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ALFABETIZAÇÃO EM DISCURSO: O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS
ATRAVÉS DOS LIVROS DIDÁTICOS
Thaise da Silva (UFGD)
Josielaine Mendonça Staudt (UFGD)
Primeiras palavras
Pesquisar sobre o livro didático exige um olhar atento do investigador, uma vez que
esse material é um meio eficaz para se conhecer as opiniões e ideias de autores, professores e
alunos; além de auxiliar no conhecimento dos mecanismos de comunicação das ideias em
sociedade e a resistência que elas encontram em determinados grupos sociais, assim como o
desgaste destas em determinados períodos. A análise do livro didático permite observar as
simplificações e distorções a que são submetidas às ideias ao serem transmitidas e o tempo
transcorrido entre o lançamento de uma opinião e sua recepção e mudança na estrutura social
(DELGADO, 1983).
Além desses aspectos, este artefato carrega consigo as orientações metodológicas, as
concepções pedagógicas e os referenciais teórico-metodológicos contidos nos livros didáticos
que orientaram sua produção, alocados geralmente nos prólogos, nas notas de rodapé e no
“Livro do professor”. Nesses espaços, autores e editores indicam as atividades e os exercícios
a serem realizados sob a orientação do professor. Os livros didáticos indicam, ainda, como
nenhum outro meio, à distância em anos entre o conteúdo científico e as explicações em sala
de aula. Em outros termos, revelam a quantidade de “Ciência” introduzida pelo autor para o
consumo escolar e a de “pedagogia e habilidade didática”, que possui igualmente o nível de
conhecimento científico exigido do próprio professor.
Considerando os apontamentos acima, este estudo tem por objetivo analisar como os
discursos na área da alfabetização são representados nos livros didáticos de alfabetização por
autores didáticos e editoras, a partir dos princípios e critérios do Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD 2007 e 2010) que guiaram a sua seleção. Para tanto, conta-se com a
perspectiva teórica dos Estudos Culturais pós-estruturalistas e pós-modernos, privilegiando a
análise do circuito de produção, regulação e consumo dos discursos de alfabetização em dois
exemplares dos livros didáticos destinados à/ao 1ª série/1º ano do ensino fundamental de oito
e de nove anos.
O livro escolhido foi o intitulado A escola é Nossa 1ª série/1º ano, da editora Scipione,
destinado à alfabetização, referente aos anos de 2007 e 2010; anos que marcaram a ampliação
do ensino fundamental de oito para nove anos. A escolha destes materiais deve-se ao fato
destes pertencerem a uma das duas coleções aprovadas pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD), que se manteve entre os selecionados pelo Ministério da Educação (MEC)
antes e depois desta ampliação. Frente a estes livros, buscou-se examinar como eles se
originaram, isto é, que condições históricas e conjunturais possibilitaram a sua formulação e
sua permanência ao longo das edições deste programa governamental. Diante disso, foi
realizada uma pesquisa qualitativa do tipo documental onde se observou o livro didático como
artefato cultural, amparando-se na análise textual e do discurso para realizar as reflexões.
Este estudo, além da introdução, será organizado em outras quatro seções: a primeira
contextualiza o campo dos Estudos Culturais; a segunda situa as transformações ocorridas
com a ampliação do ensino fundamental; a terceira apresenta e analisa os dados da pesquisa e
a última tece as conclusões obtidas a partir da investigação.
Contextualizando
Ao realizar um estudo, se está constantemente fazendo escolhas. Dependendo do olhar
lançado sobre os documentos, novas possibilidades de análise podem ser construídas, uma vez
que pesquisar consiste em produzir os dados de acordo com concepções teóricas de um
determinado campo.
A intenção desta análise consiste se debruçar sobre um campo determinado da
educação brasileira: os livros didáticos de alfabetização. Pretende-se repensar o que tem sido
dito sobre os discursos que servem de base para a elaboração destes materiais. Com isso não
se almeja produzir verdades e certezas, mas lançar novos olhares sobre o que vem sendo visto
nesta área.
Segundo Costa (2000), a modernidade e sua forma de produzir pesquisa caracterizava-
se como sendo um método que, se bem aplicado, produziria “a” verdade sobre o que seria
avaliado. Esse rigor científico asseguraria a neutralidade, a objetividade e a assepsia
conceitual do objeto analisado. Em contrapartida, a pós-modernidade caracteriza a pesquisa e
os conhecimentos produzidos por ela como sendo uma prática social inserida em um processo
histórico coletivamente construído. Os Estudos Culturais se aproximam do pós-estruturalismo
nas questões referentes à linguagem, e no poder constituidor dos discursos (BARKER;
GALASINSKI, 2001).
A escola, nos moldes como temos hoje, foi uma invenção da modernidade. Ela surge
como sendo o espaço responsável pela detenção e propagação da “grande cultura”. Os
Estudos Culturais questionam essa visão de cultura, surgindo como um movimento teórico e
político que se articulou contra esta concepção que, conforme Raymond Williams valorizava
os grandes cânones, em oposição ao que era considerado como sendo a baixa cultura
(COSTA, 2000).
Nos dias de hoje entende-se por cultura os modos de vida de uma população. Essa
revolução cultural vem ao encontro da abordagem dada à cultura pelos Estudos Culturais que
a define como o modo de vida global de uma sociedade (COSTA, SILVEIRA E SOMMER,
2003). Assim, a cultura deixa de ser unitária e soberana e passa a ser plural, fruto de disputas
entre as diferentes identidades que compõem o cenário atual, sendo impossível trabalhar com
este conceito sem relacioná-la com as estratégias de mudança social e as relações de poder.
(MATTELART, 2004, p. 50).
O papel central dado à cultura passa a ter uma dimensão epistemológica denominada
de “virada cultural”, referindo-se ao poder instituidor dos discursos que circulam nesse espaço
cultural. Esse poder se manifesta por meio dos artefatos produtivos (livros didáticos, músicas,
filmes...) que, pelas práticas de representação, produzem sentidos que circulam e operam nos
meios culturais, nos quais os significados são estabelecidos (VEIGA-NETO, 2003).
Para que se possa entender o conceito de cultura como um campo de disputas, faz-se
necessário entender o conceito de poder dentro desse contexto. De acordo com Veiga Neto
(1995), dando ênfase a uma visão foucaultiana de poder, este não é visto como sendo algo
que possui apenas um lado eficiente poderoso, dominante e central, mas sim como atuante e
funcionando de inúmeras formas, se capilarizando no tecido social, como uma rede de fluxo
constante de forças e resistência. Nesse sentido, o poder se torna produtivo, já que gera
saberes, produz discursos, produz sujeitos..., atravessando todo o corpo social.
A linguagem, sob essa ótica, tem um papel central, pelo fato de ser ela a responsável
pela produção de significados – sendo estes constantemente ressignificados por meio das lutas
que ocorrem entre o simbólico e o discursivo, uma vez que são as práticas discursivas que
constituem e subjetivam sujeitos e objetos, e não apenas transmitem significados. A
linguagem não é um meio neutro de explicar e representar o mundo, mas é a constituidora do
discurso, tornando-se crucial na construção da vida social.
A essa forma de perceber a linguagem denomina-se “virada linguística”. Nesse
contexto, a ideia de sujeito uno se desfaz e surge a ideia de um sujeito constituído por
múltiplas identidades que se compõem por meio das/nas narrativas formuladas nas
confluências discursivas (ARFUCH, 2002).
As narrativas agora passam a ser vistas como constituidoras do sujeito e, de acordo
com Larrosa (1996), elas produzem as identidades, partindo-se da ideia de que somos o que
contamos e o que nos contam, sob a influência dos lugares, tempo e vozes que narram,
fazendo com que a narrativa se torne responsável pela formulação dos processos identitários.
Com a “virada linguística”, a verdade única deixa de existir, sendo substituída por verdades
constituídas. Estas, a partir de então, são consideradas crenças, tendo como alvo de análise o
processo pelo qual algo se torna verdade (SILVA, 1999).
Os discursos, dentro dessa perspectiva, são entendidos como práticas que instituem
significados por meio dos quais se torna possível nomear, classificar, julgar, incluir e excluir
ideias, pessoas, coisas e objetos, buscando pôr em evidência o funcionamento de mecanismos
instituidores de significados. Foucault (1996) explica que a linguagem, e consequentemente
os discursos, não funcionam imunes aos controles sociais porque são atravessados pelas
relações de poder.
Trabalhando dentro desse contexto, Silva (1999) explica que o campo de análise dos
Estudos Culturais trabalha comumente com duas correntes metodológicas de pesquisa: a
etnográfica e a de análise textual. É a análise textual, associada à análise do discurso, que
serve como suporte para a análise dos dados deste estudo. Barker e Galasinski (2001, p. 1)
afirmam que a “Análise Crítica do Discurso é capaz de oferecer o entendimento, habilidades e
ferramentas com as quais se podem demonstrar o lugar da linguagem na construção,
constituição e regulação do mundo social”. Segundo Gill (2004, p. 244), essa perspectiva não
vê a linguagem como algo neutro que apenas descreve o mundo e reflete sobre ele, mas
acredita que o discurso constrói a vida social. Dessa forma, tal ideia está ancorada nos
pressupostos da “virada linguística”.
Luke (2000, p. 93) constata que fazer uso da teoria pós-estruturalista do discurso nos
leva a analisar o “modo como as relações sociais, a identidade, o conhecimento e o poder são
construídos por meio de textos falados e escritos nas comunidades, nas escolas e nas salas de
aula”, uma vez que a linguagem e o discurso não são neutros ou transparentes, não apenas
descrevem ou analisam o mundo, mas os constroem e regulam através dos conhecimentos
legitimados.
Barker e Galasinski (2001, p. 07) explicam que a análise textual trabalha com a
concepção de que os textos são considerados polissêmicos. “O entendimento cultural dos
textos não pode permanecer com o texto, mas deve se relacionar por si só com os processos
envolvidos na compreensão do significado pelos leitores”. Frente a isso, os Estudos Culturais
procuram verificar como ocorre o “consumo” e a recepção desses materiais, pensando que o
indivíduo não apenas é um receptor passivo, mas também criador ativo de significados.
Discursos sobre a ampliação do ensino fundamental
A entrada das crianças mais cedo no ensino fundamental redefiniu ao que parece, a
forma como se pensava a alfabetização, fazendo com que discursos referentes ao modo de
alfabetizar fossem reestruturados ou ganhassem “nova” força.
Embora cercada de polêmicas e de lutas pelo poder/saber a configuração dada à
educação e à alfabetização a partir de 2010, faz parte de uma política pública criada a partir
do que hoje consideraríamos serem os “melhores” representantes dos discursos sobre o que é
ser criança.
O Ensino Fundamental de Nove Anos (EFNA) faz parte de uma política de inclusão
social, que prevê a sua universalização, ao julgar inaceitável uma criança estar fora da escola
e, como consequência, apartada do processo escolar de alfabetização. Esses discursos têm
origem em órgãos internacionais como a Unesco, Unicef, Banco Mundial, entre outros. No
Brasil, tem origem no Plano Nacional de Educação (PNE), se estendendo para os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), Programa Pró-letramento e demais materiais de orientação
aos professores que acompanham as ações desse programa. Ou seja, para ser possível
entender o que se pensa a respeito da alfabetização na atualidade, é preciso entender as
mudanças que ocorreram na política pública de governo pensada para o EFNA.
Santaiana (2008) nos dirá que, embora o EFNA tenha sido implantado legalmente em
2005, as discussões que envolvem este nono ano ocorriam desde 2001, ainda que o prazo final
de implementação tenha ocorrido somente em 2010, o que justifica a criação e distribuição de
“novos” livros para o 1º ano do EFNA em tal ano letivo. Segundo os documentos analisados
pela autora (relatórios, documentos, orientações e informações do site do MEC) as questões
que envolvem a alfabetização estão no centro das discussões, objetivando garantir melhores
condições de alfabetização, letramento e prosseguimento nos estudos e, por consequência, a
diminuição da evasão e repetência.
Vivemos em uma época em que existe uma exacerbação de discursos sobre a proteção
da infância, de uma escolarização que possa garantir a alfabetização de todos, bem como de
políticas educacionais que garantam a inclusão. Esses discursos potencializam a criação de
condições de possibilidade para que determinadas políticas educacionais se constituam e
instituam práticas que designam regras que subvertem os sujeitos.
Dentre os materiais analisados por Santaiana (2008) sobre a implantação do EFNA,
evidencia-se uma grande preocupação com a forma de alfabetizar este novo público que
adentra no ensino fundamental. Expressões que lembram o lúdico e a adaptação da
alfabetização a essa nova faixa etária passam a ser corriqueiras.
As leis que regem a educação nacional têm passado, nos últimos tempos, por muitas
reformulações. A maior delas tem relação com a ampliação do ensino fundamental. Embora
tenha gerado uma infinidade de discussões o ensino das crianças já era contemplado desde a
Constituição de 1988.
Estas discussões tem relação com a forma como a criança passa a ser percebida na
atualidade. Até os anos de 1970, as políticas educacionais voltadas à educação de crianças de
0 a 6 anos defendiam a educação compensatória com vistas à compensação de carências
culturais, deficiências linguísticas e defasagens afetivas das crianças provenientes das
camadas populares. Na década de 80 os estudos contemporâneos da antropologia, sociologia
e da psicologia ajudaram a entender que às crianças foram impostas situações desiguais;
assim, ao mesmo tempo em que começaram a ter sua especificidade respeitada, as crianças
passaram a serem cidadãs, parte de sua classe, grupo, cultura. Assistência, saúde e educação
passaram a ser compreendidas como direito social de todas.
Segundo a Constituição Federal de 1988 a Educação, direito de todos e dever do
estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho (Art. 205).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN -96) ao tratar da
educação básica e ao dividi-la em Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino médio,
também prevê a escolarização das crianças, embora ela só se torne obrigatória a partir dos 6
anos de idade.
KRAMER (2012) ao discutir a escolaridade das crianças de 0 a 6 anos pondera que o
reconhecimento deste direito é afirmado na Constituição de 1988, no Estatuto da Criança e do
Adolescente, na LDBEN de 1996, nas Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil e no
Plano Nacional de Educação. Com relação à educação infantil e ao ensino fundamental estes
devem ser pensados como indissociáveis: ambos envolvem conhecimentos e afetos; saberes e
valores; cuidados e atenção; seriedade e riso. Esta concepção de ensino é confirmada com a
Lei n. 11.274/2006, na qual o ensino fundamental passa há ter nove anos inclui
obrigatoriamente as crianças de 6 anos.
Diante disso pode-se pensar em como fica o currículo e o planejamento? Kramer
(2012) pondera que nada muda se o que for levado em consideração for à singularidade das
ações infantis e o direito à brincadeira e à produção cultural. Isso significa que as crianças
devem ser atendidas nas suas necessidades (a de aprender e a de brincar) e que tanto na
educação infantil quanto no ensino fundamental sejamos capazes de ver, entender e lidar com
as crianças como crianças e não só como alunos.
Torna-se necessário uma adaptação curricular que implementa o lúdico no ensino
fundamental, uma vez que a educação infantil tem sido um campo de experimentação de
práticas emancipatórias, com grande circulação de ideias e projetos, que têm como objetivo
uma educação que respeita os direitos da criança, tomando-a como sujeito de aprendizagem e
como ator social. Para isso, tem se utilizado de práticas democráticas e de escuta/observação
das crianças, que fazem parte da tradição e da inovação da educação pré-escolar no Brasil e
no mundo (Rayna & Brougère, 2000).
Diante deste novo cenário nos propomos a analisar as transformações presentes em um
livro didático de alfabetização antes pensado para a primeira série do ensino fundamental de
oito anos e agora para o primeiro ano do ensino fundamental de nove anos.
Nas páginas dos livros
Os exemplares analisados pertencem à coleção do livro A escola é nossa da 1ª série
(2007) e do 1º ano (2010) do ensino fundamental, destinados à alfabetização. Ambos são
materiais de divulgação da Editora Scipione.
Para esta investigação analisaremos a seção referente à primeira consoante
apresentada, uma fez que esta representa a sequencia de trabalho com as demais letras. No
início da primeira unidade, a palavra pato aparece no topo da página, tendo a letra P em
destaque. Em seguida, a frase “Olha quem vem vindo...” convida as crianças a ouvirem o
poema musicado de Vinícius de Moraes e a cantarem a música O pato, a partir de uma
gravação em CD; Logo após, é sugerida a leitura silenciosa do seu texto por parte das crianças
e, em seguida, que relacionem o texto com a imagem apontando para eles.
A atividade de sistematização já se inicia com um trabalho de leitura do gênero
poema. Sua configuração possui ritmo, rimas e aliterações. Ao propor a relação entre o texto e
a ilustração que o acompanha, a atividade busca atribuir significado ao texto, que pode ser
percebido quando a autora sugere que sejam explorados os significados da palavra galo. A
diferença entre a versão de 2007 e 2010 está nas ilustrações dadas ao poema e na grafia da
frase “Olha quem vem vindo” escrita em letra script minúscula em 2007 e em script
maiúscula em 2010. Esta diferença de letra irá acompanhar todas as páginas analisadas.
A seguir, é proposta uma atividade oral Vamos conversar, na qual são feitas três
perguntas sobre o texto e uma atividade de localização de informações: De qual trecho do
poema você mais gostou? Por quê? Com a ajuda da professora, descubra o nome do autor do
poema que você leu. Você já ouviu falar desse autor? Com relação à versão de 2007 e 2010 a
única mudança está na ordem de apresentação das questões e no tipo de letra usada.
Na seção Atividades, a autora sugere atividades de sistematização do código: a
primeira trabalha com rima por meio da atividade de pintura de palavras no poema; a segunda
propõe completar frases da poesia, relacionando palavras e imagens; a terceira atividade
permite formar palavras com letras seguindo as setas; a quarta consiste numa cruzadinha; e a
quinta trata de uma atividade de leitura de palavras a partir da identificação de imagens. O que
há em comum entre essas quatro últimas atividades é a existência da letra P em uma das suas
sílabas. As formas como as crianças poderão chegar à resposta correta não são exploradas. A
versão de 2007, além das atividades já descritas traz uma atividade onde é solicitado que a
criança ilustre a parte do poema que mais gostou e outra na qual deve formar a família
silábica da letra “P”.
Na terceira seção – Produção escrita –, a atividade solicita o desenho e a escrita do
nome de um animal doméstico. Toda a vez que a proposta de produção escrita é feita ela vem
acompanhada de um ícone representado por um lápis e uma folha de caderno, buscando
facilitar a organização dos alunos quanto ao tipo de produção, uma vez que nessa faixa etária
a leitura de imagens e símbolos auxilia a compreensão da organização do material por parte
dos pequenos.
Analisando a sequência de atividades da primeira lição de ambos os livros, identifico
uma atividade que se destina propriamente à leitura – embora essa capacidade seja necessária
para a realização de todas as atividades –, uma destinada à produção textual, outra à oralidade
e o restante à apropriação do sistema de escrita alfabético.
Segundo Ferreira, Albuquerque, Cabral e Tavares (2007) uma nova tendência – de
apresentar textos longos desde as primeiras páginas dos livros didáticos de alfabetização –
tem gerado dificuldades no seu uso, segundo avaliam os professores, uma vez que, conforme
tais autoras, embora sejam textos de boa qualidade, esses são pensados para crianças já
alfabetizadas, ficando difícil para os alunos que estão no início do processo de aquisição do
sistema de escrita acompanhar a sua leitura, bem como realizar os exercícios propostos. Um
exemplo do que está sendo dito pode ser percebido na atividade elaborada na sequência da
primeira lição em que, a partir de um poema, é sugerida uma infinidade de atividades para as
quais a criança utiliza, na maioria das vezes, a estratégia de pareamento para sua realização,
havendo pouca reflexão sobre a forma como se dá o uso dessa estratégia ao longo do processo
de alfabetização.
Quanto ao ensino do sistema de escrita alfabética, constato que essa lição é
representativa de boa parte do que é proposto nos livros. Ao apresentar atividades de reflexão
sobre o processo de aquisição da escrita baseando-se na rima, embora os alunos possam ter
dificuldade de localizar no texto rimas cuja identificação seria mais fácil no âmbito da
oralidade, muitas vezes o pareamento pode ser um auxiliar na sua realização (atividade 1 e 2).
Existem atividades que não exigem uma reflexão sobre o código alfabético para sua
realização, uma vez que se restringem à cópia (atividade 3). Há também, atividades que
exigem da criança um conhecimento maior do código escrito. É o caso da atividade 4, em que
as crianças devem preencher a cruzadinha. Crianças com concepções de escrita diferentes das
que se posicionam no nível alfabético da psicogênese, ou seja, que já entendem a estrutura do
código, embora possam não possuir o domínio ortográfico da escrita, poderão ter maior
dificuldade em realizá-la. Poderiam fazê-la contando espaços e letras, mas em que isso
contribuiria para o seu processo de alfabetização? É interessante notar que em momento
algum, na versão de 2010, a autora propôs a sistematização das famílias silábicas, embora as
atividades 3 e 5 pareçam servir para essa função. Outro dado é que todas as letras do alfabeto
aparecem durante a realização das atividades, não havendo uma restrição às estudadas até o
momento.
Como é possível verificar, as atividades propostas nesses livros exigiriam do professor
um constante papel de mediação na sua realização, pois o trabalho fazendo uso de tais livros
didáticos exige de cada aluno o entendimento do que deve ser feito a cada tarefa associado
aos conhecimentos que devem ser demonstrados no início do processo de aquisição do
sistema de escrita em uma esfera formal, como a da escola.
A atividade referente à oralidade parece ter a preocupação de situar o aluno com
relação ao gênero trabalhado – mais especificamente ao autor – e avaliar sua compreensão a
respeito do que foi lido. Não há uma preocupação neste momento de explorar a sonoridade
das palavras, suas rimas e outras variáveis que envolvem a consciência fonológica.
Em relação à atividade de produção escrita, a nota ao professor diz que esse é o
momento em que o aluno irá escrever espontaneamente, podendo servir para avaliar o nível
em que os estudantes se encontram. É possível perceber aqui, a presença de vários discursos
sobre alfabetização ocupando uma mesma página: ora o sobre a consciência fonológica, com
seu trabalho com rimas, ora as concepções psicogenéticas, por meio da escrita espontânea, ora
o do letramento, com a utilização de textos do repertório popular infantil, e ora os métodos de
alfabetização, com atividades de cópia, a partir da letra em destaque na unidade e de
combinações de palavras que surgem com a união das suas sílabas.
Podemos dizer, inspiradas em Foucault (2008, p. 43), que não há como negar a
existência de uma certa unidade de discurso sobre a alfabetização nesses livros didáticos. As
regularidades apontadas são evidências de um ordenamento, de um controle, de uma seleção
prévia das possibilidades de enunciação apresentadas nas atividades propostas, e deixam
transparecer que há um campo discursivo comum, a partir do qual as propostas são
controladas. A produção e a regulação dos discursos sobre a alfabetização podem ser
entendidas a partir da operação do construtivismo pedagógico e do letramento como doutrinas
que, associadas aos discursos que ressurgem sobre consciência fonológica, ligam os
indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes inibem, consequentemente, todos os outros;
mas elas se servem, em contrapartida, de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos
entre si e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros.
Considerações finais
Conforme podemos observar são poucas as mudanças entre as versões de 2007 e 2010.
Embora a haja um vasto repertório teórico e Legal sobre a importância de um trabalho
diferenciado, onde o lúdico devesse estar presente, poucas transformações são percebidas. Ao
que parece o livro apenas subtraiu de suas páginas algumas atividades de sistematização do
sistema de escrita alfabético, atividades estas marcadas pelos antigos métodos, tentando dar
uma nova roupagem aos discursos já existentes.
Tomando como referência os artefatos acima citados e considerando-os como parte do
circuito de produção, regulação e consumo dos discursos sobre alfabetização nos livros
didáticos selecionados pelos PNLDs de 2007 e 2010, este estudo constata que – ao que parece
– as disputas entre métodos “tradicionais” e “inovadores” de alfabetização dão espaço para
uma bricolagem deles, atualizando-os por meio do discurso associado aos da psicogênese da
língua escrita e do letramento para produzir as coleções analisadas permitindo que estas
permaneçam entre as aprovadas pelo MEC, mesmo que este tenha privilegiado ora o discurso
da alfabetização e ora o do letramento. A maior visibilidade dada para este último discurso
parece ser a grande novidade se for comparado o livro produzido em 2007 e 2010. Parece
estar aí, à marca do discurso de ampliação do ensino fundamental na área da alfabetização.
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