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Aluizio Mercado Como é bom sorrir Primeira Edição São Paulo 2013

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Aluizio Mercado

Como é bom sorrir

Primeira Edição

São Paulo

2013

Capa: Dulcila Canedo Pascoal

Revisor: Hudson Túlio Machado

Como é Bom Sorrir, por Aluízio Mercado

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CAPÍTULO I

A gestação de seis anos

‒ O guri, o guri!

Tais palavras, enfaticamente transmitidas pelo condutor de um veículo à companheira ao lado, fê-la subitamente perceber também uma cena digna de registro.

Havia chovido muito e, naquele instante, um garoto margeando a rua, aparentando cinco ou seis anos, em gestos rápidos e repetitivos com as mãos, tentava remover das faces, principalmente das vistas, a lama arremessada em jato pelas rodas de um caminhão que por ali tinha trafegado.

Duplamente sobressaltado, tentava recompor-se. Com seus olhinhos semiabertos, fitava o casal, que agora fora do carro e bem à sua frente, olhavam-no extasiados pelas fotos que rapidamente obtinham por diferentes ângulos.

O casal de gaúchos, jornalistas e fotógrafos profissionais, mantinham uma missão naquela região, que era a de registrar paisagens ou cenas exóticas.

O local não causava nenhum prazer visual; era um bairro distante de uma metrópole onde na qual predominava total desleixo público. A chuva torrencial que precedera havia provocado pequena inundação e os charcos d’água na via pública, desprovida de asfalto, lentamente eram absorvidos pelo solo.

Coincidentemente, no mesmo instante de tais acontecimentos, passava por ali um outro casal que, da mesma forma, tolhidos pelas surpresas das cenas ocorridas, sentiam-se arrebatados por aquele garoto.

Em um curtíssimo tempo, o casal de jornalistas, sem diálogos ou interesse pelo garoto, abandonavam o local de todas essas cenas, como se fossem meros protagonistas de um episodio teatral. Menosprezavam um cenário formado por uma criança, uma cadelinha e um casal tomado de compaixão e pelo inesperado desejo de ajudá-lo.

Carinhosamente, por diversas vezes, tentaram fazer-lhes as mesmas perguntas sobre seu lar, seus pais, até mesmo cidade, mas suas respostas evasivas, monossilábicas, evidenciavam lastimável estado íntimo. Tão logo, portanto, reconheceram estar diante de uma criança perdida dos pais.

Com o rosto molhado e sujo de terra, um velho e folgado boné a cobrir-lhe a cabeça, da mesma forma, um surrado paletó de gente grande, protegia-lhe o restante do corpo até a altura dos joelhos; as mangas, desordenadamente dobradas, mantinham livres as pequenas mãos e, sobre as sandálias de borracha, os pés ficavam tão desprotegidos do intenso frio quanto suas finas canelinhas.

O jovem casal sentia-se, em face ao abandono e desnutrição daquele garoto, reféns de sérios questionamentos íntimos e em um átimo, faziam emergir seus elevados sentimentos.

‒ Onde ele dormiu todo esse tempo?

Ele apontou para uma igreja em construção e respondeu:

‒ Ali, embaixo da escada.

‒ E comida?

‒ Quando tinha fome, eu pedia e as pessoas me davam...

‒ E... O que vai fazer agora?

‒ Não sei.

‒ Você não tem medo de ficar sozinho?

‒ Tenho.

O casal entreolhara-se, estavam chocados. Era como se dialogassem: “Não é possível, não pode estar ocorrendo, isso é ilusão!”. “Como uma criança tão nova, abandonada tantos dias?”.

‒ E o que vamos fazer?

‒ Abandoná-la, como tantos provavelmente o fizeram?

‒ Encarar os fatos e proceder como o casal de fotógrafos?

‒ Onde está o sentimento? Isso é uma criança, um ser humano! Onde está a sociedade?

‒ Como estariam seus pais, neste momento?

O afeto ao pequeno desconhecido os abatia, os olhos marejavam prenunciando lágrimas a rolar das faces de Suzana.

Tinham que fazer algo, mas estavam incertos sobre o que fazer. Decorridos alguns segundos, tentavam recompor-se e Anselmo, com a voz entrecortada de emoção, dizia:

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‒ Devemos levá-lo a algum lugar, o que você sugere, meu bem? Irmos a um juizado de menores, delegacia de polícia? Seja lá o que for, não podemos mais ficar parados! Veja, já anoitece...

Suzana, tomando a consciência que o momento exigia, sentindo-se pouco refeita, respondeu:

‒ Deveríamos ir aos três lugares, quem sabe alguém se queixou da perda dele?

‒ Ótimo. Então, vamos!

Porém, antes, voltando-se ao garoto, perguntaram-lhe:

‒ Qual o seu nome, garoto? Você quer ir?

Recostada aos seus pés, estava uma cachorrinha, incomodada pelas pulgas. Mal dava para ver seus olhinhos pretos, os pelos lisos, que naquele momento estavam enlameados e amarelos.

O garoto não hesitou, respondendo:

‒ Bino, eu vou, mas vocês deixam ela ir também?

Naqueles olhinhos castanhos, havia tamanha serenidade e confiança que uma nova e forte emoção os envolvera. Impressionava-os vê-lo totalmente abandonado, sem lar, sem família... A única âncora do menino era uma cachorrinha pela qual demonstrava tanto afeto!

‒ Tudo bem, então vamos, “meu filho” ‒ pronunciou a mulher.

Suzana, sentada atrás, ao lado do garoto, não mais conseguia tirar os olhos dele e Anselmo, ansioso, dirigia atento ao retrovisor.

Anoitecera, mas a luz do teto permanecia acesa. Assim, iria começar uma longa caminhada...

Durante o trajeto, Suzana segurava um bracinho e meditava: “Meu Deus, como é pequenino! Olhe o tamanho das mãos, dos dedinhos!? É muito pequeno para estar só!”. E as lágrimas deslizavam, ela não sabia o que falar, mas o instinto maternal começava a funcionar.

‒ Benzinho, você tem sede, fome ou alguma dor?

Ele cabisbaixo, respondia sem, no entanto, olhá-la:

‒ Um pouco, mas dor, eu não tenho.

‒ Daqui a pouquinho, vamos te dar algo para comer, viu?

Inicialmente, dirigiram-se aos dois jornais que representavam a cidade e, posteriormente, às rádios. Nenhuma queixa de perda ou de procura por um garoto. A seguir, foram até o Juizado de Menores, mas imediatamente souberam que naquela hora da noite, este seria representado pela Delegacia de Polícia. Então, para lá tomaram rumo.

O plantão policial ocupava um prédio anexo à cadeia pública e da recepção avistava-se um amplo salão, cujos assentos estavam quase todos ocupados pelo grande número de pessoas que ali também se aportavam, na esperança de solucionar os seus problemas.

Anselmo dirigiu-se para o interior do prédio, deixando, no pátio interno, a esposa com o menino.

Naquele ambiente, saturado de energias pouco salutares, um policial o interrogou:

‒ Pois não, o que o senhor deseja?

Ele resumiu as explicações e o policial, sem delongas, responde-lhe:

‒ Então, coloque aqui na ocorrência “criança abandonada” e aguarde para ser atendido pelo delegado.

Ao seu lado, sentado estava um cidadão, aparentando seus vinte e cinco anos, de fisionomia calma. Não tardou para que este logo percebesse o drama estampado na aparência de Anselmo e talvez, no desejo de alguma forma ser útil, demonstrando respeito e jovialidade, inquiriu-o:

‒ O amigo está com problema sério?

Tratava-se de uma liberdade tão característica das regiões interioranas, que Anselmo não se sentiu incomodado, contudo, sem vontade de responder ou muito menos de conversar, laconicamente respondeu:

‒ Sim e não...

‒ Como assim, amigo?

Anselmo, de soslaio, reparou no seu vizinho, cuja fisionomia tranquila deu-lhe a impressão não se tratar de pessoa apenas curiosa das desgraças alheias, então, resumidamente, cedeu-lhe as informações de todo o sucedido. O desabafo causara-lhe certo alívio e o novo amigo não se intimidou, comentando:

‒ É, companheiro... A vida, às vezes, nos apronta cada uma, não é?

‒ É sim, eu é que diga... Acho que esta é mais uma!

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‒ Vocês têm filhos?

‒ Não, nenhum ‒ respondeu Anselmo.

‒ Pois é, nós temos quatro e vamos para o quinto, mas pretendemos parar por aí.

‒ Minha nossa Senhora! Que “barra” a sua, hein? Qual a sua profissão?

‒ Professor e minha esposa também. E a sua?

‒ Gerente de produção de uma empresa.

‒ Você ganha bem, o setor privado é valorizado.

‒ É... não tenho do que me queixar.

Anselmo respondia maquinalmente, seus pensamentos estavam na esposa e no garoto, que o aguardavam no carro.

De forma quase que inconsciente, sem imaginar que poderia ser um gracejo, Anselmo retrucou:

‒ Vocês são espertos...

‒ Como assim?

‒ Com cinco filhos, com o gordo auxílio natalidade e auxílio pensão que o governo oferece, imagino o salário de vocês...

O professor achou graça e sorriu.

‒ Se desse para alguma coisa, até que tentaríamos mais alguns, assim montaríamos nossa creche, mas a realidade é outra, você sabe.

A esta altura, o recém-amigo, valendo-se de certa liberdade, interrogou-o:

‒ Vocês já pensaram em ter filhos?

‒ Oh, sim! Minha esposa até passou por cirurgias, somos casados há dez anos, mas de uns tempos para cá, achamos impossível e, então, não pensamos mais nessa possibilidade.

Com voz impregnada de seriedade, como se transmitisse inspiração, o professor induziu-o, dizendo:

‒ No seu caso, está “pintando” uma adoção, amigo!

E rapidamente continuou:

‒ Quantos anos tem essa criança?

‒ Entre cinco e seis anos, talvez... Adoção?! ‒ exclamou Anselmo, como se tivesse sido abruptamente acordado.

‒ Sim! Por que não? Se for o caso, você quer saber quanto tempo durou a gestação do seu filho?

‒ Sim! ‒ respondeu-lhe Anselmo, pensando na tolice do professor.

‒ Uma gestação normalmente dura nove meses, mas a de vocês demorou cinco ou seis anos, está aí!

O professor se portava de maneira discreta, mesmo assim, Anselmo o estranhou...

‒ Olhe, Anselmo, se as coisas fluírem de modo favorável à adoção, não perca tempo. Você já visitou algum orfanato em sua vida?

‒ Não ‒ respondeu Anselmo.

‒ Vou lhe contar, eu frequentemente visitava o mesmo orfanato em minha cidade, mas da última vez, um garoto de sete ou oito anos, que já havia se relacionado a mim, quando eu encerrava a visita, disse-me:

“Tio, leve-me até a sua casa, deixe-me conhecê-la, só para matar as saudades da minha casa, aqui eu choro todas as noites de saudades de minha querida mãezinha...”.

“Você tem mãe?”, perguntei-lhe. “Achei que não tivesse!”. “Não, ela morreu e meu pai me abandonou aqui. O senhor

não imagina o quanto ela era boa, me dava carinho, fazia comida e gostava de cantar enquanto trabalhava em casa ou lavando roupas para os vizinhos. Ela não sai do pensamento, tudo que eu faço é pensar nela, não sei o que vai ser da minha vida!”.

‒ Sabe, Anselmo, o que eu fiz? Prometi-lhe a oportunidade em outra visita, mas até hoje, não tive coragem de voltar lá. Saí amargurado e pensando: “Como não ficar com mais um em casa? Eu sei que isso é impossível”. Nunca contei tal fato à minha esposa...

Nesse momento, Anselmo fora chamado ao balcão e ambos despediram-se cordialmente, trocando endereços, para possíveis encontros no futuro.

O policial, então, disse a Anselmo:

‒ O doutor delegado disse que semanalmente ocorrem dois casos semelhantes ao seu, e disse também que é para o senhor trazer

esta criança ‒ e completou friamente ‒ quando uma viatura ficar disponível, nós enviaremos essa criança a um orfanato da cidade, já estamos acostumados com isso, ok? Pode trazê-la!

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Como que automatizado, imediatamente deu meia volta e seguiu em direção ao amplo corredor que o levaria ao pátio interno. Em dado momento, embaralhando as próprias pernas, ele se autoatropelou naquele piso de borracha, que luzia de tão limpo. À sua frente, havia um vaso cuja altura coincidia com sua cintura, a queda era iminente. Sentindo-se protegido, ele abraçou-o, mas, infelizmente, a pressão do corpo fora superior à força de reação do vaso e ambos rolaram pelo chão. O estrondo assustara a todos que por ali estavam, os policiais correram ao seu encontro e o auxiliaram a se recompor.

Anselmo, com expressão facial “de que o dia era da onça e não do caçador”, excedia-se em pedir desculpas e lamentos pela distração. Felizmente, não se ferira nem tampouco quebrara o vistoso vaso, anteriormente, florido!

Finalmente, ele chegou ao carro. Lentamente, àquelas horas da noite, sob intenso vento, a temperatura ia diminuindo e, dentro do carro, envolto a um casaco improvisado, o garoto, quietinho, permanecia agora mais aconchegado à Suzana.

Anselmo abriu a porta e, sem que o desejasse, fixou seus olhos aos do garoto e, com a voz embargada, disse:

‒ Você vem comigo, filho!

Suzana estava perplexa. Procurava conter os soluços, mas as lágrimas corriam abundantes pela face.

O garoto, em uma serenidade mesclada com doçura, como um anjo, respondeu:

‒ Eu vou, mas a minha cachorrinha pode ficar para vocês cuidarem dela?

Renúncia e solidariedade, tão naturalmente demonstradas por aquele pequeno e ingênuo ser, causavam profundas alterações no equilíbrio do sentimento do então aparentemente forte casal. Com os braços sobre o capô e a cabeça recostada entre as mãos, Anselmo não suportara o peso da emoção e, qual criança, deixava as lágrimas caírem.

Suzana abandonou o carro e iniciou o diálogo:

‒ O que vamos fazer, meu bem? O que o seu coração lhe diz para fazer?

‒ Não sei, estou confuso. O certo é deixá-lo aqui, mas minha consciência e sentimento reprovam-me e não sei quais serão as consequências se o levarmos para casa.

Suzana, que era evangélica, respondeu:

‒ Nós estamos sendo testados por Deus, meu bem. Uma joia

de Deus está em nossas mãos e não seria correto abandoná-la ‒ e,

concluindo, continuou ‒ veja se consegue achar uma saída, Anselmo!

‒ No fundo mesmo, eu gostaria de levá-lo e de lá, tentar achar seus pais.

‒ Falando sinceramente, isso coincide com meus propósitos, querido. Pensamos de modo igual, aí está a resposta de Deus, meu marido!

‒ E nossa viagem para Goiás, nossos amigos, nosso hotel?

‒ Lembre-se de que Deus nos colocou diante de dois caminhos para que escolhêssemos um.

Com aparência renovada, Anselmo exclamou:

‒ Tudo bem, voltemos para casa, com uma criança e uma cachorrinha!

Assim, em meio a uma paisagem noturna e solitária, como se fossem os únicos seres do planeta, o veículo deslizava suavemente pela rodovia.

Era final de outono, poucas estrelas emitiam luz, mas o fulgor do brilho dessas poucas realçava o contraste com o fundo escuro do céu e produzia o majestoso espetáculo de sempre.

O regresso ao lar, distante apenas alguns quilômetros, fazia-se cheios de expectativas.

Enquanto dirigia, Anselmo monologava consigo: “A vida realmente nos apronta cada surpresa... e em tudo! Quando menos se espera, olhe-a aprontando!”.

Prazerosas lembranças surgiam em sua tela mental: “Lembro-me do primeiro dia em que vi Suzana. Eu tinha dezesseis e ela treze anos. Ah, como ela já era bonita! Morávamos no mesmo quarteirão, as ruas eram paralelas, a frente de nossas casas se opunham e os quintais eram mediados por um muro muito alto. É... Foi esse muro naquela época despertava-me entusiasmada curiosidade sobre como poderia ser o quintal da casa de nosso vizinho. Não é que um belo dia ajeitei uma escada e fui subindo, subindo, bem devagar, quando cheguei no limite, foi aquele tremendo susto, que por pouco não caí

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daquela altura! Jamais imaginaria que uma menina, do outro lado, ao mesmo tempo, estivesse fazendo a mesma coisa! O encontro foi olhos nos olhos. Ela se assustara tanto que soltou um grito e, rapidamente, como uma bala, desceu... Pronto, daí começou toda história de um romance!”.

Anselmo concluíra ainda muito jovem o ensino médio noturno e, daí para frente, soubera aproveitar as oportunidades dos cursos técnicos. Na ocasião desses fatos, ele contava com vinte e oito anos, profissionalmente exercia elevado cargo como supervisor de produção, em indústria de grande porte em sua cidade.

Outra grata recordação assomava-lhe o espírito: a vida com seus pais.

Desde a mais tenra idade, fora habituado ao penoso ritmo de trabalho deles. Muito antes que o sol clareasse, nas madrugadas frias ou quentes de quase todos os dias, a família simples e unida colocava em ordem o velho caminhão às ruas, para mais um dia de feira livre. E como era o caçula de três irmãos, privilegiava-se por ocupar a boleia do caminhão junto ao aconchego do pai e da mãe. Diversas fisionomias, embora distanciasse bom tempo, ocorriam-lhe à mente daqueles valorosos feirantes, cujo vozerio e gritos, no prelúdio do alvorecer, tanto o contagiavam a ponto de tudo achar graça. É como se tudo aquilo representasse a energia da solidariedade, despertando uns aos outros, na esperança de bons negócios. Divagava assim, com muita ternura, sobre a arte de viver com sua família; não ficaram ricos, mas ganharam o suficiente para viver com dignidade.

Tão logo o veículo estacionara na garagem da residência do casal, rapidamente iniciaram as preocupantes adaptações em prol do garoto. Àquelas horas, o relaxamento dele era tão profundo que sequer abria os olhos ou mantinha qualquer reação de controle de seu corpinho.

Adormecido nos braços de Anselmo, optaram, diante da situação, por um banho a vapor de água com toalhas semiúmidas, exalando a fragrância de agradável sabonete. Lentamente, dos pés à cabeça, eles os higienizaram para a primeira noite. A cadelinha, pressentindo melhor sorte, rapidamente acomodava-se, com sua prole de pulgas, em uma acolhedora caixa de papelão.

A residência dos anfitriões era recém-construída e ficava em uma esquina de ruas largas. Um gradil isolava-a e protegia-a do meio externo. As folhagens espessas, formadas por trepadeiras de diferentes espécies, cobriam-no em toda extensão, dessa forma, a florescência desigual acabava proporcionando uma paisagem sempre multicolorida. Circundada por gramado, a construção pequena e sólida denotava habilidade de tratamento: dois arbustos, do gênero das camélias, pontilhados de flores brancas, enfeitavam a entrada principal e, ao lado, bem à sombra de quaresmeiras, havia um conjunto de mesas e de cadeiras, talhadas em ferro esmaltado de branco, que formava gracioso contraste com o verde da grama; delicados vasos floridos preenchiam corretamente os espaços e, ocupando um dos lados, havia a cobertura da garagem, que interligava a casa ao amplo compartimente de manutenção. Portanto, tornava-se fácil para um observador atento, mesmo diante dessa simplicidade, sentir a personalidade dos moradores.

Internamente, a pequena sala de visitas interligava-se diretamente à espaçosa e confortável sala de jantar. No centro desta, destacava-se uma mesa oval de jacarandá escuro, com oito cadeiras almofadadas em veludo azul. À frente, separada apenas por um balcão de granizo para pequenas refeições, estava a pequena e planejada cozinha, realçada por dois vitrais laterais, embora estreitos, estendendo-se até o teto. O colorido dos vidros realçava o contraste causado pela luz que ali se dispersava. Ainda da sala de jantar, havia um estreito corredor onde, lateralmente opostas, duas portas formavam uma entrada para os quartos. Em um destes, o garoto Bino fora confortavelmente acomodado.

Indubitavelmente, naquela noite, os anfitriões, assediados pelas incertezas, pelas dúvidas tão próprias da situação, dificilmente reconciliaram-se com o sono reparador.

Bastaram poucos dias para que se notassem as mudanças naquele lar, contudo, procediam com naturalidade, ou seja, sem demonstrações excessivas de zelos ou artificialismos em afabilidades. Quanto aos aspectos legais de guarda inicial do garoto, procuraram não incorrer a erros ou ignorância às leis sociais, assim sendo, cercearam-se de declarações formalizadas e registradas de apoio das diversas autoridades locais.

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Aparado os cabelos, o vestuário simples e alegre, as consultas ao pediatra e ao dentista, assim como o balanceamento correto dos alimentos – como se tais providências constituíssem os primeiros cuidados para um ser que já tivesse nascido em forma de um lindo homenzinho!

O casal iniciava a experiência mais fascinante dos seres humanos sobre a Terra. Brotavam-lhes emoções que jamais haviam experimentado. Perguntavam a si próprios: “Será isso que os pais sentem?” ou então: “O que pensa um ser ainda tão pequeno?”.

Fitavam-no, procurando os detalhes físicos: a cabecinha redonda, o pequeno volume de cabelos lisos qual paina de coloração castanha, a testa regular, assim como as duas pequenas entradas, os olhos castanhos-escuros, dentes regularmente afastados, o narizinho bem moldado entre as bochechas, as quais começavam sobressair...

Desejavam vê-lo alegre e sorridente, percebiam que ele esforçava-se para estar bem. Diante de tudo que recebia, seus olhinhos brilhavam, mas quando esboçava um sorriso, dava-se a impressão que ainda era impossível.

Os dias transcorriam felizes, as afeições, de ambos os lados, multiplicavam-se e, com timidez, já os chamavam de tio e tia.

Após alguns meses de novo convívio familiar, próximo à residência de Anselmo, instalara-se um circo-teatro, o famoso “Gran Rosário Circus”, propriedade da família Pimenta, para uma curtíssima temporada de apresentações. Majestoso sob todos os aspectos, portanto, logo atraía numeroso público que rapidamente lotava suas almofadadas e reclináveis poltronas. Nos espetáculos de gala, graças à ousadia, entre outros do clã, de Tabajara Pimenta, teatralmente encenavam o grande sucesso do passado: E o vento levou. Alinhava-se à dinâmica dos atos, ou seja, rapidez à alternância, um moderno e sofisticado sistema de palco sobre palco que, iluminados por canhões de luzes coloridas, incidiam também sobre os cenários.

Ressalte-se ao leitor a importância cultural do circo neste período social em nosso país, em que a televisão dava seus primeiros ensaios e em nossa geração iniciava-se o esplendoroso período de integração entre civilização mecânica com a tecnologia eletrônica,

portanto, não havia ainda as consequências inevitáveis de seus efeitos salutares ou nocivos.

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CAPÍTULO II

O palhaço Sorriso

Em uma dessas tardes domingueiras, agradável e convidativa à matinê circense, vamos encontrar Anselmo e o garoto. Alegria indescritível apossara-se dele, brilhavam os seus olhinhos, nunca havia sentido emoção tão forte e agradável, não sabia onde fixar suas atenções, pois tudo lhe era simplesmente encantador, ele sorria e sorria!

Sentados próximos ao picadeiro, degustando pipocas, amendoins, sorvendo ao canudinho os guaranás “caçulinhas”, acompanhavam os cômicos palhaços, os mágicos, os malabaristas, os homens de pernas de pau, os anõezinhos... As apresentações que eram bem preparadas, a todo instante, surpreendiam os expectadores. Havia a dona Edir, a engolidora de fogo, também uma linda jovem, cujo nome completo era Jerônima Justino Pimenta, ou seja, a Jê e seus pombinhos amestrados. Outro número incrível era “o homem foca”, que só lidava com bolas, mas talvez o número que mais o surpreendera fora a “orquestra de crianças de Waldemar Justino, dona Maria e onze filhos”, todos músicos! Pistonistas e saxofonistas de oito e dez anos faziam evoluções no picadeiro enquanto trapezistas arriscavam-se sobre suas cabeças.

Encerrado o último ato, calorosos aplausos do público, reciprocamente, os artistas, diretores, figurinistas, roteiristas, os pipoqueiros, baleiros e demais trabalhadores dos diversos segmentos, uniam-se sobre o picadeiro, a fim de retribuírem a aprovação do espetáculo.

Até que boa parte da plateia se retirasse, Anselmo e o garoto, por instantes, permaneciam sentados. Repentinamente, surpreendendo-os, surge um palhaço grandalhão de roupas muito coloridas que de forma jovial e brincando com a mímica facial, aproximou-se mais ainda do garoto, ficando bem à sua frente, e dirigiu-se a ele, dizendo:

‒ Eu sou o palhaço Sorriso.