alzheimer, uma doença que... o quê?

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SAÚDE ALZHEIMER, UMA DOENÇA QUE... O QUÊ? “A vida me ensinou algumas semelhanças inimagináveis entre tempo, café e urina na tampa do vaso” Quando o médico entregou o diagnóstico minha mãe entrou em desespero e perguntou: – Quanto tempo? Houve um silêncio ensurdecedor na sala branca, que até era ampla, mas que naquele momento parecia apertada demais para nós cinco. Eu fiquei ali saber o que aquilo significava. Minha mãe em pranto segurava a mão do pai. O médico era apreensivo e cauteloso. Meu irmão caçula brincando inerte com um carrinho vermelho. E meu avô, segurando a mão da minha mãe, tão inerte quanto meu irmão, mas perdido em memórias e pensamentos que ele se esqueceu de compartilhar. – Eu não tenho poder para mensurar o tempo – disse o médico mexendo em seus óculos. Eu nem lembro o nome do doutor, mas aquela frase nunca sairá da minha cabeça... A não ser que minha memória se perca com o tempo, assim como a do meu avô. – Cadê o café? – questionou meu avô. Estava perto do horário do almoço. O horário do café já havia passado. O tempo, pensei naquele instante, não tem volta. É algo intangível, que não se pode trocar, retomar ou pedir de volta. Ele passa e quando a gente se dá conta, se foi... Para nunca mais voltar. É como esperar a semana toda pela sexta-feira. Esperar o dia inteiro pelas 18h para sair do trabalho. Esperar por um tempo que ainda não chegou, sem perceber que torcemos para nosso tempo agora passar rápido. O tempo de tomar o café já havia passado, mas meu avô sequer notava. Perceber isso naquele momento foi como um banho de água fria: eu não tinha a mínima noção da importância do meu tempo. Do que passava com a minha mãe e irmãos, com meus amigos e familiares e naquele instante, principalmente com o meu avô. – A doença do seu avô é neuro- degenerativa que provoca um declínio crescente nas funções intelectuais – explicou o médico depois de pedir uma xícara de café para a assistente –, desta forma reduz as capacidades de trabalho e relação social, além de interferir no comportamento e na personalidade do portador. Como o médico explicou, de início o meu avô começaria a perder a memória mais recente. – Ele pode até lembrar com precisão acontecimentos de anos atrás, mas será habitual esquecer que acabou de realizar uma refeição, ou de tomar café, por exemplo. O Alzheimer provoca uma progressiva e irreversível deterioração das funções cerebrais, como perda de memória, de linguagem, razão e habilidade de cuidar de si próprio. A pessoa fica cada vez mais dependente da ajuda dos outros, até mesmo para rotinas básicas, como a higiene pessoal e a alimentação. E eu vi meu avô passar por cada uma dessas perdas, até perceber que quem estava perdendo-o era eu. Matheus Roch e Alice Oliveira Estágio I – o paciente sofre alterações na memória, personalidade e habilidades espaciais e visuais – Quem fez xixi na tampa do vaso? – gritou meu avô no meio da noite. Todos estavam dormindo, menos eu. Corro até o banheiro preocupado, com medo de que ele tivesse caído ou se machucado em algum lugar. Ao chegar lá, senhor Pedro estava gritando com as paredes: – Eu não acredito que fizeram isso – levou a mão à cabeça, irritado. Somos três homens em casa, mas nem eu e nem meu irmão caçula já haviamos feito algo que pudesse irritar tanto meu avô. Ele próprio tinha acabado de urinar sobre a tampa do vazo, nada demais, alguns respingos apenas, mas foi o suficiente para tirá-lo do sério. Foi um dos sintomas que percebemos no início da doença: ele não tinha mais noção de espaço e da gravidade das situações. Ajudei-o ele a lavar as mãos e então limpei a sujeira sobre a tampa do vaso sanitário. Pensei que isso fosse acalmá-lo... Ele nem mesmo notou. – Mas cadê o café? – questionou meu avô. – Que café? – perguntei exausto. Ele não deu bola para minha resposta, como seu eu nem mesmo tivesse falado. Pedro saiu do banheiro sem nem mesmo desejar boa noite. “Quem fez xixi na tampa do vaso?”

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Page 1: Alzheimer, uma doença que... o quê?

SAÚDE

ALZHEIMER, UMA DOENÇA QUE... O QUÊ?“A vida me ensinou algumas semelhanças inimagináveis entre tempo, café e urina na tampa do vaso”

Quando o médico entregou o diagnóstico minha mãe entrou em desespero e perguntou: – Quanto tempo? Houve um silêncio ensurdecedor na sala branca, que até era ampla, mas que naquele momento parecia apertada demais para nós cinco. Eu fiquei ali saber o que aquilo significava. Minha mãe em pranto segurava a mão do pai. O médico era apreensivo e cauteloso. Meu irmão caçula brincando inerte com um carrinho vermelho. E meu avô, segurando a mão da minha mãe, tão inerte quanto meu irmão, mas perdido em memórias e pensamentos que ele se esqueceu de compartilhar. – Eu não tenho poder para mensurar o tempo – disse o médico mexendo em seus óculos. Eu nem lembro o nome do doutor, mas aquela frase nunca sairá da minha cabeça... A não ser que minha memória se perca com o tempo, assim como a do meu avô. – Cadê o café? – questionou meu avô. Estava perto do horário do almoço. O horário do café já havia passado. O tempo, pensei naquele instante, não tem volta. É algo intangível, que não se pode trocar, retomar ou pedir de volta. Ele passa e quando a gente se dá conta, se foi... Para nunca mais voltar. É como esperar a semana toda pela sexta-feira. Esperar o dia inteiro pelas 18h para sair do trabalho. Esperar por um tempo que ainda não chegou, sem perceber que torcemos para nosso tempo agora passar rápido.

O tempo de tomar o café já havia passado, mas meu avô sequer notava. Perceber isso naquele momento foi como um banho de água fria: eu não tinha a mínima noção da importância do meu tempo. Do que passava com a minha mãe e irmãos, com meus amigos e familiares e naquele instante, principalmente com o meu avô. – A doença do seu avô é neuro-degenerativa que provoca um declínio crescente nas funções intelectuais – explicou o médico

depois de pedir uma xícara de café para a assistente –, desta forma reduz as capacidades de trabalho e relação social, além de interferir no comportamento e na personalidade do portador. Como o médico explicou, de início o meu avô começaria a perder a memória mais recente. – Ele pode até lembrar com precisão acontecimentos de anos

atrás, mas será habitual esquecer que acabou de realizar uma refeição, ou de tomar café, por exemplo. O Alzheimer provoca uma progressiva e irreversível deterioração das funções cerebrais, como perda de memória, de linguagem, razão e habilidade de cuidar de si próprio. A pessoa fica cada vez mais dependente da ajuda dos outros, até mesmo para rotinas básicas, como a higiene pessoal e a alimentação. E eu vi meu avô passar por cada uma dessas perdas, até perceber que quem estava perdendo-o era eu.

Matheus Roch e Alice Oliveira

Estágio I – o paciente sofre alterações na memória, personalidade e habilidades espaciais e visuais

– Quem fez xixi na tampa do vaso? – gritou meu avô no meio da noite. Todos estavam dormindo, menos eu. Corro até o banheiro preocupado, com medo de que ele tivesse caído ou se machucado em algum lugar. Ao chegar lá, senhor Pedro estava gritando com as paredes: – Eu não acredito que fizeram isso – levou a mão à cabeça, irritado. Somos três homens em casa, mas nem eu e nem meu irmão caçula já haviamos feito algo que pudesse irritar tanto meu avô. Ele próprio tinha acabado de urinar sobre a tampa do vazo,

nada demais, alguns respingos apenas, mas foi o suficiente para tirá-lo do sério. Foi um dos sintomas que percebemos no início da doença: ele não tinha mais noção de espaço e da gravidade das situações. Ajudei-o ele a lavar as mãos e então limpei a sujeira sobre a tampa do vaso sanitário. Pensei que isso fosse acalmá-lo... Ele nem mesmo notou. – Mas cadê o café? – questionou meu avô. – Que café? – perguntei exausto. Ele não deu bola para minha resposta, como seu eu nem mesmo tivesse falado. Pedro saiu do banheiro sem nem mesmo desejar boa noite.

“Quem fez xixi na tampa do vaso?”

Page 2: Alzheimer, uma doença que... o quê?

Estágio III – o paciente terá resistência à execução de tarefas diárias, incontinência urinária e fecal, dificuldade para comer, deficiência motora progressiva

Meu avô nunca mais reclamou do xixi na tampa do vazo. Ele não urina mais como antigamente, e quando seu corpo chega ao limite faz onde está e na roupa mesmo. Mesmo assim ele afirma que “jamais usará fraldas”. – Lucas, Luciano, Cristiano, Matheus, Vagner, Marcio... – senhor Pedro chama os netos. O neto por quem procura é, no caso, Emanuel, mas sua memória já não ajuda a recordar o nome dos familiares. – Está pronto o café? – questiona irritado – Lucas, Luciano, Cristiano, Matheus, Vagner, Marcio,

está pronto o café? Não está. Além da dificuldade para usar o banheiro, nesta fase percebemos que o antigo senhor ativo, que cultivava verduras em uma horta no quintal de casa, agora mal pode se mexer sem reclamar das dores. Nunca tive muito contato com plantas, no entanto precisei aprender para que aquela pequena horta não morresse... – Você não sabe molhar direito, Cristiano - reclama senhor Pedro. – Meu nome, é Matheus vô!

Estágio IV – o paciente terá restrição ao leito, dor à deglutição e infecções intercorrentes

Quando o médico entregou o diagnóstico, minha mãe entrou em desespero e perguntou: – Quanto tempo? O tempo ainda não chegou até essa fase, mas sabemos que chegará. Era isso que minha mãe temia, era esse tempo que ela queria que o médico nos alertasse. E mesmo

sabendo que a doença do nosso Pedro não tem cura, a esperança é o que nos move diariamente. Nos momentos mais inesperados, ele ainda pergunta: – Cadê o café? A resposta é sempre diferente: – Está pronto vô – ou –, vou fazer!

Estágio II – o paciente tem dificuldade para falar, realizar tarefas simples e coordenar movimentos; ele terá agitação e insônia

Nossa família sempre teve o costume de dormir muito cedo. Às 19h00 todos em casa já se preparavam para deitar, isso porque, meu avô não deixava ninguém dormir tarde. Hoje, no entanto, essa não é mais nossa realidade. A insônia se mantém ao encalço de todos, uma vez que, dormir com o senhor Pedro

perambulando pela casa não é possível, por dois motivos: ele não deixa ninguém dorme porque está preocupado com ele. Essa rotina se tornou a realidade da família no segundo ciclo da doença, que não era mais exclusiva do meu avô, mas que afetava todos nós. Aquele que antes era calmo, agora não para mais quieto.

Pedro Vieira, portador da doença de Alzheimer. Talvez esperando sua xícara café!

OUTROS PEDROS, OUTRAS XÍCARAS DE CAFÉ!

Dados: OMS - Organização Mundial da Saúde

PANORÂMA DA DOENÇA

Quando uma pessoa vira estatística ela perde sua identidade. Quando uma pessoa é diagnosticada com DA (Doença de Alzheimer) ela perde a si própria. Essa é a realidade de Sebastião, sem sobrenome, pois esqueceu. Pai de cinco filhos, colono da cidade de Lindoeste no Paraná, viu os filhos e a cidade crescer, mas nem reparou o tempo passar. De todos os filhos, apenas a caçula continuou ao lado do pai. “É triste saber que ele cuidou da gente a vida toda, encaminhou os filhos na vida e agora, quando mais precisa, meus irmãos dão as costas”, relata Sueli, a única que relembra o sobrenome do pai e da família: Silva. Diagnosticado aos 81 anos, o aposentado foi se perdendo com o passar dos anos. “No começo ele esquecia algumas coisas, até o dia em que se esqueceu de mim”, lamenta a filha. No entanto, para a dona de casa que se desdobra para cuidar dos três filhos, do marido, do pai e de mais dois cachorros, mesmo com a tristeza e dificuldade de quem cuida, o coração dela está feliz por retribuir o amor à figura paterna. “Meu pai sempre foi muito rígido e brigava muito com os filhos, mas era o jeito dele... E agora eu sinto falta até disso”, relembra Sueli, da infância. Ela é uma das únicas que guardam as lembranças do velho pedreiro, reforçando a importância do apoio e amor da família. “Ninguém teve isso na família, então foi um choque”, afirma a dona de casa. No entanto, de acordo com o neurologista do Núcleo de Excelência em Memória do Hospital Israelita Albert Einstein e do Unifesp (Instituto da Memória da Universidade Federal de São Paulo), Ivan Hideyo Okamoto, o único fator de risco comprovado para a Doença de Alzheimer é a idade avançada. “Com o tempo, países em desenvolvimento, como Brasil, China, Indonésia

e Índia, terão cada vez mais quantidade de idosos, o que potencializará o número de impactados. Por isso, é importante o tratamento logo no início da doença”, ressalta. Uma campanha é promovida em todo o país no mês de setembro, para levar informações para que as pessoas saibam lidar da melhor forma com a doença. “A DA responde por cerca de 50% das causas de demência no mundo, que leva à perda do funcionamento cognitivo. Inicialmente, a doença acomete regiões do cérebro relacionadas à memória, mas ela evolui comprometendo funções de linguagem, cálculo e execução de tarefas”, explica. Os exames não revelam se o paciente terá ou não determinada doença, mas sim se ele tem chances de desenvolvê-la em algum momento da vida. “Assim, pessoas mais predispostas a determinadas patologias podem adotar medidas preventivas simples ou assumir procedimentos mais rígidos para a prevenção, de acordo com orientações do médico”, enaltece o neurologista. Em muitos países, as avaliações deste tipo já foram incorporadas pela saúde pública, proporcionando redução de custos e de mortalidade significativos. A detecção de qualquer doença grave em seus primeiros estágios é essencial para o sucesso do tratamento. No caso do Alzheimer, o diagnóstico precoce é ainda mais importante, já que a doença não tem cura e o único recurso disponível é o controle do distúrbio, por meio de medicamentos. “Ainda não existem remédios capazes de evitar a condição, mas sim de controlar o seu avanço. Portanto, identificar os mecanismos associados ao Alzheimer ajuda os cientistas a entenderem melhor a doença e pode auxiliar outros estudos que tentam descobrir formas de impedir que a ela se desenvolva”, conta Kozlowski.

Sueli e o pai Sebastião enquanto ainda não eram estatísticas!

“É triste saber que ele cuidou da gente a vida toda,

encaminhou os filhos na vida e

agora...” Se perdeu!

FOTO: ArQUIVO PESSOAL

FOTOS: MATHEUS rOCH