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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 1 Número 5 novembro 2011 1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VARIÁVEL ANOS DE ESCOLARIZAÇÃO NA COMUNIDADE PESSOENSE Cristiane da Silva Baltor (URCA) [email protected] Resumo: Os estudos de variação sociolinguística, desenvolvidos por Labov, na segunda metade da década de 60, insistiram na relação língua-sociedade-heterogeneidade, comprovando que a variação encontrada na língua falada não é um caos; ao contrário, é perfeitamente sistematizável, pois os processos variáveis são condicionados por fatores tanto de ordem linguística quanto social e todos os fenômenos são passíveis de análise e sistematização. Assim, ao considerar que há várias possibilidades de o indivíduo dizer a mesma coisa de forma diferenciada, a investigação acerca da linguagem oral tem sido intensificada, tendo em vista que essa modalidade apresenta características de jamais ser estável ou uniforme e se comportar bem diferente do que estabelecem as gramáticas normativas. Partindo desses pressupostos, este artigo apresenta um levantamento da variável anos de escolarização em alguns trabalhos de cunho variacionista voltados para a comunidade pessoense, a fim de delinear um dos aspectos do perfil do falante nessa comunidade. Essa variável foi escolhida por ser apontada pela literatura como a mais atuante entre as variáveis sociais, sendo utilizada, em geral, para distinguir o estilo de fala padrão do não-padrão. As pesquisas buscaram respaldo teórico-metodológico na teoria da variação (LABOV, 1966, 1972), utilizando-se do corpus pertencente ao Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba - VALPB (HORA, 1993), cujos informantes, num total de 60 (sessenta), estão estratificados por sexo, faixa etária e anos de escolarização. Palavras-chave: Variação linguística; Anos de escolarização; Comunidade pessoense 1. Introdução A comprovação de que a língua é um organismo vivo, sujeito a variações e mudanças, tem proporcionado inúmeros estudos que descrevem o perfil linguístico dos falantes de uma comunidade. Assim, a investigação acerca da linguagem oral tem sido intensificada, tendo em vista que essa modalidade apresenta características de jamais ser estável ou uniforme e se comporta bem diferente do que estabelecem as gramáticas normativas. Foi Labov, na segunda metade da década de 60, quem insistiu na relação língua- sociedade-heterogeneidade e instituiu a Sociolinguística Variacionista ou Teoria da variação como modelo teórico-metodológico, cujo princípio fundamental é comprovar que a variação encontrada na língua falada não é um caos, como era diagnosticado por

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Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 5 • novembro 2011

1

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VARIÁVEL ANOS

DE ESCOLARIZAÇÃO NA COMUNIDADE PESSOENSE

Cristiane da Silva Baltor (URCA)

[email protected]

Resumo: Os estudos de variação sociolinguística, desenvolvidos por Labov, na segunda metade da

década de 60, insistiram na relação língua-sociedade-heterogeneidade, comprovando que a variação

encontrada na língua falada não é um caos; ao contrário, é perfeitamente sistematizável, pois os processos

variáveis são condicionados por fatores tanto de ordem linguística quanto social e todos os fenômenos são

passíveis de análise e sistematização. Assim, ao considerar que há várias possibilidades de o indivíduo

dizer a mesma coisa de forma diferenciada, a investigação acerca da linguagem oral tem sido

intensificada, tendo em vista que essa modalidade apresenta características de jamais ser estável ou

uniforme e se comportar bem diferente do que estabelecem as gramáticas normativas. Partindo desses

pressupostos, este artigo apresenta um levantamento da variável anos de escolarização em alguns

trabalhos de cunho variacionista voltados para a comunidade pessoense, a fim de delinear um dos

aspectos do perfil do falante nessa comunidade. Essa variável foi escolhida por ser apontada pela

literatura como a mais atuante entre as variáveis sociais, sendo utilizada, em geral, para distinguir o estilo

de fala padrão do não-padrão. As pesquisas buscaram respaldo teórico-metodológico na teoria da variação

(LABOV, 1966, 1972), utilizando-se do corpus pertencente ao Projeto Variação Linguística no Estado da

Paraíba - VALPB (HORA, 1993), cujos informantes, num total de 60 (sessenta), estão estratificados por

sexo, faixa etária e anos de escolarização.

Palavras-chave: Variação linguística; Anos de escolarização; Comunidade pessoense

1. Introdução

A comprovação de que a língua é um organismo vivo, sujeito a variações e

mudanças, tem proporcionado inúmeros estudos que descrevem o perfil linguístico dos

falantes de uma comunidade. Assim, a investigação acerca da linguagem oral tem sido

intensificada, tendo em vista que essa modalidade apresenta características de jamais ser

estável ou uniforme e se comporta bem diferente do que estabelecem as gramáticas

normativas.

Foi Labov, na segunda metade da década de 60, quem insistiu na relação língua-

sociedade-heterogeneidade e instituiu a Sociolinguística Variacionista ou Teoria da

variação como modelo teórico-metodológico, cujo princípio fundamental é comprovar

que a variação encontrada na língua falada não é um caos, como era diagnosticado por

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correntes anteriores; ao contrário, é perfeitamente sistematizável, pois fatores

linguísticos e sociais condicionam os processos variáveis.

O conhecimento do modelo teórico-metodológico laboviano (Labov, 1966,

1972) tem contribuído para o desenvolvimento de inúmeros estudos descritivos que

objetivam delinear o perfil do falante de uma comunidade. A pesquisa ora apresentada,

por exemplo, insere-se nesse arcabouço teórico, à medida que concebe a língua como

um fato social, inerente ao indivíduo, dinâmica e heterogênea, e considera o fator social

anos de escolarização como ponto de partida para delinear um dos aspectos do perfil do

falante da comunidade pessoense, buscando fazer um encaixamento social dessa

variável na referida comunidade.

Partimos da hipótese de que quanto maior for o nível de escolarização, maior

será o conhecimento do falante em relação à língua que utiliza e, principalmente, mais

perceptível será o prestígio de determinadas formas em detrimento de outras,

influenciando sua escolha por uma das variantes.

Dividimos este artigo em seções, ao longo das quais apresentamos a

fundamentação teórica que norteia o trabalho e a metodologia utilizada, com ênfase nos

métodos empregados para a coleta dos dados, tecemos breves comentários acerca do

fator social anos de escolarização, buscando fazer um encaixamento social da variável

na comunidade investigada e, por fim, apresentamos as considerações finais e a

bibliografia consultada.

2 A pesquisa sociolinguística

A língua, entendida como um sistema de signos que possibilita a comunicação, é

considerada como o mais importante objeto ativo nas relações humanas. Até meados da

década de 60, os estudos linguísticos concebiam-na de forma homogênea, sem

interferência do meio extralinguístico, sem alterações, portanto. Posições teóricas como

as de Chomsky (1975) corroboram esses pressupostos, abstraindo de seus estudos a

variação linguística, considerada, até então, como um desvio provocado pelo uso da

linguagem.

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A partir da consolidação da idéia de dinamismo da língua, começam a ser

desenvolvidas pesquisas que procuram incorporar o aspecto social aos estudos

linguísticos. Nessa perspectiva é que Labov, na década de 60, tendo como base os

estudos desenvolvidos na ilha de Martha’s Vineyard sobre a centralização dos ditongos

(ay) e (aw) no inglês falado, instituiu a sociolinguística variacionista como modelo

teórico-metodológico, cujo princípio fundamental é a heterogeneidade linguística,

advinda do contato da língua com a sociedade.

A elaboração de trabalhos sociolinguísticos centra-se na possibilidade de o

falante dizer a mesma coisa de forma diferenciada. Essas formas são denominadas de

variantes e, a um conjunto delas, chamamos de variáveis. Dessa maneira, trabalhos

pautados sob a ótica do modelo teórico-metodológico laboviano (Labov, 1966, 1972)

geralmente observam a língua de um ponto de vista dinâmico, exposta a processos de

variação e mudança. Assim, essa teoria tem uma grande preocupação com os aspectos

sociais, capturados na língua falada, levando em conta seus fatores inerentes (sexo e

faixa etária) e adquiridos (anos de escolarização, classe social, entre outros).

Para representar os processos variáveis, a sociolinguística tem na quantificação

uma arma para sistematizar as variações encontradas na língua e essa quantificação

representa um avanço nas técnicas descritivas. A partir dela, os investigadores

examinam a probabilidade de ocorrência de determinado fenômeno em determinado

ambiente linguístico e social.

Conforme Milroy e Milroy (1997), essa ferramenta permite, ainda, a

investigadores fazer declarações precisas entre falantes e grupos de falantes em uma

determinada comunidade.

Por avaliar quantitativamente a ação dos fatores linguísticos e sociais que

condicionam ou inibem uma regra variável, avaliando o seu efeito sobre o fenômeno

variação/mudança em um determinado sistema linguístico, a teoria da variação é

também rotulada por alguns de sociolinguística quantitativa (Tarallo, 1985).

A partir desse novo modelo surge a distinção entre os termos mudança e

variação, já que antes o primeiro era aplicado aos dois processos. Para Weinreich,

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Labov e Herzog (1968, p. 183-187), um modelo de língua que acomodasse os fatos de

uso variável, com seus determinantes sociais e estilísticos, não somente conduziria a

descrições mais adequadas da competência linguística, como também produziria uma

teoria da mudança da língua que superasse os paradoxos com os quais os linguistas

históricos vinham-se debatendo há mais de meio século. Assim, estabeleceram os cinco

problemas primordiais que devem ser tratados por qualquer teoria de mudança

linguística. São eles:

i) Os fatores restritivos: determinam os possíveis fatores (sociais e

linguísticos) que podem nortear uma variação ou mudança.

ii) O encaixamento linguístico: observa que apenas o aspecto

linguístico é insuficiente para dar conta da mudança e da variação e propõe a

interação do sistema linguístico com o social.

iii) A avaliação: estabelece que à medida que a mudança vai

ganhando espaço na comunidade, os indivíduos iniciam seus julgamentos

sociais a respeito das variantes, positiva ou negativamente;

iv) A transição: explica como se dá, passo a passo, a mudança de

uma estrutura para outra, procurando responder como e por quais caminhos a

língua muda.

v) A implementação: procura detectar em que parcela da sociedade

localiza-se o foco irradiador da mudança linguística.

Essas questões podem ser respondidas por meio de um levantamento exaustivo

do vernáculo coletado, principiando pela descrição da variável, depois pela análise dos

fatores condicionantes, do encaixamento da variável no sistema linguístico e social da

comunidade e, por fim, pela avaliação se a variável em estudo é um caso de variação ou

mudança (Silva, 1996, p. 16-17).

Através do esclarecimento desses problemas, podemos descrever um

determinado fenômeno variável, isto é, podemos mapear o comportamento linguístico

da comunidade com relação ao fenômeno enfocado, seja ele de qualquer natureza

gramatical, estabelecer um intercâmbio com outras culturas, comparar os seus

resultados com estas e, dessa forma, levar ao conhecimento de todos a realidade

sociolinguística dessa comunidade.

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3 Metodologia

À luz do modelo teórico-metodológico laboviano, que privilegia a fala

espontânea, objeto de estudo da sociolinguística variacionista, o material linguístico

aqui apresentado foi extraído do corpus do Projeto Variação Linguística no Estado da

Paraíba – VALPB (HORA, 1993) – que consta de uma amostra de 60 entrevistas,

estratificados em função das seguintes características sociais: sexo (Masculino – 30

informantes; Feminino – 30 informantes); anos de escolarização (Nenhum – 12

informantes; 1 a 4 anos – 12 informantes; 5 a 8 anos – 12 informantes; 9 a 11 anos –

12 informantes; Mais de 11 anos – 12 informantes) e faixa etária (15 – 25 anos – 20

informantes; 26 – 49 anos – 20 informantes; 50 anos ou mais – 20 informantes).

Os informantes que constituem o corpus foram selecionados de forma aleatória.

Primeiramente foram sorteados nove bairros e, em seguida, duas ruas por bairro, onde

foi aplicado um total de 500 formulários. A partir da lista nominal dos informantes

selecionados pelos formulários, foram escolhidos 60 para a amostragem final.

Os critérios adotados para a seleção dos informantes foram os seguintes:

a) ser natural de João Pessoa ou morar nesta cidade desde os cinco anos de

idade;

b) nunca ter passado mais de dois anos consecutivos fora de João Pessoa.

As falas foram captadas de forma que fosse minimizado o efeito negativo da

presença do entrevistador-pesquisador tão bem colocado por Labov (1972, p. 209)

quando faz referência ao “paradoxo do observador”. Segundo ele, o objetivo da

pesquisa linguística na comunidade de fala deve ser observar como as pessoas falam

quando elas não estão sendo sistematicamente observadas, mas só podemos obter estes

dados através da observação sistemática.

Isto significa, resumidamente, que o informante deve falar de forma que não se

sinta observado, sob pena de não falar naturalmente. Dessa maneira, os temas presentes

nas gravações do Projeto VALPB são, em sua maioria, questões voltadas para o

interesse de cada informante, de acordo com as informações contidas em questionários

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anteriormente aplicados. São narrativas de experiência pessoal, ocasionando, dessa

forma, uma maior desenvoltura e espontaneidade no ato de fala.

Como pode ser observado em Tarallo (1985, p. 22):

Os estudos de narrativas de experiência pessoal têm demonstrado que, ao

relatá-las, o informante está tão envolvido emocionalmente com o que relata

que presta o mínimo de atenção ao como. E é precisamente esta a situação

natural de comunidade almejada pelo pesquisador-sociolinguista.

Os dados coletados, após uma primeira observação, foram codificados e, em

seguida, submetidos a um programa computacional chamado VARBRUL (PINTZUK,

1988). Esse pacote de programas trabalha estatisticamente os dados, fornecendo a

frequência e o índice de aplicação de uma regra condicionada por restrições linguísticas

e/ou sociais.

Mesmo sabendo da importância de programas computacionais na realização da

análise estatística dos dados, cabe diretamente ao pesquisador coletar, codificar,

armazenar e estabelecer grupos de fatores que condicionam a ocorrência de determinado

fenômeno e analisar os dados à luz da teoria variacionista.

O programa computacional tem um papel coadjuvante no processo de análise,

enquanto o pesquisador detém o papel principal nesse processo. Assim, percebemos que

os números são de grande importância para a pesquisa sociolinguística, mas de nada

valem se o pesquisador não souber analisá-los, nem tampouco os relacionar

corretamente aos processos linguísticos.

Após a transcrição, os dados do VALPB foram revisados, codificados, digitados

e armazenados em programa computacional, constituindo, assim, o banco de dados de

língua falada da comunidade pessoense e tornando possível seu uso por parte de

pesquisadores, não só da área de Sociolinguística, mas também de outras áreas.

4. O fator anos de escolarização na comunidade pessoense

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A literatura pertinente aponta a escolarização como a mais atuante entre as

variáveis sociais. Ela atua como um poderoso condicionante na escolha das variantes,

distinguindo o estilo de fala padrão do não-padrão, mostrando que essa forma não-

padrão está sempre ligada ao aspecto inovador e estigmatizado, combatido pela

instituição educacional, o que vem a estabelecer que, quanto mais anos de escolarização

tiver o falante, maior a sua consciência do uso da forma considerada padrão. (Scherre,

1996, p. 337-50).

Segundo Votre (1994, p. 75),

a forma estigmatizada tende a despertar uma reação negativa na maioria dos

usuários da língua, é objeto de crítica aberta por parte dos usuários das

formas prestigiadas e é registrada como problemática nas gramáticas

escolares e nos manuais de ensino e estudo da língua.

Assim, a estigmatização das formas não-padrão leva os indivíduos com mais

anos de escolarização a manter a forma linguística padrão, visto que ela é a tradução do

status elevado, de melhores oportunidades de bons empregos e de uma ascensão social

mais rápida. As formas não-padrão, por outro lado, expressam o inverso dessa

perspectiva.

Partindo dessas considerações, apresentamos um levantamento da variável anos

de escolarização em alguns trabalhos de cunho variacionista desenvolvidos na

comunidade pessoense, a fim de delinear um dos aspectos do perfil do falante nessa

comunidade.

Iniciamos a discussão apresentado uma breve descrição do comportamento

linguístico do objeto direto anafórico, o qual se configura sob quatro possibilidades:

Um sintagma nominal cujo núcleo não é um pronome de

terceira pessoa – SN Pleno: “Eu tenho um pouco de música. Tenho que

ta ouvindo sempre. Atualizar as música” (AFB)

Um pronome pessoal representado pelas formas ele(s),

ela(s) – Pronome Lexical: “O povo ainda vai eleger ele (= presidente)

novamente” (MSFMF)

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A elipse de um objeto de terceira pessoa em cadeia

anafórica – Objeto Nulo: “As pessoas se reúnem aos sábados e vai

comprar __. (= alimento)” (JEEB)

Um pronome pessoal representado pelas formas o(s), a(s)

e suas variantes lo(s), la(s), no(s), na(s) – Clítico Acusativo: “Eu a vi

ontem na escola” (MSFMF)

Esse fenômeno está diretamente relacionado ao tempo de escolarização dos

falantes, tendo em vista que na perspectiva da gramática tradicional, que tem como

aliada a língua escrita difundida em sala de aula e transformada em dogma pela escola, a

estrutura que envolve o pronome lexical é totalmente rejeitada, uma vez que os

pronomes retos funcionam, em regra, como sujeitos da oração.

Vejamos o que nos aponta uma gramática tradicional a respeito dessa variante:

Na fala vulgar e familiar no Brasil, é muito frequente o uso do ele(s)/ ela(s)

como objeto direto em frases do tipo: Vi ele/ Encontrei ela. Embora esta

construção tenha raízes antigas no idioma, pois se documenta em escritores

portugueses dos séculos XIII e XIV, deve ser hoje evitada. (Cunha; Cintra,

2001, p. 281)

No entanto, percebemos que na língua falada, resultante de situações mais

naturais, este processo é largamente utilizado. A esse respeito, podemos observar Penna

(2002, p. 67), quando nos diz que

a prática do emprego do pronome de terceira pessoa, como objeto direto, no

dia a dia, no português do Brasil, mostra-se contrária às prescrições das

gramáticas normativas: o que se observa é o uso do pronome lexical ele e

suas flexões em função acusativa, na língua oral e escrita, formal e informal.

Em relação ao uso do clítico, Camara Júnior (1972, p. 35-6) assevera que

a língua coloquial do Brasil refuga, aliás, a forma acusativa o, a, os, as,

preferindo-lhe ele (-a, -es, -as) em função acusativa. As crianças alertadas

pela preparação anterior ao exame contra esse vulgarismo empregam sempre

nas redações o, a, os, as, mesmo quando o pronome objeto é ao mesmo tempo

sujeito de um infinito integrante. Por isso só encontrei esporadicamente a

construção, que é a usual na língua cotidiana, “sem ver eles mandarem”.

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No Português do Brasil, a perda dos clíticos de terceira pessoa tem-se mostrado

evidente, a ponto de configurar uma gramática com características próprias e implantar

o uso do “ele” na função de objeto, diferente do Português Europeu, que conserva o

clítico acusativo em seu sistema linguístico, não admitindo um pronome pessoal na

referida função.

No entanto, as escolas parecem ignorar tal fato, reforçando o mito da

agramaticalidade da língua falada à medida que insiste em apresentar como parâmetro a

apenas norma culta, sem qualquer reflexão sobre a língua em uso e as possíveis

mudanças que a permeiam. Assim, a língua é observada num estado de dicionário,

imóvel e imparcial, e à medida que aumenta o nível de escolarização dos indivíduos

aumenta também o preconceito linguístico com relação às variantes não-padrão.

No corpus investigado, das 367 ocorrências desse processo variável, apenas 13

se referem à variante clítico acusativo (todas pertencentes à fala de universitários). As

demais ocorrências se dividem entre as variantes SN pleno (82 casos), pronome lexical

(102) e objeto nulo (170), o que nos leva a concluir que o objeto nulo, está substituindo

o clítico acusativo de forma categórica.

Podemos afirmar, então, que os resultados desta pesquisa evidenciam a

influência da escola no processo de variação do objeto direto anafórico. A menor

probabilidade de ocorrência do pronome lexical está correlacionada ao maior tempo de

exposição à escola, isto é, os falantes sem nenhum ano de escolarização privilegiam

essa variante, enquanto que, no discurso dos universitários, há uma preferência por

estruturas menos estigmatizadas: SN pleno e objeto nulo.

Fernandes (1996), em seu estudo sobre o uso de nós e a gente na fala pessoense,

confere à variável anos de escolarização o primeiro lugar entre as variáveis sociais. Os

resultados foram muito aproximados tanto para o uso do pronome nós quanto para o uso

de a gente, sendo que os informantes que se apresentam entre 9 a 11 anos de

escolarização lideram o emprego da norma culta, seguidos dos universitários.

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Segundo a autora, a escolarização do falante tem pouco peso na escolha de uma

variante ou outra, já que a variante inovadora, a gente, além de não ser estigmatizada,

encontra-se em larga expansão no discurso interativo de modo geral.

Anjos (1999), em seu estudo sobre a concordância verbo-sujeito, afirma que o

fator anos de escolarização é o fator social mais influente na variação estudada, pois

revela o caráter estigmatizante da classe mais escolarizada diante da menos

escolarizada.

Através de seus resultados podemos perceber a estreita relação entre os anos de

escolarização e a concordância verbal. Como era esperado, falantes com mais anos de

escolarização tendem a realizar a concordância verbo-sujeito, enquanto que falantes

com menos anos tendem a apagar as marcas explícitas de plural; já os situados nas

faixas intermediárias situam-se próximos ao ponto de neutralidade, evidenciando

fortemente a influência da escola sobre o comportamento linguístico dos falantes.

Em Pedrosa (2000), essa variável aparece como a primeira entre as sociais. A

autora afirma que os universitários evitam utilizar variações de ordem que favoreçam

ambiguidades e que possam prejudicar a sua comunicação. Desta forma, privilegiam o

uso da ordem não-marcada (sujeito-verbo).

Em Silva (2001), o fator anos de escolarização foi escolhido pelo VARBRUL

como o mais favorecedor, entre os sociais e os linguísticos, do emprego do verbo ter

existencial, que é a variável inovadora.

De acordo com a autora, os falantes com menos escolarização tendem a utilizar

mais essa forma inovadora, decrescendo nos falantes que se apresentam entre 5 a 8 anos

de escolarização, à medida que aumenta relativamente nos falantes mais escolarizados.

Esses resultados se mostram interessantes na medida em que os informantes com 5 a 8

anos de escolarização apresentam-se como menos influentes na aplicação do ter

existencial, confirmando que o acesso às regras gramaticais na escola, que se inicia

exatamente nessa fase, determina o comportamento dessa variante.

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Marques (2001), em seu estudo sobre a variação da produção intervocálica da

fricativa sonora lábio-dental /v/, constata que a variante não-padrão é usada em larga

escala pelos falantes situados nas três primeiras faixas de escolarização, ou seja, falantes

com nenhum ano de escolarização, 1 a 4 anos e com 5 a 8 anos. Já os situados na faixa

compreendida pelos secundaristas e pelos universitários utilizam a variante inovadora

de forma muito sutil.

A autora atribui a queda da variante não-padrão nas duas faixas superiores de

escolarização ao amadurecimento linguístico que os falantes dessas faixas apresentam e

também ao fato de esse fenômeno, apesar de não ser contemplado pela programação

escolar, encontrar-se sujeito às correções dos professores.

Lucena (2001), em seu estudo sobre o comportamento da preposição para,

afirma que o fator anos de escolarização foi apontado como o mais relevante na

variação estudada. Conforme o previsto, há uma ocorrência maior da variante padrão

para no discurso dos informantes universitários. Os informantes analfabetos, por outro

lado, praticamente desconhecem a existência da variante padrão.

Diante desses resultados, podemos afirmar que a variável anos de escolarização

exerce grande influência sobre o comportamento linguístico dos falantes desta

comunidade. Entretanto, essa variável não apresenta um resultado categórico em todos

os estudos aqui representados. Isso nos leva à seguinte conclusão:

- Há casos de variáveis estigmatizadas, nos quais a escola

influencia no sentido de eliminá-la, o que é confirmado pelo fato de os

falantes mais escolarizados serem os que menos empregam a variante não-

padrão estigmatizada;

- Há casos de variáveis não estigmatizadas, nos quais a escola não

exerce influência direta no sentido de eliminá-las, deixando-as transitarem

livremente entre os falantes de todas as camadas de escolarização;

- Há casos de variáveis não estigmatizadas, nos quais a escola,

ainda que não priorize, através de programa, sua eliminação, encontra-se

atenta e disposta a efetuar a devida “correção”.

5 Considerações finais

Estamos, portanto, diante de resultados que parecem refletir o caráter

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heterogêneo desta comunidade. Enquanto determinados fenômenos condicionados pela

influência da escolarização movimentam-se em sentido à norma culta, entendida como

padrão, outros movimentam-se em sentido à norma não-padrão. Já outros permanecem

próximos à zona de neutralidade, ainda que por tempo indeterminado.

Referências

ANJOS, S. E. dos. Um estudo variacionista da concordância verbo-sujeito na fala

dos pessoenses. 1999. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal da

Paraíba, 1999.

BALTOR, C. S. Estudo variacionista do objeto direto de terceira pessoa em série

anafórica no falar pessoense. 2003. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade

Federal da Paraíba, 2003.

CAMARA JR., J. M. Ele como acusativo no português do Brasil. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 1972.

CHOMSKY, N. Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra: Armênio Amado, 1975.

CUNHA, C. F; CINTRA, L. F. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de

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Recebido Para Publicação em 30 de outubro de 2011. Aprovado Para Publicação em 23 de novembro de 2011.