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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ALFREDO BUZAID Discursos proferidos no STF, a 3 de outubro de 1984, por motivo de sua aposentadoria BRASÍLIA 1984

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

ALFREDO BUZAID

Discursos proferidos no STF, a 3 de outubro de 1984,

por motivo de sua aposentadoria

BRASÍLIA

1984

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

ALFREDO BUZAID

Discursos proferidos no STF, a 3 de outubro de 1984,

por motivo de sua aposentadoria

BRASÍLIA

1984

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Carta do Senhor Ministro

ALFREDO BUZAID

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Brasília, 29 de junho de 1984

Exmo. Sr.

Ministro João Baptista Cordeiro Guerra,

DO. Presidente do Supremo Tribunal Federal

Brasília-DF

Caro amigo:

N o próximo dia 20 de julho, estando a Corte em recesso,

dar-se-á a minha aposentadoria compulsória em obediência ao

disposto no art. 1 13, § 2:', da Constituição da República. Jul­

guei de bom aviso enviar-lhe esta carta no dia da última ses­

são plenária deste mês, para apresentar as minhas despedidas

a Vossa Excelência e aos eminentes Ministros. Faço-o, não em

cumprimento de praxe tradicional, mas dominado por um sen­

timento profundo de tristeza e emoção.

Ao longo de meio século exerci a advocacia e durante

pouco menos de quarenta anos o magistério superior na Fa­

culdade de Direito de São Paulo. Como advogado militante,

postulei perante juízes e tribunais, interpus recursos e contra­

arrazoei-os, fiz sustentações orais na defesa dos direitos de

meus constituintes. Como professor, ministrei aulas, escrevi li­

vros de direito e mantive sempre o melhor relacionamento

com o corpo docente e discente.

Depois de dedicar uma existência ao culto e à cultura do

direito, assumi uma cadeira nesta Corte. Foi esta, sem dúvida,

a maior experiência pessoal que ganhei no cultivo da ciência

jurídica. Uma coisa é o estudo do direito interpretado pelo ju­

rista, que se recolhe em seu gabinete e formula hipóteses, COIl­

jecturas e doutrinas; outra e bem diversa é a aplicação do di­

reito vivo sobre que se questiona num caso concreto. A diver­

sificação dos temas, as singularidades das espécies e as conl ro-

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vérsias sobre doutrinas e opmlOes das autoridades apuram a sensibilidade do magistrado, que deve estar sempre em conta­to com a vida, a fim de prestar retamente a .sua atividade ju­risd icional.

No exercício de minha missão de juiz na Corte, onde muito aprendi, procurei sincera e devotamente cumprir todos os encargos, quer na Turma, quer no Plenário, quer no Con­selho N acional da Magistratura. Agora é o momento de deixá­la, levando comigo a saudade, que é inolvidável, dos momen­tos felizes no convívio diuturno com os eminentes Ministros.

Queira receber, Senhor Presidente, e rogo transmitir aos insignes Ministros e ao digníssimo Procurador-Geral da Repú­blica a expressão do meu agradecimento e do meu mais pro­fundo respeito, amizade e admiração.

Deus guarde Vossa Excelência e a egrégia Corte.

Alfredo Buzaid

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Palavras do Senhor Ministro

CORDEIRO GUERRA, Presidente

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Declaro aberta a sessão solene especialmente convocada para prestar homenagem ao eminente Ministro ALFREDO BUZAID por motivo de sua merecida aposentadoria.

Deixou S. Exa. nesta casa o testemunho superior de seu valor moral, intelectual e de uma dedicação exemplar à justiça.

Honrou o Supremo Tribunal Federal e acrescentou o conceito dos seus julgados no mundo jurídico.

Para dizer do nosso apreço e da nossa admiração dou a palavra ao eminente Ministro José Carlos Moreira Alves.

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Discurso do Senhor Ministro

MOREIRA ALVES

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«Ao ser nomeado, em 22 de março de 1982, para integrar esta Cor­te, trazia ALFREDO BUZAID o prestígio de quem se consagrara, no campo do direito, como professor dos mais notáveis, advogado de largo êxito, jurisconsulto de renome internacional. Na vida pública, chegara a Ministro de Estado. Sua obra o elevara à culminância dos processualistas pátrios, o que lhe valera a glória da autoria do anteprojeto que se trans­formara no Código de Processo Civil.

Mas, para ele, a ascensão a uma das cátedras deste Tribunal era a consagração de sua vida. Muitas vezes, no convívio da estreita amizade que nos une desde os tempos de colegas de magistério nas Arcadas do Largo de São Francisco, ouvi dele que o ápice da carreira do jurista se dava ao ter assento neste Supremo Tribunal Federal.

Aqui chegou aos sessenta e sete anos de idade. Pelos méritos, deve­ria ter chegado muitos anos antes.

Desde cedo, manifestou-se sua decidida vocação pelas letras. Cursa­va ainda o Ginásio São Luiz do Jaboticabal, notável educandário do in­terior paulista dirigido pelo Prof. Arrobas Martins, quando integrou o corpo de redação do jornal publicado pelo Centro Joaquim Nabuco. Mais tarde, já na Faculdade de Direito, em que ingressara em 1931, es­creveu para o «Combate» e para a «Gazeta Comercial», de que chegou a ser diretor.

Da seriedade de seus estudos nos tempos da Academia, há o depoi­mento de Miguel Reale, ao saudá-lo, quando conquistou, nela, a cátedra de direito processual civil:

«O ingresso de V. Exa., lauréado, como catedrático, não constitui surpresa para ninguém.

Já se podia mesmo antever tal resultado no jovem que freqüentava os bancos acadêmicos por volta de 1933 e 1935. Posso, pessoalmente, dar testemunho da seriedade de seu pro­pósito desde o início de seus estudos. Lembro-me bem quan­do, juntos, íamos ao longo da Avenida Brigadeiro Luís Antô­nio trocando idéias sobre os problemas fundamentais da cul-

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tura e formulando observações e críticas sobre as questões ba­silares da nossa Pátria. Desde logo impressionou-me o caráter severo de sua personalidade».

Já nesse tempo, tinha ALFREDO BUZAID sólidos conhecimentos de filosofia, de sociologia e de política. Habituara-se ao trato dos clássi­cos da língua, a revelar-lhe o pendor pelos estudos históricos, carac­terística marcante nos trabalhos jurídicos que viria a escrever.

O interesse pelo direito processual civil manifestou-se nos anos ime­diatos à formatura em 1936. Após breve período em que advogou em Ja­boticabal, transferiu-se para São Paulo. É de 1939 o primeiro escrito so­bre processo: o artigo «Despacho Saneador», que foi estampado na Re-vista Judiciária.

.

Essa inclinação levou-o a freqüentar o curso de extensão universitá­ria que Liebman iniciou na Faculdade de Direito do Largo de São Fran­cisco. Em pouco, tornava-se amigo pessoal do insigne processualista ita­liano, que, seguindo as tradições do Velho Mundo, não se limitou a le­cionar, mas formou discípulos, propiciando as bases da denominada «Es­cola Paulista de Direito Processual».

Em 1943, seu primeiro livro - Da Ação Declaratória no Direito

Brasileiro - inaugura a coleção de estudos de direito processual civil di­rigida pelos professores Soares de Faria e Enrique Tullio Liebman. No prefácio, esses mestres, depois de salientarem que sua intenção é «pro­mover a formação de uma coleção de monografias de direito processual civil, que reúnam à rigorosa seriedade científica o senso fecundo das ne­cessidades da prática», concluem:

«Inaugura a coleção este livro sobre a «Ação Declarató­ria», que pensamOS tenha as qualidades indicadas e possa util­mente contribuir para a difusão do conhecimento desta figura de ação, que o tempo mostrará quanto pode favorecer o de­senvolvimento da vida civil».

Nesse livro, não há a insegurança do neófito. As qualidades do au­tor são evidentes. A clareza do estilo, o rigor do método, o brilho da ex­posição, a segurança do argumento, a familiaridade com as literaturas jurídicas estrangeiras, especialmente alemã e italiana. Não foge o autor às dificuldades do tema. Notável o capítulo sobre a ação declaratória in­cidental, cuja riqueza de conteúdo excede, em muito, o objetivo declara­do de «antes suscitar o problema à discussão do que propriamente tentar resolvê-Im>.

Pouco mais tarde, em 1945, inscreve-se no concurso à livre-docência de direito judiciário civil a realizar-se nas tradicionais Arcadas. «Do Agravo de Petição no sistema do Código de Processo Civil» é a tese que apresenta. Nela, após analisar amplamente a evolução histórica desse re­curso, estuda-o em face do Código de 1939, não sem antes observar que,

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nas leis então em vigor, o agravo de petição traduzia quatro recursos di­versos, por serem diferentes suas condições de admissibilidade. Aprovado no concurso, tornou-se livre docente em 1946.

Sete anos depois, participa das provas para catedrático de direito ju­diciário civil da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A média final que obtém é incomum - 9, 9 -, e lhe vale a cátedra, em que se empossa em 1954. A tese escrita para esse certame é obra clássica, o que dispensa elogios: «Do Concurso de Credores no Pro­cesso de Execução».

Mas é com a conquista, em 1958, da cátedra de direito judiciário ci­vil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que chega à culminância de sua carreira no magistério. Consagra-o a circunstância de todos os examinadores, em todas as provas, lhe haverem conferido dis­tinção. A tese apresentada é também obra clássica: «Da Ação Renovató­ria de Contrato de Locação de Prédio Destinado a Fins Comerciais ou Ind ustriais».

Não é de seu temperamento, porém, dar-se por satisfeito com os lauréis obtidos. Como homem de ciência que é, aspira a aperfeiçoar-se incessantemente. O degrau vencido é o desafio do degrau que se lhe se­gue.

Por isso, ao ser empossado na Academia em que se formara, finali­za o discurso repassado de emoção, com estas palavras de esperança:

«Egrégia Congregação! Vós me abristes definitivamente as portas desta augusta Academia. Eu vos abri o meu cora­ção, para confidenciar os amores de um docente livre que es­perou doze anos esta hora culminante. Não vos trago um pro­grama. Mas um passado de trabalho intenso já é uma promes­sa; e só peço a Deus que me dê saúde para não interromper minha dedicação às letras jurídicas, porque nada me humilha­ria tanto como vir a ser o fundo de uma noite, onde brilha uma constelação de estrelas».

É nesse mesmo ano de 1958 que publica a monografia «Da Ação Di­reta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro», onde examinou esse instituto à luz, principalmente, da processualística. Se se pode discutir as posições que adotou ·pelo enfoque primordial que lhe deu, não se lhe pode negar o mérito, pouco freqüente em nossa literatura jurídica, de não furtar-se às dificuldades do tema proposto. Prefaciando essa obra, disse Miguel Reale:

«Nem sempre estaria de acordo com as conclusões de meu ilustre colega, divergindo mesmo num ou noutro ponto essencial, talvez por considerar excessiva a sua preocupação de amoldar às claves da processualística civil uma técnica de cu­nho eminentemente político, como é a da chamada «ação di­reta de inconstitucionalidade», mas julgo incomparavelmente

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maior a messe de ensinamentos que nos proporciona, provo­cando questões que o teórico geral do Direito não pode igno­rar. Ignorá-las seria tão pernicioso como a atitude do jurista encasulado no exame estrito de um conflito particular de inte­resses, de costas displicentemente voltadas para os conflitos amargurados que agitam o mundo».

Era, então, ALFREDO BUZAID nome exponencial entre os cultores do direito em nosso país. Aos profundos conhecimentos teóricos aliava a diuturna prática de intensa advocacia. Seus pareceres de então e de de­pois revelam, nitidamente, essa simbiose. O prestígio como processualista transcendera nossas fronteiras, abrindo-lhe as portas dos quadros de enti­dades do relevo da Associação Italiana de Processo Civil, com sede em Florença. A Revista de Derecho Processai Civil, editada em Madrid, o incluía entre seus conselheiros.

Foi nessa época que o vi pela primeira vez. Aproximava-se o final de 1961. Realizavam-se as provas do concurso para a cátedra de direito ro­mano da Faculdade do Largo de São Francisco, nos dias nervosos que se seguiram à renúncia do Presidente da República. Dos quatro participan­tes, era eu um deles, com as esperanças dos vinte e oito anos no esforço que fizera com as forças de que só a mocidade é capaz. Nesse tempo, em São Paulo, os concursos à cátedra, nas velhas Arcadas, eram ainda um acontecimento cultural. A maioria dos catedráticos comparecia às pro­vas, requisito indispensável à votação do parecer final da banca examina­dora. BUZAID esteve presente a todas as etapas em que se desenrolou o concurso, de final rumoroso. Com a frustração de um segundo lugar, re­tornei ao Rio de Janeiro, onde residia. E aí, por acaso, me foi permitido conhecer uma faceta da nobreza de seu caráter. Não é comum nos ho­mens ilustres e�altar os que iniciam. Um dia, no foro da Guanabara, um juiz, que se destacava nos estudos do processo, deu-me a fotocópia de uma carta e ele dirigida por seu amigo ALFREDO BUZAID, e me disse estas palavras que me ficaram vivas na memória: «emoldure-a e a colo­que na parede de seu escritório; é o atestado do maior de nossos proces­sualistas, que não é pródigo em elogios dessa natureza». A emoção com que li o trecho que se segue, selado pela imparcialidade de conhecimento eventual revelado até pela troca de ordem dos componentes de meu cog­nome, só a avalia quem sentiu a dor de injustiça que pode destruir uma vocação:

«Sobre o caso Alves Moreira, além do que já disse pes­soalmente, quero acrescentar que, na última Congregação, houve manifestação quase unânime dos professores pela anu­lação do concurso. Nas duas vezes que votei: deixei claro meu pensamento. O resultado do concurso não traduziu a verdade do merecimento dos candidatos. O Alves Moreira é um mes­tre. Convenci-me disso no momento em que proferiu a aula. O seu domínio da matéria, notadamente num campo em que

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tenho alguns conhecimentos, deixou-me a nítida impressão de que ele seria o vencedor».

A aula versara o processo formulário romano.

Anos mais tarde os nossos destinos voltaram a cruzar-se. Já então colegas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na qual eu ingressara, em 1968, como catedrático de direito civil. Participamos juntos - ele como diretor da Escola, e eu como representante da congre­gação - dos tormentosos debates que se travaram sobre a reforma do ensino no Conselho Universitário, nos tempestuosos anos de 1968 e 1969. Aliás, minha posse na Faculdade de Direito ocorreu em sua casa, na pre­sença de todos os professores, para que se registrasse o ato em documen­to assinado pela totalidade da congregação, uma vez que o prédio da fa­culdade, onde se encontrava o livro dos termos de posse, estava interdita­do pela ocupação dos alunos em greve. No final de 1969, nomeado Mi­nistro da Justiça, convidou-me para auxiliá-lo no Ministério, onde servi como coordenador da reforma da codificação, função essa que, até en­tão, havia sido desempenhada por ele. Por alguns meses, no final de 1970 e no início de 1971, chefiei seu gabinete. Tempos difíceis, de tensões graves, de decisões delicadas, de incompreensões e de angústias. Só quem conviveu com ele nesses instantes de violência e de insegurança pode tes­temunhar o equilíbrio de julgamentos e de atitudes adveniente da forma­ção ínsita do jurista. O tempo, que extingue as paixões e que pesa os fa­tos e as circunstâncias sem a parcialidade do envolvimento, lhe fará a justiça que lhe negam aqueles que não se comprazem com a inflexibilida­de de convicções, sem quaisquer desvios, da juventude à velhice. Aliás, só os medíocres não desagradam, porque não incomodam.

Em março de 1974, retornou às atividades do magistério e da advo­cacia, em São Paulo. Pouco antes, em 1973, vira promulgado o Código de Processo Civil, cujo anteprojeto elaborara por incumbência do Gover­no Federal, no início da década de sessenta. Na exposição de motivos, datada de 8 de janeiro de 1964, tomara como epígrafe o que escrevera Chiovenda sobre a reforma do processo, em 1911: «Convém decidir-se

. por uma reforma fundamental, ou renunciar à esperança de sério pro­gresso». Foi fiel ao lema adotado. E nesse mesmo ano de 1973 ingressara na Academia Paulista de Letras. Era o reconhecimento pelos trabalhos li­terários e jurídicos com que enriquecera as letras pátrias. Nele, o intelec­tual jamais ficara em segundo plano. Mesmo a intensa atividade como Ministro da Justiça não lhe impediu de redigir pessoalmente todos os dis­cursos e conferências que pronunciou nos quatro anos e meses em que esteve à frente do Ministério. Lembro-me, como se fosse hoje, da sessão em que se deu sua posse de acadêmico. Nos freqüentes contatos que, en­tão, como Procurador-Geral da República, mantinha eu com ele no Mi­nistério da Justiça, comentou comigo, por diversas vezes, o discurso que estava escrevendo para aquela solenidade. Ao concluí-lo, deu uma cópia

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para ler. Conhecia-o, pois, previamente. Qual, porém, não foi minha es­tupefação ao ver ALFREDO BUZAID, no dia do empossamento, reproduzi-lo de memória, palavra por palavra, sem o menor deslize, sem qualquer hesitação, sem valer-se, uma vez ao menos, de um rápido per­passar de olhos pelo texto escrito que jazia inútil sobre a mesa.

De 1974 a 1982, foi intensa sua atividade profissional. Raras as cau­sas intrincadas no foro paulista que não contaram com parecer seu. Por vezes, freqüentou a tribuna deste Tribunal, demonstrando, sempre, ma­gistrais qualidades de expositor. No fundo, o professor nato.

A 22 de março de 1982, é nomeado Ministro desta Corte.

Pouco mais de dois anos foi o período em que a ela serviu. Mas o bastante para deixar a marca de sua personalidade, de sua cultura, de seu talento. N os meses que antecederam à aposentadoria compulsória, não escondia dos colegas o quanto lhe teria sido grato haver chegado alguns anos antes. Encarnara, por inteiro, a figura do juiz de Corte Suprema. Sentira, desde o primeiro instante, o desafio cultural e humano que re­presentam a multiplicidade e a complexidade das questões aqui decididas. Reatou relações mais estreitas com o direito penal, de que estava afasta­do desde sua advocacia na laboticabal longínqua. E, como é de seu fei­tio, municiou-se do melhor da literatura nacional e estrangeira nesse campo do direito. O resultado está espelhado nos cuidadosos votos que proferiu nos habeas corpus que relatou. O processo civil, porém, conti­nuou a ser o objeto de sua predileção. Quem reunir os votos que, nesse terreno, produziu terá uma antologia de lições esplêndidas, no fundo e na forma. Um exemplo basta para atestar a verdade da asserção. Modelo de síntese, elegância, precisão e lógica, é esta passagem do voto que pro­feriu, em embargos de divergência (ERE 92.064), no qual refuta a tese dos que sustentam que a ação de divisão é condenatória:

«Qual o caráter da sentença condenatória?

A esta indagação responde Liebman que a sentença con­denatória

«Não se consuma em si mesma; ela é proferida em vista da possibilidade de que, perdurando o inadimple­mento do devedor, deva o credor pedir a execução; a sentença condenatória atribui-lhe esta faculdade, que é condição necessária e suficiente do pedido corresponden­te. A sentença condenatória é, assim, o ato que une, um ao outro, o processo de cognição e o processo de execu­ção; ato último e conclusivo do primeiro, base e funda­mento do segundo» (Liebman, Estudos sobre o processo civil brasileiro, com nota da Ada Pelegrini Grinover, p. 37).

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Na ação divisória, nada disto ocorre. A sentença, que lhe acolhe o pedido, não é causa e fundamento da execução que, na previsão do legislador, pode tornar-se necessária se houver o inadimplemento do devedor. Na ação divisória profere o juiz sentença definitiva para acolher o pedido do promovente. Os atos processuais, que se seguem ao trânsito em julgado da sentença, não são atos de execução do credor contra o deve­dor. São operações naturais da própria divisão. O processo de divisão contém uma unidade tendente a extinguir o con­domínio, mas se diversifica em várias fases. Podem surgir em seu curso impugnações sobre os títulos de propriedade, sobre a planta do imóvel e sobre o plano de divisão. Mas a vontade real de cada comunheiro é a de receber o seu quinhão. Não há, pois, vencedor e vencido. Há promovente e promovido. Não há credor insatisfeito e devedor inadimplente. Há condô­minos, que aspiram a um escopo comum. Portanto, não há sentença de condenação. Há sentença constitutiva que, extin­guindo o �stado de indivisão, vai proporcionar a cada condô­mino a adjudicação do quinhão que lhe cabe».

Relendo essas palavras, ressoa em meus ouvidos o timbre incon­fundível de sua voz, nesse fenômeno de evocação auditiva que só os esti­los marcantes são capazes de produzir.

Não tenho dúvida de que, ao afastar-se desta Corte por força do texto constitucional inexorável, sentiu dentro de si a verdade cruel do que dissera, muitos anos antes, sobre a jubilação:

«Só por caprichosa ironia de uma antífrase é que esta pa­lavra pode significar, a um tempo, alegria e tristeza, recom­pensa e castigo, esperança e decepção. Em uma síntese: jubilação sem júbilo».

Sem júbilo para ele, e sem júbilo para nós que perdemos o encanto de sua convivência».

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Discurso do Dr.

INOCt;:NCIO MÁRTIRES COELHO, Procurador-Geral da República

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Sr. Presidente;

Srs. Ministros;

Srs. Magistrados;

Colegas Advogados que espontaneamente acorreram

a este Tribunal Excelso;

Minhas Senhoras e meus Senhores.

o Procurador-Geral da República, na dupla condição de Chefe do

Ministério Público Federal e de Primeiro Advogado da União, associa-se

às homenagens que o Supremo Tribunal Federal presta ao notável Minis­

tro ALFREDO BUZAID, em razão de seu afastamento, por implemento

de idade, dos trabalhos da Corte.

Poucas figuras na história jurídica deste País têm tanto a receber da

classe dos Advogados, dos Magistrados, dos Membros do Ministério PÚ­

blico e dos estudantes, que folheiam as páginas dos seus livros entre estu­

pefactos e embevecidos.

Cinqüenta anos de vida dedicados à advocacia e ao magistério fize­

ram de ALFREDO BUZAID certamente um dos maiores credores de to­

dos quantos, neste País, abraçaram a profissão jurídica.

Advogado por índole e formação, professor nato, homem afeito à

arte de ensinar e ao diálogo fecundo da convivência universitária,

ALFREDO BUZAID sempre deu tudo de si ao culto da tolerância, por­

que é na cátedra, é no foro, é na discussão das teses contrapostas, que se

aprende 'a respeitar os contrários. Vive-se democraticamente quando se

debate lucidamente em torno das opções doutrinárias; cultiva-se o Direito

quando se preserva e se respeita a liberdade de divergir. Pois bem,

ALFREDO BUZAID fez de toda a sua vida um apostolado do direito de

divergir, porque fez de sua vida um altar dedicado ao ensino do Direito

que é, também, o da arte de divergir.

Como professor, como jurista, como advogado e como administra­

dor, legou a todos nós, e continuará a legar as mais preciosas lições, por-

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que, mercê de Deus, ainda se encontra em plena vitalidade física e men­

tal.

Nos seus livros, talvez todos os profissionais do Direito aqui presen­

tes tenham, algum dia e de alguma forma, encontrado resposta para suas

dúvidas e perplexidades. Por isso, todos nós, em nossa conta corrente do

aprendizado jurídico, temos um saldo devedor para com ele.

Essa a razão por que - Srs. Ministros, Srs. Magistrados e Colegas

Advogados - eu, como advogado, como membro do Ministério Público

Federal, como professor universitário, enfim, como profissional e amante

do Direito, rendo a minha homenagem e o meu preito de gratidão ao

Professor ALFREDO BUZAID, deplorando, do fundo da alma, que a

intransigência política não tenha permitido que toda a nobre classe dos

Advogados aqui comparecesse, para manifestar ao grande jurista o maior

reconhecimento e a maior admiração.

Muito obrigado.

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Palavras do Senhor Ministro

CORDEIRO GUERRA, Presidente, encerrando a sessão

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Minhas Senhoras e meus Senhores.

As nobres orações proferidas neste Plenário vieram demonstrar, co­mo disse o Ministro Moreira Alves, que só os medíocres não desagra­dam, porque não incomodam. Há dois anos, um advogado ilustre, o professor Sérgio Bermudes, disse, da tribuna desta Casa, honrando a sua condição e o seu mandato:

«o pelejar incessante é a saga dos grandes homens, sobre os quais sempre se abatem cóleras e incompreensões. É natu­ral que assim ocorra. Gonçalves Dias cantou essa predestina­ção à luta dos homens assinalados pelo destino:

«Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, Lá murcha e pende. Somente o tronco, que devassa os ares, o raio ofende».»

A presença dos ilustres Ministros Villas Boas, Bilac Pinto, Xavier de Albuquerque e Firmino Paz mostram bem o acerto da decisão deste Tri­bunal. Assim também, a presença dos eminentes Subprocuradores-Gerais Francisco de Assis Toledo e Mauro Leite Soares, do Consultor-Geral da República Ronaldo Poletti, dos Exmos. Srs. Ministros do Tribunal Fede­ral de Recursos, do Superior Tribunal Militar, do Tribunal Superior do Trabalho, do Tribunal Superior Eleitoral, do Tribunal Regional do Tra­balho, dos Desembargadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do Presidente da Ordem dos Advogados do Distrito Federal, de todos os advogados que militam nesta Corte e que se notabilizam pela experiên­cia e pela capacidade profissional, dos funcionários da Casa, todo este conjunto de admiração e de afeto revela que a homenagem deste Tribu­nal não poderia ser mais justa.

Não irei repetir o que já foi dito. O eminente Ministro Alfredo Bu­zaid merece o respeito dos seus contemporâneos e a admiração da poste­ridade.

Declaro encerrada esta sessão.

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