incluem, de fato, o Outro?

    No obstante, os arquelogos esto sempre lidando com opatrimnio do outro. Esta situao demanda e, ao mesmo tempo,provoca um estado constante de alerta (BARROS, 2003: 168), idealpara a compreenso desta intrincada rede de relaes15 .

    Acreditamos que conceber a Arqueologia [Pblica] comoAntropologia [Aplicada] (PYBURN & WILK, op.cit.; SHACKEL &CHAMBERS, 2004) implica a percepo dos outros sujeitos destasrelaes e o reconhecimento do uso do passado como um caminhopara o fortalecimento de comunidades com as quais lidamos durantenossas pesquisas. Isto se faz a partir de um processo contnuo denegociao, que tem, na Educao Patrimonial, um valioso instrumentode mediao (PYBURN & BEZERRA, 2006).

    Infelizmente, no Brasil seja na perspectiva da Antropologia ouna da Arqueologia , pouca ateno tem sido dada s experincias deensino-aprendizado que buscam a valorizao dos benspatrimonializveis pelas comunidades nas quais os mesmosdesempenham algum papel em sua dinmica cultural, mais

    14 Pesquisas realizadas no mbito dos projetos de avaliao ambiental que visam preservao dopatrimnio arqueolgico ameaado por empreendimentos. Ver Caldarelli, S.; Santos, M.C.M.M. dos Arqueologia de Contrato no Brasil. Revista da USP, So Paulo, n.44, pp.10-31, dezembro/fevereiro1999-2000.

    15 Dois trabalhos de EP apresentados no GT trataram de projetos realizados com comunidadesindgenas e quilombolas: Marques, O.R. Polticas quilombolas, aes patrimoniais e memria coletivae Silva, L.P. Ensino Superior Indgena Diferenciado, patrimnio (i)material e arqueologia pblica: aexperincia do curso Arqueologia e Habitaes Indgenas entre professores indgenas de 22 etniasde Mato Grosso.

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    especificamente aquelas tentativas de envolver as pessoas que convivemdiariamente com os bens a serem conservados em projetos dedesenvolvimento a fim de que considerem os seus saberes e fazeresacumulados ao longo do tempo e suas relaes com os patrimnioscomo relevantes para o prprio mbito da conservao.

    As discusses sobre o tema das experincias de aprendizagensvoltadas conservao do patrimnio colocam a urgncia da anlisedas aes dos tcnicos do campo do patrimnio, dos educadorespatrimoniais e ambientais, que buscam intervir num determinadocontexto cultural de forma a modificar certos hbitos e vises noque tange aos patrimnios culturais e naturais brasileiros consideradosagresses, esquecimentos ou desinteresse pela memria social.

    As intervenes didtico-pedaggicas que consideram acriatividade humana em lidar com os artefatos e com as paisagensengendrados pela prpria cultura em seu lugar de pertena devem tomaresse ato consciente como um saber acerca de si e do mundo, por maisque ele parea encoberto aos olhos de quem o v de fora por nopertencer ao lugar e por no dominar os cdigos culturais ali vigentes.Ou seja, h formas de saberes e de fazeres explcitos e implcitos acercados elementos materiais e imateriais que compem o mundo, mas queescapam a uma viso meramente tcnica.

    Neste sentido, a idia redentora de conscientizar o Outro, topropalada por educadores e tcnicos do campo do patrimnio, revelauma violncia simblica (BOURDIEU, 1989) ante as comunidades,visto que se apresenta pouco afeita ao olhar antropolgico que toma oOutro como um sujeito capaz de realizar a sua prpria hermenuticado mundo no qual est inserido. Portanto, as perspectivasconscientizadoras desconsideram a viso de mundo dos envolvidos como processo de conservao patrimonial, tendendo a tom-los comopessoas que necessitam da luz do conhecimento para aclarar suasconscincias obtusas. Isto se daria, na perspectiva desses profissionais,pela pouca viso, por parte dos nativos, da grandiosidade dos benscom os quais convivem.

    A perspectiva conscientizadora16 deve ser substituda pela

    16 Um ponto de discordncia entre a nossa perspectiva e a de Freire, uma vez que em sua obra a idiade conscientizar central. Sua aplicao nos trabalhos de EP deve ser vista dentro de uma perspectivacrtica.

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    sensibilizao e pela participao crtica acerca do valor da paisagempatrimonial que tais grupos humanos detm. Tal perspectiva deve serconsiderada num sentido bastante amplo, tomando as paisagens (scapes)analisadas por Appadurai (1994) como horizontes possveis de seremconsiderados, como caso das Misses Jesuticas localizadas na rea doMercosul.

    Sendo assim, preciso que a participao dos grupos sociaisvinculados aos bens por intermdio de prticas sociais e simblicascotidianas seja levada em considerao, a fim de que os mesmos reflitamacerca do valor que sua cultura (atual ou ancestral) apresenta paracontextos culturais mais amplos, num sentido nacional e transnacional.O problema reside no fato de que, por vezes, tais grupos sequer soouvidos em seus anseios acerca do destino de seus patrimnios. Aspessoas vivem o lugar onde os mesmos existem como parte do cenriode suas paisagens de pertena, independente do que pensam osprofissionais do campo do patrimnio, que, igualmente, tm tidodificuldade em ouvir outras reas do conhecimento a quem o patrimniotambm interessa. esse o nosso terceiro ponto de discusso: a EP ea interdisciplinaridade.

    Educao Patrimonial e Interdisciplinaridade

    Partimos do princpio de que a interdisciplinaridade, enquantouma aventura do conhecimento, nos impe uma espcie dedeslocamento de nossa posio em um campo especfico do saber,ampliando os horizontes de atuao, uma vez que nos coloca comoagentes na construo de um saber novo e, por isso mesmo, complexoe instvel.

    No advogamos, aqui, uma perspectiva holstica e redentora dossaberes no alvorecer de uma Nova Era do conhecimento, o queapontaria para uma fuso de horizontes isenta de tenses. Pelocontrrio, sinalizamos para os dilemas e complexidades existentes naaproximao de saberes, metodologias e perspectivas terico-conceituais que precisam ser negociadas no ato mesmo de se lanar interdisciplinaridade.

    A abertura dialgica, portanto, re-situa nosso olhar nesseprocesso de produo de um saber ampliado para alm dos limites do

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    campo de conhecimento do qual somos oriundos. Se isto verdade, aespecializao estreita, ou ainda a viso compartimentadora doconhecimento, impe-nos uma nova visada sobre o prprio fazercientfico, assim como uma tica de reciprocidade que contemple apertinncia do olhar do outro, na medida em que percebe o significadode nosso olhar na interao.

    Nestes termos, a perspectiva interdisciplinar emerge como umaquesto central para as pesquisas e intervenes sobre a temtica dopatrimnio, especialmente quando se trata de pensarmos sobre o papeldos profissionais e dos tcnicos do campo do patrimnio junto scomunidades em que tais elementos aparecem.

    As nossas inquietaes enquanto profissionais que trabalham nainterface das Cincias Sociais com a Educao nos colocam anecessidade de estabelecermos um dilogo profcuo entre Educao,Antropologia, Arqueologia e Histria, evidenciando que o campo daEducao Patrimonial uma rea do conhecimento eminentementeinterdisciplinar17 . Ou seja, qualquer atividade ligada ao tema dasaprendizagens patrimoniais deve considerar a matriz complexa quedefine o campo de atuao profissional e as formas de interveno juntoaos grupos sociais, que encerram estratgias didtico-pedaggicassituadas na interface das cincias.

    Paisagens Patrimoniais: a temtica do lugar e o lugar da educao

    A Educao Patrimonial, ao lidar com a noo polissmica depatrimnio, deve considerar as complexas nuances histrico-culturaisenvolvidas no fenmeno da (i)materialidade das paisagens do Outro,sejam elas Stios Arqueolgicos, Centros Histricos, ReservasIndgenas, Territrios Quilombolas, Parques Nacionais, assim pordiante. Nesses termos, tanto a Antropologia quanto a Arqueologiasurgem como campos do conhecimento acerca de expressescivilizacionais existentes e/ou desaparecidas , de grande relevnciapara as reflexes que tm na educao, mais especificamente naquelavoltada s aprendizagens patrimoniais, o objetivo de colocar em prticaum conjunto de intervenes didtico-pedaggicas junto s sociedades

    17 preciso no esquecer a relevncia do dilogo com reas do conhecimento como a Arquitetura,a Geografia, a Biologia botnica, zoologia e gentica, por exemplo , a Qumica, entre outras, parao tema do patrimnio em seu sentido mais amplo possvel.

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    detentoras de patrimnios que merecem proteo estatal ou no.Sendo assim, uma perspectiva multicultural acerca dos bens

    patrimoniais aponta para a necessidade de compreendermos asdimenses simblico-prticas que constituem as manifestaes tico-estticas de um determinado grupo social, uma vez que cooperam conformao das paisagens de pertencimento ao longo do tempo. Aspaisagens, portanto, so espaos de celebrao (MAFFESOLI, 1994),porque vividas como o resultado de formas especficas de sociao(SIMMEL, 1983), sendo que a labuta e a sociabilidade dos gruposhumanos evidenciam as paisagens como expresses culturais em devir,fazendo com que o patrimnio comum seja interpretado de acordocom a viso de mundo no qual emerge como um fato de cultura.

    A prpria concepo de patrimnio segue princpios distintosentre diferentes sociedades. Fordred-Green, Neves e Green (2001: 55),a partir de um projeto de Arqueologia Pblica com grupos indgenas,observaram que os Palikur experienciam o passado no pelo patrimnioarqueolgico, mas por narrativas inscritas na paisagem.

    O que queremos dizer que h uma hermenutica das paisagens(SILVEIRA, 2004), que est intimamente relacionada s interpretaesdo que comumente denominamos patrimnio, pelas sociedades quevivem e experienciam o seu lugar. Antes de interpretarmos as paisagense os objetos como bens patrimoniais, devemos considerar que taiselementos esto imersos numa complexa teia de significaes queencerra nexos singulares, de modo que as coisas fazem sentidos deacordo com o ethos e o eidos especficos ao contexto scio-histricoem que aparecem.

    H um complexo processo de socializao no corpo de umasociedade que est apoiado num, no menos complexo, sistema deaprendizagens cotidianas, em que as interpretaes e representaesdo mundo significam a partir do lugar em que so engendradas pelosagentes sociais. Um objeto qualquer, uma edificao antiga ou umaruna tomada pela relva, por certo, jamais esto isentas de significaopara o grupo que os vivencia cotidianamente. As coisas no esto forado lugar. De fato, estes elementos materiais que se perpetuam napaisagem no so, em si, a memria, mas a sua fonte. So, portanto, abase material para a construo do imaginrio histrico (JEUDY, 1990).

    Sendo assim, as paisagens patrimoniais seriam, antes de um bem

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    de carter nacional voltado para as experincias tursticas, aqueleslugares praticados (CERTEAU, 2004) nos quais as pessoas realizamas suas atividades cotidianas de forma a manterem viva umadeterminada herana cultural. Este acervo comum no diz respeitoapenas s coisas materiais, mas tambm a um conjunto de imagens ede idias compartilhado que dinamiza o esprito do lugar, ao mesmotempo em que a elasticidade da memria coletiva (HALBWACHS,1990) a memria enquanto um espao fantstico (ROCHA &ECKERT, 2005) revela o jogo sutil entre lembrana e esquecimentocomo algo relevante para as pessoas.

    As paisagens so fenmenos de cultura, portanto a sua autonomia sempre relativa. Elas so o que significam. O humano, neste caso, apaisagem, porque ela no existe antes da significao: aocompartilharmos o mundo com os outros, somos a paisagem, na medidaem que configuramos as mesmas, no sentido de figurar junto e deconform-la de acordo com os anseios e desgnios da sociedade qualpertencemos.

    A relevncia de uma discusso desta ordem revela que a temticadas paisagens patrimoniais detm em si a densidade das camadas dememria coletiva (HALBWACHS, op.cit.) associada a determinadaslembranas de carter histrico-social. Numa paisagem patrimonial,convergem a imaterialidade e a materialidade das coisas (a aura/o manadas coisas associados materialidade mesma do objeto/artefato), umavez que reflete as sutilezas dos arranjos scio-culturais imersas naexperincia de viver o lugar de pertencimento ao longo do tempo,relacionada ao gesto tcnico (LEROI-GOURHAN, 1965) deconformao do mesmo, bem como nos usos e sentidos atribudos aeles pelos grupos sociais que o concebem como um elementopaisagstico o stio, o museu, o parque representativo da forma deser ou das expresses culturais que identificam a pertena a determinadanao da ser a paisagem patrimonializvel.

    A perspectiva geertziana da cultura enquanto um fenmenopblico (1989) porque dado na ao cotidiana por meio da qual ossignificados so compartilhados pelos atores sociais que, ao agirem,conformam o seu mundo nos coloca a importncia de considerar obem alvo da patrimonializao um elemento inserido num contextode significao que o associa memria do lugar e sua transformao,

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    podendo revelar ainda um saber no sabido, uma vez que est ligadoao jogo lembrana-esquecimento e associado s estratgias(CERTEAU, 2004) de fundo cultural, a fim de que as pessoas sigamsendo o que so. Isto quer dizer que a relevncia do bem para estaspopulaes no est imersa no breu da ignorncia, mas no dilemacomplexo de uma dada civilizao durar no tempo e se perpetuar naespacialidade do lugar, porque vinculada a ele por laos simblico-afetivos.

    Ora, uma teia de significados, neste caso, est para alm damaterialidade das coisas, visto que relativa a uma simblicaexperienciada no cotidiano e no vivido que dinamiza a mesma ou, ainda,a coisa em si. H, assim, um conjunto de saberes e de fazeres relacionadosaos bens de natureza material e imaterial que coloca o desafio de lidarcom esta herana de carter local como um patrimnio situado. preciso que se reflita sobre isto, uma vez que diz respeito a quem oproduz ou produziu no passado e aqueles que o recebem como herana,bem como s polticas de conservao.

    O pater poder de arbitrar sobre o patrimnio do Outro como umbem da nao (museificando, decretando stios e parques) desloca anoo de hereditariedade do local para o geral, revelando que aautenticidade e o valor do bem seja ele histrico, artstico,arquitetnico, arqueolgico, entre outros so regidos pela apreciaoe pelo gosto de determinados experts sobre o assunto, que nem sempreconsideram o olhar daquele que opera (no sentido cognitivo e prtico)com o bem no seu cotidiano. Ou seja, o prprio ato de lidar com opatrimnio material pelos grupos humanos nos quais eles emergemcomo elementos do vivido coloca o fato da imaterialidade como umaquesto central: antes de os usos culturais da cultura (MENESES,1999) surgirem como um fato da poltica estatal de patrimonializar, ossignificados desses bens so fatos de cultura, e, ao descontextualizarmosos mesmos, ferimos a prpria noo de patrimnio imaterial (SILVEIRA& LIMA FILHO, 2005). necessrio um constante exerccio dedesconstruo desta lgica patrimonial do Estado.

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    Consideraes Finais

    As idias aqui apresentadas constituem um desdobramento dasreflexes surgidas durante e depois da realizao do GT EducaoPatrimonial: perspectivas e dilemas. Durante o GT, do qual participaramantroplogos, arquelogos, historiadores e educadores, foram apontadasalgumas outras questes que no puderam ser contempladas nesteartigo, tais como a centralidade da escola como locus dos projetos deEducao Patrimonial, a necessidade de se discutir sobre o conceito depreservao e a urgncia de se refletir sobre a ao do Estado e suarelao com a sociedade civil, pensando em aes contnuas e em umaruptura com eventos pontuais.

    Vimos que o tema complexo, interdisciplinar e demanda umasolidariedade de preocupaes18 afinal, como podemos nos eximirde refletir sobre Educao Patrimonial, se a prpria expresso, quetraz em si dois conceitos distintos mas, ao mesmo tempo, relacionados,parece-nos conduzir, por um lado, para a transmisso e para apreservao de patrimnios esquecidos e, por outro, para a reflexoacerca do carter simblico desta transmisso como mecanismo desuspenso dos tempos e de cristalizao da prpria dinmica dopatrimnio. H de se pensar sobre o sentido da Educao Patrimonialpara que no caiamos na cilada apontada por Jeudy (2005), que v asiniciativas relativas conservao e apresentao do patrimnio sociedade como um potencial mecanismo que pode ocasionar a repulsapelos bens patrimoniais.

    Acreditamos que o conceito de Educao Patrimonial deva servircomo sinal que nos obriga a questionar o papel da educao naconstituio do patrimnio, o papel do patrimnio no processoeducativo e a funo de ambos na dinmica social que articula alembrana e o esquecimento.

    Agradecimentos

    Aos participantes do GT: Carlos Xavier A. Netto, FernandoMarques, Denise Schaan et al, Jorge Najjar, Luciano P. Silva, MariaBeatriz P. Machado, Olavo R. Marques e Rosana Najjar.

    18 Santos apud Garcia, R. L. Reflexes sobre a responsabilidade social do pesquisador. In:______(org.). Para quem ns pesquisamos: para quem ns escrevemos. So Paulo: Cortez, 2001 (pp. 19).

  • MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE BELTRO (Organizadores)

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    Referncias Bibliogrficas

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    EXPLORAES ANTROPOLGICAS: QUANDO OCAMPO O PATRIMNIO

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    O IMPACTO DA IMIGRAO EUROPIA SOBREA PRODUO DE ALIMENTO E A CULINRIA

    DO MDIO VALE DO ITAJA/SC

    Marilda Checcucci Gonalves da Silva

    Neste artigo, apresento resultados de uma pesquisa1 que tevecomo objetivo mais geral estudar, com base no conceito de habitus2 , osimpactos que a vinda de famlias camponesas imigrantes de origemeuropia promoveram sobre a produo de alimentos e a culinria daregio do Mdio Vale do Itaja/SC3 . Tendo-se em conta esse objetivomais geral, abordaram-se os seguintes objetivos mais especficos:

    z As tradies trazidas desde a regio de origem, bem comoas inovaes introduzidas nas tcnicas de plantio, nasespcies plantadas, no sistema alimentar e na culinria local;

    1 Essa pesquisa parte de um projeto voltado para a identificao, registro e conservao dopatrimnio cultural das diferentes cidades e reas rurais do Mdio Vale do Itaja-SC, priorizandoaquelas reas formadas por imigrantes de origem europia (alemes, italianos e poloneses).

    2 Bourdieu (1972) prope o conceito de habitus como o elemento de intermediao entre a estruturasocial e a prtica dos agentes. Definido como um sistema socialmente constitudo de disposies,tendncias e matrizes de percepes, ele concebido como o produto da interiorizao das estruturasobjetivas. Ao mesmo tempo, enquanto princpio que produz e confere sentido s prticas caractersticasde um grupo de agentes, o habitus tender a reproduzir as estruturas externas das quais , em ltimainstncia, o produto.

    3 O Mdio Vale do Itaja formado atualmente pelos municpios de Blumenau, Indaial, Timb,Rodeio e Ascurra, criados a partir dos desdobramentos da Colnia Blumenau, mantendo ainda hoje,entre a sua populao, uma maioria de descendentes dos colonos imigrantes. A imigrao europiana regio do Mdio Vale do Itaja ocorreu sob a forma de colonizao, atravs da introduo defamlias camponesas, iniciando-se com as de origem alem, com a fundao da ento ColniaBlumenau, pelo Dr. Hermann Blumenau, em 1850, posteriormente com as de origem italiana,localizadas na periferia da colnia, a partir de 1875. Os poloneses, em menor nmero, ingressaro porltimo. Essas famlias imigrantes foram assentadas na condio de pequenas proprietrias, semelhanade outras regies do sul do Brasil, voltadas para a produo da subsistncia atravs da utilizao dotrabalho familiar, formando grupos etnicamente homogneos, com caractersticas prprias que osdiferenciam de outros grupos camponeses do pas. Os colonos foram assentados em lotes coloniais.A explorao agrcola deu-se atravs da policultura. Anteriormente a essa ocupao, a regio eraocupada por populaes indgena, cabocla e luso-brasileira.

  • MANUEL FERREIRA LIMA FILHO, CORNELIA ECKERT, JANE FELIPE BELTRO (Organizadores)

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    z A influncia do sistema alimentar e da culinria dos outrosgrupos tnicos presentes na regio, tais como caboclos eindgenas;

    z Os aspectos simblicos ligados ao ato alimentar, tomandocomo base seus rituais familiares e comunitrios decomensalidade e de partilha e as relaes de gnero queconfiguram esses hbitos;

    z As diferenas e semelhanas encontradas nas diferentestradies e sistemas alimentares dos imigrantes e de seusdescendentes;

    z A maneira como a culinria se atualiza em termos daafirmao da identidade tnica do imigrante e de seusdescendentes.

    A pesquisa foi realizada em dois momentos: no primeiro, compopulao residente em rea rural, e no segundo com populaoresidente em rea urbana. No artigo, buscou-se reunir e comparar osresultados obtidos com a pesquisa nesses dois momentos. Para atingiros objetivos, foi realizada uma pesquisa de campo, recorrendo-se etnografia4 e histria oral dos grupos em estudo5 , atravs dalembrana retida na memria das pessoas mais idosas das famlias.Foram realizadas entrevistas em profundidade, com famlias ligadasaos diferentes grupos dos descendentes dos imigrantes europeus, queainda hoje formam uma maioria na regio: alemes, italianos epoloneses6 . Alm disso, recorreu-se pesquisa de arquivos, cruzando-se os resultados com os dados coletados em campo.

    4 Neste caso, o pesquisador conjuga dados de observao e de entrevistas com resultados de outrosmateriais obtidos, tais como fotografias, registros documentais, produes do prprio grupopesquisado, o que acaba por resultar numa produo densa da realidade estudada (GEERTZ, 1978).

    5 Relatos a partir da memria dos descendentes dos imigrantes, com os quais o pesquisador buscareconstruir fatos ou eventos sobre os quais no existe documentao.

    6 Foi realizado um total de 60 entrevistas com descendentes de imigrantes de origens alem, italianae polonesa. Por tratar-se de pesquisa do tipo qualitativa, no houve uma preocupao com aquantidade de informantes, de modo a configurar a sua representatividade. Neste caso, a quantidade substituda pela intensidade, pela imerso profunda atravs da observao participante por umperodo longo de tempo, das entrevistas em profundidade, da anlise de diferentes fontes que possamser cruzadas , que atinge nveis de compreenso que no podem ser alcanados atravs de umapesquisa quantitativa. O pesquisador qualitativo buscar casos exemplares que possam ser reveladoresda cultura em que esto inseridos. O nmero de pessoas menos importante do que a teimosia emenxergar a questo sob vrias perspectivas (GOLDENBERG, 1997: 50).

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    ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS CONTEMPORNEOS

    Os hbitos alimentares

    Este trabalho parte da premissa de que os hbitos alimentaresso prticas que expressam a dimenso simblica da sociedade, sendoconstitudas a partir do que Bourdieu (1987) denomina habitus. Oshbitos se traduzem na forma de seleo, preparo e ingesto dealimentos, formando entidades que se compem de elementosinterdependentes, que formam um sistema. Os indivduos tendem aficar identificados a hbitos alimentares de sua infncia: alimentos queeles se habituam a comer desde tenra idade e que se estendem ao longoda vida, sendo que seu sistema passado de uma gerao para a outra.

    Nossas atitudes em relao comida so normalmente aprendidascedo e bem; e so, em geral, inculcadas por adultos afetivamentepoderosos, o que confere ao nosso comportamento um podersentimental duradouro. Os hbitos alimentares podem mudarinteiramente quando crescemos, mas a memria e o peso do primeiroaprendizado alimentar e algumas das formas sociais aprendidas atravsdele permanecem, talvez para sempre, em nossa conscincia (MINTZ,2001: 30-32).

    Nas sociedades urbano-industriais, a relao do homem com suaalimentao tem-se modificado. Como afirma Bonin e Rolim (1991:78):

    Os pratos tm sido em geral estereotipados, a partir de umapretensa homogeneizao global. As refeies so independentesdo espao e tempo, isto , tendo-se os meios, possvel consumirqualquer coisa, a qualquer momento, em qualquer lugar equalquer quantidade. As escolhas alimentares so agoraindividuais; a produo de alimentos foi incorporada trocade mercadorias, e os alimentos em geral se tornaram profanos.Entretanto, isto no significa que se excluam formastradicionais de comensalidade, tais como festas marcadassocialmente: Natal, aniversrios, Ano-Novo, etc., e que o alimentono tenha o seu carter social e valor simblico.

    A sociedade urbano-industrial apresenta ainda um grande nmerode subculturas. Cada subcultura seleciona os alimentos que lhes so osmais convenientes, tanto do ponto de vista material quanto simblico.Ao agir dessa maneira,

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    (...) impe um limite possibilidade de ser estabelecido umpadro alimentar mundialmente uniformizado. (...) Aconvenincia de determinado grupo para selecionar certosalimentos se prende ao habitus do grupo, que se define pelainternalizao de princpios, atravs de um sistema deexpresso, que por sua vez se integra a um sistema deinterpretao, que se concretiza atravs de uma prticaespecfica. Os hbitos alimentares se constituem em prticasespecficas, mas que tm referencial em esquemas interpretativose de significao mais gerais. Eles se constituem num sistemade expresso, integrado a um sistema de interpretao (BONINe ROLIM, 1991: 79).

    Convivem numa mesma sociedade padres ditos tradicionais emodernos. A predominncia de um ou outro ir variar de acordo coma poca e com o contexto regional. A sociedade tem uma dinmicaprpria, e os hbitos alimentares esto includos nessa dinmica. Essespadres de comportamento em relao aos alimentos se vinculam aoestilo de vida7 que se define e se redefine enquanto significao etransformao. Visto dessa maneira, o estilo de vida se coloca, ento,dentro de um conceito mais abrangente de classe social, que se defineno somente pela insero dos sujeitos num determinado processo possuidor ou no possuidor dos meios de produo mas tambm deacordo com sua insero em teias de relaes significantes, que osdefinem enquanto atores de determinada classe. A definio de classe,neste caso, no apenas situa o sujeito dentro do processo produtivo,mas tambm num mundo de significaes simblicas, que fazem comque o sujeito se identifique enquanto tal. Como se come, com quem secome, quando se come, o que se come, definem nossa maneira de ser enossa classe social. Da mesma maneira, o gosto por determinadoalimento engendrado a partir do estilo de vida das pessoas, que, porsua vez, se vincula sua classe social e ao habitus de um grupo ou desua sociedade.

    Na realidade, a cozinha, como toda relao social, constitui-sede tradies sociais e de inovaes. Na atualidade, com o processo deglobalizao, a culinria passou a ser alvo de um processo deinternacionalizao, com o beneplcito dos mercados que no

    7 BOURDIEU, P. A Economia das Trocas simblicas. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1987.

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    ANTROPOLOGIA E PATRIMNIO CULTURAL: DILOGOS E DESAFIOS CONTEMPORNEOS

    raciocinam mais em mbito nacional. As empresas agroalimentarestransnacionais distribuem seus alimentos em todo o planeta, bastandoque o consumidor possua dinheiro para que tenha acesso a um nmerosignificativo de iguarias exticas. O alimento moderno est deslocado,ou seja, desconectado de seu enraizamento geogrfico e das dificuldadesclimticas que lhe eram tradicionalmente associadas (POULAIN, 2004:29). Entretanto, um erro acreditar que os particularismos nacionaise regionais desaparecerem. Eles so ainda muito fortes, e as sociedadestransnacionais da alimentao so obrigadas a dar conta deles,introduzindo modificaes ao gosto dos particularismo locais.

    Morin (apud POULAIN, 2004: 33) sugere que, por trs destesfenmenos econmicos e sociais, se descobrem os sinais, e s vezes ossintomas, de uma crise identitria que encontra na esfera alimentar,prejudicada pela industrializao, um lugar de cristalizao. Segundoele:

    Em relao compensatria mundializao dos mercadosalimentares, os produtos regionais enfeitam-se de milatrativos.(...) Ela produz, por meio de um duplo retorno aosvalores da natureza exaltada em oposio ao mundo artificialdas cidades e da arkh rejeitada pela modernidade como rotinae atraso, uma inverso parcial das hierarquias gastronmicasa favor de pratos rsticos e naturais. (...) tudo isso traduz anova valorizao da simplicidade rstica e da qualidade naturalque deixam de ser desprezadas em relao sofisticao e arte complexa da alta gastronomia.

    Na Frana dos anos 80, esse movimento colocou o tema dacozinha regional no centro de tudo pesquisas, colees, etc. , fazendoo inventrio do patrimnio gastronmico das suas provncias. A linhaeditorial caracterstica desse movimento aborda as prticas culinriastradicionais no contexto cultural que as fez nascer os costumes, ascrenas, as mentalidades regionais. Numa perspectiva patrimonial, soestudadas, de um lado, as tradies culinrias, a sedimentao dasreceitas e hbitos mesa no curso da histria da regio, e de outro soapresentados os grandes chefs contemporneos que reatualizam suasprticas aos sabores regionais (BOURREC; POULIN; POULAIN &ROYER; DRISCHEL, POULAIN & TRUCHELUT, CLAVAL et al.apud POULAIN, 2004: 33-34). Aos olhos dos habitantes das cidades, a

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