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ALFABETIZAÇÃO EM DISCURSO: O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS ATRAVÉS DOS LIVROS DIDÁTICOS Thaise da Silva (UFGD) Josielaine Mendonça Staudt (UFGD) Primeiras palavras Pesquisar sobre o livro didático exige um olhar atento do investigador, uma vez que esse material é um meio eficaz para se conhecer as opiniões e ideias de autores, professores e alunos; além de auxiliar no conhecimento dos mecanismos de comunicação das ideias em sociedade e a resistência que elas encontram em determinados grupos sociais, assim como o desgaste destas em determinados períodos. A análise do livro didático permite observar as simplificações e distorções a que são submetidas às ideias ao serem transmitidas e o tempo transcorrido entre o lançamento de uma opinião e sua recepção e mudança na estrutura social (DELGADO, 1983). Além desses aspectos, este artefato carrega consigo as orientações metodológicas, as concepções pedagógicas e os referenciais teórico-metodológicos contidos nos livros didáticos que orientaram sua produção, alocados geralmente nos prólogos, nas notas de rodapé e no “Livro do professor”. Nesses espaços, autores e editores indicam as atividades e os exercícios a serem realizados sob a orientação do professor. Os livros didáticos indicam, ainda, como nenhum outro meio, à distância em anos entre o conteúdo científico e as explicações em sala de aula. Em outros termos, revelam a quantidade de “Ciência” introduzida pelo autor para o consumo escolar e a de “pedagogia e habilidade didática”, que possui igualmente o nível de conhecimento científico exigido do próprio professor. Considerando os apontamentos acima, este estudo tem por objetivo analisar como os discursos na área da alfabetização são representados nos livros didáticos de alfabetização por autores didáticos e editoras, a partir dos princípios e critérios do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2007 e 2010) que guiaram a sua seleção. Para tanto, conta-se com a perspectiva teórica dos Estudos Culturais pós-estruturalistas e pós-modernos, privilegiando a análise do circuito de produção, regulação e consumo dos discursos de alfabetização em dois exemplares dos livros didáticos destinados à/ao 1ª série/1º ano do ensino fundamental de oito e de nove anos.

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ALFABETIZAÇÃO EM DISCURSO: O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS

ATRAVÉS DOS LIVROS DIDÁTICOS

Thaise da Silva (UFGD)

Josielaine Mendonça Staudt (UFGD)

Primeiras palavras

Pesquisar sobre o livro didático exige um olhar atento do investigador, uma vez que

esse material é um meio eficaz para se conhecer as opiniões e ideias de autores, professores e

alunos; além de auxiliar no conhecimento dos mecanismos de comunicação das ideias em

sociedade e a resistência que elas encontram em determinados grupos sociais, assim como o

desgaste destas em determinados períodos. A análise do livro didático permite observar as

simplificações e distorções a que são submetidas às ideias ao serem transmitidas e o tempo

transcorrido entre o lançamento de uma opinião e sua recepção e mudança na estrutura social

(DELGADO, 1983).

Além desses aspectos, este artefato carrega consigo as orientações metodológicas, as

concepções pedagógicas e os referenciais teórico-metodológicos contidos nos livros didáticos

que orientaram sua produção, alocados geralmente nos prólogos, nas notas de rodapé e no

“Livro do professor”. Nesses espaços, autores e editores indicam as atividades e os exercícios

a serem realizados sob a orientação do professor. Os livros didáticos indicam, ainda, como

nenhum outro meio, à distância em anos entre o conteúdo científico e as explicações em sala

de aula. Em outros termos, revelam a quantidade de “Ciência” introduzida pelo autor para o

consumo escolar e a de “pedagogia e habilidade didática”, que possui igualmente o nível de

conhecimento científico exigido do próprio professor.

Considerando os apontamentos acima, este estudo tem por objetivo analisar como os

discursos na área da alfabetização são representados nos livros didáticos de alfabetização por

autores didáticos e editoras, a partir dos princípios e critérios do Programa Nacional do Livro

Didático (PNLD 2007 e 2010) que guiaram a sua seleção. Para tanto, conta-se com a

perspectiva teórica dos Estudos Culturais pós-estruturalistas e pós-modernos, privilegiando a

análise do circuito de produção, regulação e consumo dos discursos de alfabetização em dois

exemplares dos livros didáticos destinados à/ao 1ª série/1º ano do ensino fundamental de oito

e de nove anos.

O livro escolhido foi o intitulado A escola é Nossa 1ª série/1º ano, da editora Scipione,

destinado à alfabetização, referente aos anos de 2007 e 2010; anos que marcaram a ampliação

do ensino fundamental de oito para nove anos. A escolha destes materiais deve-se ao fato

destes pertencerem a uma das duas coleções aprovadas pelo Programa Nacional do Livro

Didático (PNLD), que se manteve entre os selecionados pelo Ministério da Educação (MEC)

antes e depois desta ampliação. Frente a estes livros, buscou-se examinar como eles se

originaram, isto é, que condições históricas e conjunturais possibilitaram a sua formulação e

sua permanência ao longo das edições deste programa governamental. Diante disso, foi

realizada uma pesquisa qualitativa do tipo documental onde se observou o livro didático como

artefato cultural, amparando-se na análise textual e do discurso para realizar as reflexões.

Este estudo, além da introdução, será organizado em outras quatro seções: a primeira

contextualiza o campo dos Estudos Culturais; a segunda situa as transformações ocorridas

com a ampliação do ensino fundamental; a terceira apresenta e analisa os dados da pesquisa e

a última tece as conclusões obtidas a partir da investigação.

Contextualizando

Ao realizar um estudo, se está constantemente fazendo escolhas. Dependendo do olhar

lançado sobre os documentos, novas possibilidades de análise podem ser construídas, uma vez

que pesquisar consiste em produzir os dados de acordo com concepções teóricas de um

determinado campo.

A intenção desta análise consiste se debruçar sobre um campo determinado da

educação brasileira: os livros didáticos de alfabetização. Pretende-se repensar o que tem sido

dito sobre os discursos que servem de base para a elaboração destes materiais. Com isso não

se almeja produzir verdades e certezas, mas lançar novos olhares sobre o que vem sendo visto

nesta área.

Segundo Costa (2000), a modernidade e sua forma de produzir pesquisa caracterizava-

se como sendo um método que, se bem aplicado, produziria “a” verdade sobre o que seria

avaliado. Esse rigor científico asseguraria a neutralidade, a objetividade e a assepsia

conceitual do objeto analisado. Em contrapartida, a pós-modernidade caracteriza a pesquisa e

os conhecimentos produzidos por ela como sendo uma prática social inserida em um processo

histórico coletivamente construído. Os Estudos Culturais se aproximam do pós-estruturalismo

nas questões referentes à linguagem, e no poder constituidor dos discursos (BARKER;

GALASINSKI, 2001).

A escola, nos moldes como temos hoje, foi uma invenção da modernidade. Ela surge

como sendo o espaço responsável pela detenção e propagação da “grande cultura”. Os

Estudos Culturais questionam essa visão de cultura, surgindo como um movimento teórico e

político que se articulou contra esta concepção que, conforme Raymond Williams valorizava

os grandes cânones, em oposição ao que era considerado como sendo a baixa cultura

(COSTA, 2000).

Nos dias de hoje entende-se por cultura os modos de vida de uma população. Essa

revolução cultural vem ao encontro da abordagem dada à cultura pelos Estudos Culturais que

a define como o modo de vida global de uma sociedade (COSTA, SILVEIRA E SOMMER,

2003). Assim, a cultura deixa de ser unitária e soberana e passa a ser plural, fruto de disputas

entre as diferentes identidades que compõem o cenário atual, sendo impossível trabalhar com

este conceito sem relacioná-la com as estratégias de mudança social e as relações de poder.

(MATTELART, 2004, p. 50).

O papel central dado à cultura passa a ter uma dimensão epistemológica denominada

de “virada cultural”, referindo-se ao poder instituidor dos discursos que circulam nesse espaço

cultural. Esse poder se manifesta por meio dos artefatos produtivos (livros didáticos, músicas,

filmes...) que, pelas práticas de representação, produzem sentidos que circulam e operam nos

meios culturais, nos quais os significados são estabelecidos (VEIGA-NETO, 2003).

Para que se possa entender o conceito de cultura como um campo de disputas, faz-se

necessário entender o conceito de poder dentro desse contexto. De acordo com Veiga Neto

(1995), dando ênfase a uma visão foucaultiana de poder, este não é visto como sendo algo

que possui apenas um lado eficiente poderoso, dominante e central, mas sim como atuante e

funcionando de inúmeras formas, se capilarizando no tecido social, como uma rede de fluxo

constante de forças e resistência. Nesse sentido, o poder se torna produtivo, já que gera

saberes, produz discursos, produz sujeitos..., atravessando todo o corpo social.

A linguagem, sob essa ótica, tem um papel central, pelo fato de ser ela a responsável

pela produção de significados – sendo estes constantemente ressignificados por meio das lutas

que ocorrem entre o simbólico e o discursivo, uma vez que são as práticas discursivas que

constituem e subjetivam sujeitos e objetos, e não apenas transmitem significados. A

linguagem não é um meio neutro de explicar e representar o mundo, mas é a constituidora do

discurso, tornando-se crucial na construção da vida social.

A essa forma de perceber a linguagem denomina-se “virada linguística”. Nesse

contexto, a ideia de sujeito uno se desfaz e surge a ideia de um sujeito constituído por

múltiplas identidades que se compõem por meio das/nas narrativas formuladas nas

confluências discursivas (ARFUCH, 2002).

As narrativas agora passam a ser vistas como constituidoras do sujeito e, de acordo

com Larrosa (1996), elas produzem as identidades, partindo-se da ideia de que somos o que

contamos e o que nos contam, sob a influência dos lugares, tempo e vozes que narram,

fazendo com que a narrativa se torne responsável pela formulação dos processos identitários.

Com a “virada linguística”, a verdade única deixa de existir, sendo substituída por verdades

constituídas. Estas, a partir de então, são consideradas crenças, tendo como alvo de análise o

processo pelo qual algo se torna verdade (SILVA, 1999).

Os discursos, dentro dessa perspectiva, são entendidos como práticas que instituem

significados por meio dos quais se torna possível nomear, classificar, julgar, incluir e excluir

ideias, pessoas, coisas e objetos, buscando pôr em evidência o funcionamento de mecanismos

instituidores de significados. Foucault (1996) explica que a linguagem, e consequentemente

os discursos, não funcionam imunes aos controles sociais porque são atravessados pelas

relações de poder.

Trabalhando dentro desse contexto, Silva (1999) explica que o campo de análise dos

Estudos Culturais trabalha comumente com duas correntes metodológicas de pesquisa: a

etnográfica e a de análise textual. É a análise textual, associada à análise do discurso, que

serve como suporte para a análise dos dados deste estudo. Barker e Galasinski (2001, p. 1)

afirmam que a “Análise Crítica do Discurso é capaz de oferecer o entendimento, habilidades e

ferramentas com as quais se podem demonstrar o lugar da linguagem na construção,

constituição e regulação do mundo social”. Segundo Gill (2004, p. 244), essa perspectiva não

vê a linguagem como algo neutro que apenas descreve o mundo e reflete sobre ele, mas

acredita que o discurso constrói a vida social. Dessa forma, tal ideia está ancorada nos

pressupostos da “virada linguística”.

Luke (2000, p. 93) constata que fazer uso da teoria pós-estruturalista do discurso nos

leva a analisar o “modo como as relações sociais, a identidade, o conhecimento e o poder são

construídos por meio de textos falados e escritos nas comunidades, nas escolas e nas salas de

aula”, uma vez que a linguagem e o discurso não são neutros ou transparentes, não apenas

descrevem ou analisam o mundo, mas os constroem e regulam através dos conhecimentos

legitimados.

Barker e Galasinski (2001, p. 07) explicam que a análise textual trabalha com a

concepção de que os textos são considerados polissêmicos. “O entendimento cultural dos

textos não pode permanecer com o texto, mas deve se relacionar por si só com os processos

envolvidos na compreensão do significado pelos leitores”. Frente a isso, os Estudos Culturais

procuram verificar como ocorre o “consumo” e a recepção desses materiais, pensando que o

indivíduo não apenas é um receptor passivo, mas também criador ativo de significados.

Discursos sobre a ampliação do ensino fundamental

A entrada das crianças mais cedo no ensino fundamental redefiniu ao que parece, a

forma como se pensava a alfabetização, fazendo com que discursos referentes ao modo de

alfabetizar fossem reestruturados ou ganhassem “nova” força.

Embora cercada de polêmicas e de lutas pelo poder/saber a configuração dada à

educação e à alfabetização a partir de 2010, faz parte de uma política pública criada a partir

do que hoje consideraríamos serem os “melhores” representantes dos discursos sobre o que é

ser criança.

O Ensino Fundamental de Nove Anos (EFNA) faz parte de uma política de inclusão

social, que prevê a sua universalização, ao julgar inaceitável uma criança estar fora da escola

e, como consequência, apartada do processo escolar de alfabetização. Esses discursos têm

origem em órgãos internacionais como a Unesco, Unicef, Banco Mundial, entre outros. No

Brasil, tem origem no Plano Nacional de Educação (PNE), se estendendo para os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCNs), Programa Pró-letramento e demais materiais de orientação

aos professores que acompanham as ações desse programa. Ou seja, para ser possível

entender o que se pensa a respeito da alfabetização na atualidade, é preciso entender as

mudanças que ocorreram na política pública de governo pensada para o EFNA.

Santaiana (2008) nos dirá que, embora o EFNA tenha sido implantado legalmente em

2005, as discussões que envolvem este nono ano ocorriam desde 2001, ainda que o prazo final

de implementação tenha ocorrido somente em 2010, o que justifica a criação e distribuição de

“novos” livros para o 1º ano do EFNA em tal ano letivo. Segundo os documentos analisados

pela autora (relatórios, documentos, orientações e informações do site do MEC) as questões

que envolvem a alfabetização estão no centro das discussões, objetivando garantir melhores

condições de alfabetização, letramento e prosseguimento nos estudos e, por consequência, a

diminuição da evasão e repetência.

Vivemos em uma época em que existe uma exacerbação de discursos sobre a proteção

da infância, de uma escolarização que possa garantir a alfabetização de todos, bem como de

políticas educacionais que garantam a inclusão. Esses discursos potencializam a criação de

condições de possibilidade para que determinadas políticas educacionais se constituam e

instituam práticas que designam regras que subvertem os sujeitos.

Dentre os materiais analisados por Santaiana (2008) sobre a implantação do EFNA,

evidencia-se uma grande preocupação com a forma de alfabetizar este novo público que

adentra no ensino fundamental. Expressões que lembram o lúdico e a adaptação da

alfabetização a essa nova faixa etária passam a ser corriqueiras.

As leis que regem a educação nacional têm passado, nos últimos tempos, por muitas

reformulações. A maior delas tem relação com a ampliação do ensino fundamental. Embora

tenha gerado uma infinidade de discussões o ensino das crianças já era contemplado desde a

Constituição de 1988.

Estas discussões tem relação com a forma como a criança passa a ser percebida na

atualidade. Até os anos de 1970, as políticas educacionais voltadas à educação de crianças de

0 a 6 anos defendiam a educação compensatória com vistas à compensação de carências

culturais, deficiências linguísticas e defasagens afetivas das crianças provenientes das

camadas populares. Na década de 80 os estudos contemporâneos da antropologia, sociologia

e da psicologia ajudaram a entender que às crianças foram impostas situações desiguais;

assim, ao mesmo tempo em que começaram a ter sua especificidade respeitada, as crianças

passaram a serem cidadãs, parte de sua classe, grupo, cultura. Assistência, saúde e educação

passaram a ser compreendidas como direito social de todas.

Segundo a Constituição Federal de 1988 a Educação, direito de todos e dever do

estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao

pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho (Art. 205).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN -96) ao tratar da

educação básica e ao dividi-la em Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino médio,

também prevê a escolarização das crianças, embora ela só se torne obrigatória a partir dos 6

anos de idade.

KRAMER (2012) ao discutir a escolaridade das crianças de 0 a 6 anos pondera que o

reconhecimento deste direito é afirmado na Constituição de 1988, no Estatuto da Criança e do

Adolescente, na LDBEN de 1996, nas Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil e no

Plano Nacional de Educação. Com relação à educação infantil e ao ensino fundamental estes

devem ser pensados como indissociáveis: ambos envolvem conhecimentos e afetos; saberes e

valores; cuidados e atenção; seriedade e riso. Esta concepção de ensino é confirmada com a

Lei n. 11.274/2006, na qual o ensino fundamental passa há ter nove anos inclui

obrigatoriamente as crianças de 6 anos.

Diante disso pode-se pensar em como fica o currículo e o planejamento? Kramer

(2012) pondera que nada muda se o que for levado em consideração for à singularidade das

ações infantis e o direito à brincadeira e à produção cultural. Isso significa que as crianças

devem ser atendidas nas suas necessidades (a de aprender e a de brincar) e que tanto na

educação infantil quanto no ensino fundamental sejamos capazes de ver, entender e lidar com

as crianças como crianças e não só como alunos.

Torna-se necessário uma adaptação curricular que implementa o lúdico no ensino

fundamental, uma vez que a educação infantil tem sido um campo de experimentação de

práticas emancipatórias, com grande circulação de ideias e projetos, que têm como objetivo

uma educação que respeita os direitos da criança, tomando-a como sujeito de aprendizagem e

como ator social. Para isso, tem se utilizado de práticas democráticas e de escuta/observação

das crianças, que fazem parte da tradição e da inovação da educação pré-escolar no Brasil e

no mundo (Rayna & Brougère, 2000).

Diante deste novo cenário nos propomos a analisar as transformações presentes em um

livro didático de alfabetização antes pensado para a primeira série do ensino fundamental de

oito anos e agora para o primeiro ano do ensino fundamental de nove anos.

Nas páginas dos livros

Os exemplares analisados pertencem à coleção do livro A escola é nossa da 1ª série

(2007) e do 1º ano (2010) do ensino fundamental, destinados à alfabetização. Ambos são

materiais de divulgação da Editora Scipione.

Para esta investigação analisaremos a seção referente à primeira consoante

apresentada, uma fez que esta representa a sequencia de trabalho com as demais letras. No

início da primeira unidade, a palavra pato aparece no topo da página, tendo a letra P em

destaque. Em seguida, a frase “Olha quem vem vindo...” convida as crianças a ouvirem o

poema musicado de Vinícius de Moraes e a cantarem a música O pato, a partir de uma

gravação em CD; Logo após, é sugerida a leitura silenciosa do seu texto por parte das crianças

e, em seguida, que relacionem o texto com a imagem apontando para eles.

A atividade de sistematização já se inicia com um trabalho de leitura do gênero

poema. Sua configuração possui ritmo, rimas e aliterações. Ao propor a relação entre o texto e

a ilustração que o acompanha, a atividade busca atribuir significado ao texto, que pode ser

percebido quando a autora sugere que sejam explorados os significados da palavra galo. A

diferença entre a versão de 2007 e 2010 está nas ilustrações dadas ao poema e na grafia da

frase “Olha quem vem vindo” escrita em letra script minúscula em 2007 e em script

maiúscula em 2010. Esta diferença de letra irá acompanhar todas as páginas analisadas.

A seguir, é proposta uma atividade oral Vamos conversar, na qual são feitas três

perguntas sobre o texto e uma atividade de localização de informações: De qual trecho do

poema você mais gostou? Por quê? Com a ajuda da professora, descubra o nome do autor do

poema que você leu. Você já ouviu falar desse autor? Com relação à versão de 2007 e 2010 a

única mudança está na ordem de apresentação das questões e no tipo de letra usada.

Na seção Atividades, a autora sugere atividades de sistematização do código: a

primeira trabalha com rima por meio da atividade de pintura de palavras no poema; a segunda

propõe completar frases da poesia, relacionando palavras e imagens; a terceira atividade

permite formar palavras com letras seguindo as setas; a quarta consiste numa cruzadinha; e a

quinta trata de uma atividade de leitura de palavras a partir da identificação de imagens. O que

há em comum entre essas quatro últimas atividades é a existência da letra P em uma das suas

sílabas. As formas como as crianças poderão chegar à resposta correta não são exploradas. A

versão de 2007, além das atividades já descritas traz uma atividade onde é solicitado que a

criança ilustre a parte do poema que mais gostou e outra na qual deve formar a família

silábica da letra “P”.

Na terceira seção – Produção escrita –, a atividade solicita o desenho e a escrita do

nome de um animal doméstico. Toda a vez que a proposta de produção escrita é feita ela vem

acompanhada de um ícone representado por um lápis e uma folha de caderno, buscando

facilitar a organização dos alunos quanto ao tipo de produção, uma vez que nessa faixa etária

a leitura de imagens e símbolos auxilia a compreensão da organização do material por parte

dos pequenos.

Analisando a sequência de atividades da primeira lição de ambos os livros, identifico

uma atividade que se destina propriamente à leitura – embora essa capacidade seja necessária

para a realização de todas as atividades –, uma destinada à produção textual, outra à oralidade

e o restante à apropriação do sistema de escrita alfabético.

Segundo Ferreira, Albuquerque, Cabral e Tavares (2007) uma nova tendência – de

apresentar textos longos desde as primeiras páginas dos livros didáticos de alfabetização –

tem gerado dificuldades no seu uso, segundo avaliam os professores, uma vez que, conforme

tais autoras, embora sejam textos de boa qualidade, esses são pensados para crianças já

alfabetizadas, ficando difícil para os alunos que estão no início do processo de aquisição do

sistema de escrita acompanhar a sua leitura, bem como realizar os exercícios propostos. Um

exemplo do que está sendo dito pode ser percebido na atividade elaborada na sequência da

primeira lição em que, a partir de um poema, é sugerida uma infinidade de atividades para as

quais a criança utiliza, na maioria das vezes, a estratégia de pareamento para sua realização,

havendo pouca reflexão sobre a forma como se dá o uso dessa estratégia ao longo do processo

de alfabetização.

Quanto ao ensino do sistema de escrita alfabética, constato que essa lição é

representativa de boa parte do que é proposto nos livros. Ao apresentar atividades de reflexão

sobre o processo de aquisição da escrita baseando-se na rima, embora os alunos possam ter

dificuldade de localizar no texto rimas cuja identificação seria mais fácil no âmbito da

oralidade, muitas vezes o pareamento pode ser um auxiliar na sua realização (atividade 1 e 2).

Existem atividades que não exigem uma reflexão sobre o código alfabético para sua

realização, uma vez que se restringem à cópia (atividade 3). Há também, atividades que

exigem da criança um conhecimento maior do código escrito. É o caso da atividade 4, em que

as crianças devem preencher a cruzadinha. Crianças com concepções de escrita diferentes das

que se posicionam no nível alfabético da psicogênese, ou seja, que já entendem a estrutura do

código, embora possam não possuir o domínio ortográfico da escrita, poderão ter maior

dificuldade em realizá-la. Poderiam fazê-la contando espaços e letras, mas em que isso

contribuiria para o seu processo de alfabetização? É interessante notar que em momento

algum, na versão de 2010, a autora propôs a sistematização das famílias silábicas, embora as

atividades 3 e 5 pareçam servir para essa função. Outro dado é que todas as letras do alfabeto

aparecem durante a realização das atividades, não havendo uma restrição às estudadas até o

momento.

Como é possível verificar, as atividades propostas nesses livros exigiriam do professor

um constante papel de mediação na sua realização, pois o trabalho fazendo uso de tais livros

didáticos exige de cada aluno o entendimento do que deve ser feito a cada tarefa associado

aos conhecimentos que devem ser demonstrados no início do processo de aquisição do

sistema de escrita em uma esfera formal, como a da escola.

A atividade referente à oralidade parece ter a preocupação de situar o aluno com

relação ao gênero trabalhado – mais especificamente ao autor – e avaliar sua compreensão a

respeito do que foi lido. Não há uma preocupação neste momento de explorar a sonoridade

das palavras, suas rimas e outras variáveis que envolvem a consciência fonológica.

Em relação à atividade de produção escrita, a nota ao professor diz que esse é o

momento em que o aluno irá escrever espontaneamente, podendo servir para avaliar o nível

em que os estudantes se encontram. É possível perceber aqui, a presença de vários discursos

sobre alfabetização ocupando uma mesma página: ora o sobre a consciência fonológica, com

seu trabalho com rimas, ora as concepções psicogenéticas, por meio da escrita espontânea, ora

o do letramento, com a utilização de textos do repertório popular infantil, e ora os métodos de

alfabetização, com atividades de cópia, a partir da letra em destaque na unidade e de

combinações de palavras que surgem com a união das suas sílabas.

Podemos dizer, inspiradas em Foucault (2008, p. 43), que não há como negar a

existência de uma certa unidade de discurso sobre a alfabetização nesses livros didáticos. As

regularidades apontadas são evidências de um ordenamento, de um controle, de uma seleção

prévia das possibilidades de enunciação apresentadas nas atividades propostas, e deixam

transparecer que há um campo discursivo comum, a partir do qual as propostas são

controladas. A produção e a regulação dos discursos sobre a alfabetização podem ser

entendidas a partir da operação do construtivismo pedagógico e do letramento como doutrinas

que, associadas aos discursos que ressurgem sobre consciência fonológica, ligam os

indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes inibem, consequentemente, todos os outros;

mas elas se servem, em contrapartida, de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos

entre si e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros.

Considerações finais

Conforme podemos observar são poucas as mudanças entre as versões de 2007 e 2010.

Embora a haja um vasto repertório teórico e Legal sobre a importância de um trabalho

diferenciado, onde o lúdico devesse estar presente, poucas transformações são percebidas. Ao

que parece o livro apenas subtraiu de suas páginas algumas atividades de sistematização do

sistema de escrita alfabético, atividades estas marcadas pelos antigos métodos, tentando dar

uma nova roupagem aos discursos já existentes.

Tomando como referência os artefatos acima citados e considerando-os como parte do

circuito de produção, regulação e consumo dos discursos sobre alfabetização nos livros

didáticos selecionados pelos PNLDs de 2007 e 2010, este estudo constata que – ao que parece

– as disputas entre métodos “tradicionais” e “inovadores” de alfabetização dão espaço para

uma bricolagem deles, atualizando-os por meio do discurso associado aos da psicogênese da

língua escrita e do letramento para produzir as coleções analisadas permitindo que estas

permaneçam entre as aprovadas pelo MEC, mesmo que este tenha privilegiado ora o discurso

da alfabetização e ora o do letramento. A maior visibilidade dada para este último discurso

parece ser a grande novidade se for comparado o livro produzido em 2007 e 2010. Parece

estar aí, à marca do discurso de ampliação do ensino fundamental na área da alfabetização.

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