ames - religiao e politica no pensamento de maquiavel

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Kriterion: Revista de Filosofia Print ISSN 0100-512X Kriterion vol.47 no.113 Belo Horizonte June 2006 Religião e política no pensamento de Maquiavel José Luiz Ames Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. [email protected] RESUMO Para Maquiavel, o que confere valor a uma religião não é a importância de seu fundador, o conteúdo dos ensinamentos, a verdade dos dogmas ou a significação dos mistérios e ritos. Importa não a essência da religião e sim sua função e importância para a vida coletiva. A religião ensina a reconhecer e a respeitar as regras políticas a partir do mandamento religioso. Essa norma coletiva pode assumir tanto o aspecto coercivo exterior da disciplina militar ou da autoridade política quanto o caráter persuasivo interior da educação moral e cívica para a produção do consenso coletivo. Palavras-Chave: Maquiavel, Religião, Política, Estado, Poder ABSTRACT

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Maquiavelo

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Kriterion: Revista de Filosofia

Kriterion: Revista de Filosofia

PrintISSN0100-512XKriterionvol.47no.113Belo HorizonteJune2006

Religio e poltica no pensamento de Maquiavel

Jos Luiz AmesProfessor da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE. [email protected]

RESUMOPara Maquiavel, o que confere valor a uma religio no a importncia de seu fundador, o contedo dos ensinamentos, a verdade dos dogmas ou a significao dos mistrios e ritos. Importa no a essncia da religio e sim sua funo e importncia para a vida coletiva. A religio ensina a reconhecer e a respeitar as regras polticas a partir do mandamento religioso. Essa norma coletiva pode assumir tanto o aspecto coercivo exterior da disciplina militar ou da autoridade poltica quanto o carter persuasivo interior da educao moral e cvica para a produo do consenso coletivo.Palavras-Chave: Maquiavel, Religio, Poltica, Estado, Poder

ABSTRACTFor Machiavelli, religion is valued not by the importance of its founder, the content of its teachings, the truth of its dogmas or the significance of its rites. It is not the essence of what really matters but its function and importance for collective life. Religion teaches to recognize and respect political rules through the religious commandments. This collective norm could assume the outer coercive aspect of the military discipline as well as the inner persuasive character of civic and moral education for the production of collective consensus.Keywords: Machiavelli, Religion, Politics, State, Power

Maquiavel conhecido pelo propsito, firmado em O Prncipe, de considerar "mais conveniente seguir a verdade efetiva da coisa do que a imaginao desta" (Il Principe, captulo XV). Na anlise do fenmeno religioso, podemos constatar a utilizao deste "mtodo": a religio examinada a partir de seus efeitos prticos, ou seja, pela capacidade de despertar tanto o medo quanto o amor dos cidados a favor do vivere civile. Em outras palavras, "seguir a verdade efetiva da coisa" implica em privilegiar a "causa eficiente". Tratando-se da religio, consiste num determinado procedimento metodolgico que analisa esse fenmeno por sua capacidade de cumprir a tarefa cvica de mobilizar os homens a favor do fortalecimento do Estado. Em semelhante modo de considerar as coisas, as questes teolgicas perdem importncia. Diante disso, como fica o papel da Providncia? Pode-se ainda afirmar que ela dirige o destino dos homens? Sustenta-se ainda a convico crist de que a marcha dos homens uma ascenso para Deus?1Tommasini,2 numa extensa nota de sua magistral obra sobre a vida de Maquiavel, apresenta a polmica histrica em torno do pensamento religioso maquiaveliano. As posies, na avaliao deste bigrafo, variam do elogio condenao: enquanto para alguns, como H. Plato, Maquiavel considerou a religio, sobretudo, como condio indispensvel para a manuteno da liberdade, para outros, como C. Cant, o Secretrio da Repblica de Florena foi o fundador da doutrina do Estado ateu que forjou, sobre o modelo greco-romano, a nova civilizao, suprimindo Cristo e o Evangelho. Concordamos com Tommasini: o melhor modo de estudar o pensamento religioso de Maquiavel no o de verificar se foi "ctico ou crente, se foi pago ou cristo, se estava mais prximo da Reforma ou de Loyola, e sim o de ver historicamente, na ordem do movimento e do pensamento religioso, como ele se conduziu, o que pensou, o que fez".3Acatando a sugesto de Tommasini, podemos dizer que, para Maquiavel, no h a menor dvida de que a origem da religio puramente humana e possui, como toda instituio, fundadores e chefes. Alis, e de modo mais preciso, no ato fundador de uma religio que se revela de modo mais elevado a virt de um indivduo: "Entre todos os homens dignos de elogio, os que mais louvor merecem esto os que foram chefes e fundadores das religies" (Discorsi I, 10). Por ser de origem humana, a religio tambm est sujeita s leis de nascimento, desenvolvimento e morte que determinam todos os elementos criados: "Nada mais certo do que o fato de que todas as coisas do mundo tm um termo. (...) Falando de corpos mistos, como repblicas ou seitas, digo que so salutares aquelas alteraes que as reconduzem ao seu princpio" (Discorsi III, 1).Ainda que no exista ato humano que traga maior glria a algum do que fundar uma religio, o valor propriamente dito de uma religio, para Maquiavel, no derivado da fama de seu fundador, do contedo dos ensinamentos, da verdade dos dogmas ou da significao dos mistrios e ritos. Numa palavra, daquilo que se costuma chamar "essncia da religio". Pelo contrrio, a grandeza de uma religio decorre da funo e importncia que ela exerce em relao vida coletiva. Ambas, funo e importncia, so de carter normativo: a religio ensina a reconhecer e a respeitar as regras polticas a partir do mandamento religioso. Essas normas coletivas podem assumir tanto o aspecto coercivo exterior da disciplina militar ou da autoridade poltica quanto o carter persuasivo interior da educao moral e cvica para a produo do consenso coletivo. Como possvel que um mesmo fenmeno obrigue, ao mesmo tempo, externa e internamente? No estaramos, aqui, diante de uma contradio no pensamento maquiaveliano? Gennaro Sasso, notando tambm esse duplo significado da religio,4 esclarece que se trata "de um contraste muito mais do que de uma contradio".5Com efeito, a fundao e estabilidade de um Estado dependem da virt, no apenas do prncipe, mas tambm do povo. Assim, a dupla funo da religio, de coero e de persuaso, coincide, respectivamente, com a virt do prncipe e a do povo. A religio, compreendida como instrumentum regni, requer do prncipe a capacidade de servir-se de modo sagaz da f do povo para lev-lo obedincia da lei civil. Quer dizer, somente um prncipe virtuoso capaz de levar o povo a temer a desobedincia s ordens do Estado como se fosse uma ofensa a Deus. E por que o povo estaria mais propenso a obedecer s ordens divinas do que s humanas? Para Maquiavel, isso se deve superioridade da eficcia do mandamento divino em relao lei humana para submeter o povo, pois este "teme muito mais romper os juramentos do que as leis por prezar mais o poder de Deus do que o dos homens" (Discorsi I, 11).No entanto, nenhuma construo poltica pode ser erigida e mantida unicamente com instrumentos extrnsecos, com base em uma coero externa to-somente. Maquiavel chama expressamente a ateno para o fato de que o Estado no pode depender apenas da virt excepcional de um homem, pois "se um apto para organizar, no durar muito a coisa organizada se a coloca sobre os ombros de um s" (Discorsi I, 9). imprescindvel, portanto, contar com a virt do povo para alcanar a estabilidade do Estado. A f religiosa, compreendida como a vida profunda do povo expressa nos bons costumes e na educao moral e cvica, constitui-se na razo de ser da virt poltica dos membros e no fundamento interno do Estado. Vamos proceder, na seqncia, a um exame mais detalhado, com base nos textos da obra de Maquiavel, desses dois distintos significados da religio.

A funo de coero externa da religio ou a submisso ao poder institudoMaquiavel introduz o tema da religio, no primeiro livro dos Discorsi, na perspectiva do ordinatore. Isto , daquele que, se no ir propriamente inventar a religio, tem, contudo, por tarefa estrutur-la e estabelec-la em preceitos bem visveis. Foi o que coube a Numa, sucessor de Rmulo:Embora Roma tenha sido fundada por Rmulo e se reconhea como filhas suas o nascimento e a educao, os cus, julgando que as leis (ordini) de Rmulo no bastavam para tanto imprio, inspiraram o senado romano para que elegesse Numa Pomplio como sucessor de Rmulo, de modo que as coisas que este deixou de lado foram reguladas por Numa. Este, encontrando um povo ferocssimo e querendo reduzi-lo obedincia civil com as artes da paz, recorreu religio como elemento imprescindvel para manter a vida civil (civilit ) e a constituiu de modo que, por muitos sculos, no havia tanto temor a Deus como naquela repblica, o que facilitou todos os empreendimentos que o senado ou os grandes homens de Roma planejaram levar a cabo (Discorsi I, 11).O problema poltico do sucessor de Rmulo era o de "reduzir" seu povo " obedincia civil". Faz-lo, porm, com a fora que provm da "ferocidade" no apenas resultaria em algo puramente provisrio, mas criaria rapidamente um movimento cujo termo final seria a dissoluo da sociedade. Isso porque, no mbito de uma coletividade poltica, a fora enquanto tal somente pode ser a da maioria, enquanto a obedincia necessria ao vivere civile pode ser devida unicamente a uma minoria. Portanto, para garantir comunidade poltica coeso e durao, o fundamento da obedincia precisa ser buscado em algo diverso da fora.Isso explica porque Numa, para alcanar seu objetivo (de reduzir obedincia civil um povo ferocssimo), no tratou o povo no terreno que lhe era prprio enquanto agente do Estado, isto , o da fora, mas compreendeu que precisava voltar-se "s artes da paz". Estas, na passagem da obra maquiaveliana citada acima, no consistem em outra coisa seno na religio, apresentada como o instrumento capaz de subtrair o sentimento da obrigao poltica do exclusivo domnio da fora, e, por isso mesmo, definida "como elemento imprescindvel para manter a vida civil". Numa compreendeu, pois, que a fora no o elemento fundamental para levar o povo obedincia, nem a medida das relaes internas de um vivere civile. Isso mostra o papel fundamental exercido pela religio para a substituio da fora pela civilit .Em razo de quais artes a religio capaz desse feito? Maquiavel claro: religio timore di Dio. O fundamento da religio para Maquiavel , pois, o medo de um Deus que, ainda que seja apresentado como algo que tem certa feio humana, considerado em si mesmo no constitui razo de obrigao poltica e de vnculo social. Contudo, ainda que o medo de um Deus no tenha nada que o faa critrio e fundamento de comportamentos polticos e sociais por si mesmo, pode tornar-se tal graas interveno prudente de um legislador que saiba alimentar, orientar e, sobretudo, organizar em instituies estveis esse sentimento humano, tornando-o, assim, apto a suscitar coeso poltica e obedincia civil.Uma coisa , portanto, a religio na sua dimenso antropolgica, de um misto de medo ancestral e sentimento de inferioridade. Outra coisa o aspecto da ordem, a constante e visvel organizao institucional que a prudncia do legislador pode dar s necessrias expresses deste mesmo sentimento, trazendo, com isto, benefcios polticos essenciais. Parece evidente que o interesse de Maquiavel est, acima de tudo, na segunda dimenso; ou, pelo menos, se ocupa da primeira somente como fundamento da segunda.Considerando, pois, que a religio, em seu fundamento, essencialmente "temor de Deus", de que modo se pode intervir nesse sentimento humano? Como possvel fazer dela a alavanca capaz de produzir comportamentos individuais e coletivos politicamente teis? So vrios os instrumentos referidos por Maquiavel, com destaque simulao, aos juramentos e aos vaticnios. Examinaremos adiante algumas passagens de utilizao desses expedientes.Antes disso, porm, vamos aprofundar a anlise acerca do comportamento de Numa, na passagem referida acima, para explorar outro aspecto implicado no uso poltico da religio: o de disfarar no mandamento religioso a norma poltica. Constatamos que Numa ocultou seu projeto poltico, de "reduzir o povo obedincia civil com as artes da paz", no mandamento religioso. Graas religio, Numa conseguiu fazer com que o povo aceitasse as leis de exceo, com as quais obteve a ordem e a paz.Mostra-se aqui uma clara diferena entre o prncipe e o povo em relao ao significado do fenmeno religioso: enquanto para o primeiro a religio um instrumento poltico, um meio eficiente para submeter os sditos s leis e obedincia, para o povo ela contm um temor sagrado que o faz respeitar os preceitos legais como se fossem mandamentos divinos. O conhecimento da diferena entre a norma poltica e o mandamento divino do domnio unicamente de quem governa. Numa sabia disso e, sagazmente, explorou essa diferena em favor do Estado. A lei civil, quando apresentada como simples vontade soberana do Estado, tem uma eficcia muito menor do que se aparece como mandamento divino. Por esse motivo, diz Maquiavel: "Nunca houve um legislador que tenha dado leis extraordinrias a um povo e no tenha recorrido a Deus, pois de outro modo no seriam aceitas." (Discorsi I, 11)Essa concepo, que faz da religio um instrumento de poder e a transforma num meio til para a ao poltica, tem levantado contra Maquiavel a crtica de que para ele a religio serve unicamente aos interesses particulares de um prncipe. um mal-entendido. Temos de admitir, verdade, como mostrou a passagem acima referida, que Numa se serviu da religio para "manter a vida civil". Isto , encontrou na religio um recurso conveniente para o fortalecimento do seu domnio. No entanto, Maquiavel louva o uso poltico da religio apenas na medida em que isso resulta em benefcio da coletividade e no da glria pessoal do prncipe. A correo dessa concluso pode ser verificada no motivo que levou Maquiavel a aprovar a atitude de Numa e dos dirigentes romanos em geral: "Pode ver-se, quem considera bem a histria romana, o quanto a religio foi til para comandar os exrcitos, animar o povo, manter os homens bons e envergonhar os maus." (Idem)Considerada como valor instrumental, a religio , portanto, um elemento de grande eficcia poltica. Usada com a devida prudncia, constitui uma alternativa ao emprego da fora bruta para assegurar a ordem e a paz interna. Oferece um meio para comandar sem recorrer violncia fsica. Esse recurso , sobretudo, til quando os argumentos racionais so impotentes para convencer os homens. o caso, por exemplo, daquelas coisas "cujas vantagens so conhecidas por um homem prudente, mas que no apresentam em si mesmas razes evidentes que possam persuadir os outros. Por isso, os homens sbios, querendo evitar essa dificuldade, recorrem a Deus" (Discorsi I, 11). Em outras palavras, o apelo fora irracional da religio converte-se num meio eficiente para o prncipe convencer o povo da legitimidade de suas aes e da pureza de suas intenes, objetivo que no seria alcanvel recorrendo unicamente razo.Dessa maneira, a religio se constitui no meio de persuaso privilegiado do qual os governantes podem dispor para fazer com que o povo admita um bem do qual a razo, to-somente, no bastaria para convenc-lo. um fenmeno irracional, mais poderoso sobre o esprito do povo do que a prpria razo, fenmeno este cuja utilizao prudente torna-se a garantia mais segura do xito do Estado. isso que motiva o elogio que Maquiavel faz a Numa: "Considerado, portanto, tudo, concluo que a religio introduzida por Numa foi uma das principais causas da felicidade daquela cidade, porque ela produziu boas instituies (ordini); e boas instituies engendraram boa fortuna e da boa fortuna nasceu o feliz xito de seus empreendimentos" (Discorsi I, 11).Aqueles que comandam conhecem a influncia que o mandamento divino exerce sobre a mente do povo. Para Maquiavel, podem servir-se dessa crena at mesmo quando percebem que se trata de um embuste: "[Os prncipes de uma repblica ou reino] devem favorecer e acrescentar todas as coisas que surjam a favor dela [religio] ainda que as julguem falsas e o faro tanto mais quanto mais prudentes e mais conhecedores das coisas naturais forem." (Discorsi I, 12) Os dirigentes polticos so sabedores de sua obrigao em relao coletividade. Eles devem manter o povo unido e obediente ao Estado, pois somente sob esta condio garantem a continuidade da ordem e da paz, que asseguram a vida e a segurana de todos. Como "conhecedores das coisas naturais", so capazes de servir-se dos acidentes favorveis, isto , dos aparentes milagres, para fortalecer a crena religiosa e, conseqentemente, o Estado, sem, contudo, acreditar neles. Assim, quando o dirigente faz parecer uma deciso sua como expresso da vontade divina, deve ser julgado apenas por sua maior ou menor habilidade em conseguir o intento, e no moralmente de ter manipulado as doutrinas religiosas. Tenenti esclarece essa questo alertando que, para o florentino, a religio a paixo til mais eficaz que existe para alimentar a fora civil e poltica, mas no um patrimnio de verdade. Entre esta e a religio no h uma medida comum.6Governantes e governados conhecem a verdade da religio de modo diferente. Segundo Grard Namer, "o prncipe conhece a verdade da religio de maneira racional, ao passo que o povo, quando muito, conhece-lhe a falsidade quando a inteno de embuste do mediador lhe descoberta".7 Enquanto aqueles que governam conhecem a verdade da religio por si, os governados a conhecem pela mediao da autoridade dos que governam. Todo segredo est, ento, na maneira de interpretar a mensagem divina ao povo. Para o prncipe, ela sempre apenas til; para o povo, a religio significa a exteriorizao de um mandamento divino.A passagem da religio como sentimento individual religio como instrumento indispensvel para a ao poltica ilustrada por Maquiavel atravs de uma srie de exemplos extrados da histria romana. Em todos eles fica claro que a questo principal no a da verdade da religio e sim a da interpretao da vontade divina por aqueles que comandam e a favor de seus propsitos. Trata-se aqui de completar o ponto que deixamos em suspenso anteriormente: examinar os expedientes que fazem da religio um instrumento apto para produzir comportamentos individuais e coletivos politicamente teis. Vamos examinar os que nos parecem essenciais.Comecemos pela simulao, la finzione: Numa, explica Maquiavel, sentiu que sua autoridade seria insuficiente para "introduzir instituies novas e inusitadas naquela cidade [Roma]". Compreendendo, porm, a importncia e a necessidade de tal empreendimento, "simulou ter familiaridade com uma Ninfa, de quem recebia conselhos para serem transmitidos ao povo" (Discorsi I, 11). A fraude, evidentemente, s era do conhecimento de Numa. O povo avaliou a veracidade pelo resultado e este no poderia ser melhor: "Maravilhando-se, pois, o povo romano da bondade e prudncia de Numa, cedia ante todas as suas argumentaes." (Discorsi I, 11) No diferente no caso de Camilo: tendo os soldados romanos saqueado a cidade de Veios, entraram no templo de Juno "sem tumultos, devotos e cheios de reverncia" (Discorsi I, 12), e perguntaram deusa se queria ir com eles para Roma. Como havia quem pensasse ter escutado ela dizer "sim", "lhes parecia ouvir aquela resposta que pressupunham para sua pergunta, opinio e credulidade que foi inteiramente favorecida e acrescentada por Camilo e por outros homens importantes da cidade" (Discorsi I, 12).Interpretar a atitude simuladora de Numa e Camilo como um simples problema de fraude ou de embuste leva a no compreender a real natureza da questo. O verdadeiro problema no saber se h ou no algum contedo de verdade na religio, e, sim, o de canalizar os sentimentos e as energias que a religio suscita no esprito dos homens numa direo politicamente til e construtiva. Isso justifica a necessidade de esses homens dissimularem o prprio juzo no confronto das coisas que dizem respeito religio. Igualmente, o que fundamenta a exigncia de fingir uma atitude exatamente oposta, cultivando e protegendo e, na situao concreta, tambm suscitando tudo quanto seja capaz de favorecer o sentimento religioso coletivo. Podemos at mesmo dizer que os "prncipes de uma repblica ou reino", como Camilo e Numa, so tanto mais eficazes no cumprimento de suas tarefas em relao religio quanto mais autnomos a respeito do sentimento religioso eles forem.Um segundo expediente pode ser observado no modo como os romanos se serviam dos augrios e orculos. Encontramos, a esse propsito, uma seqncia de exemplos no captulo XIII do primeiro livro dos Discorsi. O primeiro refere como a religio se prestou para levar o povo a escolher "todos os novos tribunos dentre os nobres": estes, divulgando que "os deuses estavam irados porque Roma havia usado mal a majestade de seu imprio" ao escolherem os tribunos somente dentre os plebeus, anunciaram que "no havia outro remdio para aplacar as divindades, seno reduzindo a eleio dos tribunos aos patrcios" (Discorsi I, 13). O povo, "amedrontado pela religio", fez o que lhe foi pedido. O segundo oferece um exemplo do modo "como os capites dos exrcitos se valiam da religio para t-los [os soldados] dispostos a um empreendimento" (Idem). Cansados por causa do longo stio cidade de Veios, os soldados queriam voltar. Foi ento que "os romanos inventaram que Apolo e outros orculos haviam profetizado que a cidade de Veios seria tomada no ano em que as guas do Alba extravasassem suas margens" (Idem). O boato reanimou a tropa que, aps um stio de dez anos, finalmente conquistou a cidade. O terceiro revela o modo pelo qual a nobreza utilizou os "livros sibilinos" para defender-se contra o tribuno Terntilo e sua lei de limitao do poder dos cnsules interpretando-os de modo a profetizarem "que a cidade corria perigo de perder a liberdade caso houvesse sedio civil" (Idem). O embuste, mesmo descoberto, "no por isso deixou de inspirar tanto terror no peito da plebe, que arrefeceu seu entusiasmo de segui-la" (Idem). A importncia do recurso aos augrios resumida, finalmente, pelo prprio Maquiavel na abertura do captulo XIV do primeiro livro dos Discorsi:Os augrios no somente eram o fundamento em boa parte da antiga religio dos gentios, como dissemos acima, mas tambm eram a causa do bem-estar da Repblica romana. Por isso, os romanos lhes prestavam mais ateno do que a qualquer outra coisa e usavam deles nos comcios consulares, ao iniciar um empreendimento, ao enviar os exrcitos, ao travar uma batalha, e em toda ao importante, civil ou militar, jamais levaram a efeito uma expedio sem antes persuadir os soldados de que os auspcios lhes prometiam a vitria (Discorsi I, 14).Para Maquiavel o problema fundamental no o da comunicao da vontade divina aos homens. A possibilidade de uma Revelao divina uma questo terica da qual Maquiavel no se ocupa explicitamente. muito provvel que, pessoalmente, acreditasse nisso.8 No isso, porm, o que lhe importa. Trata-se sempre, desde a tica de quem comanda, de uma interpretao de sinais considerados pelos homens em geral como manifestaes da vontade divina. Como esses sinais nunca se manifestam de maneira clara e acessvel a todos, sempre por uma linguagem cifrada que o divino se comunica com o humano, requerendo a mediao de um intrprete. Este faz os sinais significarem aquilo que convm queles que comandam. No entanto, Maquiavel condiciona tal utilizao a um critrio: o resultado deve convergir para um bem coletivo. esse efeito positivo, reconhecido por todos, o que valida a sua utilizao. A exigncia, bem compreendido, no de natureza moral, mas poltica. Uma interpretao cujo efeito manifestamente favorvel apenas s minorias privilegiadas, ou a algum dirigente no poder, tem por conseqncia o descrdito no orculo ou nos augrios. Essa perda da f na mensagem produz a desordem, que prejudica a continuidade estvel da vida do Estado. Essa a razo pela qual Maquiavel condena semelhante forma de utilizao da religio.O terceiro expediente so os juramentos, dos quais Maquiavel mais vezes recorda o uso, especialmente pelos romanos. significativo trazer, a esse propsito, o exemplo que Maquiavel extrai de Tito Livio:Examinando infinitas aes, do povo romano em seu conjunto ou de muitos dos romanos individualmente, se v como aqueles cidados temiam mais romper um juramento do que a lei, como quem estima mais o poder de Deus do que o dos homens, como se v manifestamente pelos exemplos de Cipio e Mnlio Torquato: porque, depois da derrota que Anbal havia infligido aos romanos em Cannes, muitos cidados haviam se reunido e, desesperando da salvao da ptria, combinaram abandonar a Itlia e refugiar-se na Siclia. Inteirando-se disso, Cipio foi busc-los com a espada desembainhada na mo e os obrigou a jurar que no abandonariam a ptria. Lcio Mnlio, pai de Tito Mnlio, que logo foi chamado Torquato, havia sido acusado por Marco Pompnio, tribuno da plebe. Antes que chegasse o dia do julgamento, Tito foi buscar Marco e, ameaando-o de morte se no jurasse retirar a acusao contra seu pai, obrigou-o a prestar juramento. Este, por respeito ao que havia jurado, retirou a acusao (Discorsi I, 11).Um outro exemplo bem ilustrativo da eficcia do juramento o referido no captulo XIII do primeiro livro dos Discorsi: os tribunos, para forar a promulgao da lei terntila, no se opuseram ocupao do Capitlio por "bandidos e escravos" (Discorsi I, 13). O povo, "convencido por um certo Pblio Rubrio" de que a reivindicao no era oportuna, jurou "no transgredir a vontade do cnsul" (Discorsi I, 13) e o Capitlio foi tomado pela fora. Como o cnsul Pblio Valrio foi morto no ataque, seu substituto, Tito Valrio, entendeu que o juramento permanecia vlido. A isso se opuseram os tribunos "dizendo que o juramento havia sido feito ao cnsul falecido" (Discorsi I, 13). O povo, porm, "por temor religioso, preferiu obedecer ao cnsul a seguir os tribunos [...]. Temendo perder toda sua dignidade, os tribunos entraram em acordo com o cnsul, consentindo em obedec-lo" (Discorsi I, 13).As passagens nos levam a compreender que, no uso que se faz do juramento, este chega a estabelecer, ainda que por meio de uma involuntria manifestao de responsabilidade da parte do indivduo, uma poderosa conexo entre o medo ntimo de um Deus e uma obrigao pblica de carter poltico. Essa a razo pela qual o juramento o instrumento por excelncia de uso poltico da religio. Nos exemplos referidos, notamos que a dimenso religiosa, expressa no juramento, determinante em relao poltica. Isso particularmente verdade no sentido de que, nas situaes extremas, a religio, mais do que a poltica com seus costumeiros instrumentos e sentimentos (as leis, a fora, o amor ptria, a honra), capaz de constituir-se num mbito explicativo e motivador de comportamentos individuais e coletivos.Com efeito, consideremos o exemplo dos cidados (a "plebe") que, para defender a ptria, no conseguem encontrar razes, ou mesmo reconhecer a obrigao, no amor pela ptria e suas leis e que, ao invs disso, sentem-se coagidos a isso em virtude de um juramento. Consideremos, igualmente, o caso do tribuno da plebe que, "para obedecer ao juramento feito", esquece a "honra sua" e "o dio" nos confrontos em relao queles que o haviam injuriado. Em suma, nos confrontos entre grandes e plebe, os comportamentos que a prpria poltica no consegue suscitar, os suscita a religio.Contudo, a dinmica na qual se produz o juramento torna evidente que aquelas manifestaes da religio que vm em auxlio da poltica no tm uma origem autnoma, no so um movimento espontneo e imediato do esprito do povo. Pelo contrrio, estas manifestaes da religio so o produto de uma vontade poltica bem determinada.9 Observando os exemplos citados por Maquiavel, percebemos claramente a dinmica do juramento: ele no resulta de um ato espontneo, de uma obrigao coletiva que uma comunidade d voluntariamente a si prpria, mas, muito antes, sempre o efeito de uma coero. Cipio constrange os cidados a jurarem que no abandonariam a ptria; Tito Mnlio obriga, sob a ameaa das armas, Marco Pompnio a jurar que retiraria a acusao contra seu pai. Cutinelli-Rndina nota aqui uma circularidade no uso poltico do juramento religioso: "Considerada na perspectiva do juramento, a relao entre religio e poltica se revela, ento, complexa e, por assim dizer, circular: a poltica tem necessidade da religio, mas esta religio da qual a poltica tem necessidade , por sua vez, um produto da prpria prudncia poltica".10No segundo exemplo, o da lei terntila, aparece claramente que, no uso que a poltica faz do juramento religioso, se mostra a oposio fundamental presente em toda comunidade poltica. Revela-se e, ao mesmo tempo, contribui fortemente para mant-la. A narrativa do episdio aberta e posteriormente fechada com a indicao do sujeito-fruidor do uso poltico da religio, que sempre a nobreza ou a ordem senatorial: "entre os primeiros recursos de que usou a nobreza para remediar a situao estava a religio"; "e assim a religio permitiu que o senado vencesse dificuldades que, sem ela, jamais teriam sido vencidas" (Discorsi I, 13). Nesse episdio, Maquiavel concentra toda sua descrio sobre o juramento extorquido plebe. Trata-se de um juramento ao qual a plebe romana se sentia presa a tal ponto que preferiu no seguir os prprios representantes, com grave prejuzo para estes ltimos: "a plebe, por temor religioso, preferiu obedecer ao cnsul a seguir os tribunos"; "temendo os tribunos perder ento toda sua dignidade, puseram-se de acordo com o cnsul para prestar-lhe obedincia" (Idem).O comportamento, nos confrontos dos juramentos, revela uma profunda diferena social. Trata-se de uma diferena que, por vezes, separa o ordinatore, junto com os maiorais dos quais necessita valer-se, de todos os outros; outras vezes, e com maior freqncia, ope o omore da nobreza ao da plebe. Em todas as situaes, e isso o essencial, divide, e atravs dessa diviso que passa a possibilidade de fazer um uso poltico da religio. Portanto, a sabedoria poltica requer que essa diferena seja mantida e alimentada. No entanto, e isso fundamental, a diferena mantida e alimentada pelo uso poltico da religio no pode aparecer como manipulao dos grandes em favor dos interesses exclusivos destes.Enquanto a boa interpretao refora a unidade e eficcia do Estado, a m condena os chefes. O povo suspeita da interpretao quando o prncipe no consegue disfarar o interesse partidrio. Na Roma antiga, quando os orculos "comearam a falar como os poderosos (a parlare a modo de' potenti), e essa falsidade foi descoberta pelo povo, os homens se tornaram incrdulos e apropriados para perturbar qualquer ordem boa" (Discorsi I, 12). Somente um prncipe corrompido capaz de acreditar que a autoridade religiosa est inteiramente a seu servio. Ao reduzir as instituies religiosas mera fraude a servio do poder, ele as destri. Dessa maneira, compromete a prpria sobrevivncia do Estado, uma vez que, por causa disso, os homens mostram-se "apropriados para perturbar qualquer ordem boa". Ainda que se trate sempre de uma interpretao de sinais tidos como manifestao do divino, a leitura desses sinais jamais pode ser tal que o povo se perceba como um mero instrumento til a servio dos poderosos. Quando o discurso e o cerimonial religiosos passam a ser simples expresso do interesse privado, a religio no consegue mais vincular o cidado ao Estado. O povo pode at continuar submisso, mas j no ser mais por um amor cvico e sim pela coao nascida da fora das armas ou da ameaa do castigo eterno. Em todo caso, a religio perdeu sua fora mobilizadora. A conseqncia inevitvel a decadncia do vivere civile.

O carter de persuaso interna da religio ou a produo do consenso coletivoO que fez a grandeza da religiosidade romana, segundo Maquiavel, foi o fato de ela no se restringir ao seu valor meramente instrumental, de uso poltico preponderantemente a favor dos que comandam. Mais radicalmente ainda, esta funo simplesmente no teria sido possvel se ela no correspondesse, ao mesmo tempo, a um modo de ser, natureza de seu povo: se o povo romano se submeteu ordem poltica em virtude do mandamento religioso foi porque reconheceu nele um valor. Os legisladores romanos souberam compreender que a religiosidade de um povo um dado fundamental e inseparvel de um conjunto de qualidades, dentre as quais podemos destacar os bons costumes, o devotamento ao bem comum e o amor ptria, o cumprimento das leis e o respeito sagrado pela autoridade, a coragem dos soldados e a fidelidade dos cidados.Maquiavel determina de maneira precisa a exemplaridade de Roma, que deve, segundo ele, indicar o caminho de toda ao poltica, militar e civil. Mas o que significa, precisamente, para Maquiavel, esse retorno ao exemplo romano? Certamente, como havia sido para as geraes precedentes, no renascer com eles, pois a poca presente j no era mais percebida como de renascimento, e sim de crise e de decadncia. Por isso, essa exemplaridade romana significava, para o florentino, muito antes, encontrar o critrio para compreender e criticar mais a fundo a poca presente. Desse modo, a questo no mais a de constatar a diferena entre a maneira romana de fazer poltica e aquela dos contemporneos italianos. Trata-se, isto sim, de explicar o como e o porqu de uma tal diferena. O fundamento e o critrio de julgamento que torna isso possvel a religio.No incio do segundo livro dos Discorsi, Maquiavel se prope a explicar porque o amor liberdade, que caracterizava os antigos, desapareceu nos modernos. A execuo dessa tarefa o leva a uma anlise comparada da religio dos antigos e a dos modernos. Em relao a essa comparao, Cutinelli-Rndina alerta que, "na realidade, o problema que Maquiavel se coloca o da virtude poltica e as condies que a desenvolvem e a tornam possvel ou que, pelo contrrio, a condenam inrcia e, finalmente, ao declnio definitivo"11.No paralelo que Maquiavel faz, parece ver no cristianismo unicamente vcios e no paganismo apenas virtudes. Primeiro, o cristianismo fazia "estimar pouco as honras mundanas, enquanto o paganismo as tinha como sumo bem, sendo mais arrojado em suas aes" (Discorsi II, 2). Segundo, na liturgia crist "a pompa mais delicada do que magnfica" (Discorsi II, 2), enquanto na pag "no faltava a pompa, nem a magnificncia e a elas se acrescentava o ato de sacrifcio, cheio de sangue e de ferocidade (...) e este espetculo, sendo terrvel, tornava os homens semelhantes a ele" (Discorsi II, 2). Terceiro, enquanto o paganismo "beatificava unicamente homens cheios de glria mundana, como os capites de exrcitos e os prncipes das repblicas, (...) o cristianismo glorificou mais os homens contemplativos do que os ativos" (Discorsi II, 2).12 Quarto, o cristianismo "colocou o sumo bem na humildade, na abjeo e no desprezo das coisas humanas, enquanto [o paganismo] o punha na grandeza de nimo, na fortaleza corporal e em todas as coisas adequadas para fazer fortes os homens" (Discorsi II, 2). Qual o resultado de semelhante comparao? Segundo Maquiavel, o modo de viver estimulado pelo cristianismo "parece que tornou o mundo fraco, convertendo-o em presa de homens malvados, os quais podem manej-lo com plena segurana, vendo que a totalidade dos homens, para ir ao paraso, pensa mais em suportar suas opresses do que em vingar-se delas" (Idem).Expor as razes do amor que os antigos votavam liberdade equivale para Maquiavel a explicar porque os modernos perderam esse sentimento. E a causa est na religio, pois os contedos desta esto na origem dos diferentes tipos de educao que, por seu turno, constituem o fundamento dos diferentes comportamentos civis, polticos e militares. A diferena na natureza das aes polticas que resultam das duas religies provm da maneira oposta de considerar as coisas do mundo:Pensando de onde poderia nascer que, nos tempos antigos, os povos eram maisamantes da liberdade que neste, creio que procede da mesma causa pela qual os homens atuais so menos fortes, ou seja, da diferena entre nossa educao e a dos antigos, que est fundada na diversidade de ambas as religies (Idem).Assim, o critrio de distino entre a virtude dos romanos e a corrupo geral dos modernos reside unicamente na diferente educao e, portanto, nas diferentes religies existentes entre os antigos e os modernos. A fraqueza dos modernos e a exemplaridade dos antigos tm seu fundamento na diversidade radical de suas religies e do contedo delas. Significa dizer que o mundo moderno tornou-se politicamente impotente por causa de sua religio assim como o mundo antigo havia fundado sua exemplaridade sobre as qualidades especficas da religio que lhe era prpria.Podemos concluir disso, ento, que o cristianismo incompatvel com as virtudes prprias do ideal republicano? Seria o caso, talvez, de ressuscitar o paganismo antigo e substituir o cristianismo por ele? No, no isso o que Maquiavel pensa, nem sugere. O problema, assegura ele, est na incapacidade dos homens "que interpretaram nossa religio segundo o cio [a inao] e no segundo a virt [a ao]" (Idem). O problema est, pois, na maneira como a religio crist foi ensinada ao longo dos sculos. Ela foi se espiritualizando a ponto de cindir seus propsitos das necessidades mundanas. Se, ao invs disso, "os prncipes das repblicas crists tivessem mantido esta religio tal como foi constituda por seu fundador, estariam os Estados e repblicas crists mais unidos e felizes do que o esto" (Discorsi I, 12).Colonna d'Istria notou muito bem que a essncia da crtica de Maquiavel religio foi a de mostrar que "toda religio, tambm o cristianismo, deve ser julgada em relao com um fim que no especificamente religioso, mas poltico: a ligao com a liberdade e o bem comum",13 cuja forma mais elevada o amor ptria. o cristianismo compatvel com esse ideal? Se os homens, diz Maquiavel, "se dessem conta de que ela permite a exaltao e a defesa da ptria, veriam que ela quer que a amemos e a honremos e nos preparemos para ser de tal modo que possamos defend-la" (Discorsi II, 2). Religio alguma pode se opor defesa da liberdade, nem se conciliar com posies que pleiteiem a renncia do amor ptria. A afirmao de que o cristianismo contradiz o destino dos povos e os entrega aos seus inimigos, que poderamos, de alguma maneira, depreender da passagem citada acima ("A totalidade dos homens, para ir ao paraso, pensa mais em suportar suas opresses do que em vingar-se delas" Idem), deve ser interpretada luz da explicao que o prprio Maquiavel se encarrega de dar na seqncia: "Interpretaram nossa religio segundo o cio e no segundo a virt" (Idem).Ainda que essa explicao possa elucidar a razo pela qual o antigo amor pela liberdade se perdeu, o esclarecimento levanta um novo questionamento: Se a diversidade das religies e da educao prpria a cada uma delas o que explica o diferente comportamento dos povos em relao liberdade, como foi possvel religio crist infiltrar-se no esprito dos altivos povos da Antigidade, educados no valor da liberdade? Maquiavel apresenta duas respostas distintas a essa questo, uma no captulo II e outra no captulo V do segundo livro dos Discorsi.A resposta avenada por Maquiavel no mbito do segundo captulo simples e clara. O prprio poder romano, ao vencer todos os povos do mundo e priv-los de qualquer liberdade, tornou os espritos propcios para acolher a esperana ilusria de viver da contemplao do mundo e na expectativa do paraso. Em outras palavras, o cristianismo pde infiltrar-se completamente nos povos da Antigidade, porque Roma, tendo-os conquistado e tornado servos, erradicou da alma deles o amor e o gosto pela liberdade.Maquiavel oferece uma segunda explicao do triunfo do cristianismo no decurso do captulo V do segundo livro dos Discorsi. A explicao surge num quadro que parece ter a pretenso de explicar a fundao e existncia de qualquer religio e, desse modo, isentar Roma da acusao de haver aberto as portas ao cristianismo e, com isso, extinguindo nos povos o amor liberdade. O argumento construdo a partir da anlise da "regra geral" que determina a sobrevivncia das religies:Quando surge uma nova seita, isto , uma religio nova, sua primeira preocupao, para alcanar reputao, extinguir a antiga. Quando acontece que os organizadores da nova seita falam uma lngua diferente, a extinguem facilmente. Isso se v claramente observando o comportamento da seita crist com respeito pag, pois anulou todos os seus ordenamentos e cerimnias, e apagou toda lembrana da antiga teologia (Discorsi II, 5).Com a nova explicao, o cristianismo perde sua especificidade. Como uma religio entre outras, surge e permanece da mesma maneira que qualquer outra religio e possui o mesmo carter poltico que caracteriza todas elas. Tem uma origem no tempo e uma durao determinada na histria. A religio, no diferente de qualquer outra instituio humana, segue um movimento comum: nasce, permanece e desaparece segundo lhe imposto pelo ritmo eterno do cosmos. Nessa perspectiva, no existe mais qualquer diferena entre cristianismo e paganismo. Todas as religies so iguais, seja quanto origem, seja quanto sua finalidade. Bem ao contrrio da primeira explicao, o cristianismo no nem mais nem menos imperfeito do que as outras religies.14O cristianismo, porm, no aceita esse nivelamento: apresenta-se como religio revelada e, por isso, como a nica verdadeira. Isso faz com que o conquistador cristo no queira ser assimilado, nem assimilar. No quer ser identificado com os homens e povos que submete. Parte simplesmente do pressuposto da superioridade de sua religio sobre qualquer outra. Diferentemente do paganismo romano, que permitia aos povos conquistados a manuteno de suas crenas religiosas, o cristianismo procura impor sua f por meio de um processo de eliminao dos smbolos religiosos e culturais existentes e sua substituio pelos cristos. Foi isso que o motivou nas cruzadas contra os muulmanos. Foi assim que agiu contra os nativos na Amrica espanhola no processo de conquista durante o final do sculo XV.Embora a ao substitutiva seja conseqncia inevitvel da "regra geral" que determina o nascimento, a permanncia e o desaparecimento histrico das religies, Maquiavel critica essa sanha destruidora do cristianismo. O motivo da censura no o fato de o cristianismo impor-se s demais religies. Isso, afinal, um resultado inevitvel do processo histrico ao qual todas as religies esto submetidas. Maquiavel condena o cristianismo, mais precisamente seus dirigentes, porque esse movimento se nutre do descrdito lanado sobre esse mundo e da v esperana no alm como prmio. A pietosa crudelt de Fernando de Arago, rei da Espanha, "expulsando e espoliando os marranos do seu reino" (Il Prncipe, captulo XXI), d a medida exata daquilo que Maquiavel reprova na Igreja, particularmente naqueles que a comandam: sob o pretexto de travar uma guerra santa, pratica as piores atrocidades com o nico objetivo de alimentar a ambio poltica de ampliao de seu domnio.15 Essa ambio vem encoberta por um manto de santidade. Por certo, Maquiavel no ignora que, doutrinariamente, o cristianismo desaprova os males da guerra, o amor violncia, a crueldade vingativa, os dios inexpiveis, a resistncia obstinada dos vencidos e a brutalidade dos vencedores. Contudo, e isso que Maquiavel no aceita, o cristianismo condena essas prticas no porque so ms em si mesmas, e sim porque revelam a vinculao, o apego apaixonado a este mundo. Quando a crueldade praticada sob o pretexto da salvao da alma imortal, ela no s justificada, como at recomendada, acusa o florentino.Assim, o cristianismo, ao mesmo tempo que condena, tambm legitima a prtica de uma "piedosa crueldade" de tal magnitude que nem os antigos foram capazes de imaginar algo semelhante. violncia e crueldade praticadas pelos antigos por amor "honra e glria" mundanas, o cristianismo ope uma violncia e crueldade santas, que matam e aterrorizam em nome da vida eterna no cu. H um evidente uso poltico da religio crist. Diferentemente do paganismo antigo, porm, no visa ao bem comum terreno, e sim salvao eterna de almas imortais. Est nisso a razo principal da reprovao de Maquiavel ao modo de agir dos prncipes cristos. A diferena tem um agravante: os chefes da religio pag estavam submetidos s exigncias polticas e, no uso que faziam da religio, tinham sempre em vista o bem comum sob pena de sofrerem pessoalmente as punies decorrentes dos tumultos e dissenses que uma falsa interpretao da religio poderia provocar.16 J os chefes da Igreja crist, recrimina Maquiavel, vivem impunes e se aproveitam das dissenses que eles criam e mantm, "porque no temem um castigo que no vem e no qual no acreditam" (Discorsi III, 1).Maquiavel tem uma idia muito clara do papel desempenhado pela Igreja Catlica na Europa em geral, mas particularmente na Itlia. A severa crtica que enderea Igreja, particularmente aos seus dirigentes mais distintos, pode ser resumida em quatro pontos principais.Primeiro, o comportamento do clero levou ao enfraquecimento do sentimento religioso na Itlia: "Os maus exemplos desta corte [da igreja romana] destruiu na Itlia todo sentimento de piedade e de religio, o que tem infinitos inconvenientes e provoca muitas desordens, pois ali onde h religio se supe todas as virtudes, onde ela falta se deve supor todos os vcios. , portanto, Igreja e aos sacerdotes que os italianos devem o fato de viver sem religio e sem moral" (Discorsi I, 12). O agravante, nesse caso, o fato de o enfraquecimento da f religiosa ter sido provocado exatamente por aqueles que deveriam ser os primeiros a zelar por ela! Como se comportam os chefes religiosos? Simonia, cupidez, relaxamento dos costumes, toda espcie de abusos em proveito prprio. Francesco Guicciardini, fiel auxiliar dos papas na poca, exclama: "Ningum mais do que eu deplora a ambio, a cupidez e a fraqueza da gente da Igreja".17 O historiador chega a confessar que, no fosse a posio que ocupou junto a diversos papas, teria amado Martinho Lutero unicamente para "ver essa multido de celerados reduzidos condio que eles merecem, isto , ou purgados de seus vcios ou privados de toda a autoridade".18Segundo, o exerccio do poder temporal pelos papas provocou a diviso dos Estados italianos. Para saciar sua sede de poder, os papas empregaram mtodos de enfraquecimento dos territrios italianos, o que favoreceu os interesses dos estrangeiros. Para assegurar sua supremacia, no hesitaram em chamar em seu auxlio as potncias estrangeiras Itlia. No curto perodo da sua vida pblica, Maquiavel assistiu a duas invases da Itlia e uma da Espanha. "Este modo de proceder [...] o que manteve e continua mantendo desunida a Itlia" (Istorie Fiorentine I, 9), conclui o florentino.Terceiro, a sede de poder dos papas levou runa moral da Igreja na Itlia. No entendimento de Maquiavel, "temos a prova mais marcante desta decadncia no fato de que os povos mais prximos da Igreja Romana, a capital da nossa religio, so justamente os menos religiosos" (Discorsi I, 12). Maquiavel deplora que os papas no se restrinjam sua misso espiritual, tal como no princpio do cristianismo: "Os sucessores de So Pedro eram reverenciados pela santidade de suas vidas e milagres; o exemplo que deram ampliou tanto a religio crist que a ela os prncipes tiveram de obedecer para acabar com tanta confuso que havia no mundo" (Istorie Fiorentine I, 9). Tivessem os papas se limitado sua misso espiritual, teriam evitado a runa moral na qual a Itlia se encontra.Quarto, a Igreja o principal obstculo unificao da Itlia: "Um pas no pode estar unido e feliz se todo ele no estiver submetido obedincia de uma repblica ou um prncipe, como sucedeu na Frana e na Espanha. E a causa porque a Itlia no chegou mesma situao, e no tenha nem uma repblica ou prncipe que a governe, unicamente da Igreja" (Discorsi I, 12). Maquiavel acusa o Papa de ser demasiado fraco para liderar a unificao dos Estados italianos, mas, ao mesmo tempo, suficientemente forte para impedir que outro o faa (Idem).Maquiavel, seguindo os passos que Marslio dera dois sculos antes, mostra que o exerccio do poder temporal pela Igreja corrompe sua misso espiritual. A religio cumpre uma funo essencial na estrutura social. dela que provm a coeso interna do povo e o devotamento ptria como a um mandamento religioso. A f religiosa inspira o amor cvico e cultiva a virt coletiva sem a qual nenhum Estado sobrevive. Os chefes da Igreja, quando se imiscuem na vida do Estado, destroem o sentido espiritual identitrio que funde o povo numa nao. O poder exercido pela autoridade religiosa, devido ao seu carter divisionista, leva o povo a descrer. Paradoxalmente, portanto, a luta do Estado contra a Igreja, travada por muitos prncipes na poca, era, no fundo, um modo de defender a religio contra a Igreja. Uma Igreja secularizada perde a funo que lhe cabe no universo poltico maquiaveliano. Alm de esvaziar o sentimento religioso do povo, um papa sequioso de poder temporal arriscava provocar a reao dos Estados colocando em perigo a vida das populaes.Maquiavel pensa que o cristianismo tomou aos olhos de muitos crentes o sentido exclusivo de resignao ao sofrimento terrestre, de renncia luta humana e social. Esse sentido se ope frontalmente virtude cvica, que deve encontrar na religio uma fonte de inspirao para a exaltao do servio ptria. O que fazer para regenerar a f crist? Como agir para recobrar o primitivo vigor? De que maneira "os prncipes das repblicas crists" devem se comportar para que a religio crist volte a ser "tal como foi constituda por seu fundador" (Idem)?Maquiavel do entendimento de que o caminho que a religio deve seguir o mesmo que o das demais instituies, como, por exemplo, os Estados. Todos os "corpos mistos" devem ser periodicamente reconduzidos quela condio originria que constitui a razo de sua existncia: "Para querer que uma seita ou uma repblica viva longamente, necessrio retornar freqentemente para o seu princpio" (Discorsi III, 1), ensina Maquiavel. O que h no princpio das instituies que possui essa fora de renov-las? Maquiavel responde: "Em todos os princpios das seitas, das repblicas e dos reinos existe forosamente alguma bondade, graas qual recobraro sua primitiva reputao e sua capacidade de crescimento" (Idem).Em relao s religies, especificamente, o bom efeito dessa prtica pode ser comprovado, segundo Maquiavel, atravs dos exemplos de So Francisco e So Domingos:Quanto s seitas, vemos quo necessrio que exista nelas essa renovao, por exemplo, de nossa religio. Esta, se no tivesse retornado s suas origens graas a So Francisco e So Domingos, teria sido completamente extinta. Estes, com a pobreza e com o exemplo da vida de Cristo, a despertaram na mente dos homens, onde j estava esquecida. Suas novas ordens (ordini nuovi) foram to poderosas que, graas a elas, a desonestidade dos prelados e dos chefes da Igreja no conseguiram arruin-la. (...) Essa renovao, portanto, manteve e mantm esta religio" (Discorsi III, 1).A necessidade de retornar ao princpio uma exigncia inevitvel que brota da natureza histrica da instituio religiosa. As religies, assim como os Estados, esto submetidas lei inelutvel da gerao e da corrupo. O cristianismo sobreviveu ao longo dos sculos, porque soube "retornar s suas origens" renovando as bases sobre as quais est assentado.19Maquiavel extrai dessa origem histrica das religies duas conseqncias que evidenciam sua compreenso da finalidade da religio. Primeiro, que v a oposio entre religio revelada (crist) e no-revelada (pag). Segundo, que absurda a idia de uma Providncia divina reguladora das coisas mundanas. A primeira conseqncia permite-lhe sustentar a funo poltica da religio: por ser criao humana e no divina, a religio deve ser julgada por sua eficcia em relao ao cumprimento de finalidades mundanas, particularmente a de desenvolver o "amor ptria" (Discorsi II, 2). A segunda conseqncia possibilita-lhe evidenciar a sua tese da determinao humana (ainda que no de modo absoluto) dos acontecimentos histricos: contra as interpretaes fatalistas, que querem atribuir as calamidades e as adversidades em geral fortuna ou a Deus, Maquiavel afirma o papel decisivo da virt denunciando a f numa Providncia reguladora como fuga, desleixo e incapacidade poltica.

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Artigo recebido em jan./05 e aprovado em jul./05.

1 A novidade da contribuio de Maquiavel, de examinar a realidade humana sob o aspecto particular da vida de um Estado, no escapou Igreja. Sua obra foi includa no index, e Maquiavel queimado em efgie. mile Namer chama a ateno para o fato de que o crime do qual Maquiavel foi acusado, de desprezar a virtude, a religio e tudo o que h de sagrado no mundo, "no era nada em comparao com a sua posio que introduzia a cincia positiva e o determinismo na alma humana, a moral e a religio" (NAMER, . 1961, p. 91). Segundo ele, afirmar, como o fazia Maquiavel, "que existe um mtodo capaz de prever a ao dos homens e dos Estados, de introduzir a causalidade na ordem espiritual, era contrariar todas as formas, todas as categorias mentais aceitas desde sculos, e no somente estas ou aquelas crenas isoladas" (Ibidem, p. 91). O que a Igreja combatia, na avaliao de Namer, no eram apenas as teses esparsas, hostis religio e moral acreditada, mas a maneira nova de compreender o Estado. As autoridades eclesisticas, pondera o estudioso, "haviam compreendido que o Estado se apresentava cada vez mais como uma entidade que, sem excluir as crenas tradicionais, era autnoma e no aceitava se subordinar a uma autoridade religiosa e estrangeira" (Ibidem, p. 88). Certamente a viso de mile Namer acerca da obra de Maquiavel, de que este o introdutor de uma perspectiva cientfica da poltica, pode ser questionada sob diferentes pontos de vista. Com efeito, dificilmente os "preceitos" espalhados pela obra de Maquiavel podem ser considerados "leis cientficas", pois no se apresentam como regularidades inalterveis capazes de "prever a ao dos homens e dos Estados". No entanto, podemos conceder-lhe o acerto na concluso de que a oposio da Igreja a Maquiavel era devida possibilidade, aberta pelo florentino, de pensar a existncia de um Estado fora de uma estrutura poltica fundada sobre o catolicismo. 2 TOMMASINI, 1999, v. 2, p. 564, nota 1. 3 TOMASINI, 1999, v. 2, p. 564. 4 SASSO, 1980. p. 510. 5 Ibidem, p. 512. 6 TENENTI, 1969, p. 736-48. 7 NAMER, G. 1982, p. 26. 8 O captulo LVI do livro I dos Discorsi, a partir do prprio ttulo, leva-nos a considerar seriamente a hiptese de que Maquiavel acreditava na possibilidade de uma Revelao divina: "Os grandes acontecimentos que se produzem numa cidade ou num Estado, so sempre precedidos por sinais que os anunciam e por homens que os predizem". Lista uma srie de exemplos antigos e contemporneos para corroborar a afirmao expressa no ttulo, muito embora faa questo de ressaltar, logo no incio do captulo, que "ignora porque razo" esses fenmenos se produzem. No final do captulo, ele se justifica dizendo que "para explicar a causa desses prodgios seria preciso ter um conhecimento das coisas naturais e sobrenaturais que eu no tenho". Em todo caso, ainda que admita sua incapacidade de interpretar o porqu desses fenmenos aparentemente de origem divina, confessa: "seja qual for a causa, certo que sempre estes prodgios foram seguidos de mudanas extraordinrias e inesperadas nos Estados". 9 Segundo Paul Larivaille, isso confirma "a ambigidade essencial do papel reservado ao povo nas teorias polticas maquiavelianas. Maquiavel teve a intuio da necessidade de uma participao ativa do povo na vida social e poltica (...). No entanto, est longe de haver extrado dessas premissas todas as implicaes que poderiam decorrer logicamente dele. Seu povo no se torna jamais uma fora autnoma capaz de uma ao autnoma, mas permanece sempre mais ou menos, tanto nos 'Discursos' como no 'Prncipe', uma massa de manobra para os governantes, uma fora, conforme as situaes, para reprimir ou para manipular" (LARIVAILLE, 1982, p. 127). 10 CUTINELLI-RNDINA, 1998, p. 169. 11 CUTINELLI-RNDINA, 2004, p. 249. 12 Tommasini alerta, a esse propsito, que "a religio antiga, e a romana em especial, no beatificava ningum. Tratava-se de uma interpretao dos heris mitolgicos, que levou a acreditar que as antigas divindades eram reconhecidas como heris histricos. (...) O 'beatificare' usado aqui por Maquiavel est, portanto, muito particularmente como reflexo das poucas beatificaes do seu tempo, que ele lana sobre a apoteose antiga, quase como contraste" (TOMMASINI, 1999, p. 722). Podemos acrescentar a essa observao de Tommasini que Maquiavel inverte o costume vigente poca: diz que o cristianismo "glorificava" e o paganismo "beatificava". A questo instigante saber por que faz isso. Muito provavelmente, porque sua inteno comparar em seu valor religioso, ou, para dizer melhor, pretende comparar luz de um mesmo critrio, o de sua funcionalidade poltica, cristianismo e paganismo. 13 COLONNA D'ISTRIA, 1980, p. 113. 14 Cutinelli-Rndina chama a ateno para o aspecto paradoxal presente nas duas explicaes de Maquiavel sobre o triunfo do cristianismo em relao ao problema da imitao dos antigos. Na primeira, apresenta o cristianismo e o paganismo como essencialmente opostos: a fraqueza dos modernos e a exemplaridade dos antigos tm fundamento na diferena radical de suas respectivas religies e no contedo destas. Na segunda, o cristianismo, como "seita" entre as "seitas", nasce, permanece e morre como qualquer "seita". Como a diferena entre as pocas feita pelas religies, e como as religies so idnticas, a diferena entre o antigo e o moderno no tem como ser estabelecida desde o seu fundamento. As duas explicaes, entende Cutinelli-Rndina, revelam-se imprprias para descobrir um ponto de apoio a partir do qual a possibilidade da imitao possa ser fundada de maneira crtica. Na primeira explicao, "Maquiavel escavou um abismo entre o antigo e o moderno e, por isso, tornou a imitao, exatamente por causa do abismo criado pela diferena entre as religies, impossvel". Na segunda explicao, "a relao entre a religio dos antigos e a religio dos modernos se apresenta em termos de substancial identidade. Portanto, na perspectiva do quinto captulo, a imitao torna-se problemtica, se no impossvel, mas por uma outra razo, uma vez que se imita o diverso, no o idntico: como pode, com efeito, constituir objeto de imitao aquilo que constitudo segundo as mesmas leis e age segundo a mesma lgica daquilo que da imitao deve ser o tema?" (CUTINELLI-RNDINA, 1998, p. 245). 15 Diversamente do que sustentamos aqui, para mile Namer Maquiavel, em O Prncipe, "faz o elogio de Fernando de Arago, que utilizou a religio para assegurar sua supremacia sobre toda a extenso da Espanha" (NAMER, 1961, p. 126). O argumento de Namer para fundamentar essa concluso de que "Maquiavel estimava (...) que o homem de Estado novo deveria favorecer as instituies que condicionavam a unidade social e destruir aquelas que a enfraqueciam. neste contexto histrico que so julgadas as medidas dolorosas que Fernando de Arago tomou contra os Marranos" (Idem). 16 o que Maquiavel ilustra com o exemplo de pio Pulcro: ele "querendo lutar contra o exrcito cartagins, mandou consultar as aves sagradas e, contando-lhe que as aves no haviam comido, disse: 'vejamos se querem beber', e os fez lanar ao mar. Comeada a batalha, foi derrotado, pelo que foi condenado em Roma, enquanto Paprio [que tambm interpretara os auspcios 'segundo a necessidade', mas tivera xito] foi homenageado" (Discorsi I, 14). 17 GUICCIARDINI, 1995, n. 28. 18 Idem. 19 Werner Kaegi, embora reconhea que o corao de Maquiavel pertenceu ao Estado e no Igreja, observa que "um homem que fala dessa maneira no um inimigo da vida catlica, nem do cristianismo em geral, e sim pertence, como figura perifrica, quele grupo atravs de cujas idias o catolicismo, nas dcadas seguintes, ser submetido profunda renovao e transformao tambm na Itlia" (KAEGI, 1942, p. 97).

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