alexandria, e. m. forster e constantino cavafis: … · não sei por quanto tempo vou ficar aqui,...

17
1 ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: HELENISMO E IDEALIZAÇÃO doi: 10.4025/XIIjeam2013.maia30 MAIA, Wendell INTRODUÇÃO Um farol era uma necessidade. A costa egípcia, em sua parte ocidental, é plana, bem como rochosa, e os navios precisavam de um marco que lhes indicasse onde ficava Alexandria, além de um guia através dos recifes que bloqueiam seus portos. Pharos era o local óbvio, pois ficava defronte a cidade; e tinha de ser no promontório oriental de Pharos, porque ele dominava o mais importante dos portos — o Real. Mas não se sabe se uma loucura divina teria atingindo também os construtores, ou se eles teriam deliberadamente unido engenharia à poesia e tentado acrescentar uma maravilha ao mundo. O fato é que foram bem sucedidos, e as artes e as ciências combinaram- se ali para celebrar esse triunfo. Pharos and Pharillon Quando o escritor inglês Edward Morgan Forster (1879-1970) escreveu essas linhas, Alexandria era um enclave administrativo e comercial em um Egito que vivia sobre intervenção britânica desde a década de 1880 — “os ingleses possuíam [e] governavam Alexandria,” como escreveu Eça de Queiroz (1845-1900), “tão naturalmente como se ela estivesse situada no condado de Yorkshire” (EÇA DE QUEIROZ, 1951, p.153). O escritor português chegou ali em 5 de novembro de 1869 junto de seu amigo Luis de Resende, que o havia instado a fazer a viagem, tendo, na sequencia, seguido para o Cairo, e se instalando no Hotel Shepheard’s. Dali, depois de uma excursão por Gizé, Sakarah e Mênfis, ele seguiu para Port Said em um dos navios do quediva para a inauguração do Canal de Suez, em 17 de novembro (MÓNICA, 2001, p. 73-81). Além dos artigos publicados em Portugal a esse respeito, logo após o seu retorno, em janeiro de 1870, ele escreveria sobre a cidade de Alexandre numa série de artigos sobre o episódio da ocupação do Canal de Suez por parte da Inglaterra, em

Upload: hoangdieu

Post on 02-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

1

ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS:

HELENISMO E IDEALIZAÇÃO doi: 10.4025/XIIjeam2013.maia30

MAIA, Wendell

INTRODUÇÃO

Um farol era uma necessidade. A costa egípcia, em sua parte ocidental, é plana, bem como rochosa, e os navios precisavam de um marco que lhes indicasse onde ficava Alexandria, além de um guia através dos recifes que bloqueiam seus portos. Pharos era o local óbvio, pois ficava defronte a cidade; e tinha de ser no promontório oriental de Pharos, porque ele dominava o mais importante dos portos — o Real. Mas não se sabe se uma loucura divina teria atingindo também os construtores, ou se eles teriam deliberadamente unido engenharia à poesia e tentado acrescentar uma maravilha ao mundo. O fato é que foram bem sucedidos, e as artes e as ciências combinaram-se ali para celebrar esse triunfo.

Pharos and Pharillon

Quando o escritor inglês Edward Morgan Forster (1879-1970) escreveu essas

linhas, Alexandria era um enclave administrativo e comercial em um Egito que vivia

sobre intervenção britânica desde a década de 1880 — “os ingleses possuíam [e]

governavam Alexandria,” como escreveu Eça de Queiroz (1845-1900), “tão

naturalmente como se ela estivesse situada no condado de Yorkshire” (EÇA DE

QUEIROZ, 1951, p.153). O escritor português chegou ali em 5 de novembro de 1869

junto de seu amigo Luis de Resende, que o havia instado a fazer a viagem, tendo, na

sequencia, seguido para o Cairo, e se instalando no Hotel Shepheard’s. Dali, depois de

uma excursão por Gizé, Sakarah e Mênfis, ele seguiu para Port Said em um dos navios

do quediva para a inauguração do Canal de Suez, em 17 de novembro (MÓNICA, 2001,

p. 73-81). Além dos artigos publicados em Portugal a esse respeito, logo após o seu

retorno, em janeiro de 1870, ele escreveria sobre a cidade de Alexandre numa série de

artigos sobre o episódio da ocupação do Canal de Suez por parte da Inglaterra, em

Page 2: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

2

setembro de 1882 — mas a cidade que ele conheceu quando fez sua viagem ao Egito

para a inauguração do Canal não seria exatamente a mesma que E.M.Forster conheceria

quase meio século depois.

Apesar de seus dois mil anos de idade, de ter sido, depois de Atenas e Roma, o maior centro de luxo, de letras e de comércio, que floresceu no Mediterrâneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possui hoje nenhum monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado dum velho cemitério muçulmano, uma coluna erigida outrora por um prefeito romano em honra a Diocleciano, conhecida pelo sobrenome peculiar de Pilar de Pompeu, e mais longe, estendido num areal, um obelisco faraónico do templo de Luxor, que gozava da grotesca alcunha de Agulha de Cleópatra. E esta mesma relíquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada numa peanha de bronze, alumiada pela luz elétrica, aturdida pelo estrondo dos comboios... Os bairros europeus de Alexandria quase recentes (há cinquenta anos, antes de Mehemet-Ali dar o impulso à sua reedificação, a grande metrópole que espantava o califa Omar, estava reduzida a uma aldeia vivendo da pesca e do comércio de esponjas), compunham-se principalmente duma vasta praça, a famosa praça dos Cônsules, orgulho de todo o Levante, e de ruas largas, com nomes franceses, estuque francês nas fachadas, tabuletas francesas nas lojas, cafés franceses, lupanares franceses — como um faubourg de Bordéus ou de Marselha transportado para o Egipto e empenachado aqui e além das palmeiras. Cidade feia à vista, desagradável ao olfacto, reles, insalubre, Alexandria visitava-se à pressa, ao trote duma tipóia, e depressa se apagava da memória, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canais, as filas de íbis brancos, os mais velhos habitantes do Egipto, outrora deuses, ainda hoje, aves sagradas. Todavia, tal que era, Alexandria, com a sua baía atulhada de paquetes, de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cais, cheios de fardos e de gritaria, os seus grandes hotéis, as suas bandeiras flutuando sobre os consulados, os seus enormes armazéns, os seus centenares de tipóias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus mil lupanares — Alexandria realizava o mais completo tipo que o mundo possuía duma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céu azul-ferrete, como a capital comercial do Egipto, e uma Liverpool do Mediterrâneo. Isso era assim, [até] há cinco ou seis semanas. Hoje à hora em que escrevo, Alexandria é apenas um imenso montão de ruínas. Do bairro europeu, da famosa praça dos Cônsules, dos hotéis, dos bancos, dos escritórios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parece enegrecida. Que se vai aluindo. Pela quarta vez na história, Alexandria deixou de existir. Tratando-se do Egipto, terra de antigas maldições, pode-se pensar, em presença de tal catástrofe, que passou por ali a cólera de Jeová — uma dessas cóleras de que ainda estremecem as páginas da Bíblia, quando o Deus único, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta do pecado, corria de entre as nuvens a cicatrizá-la pelo fogo, como uma chaga

Page 3: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

3

viva da Terra. Mas desta vez não foi Jeová. Foi simplesmente o almirante inglês Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando com vagar e método, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os seus canhões de oitenta toneladas (1951, p.107-110).

A Alexandria que E.M.Forster conheceu entre os anos de 1915-1919 foi a que se

reconstruiu depois do bombardeio de 19 de julho de 1882. Foi a Alexandria que,

durante cerca de dez horas, se viu sob a mira do fogo inglês, e que manteve a influência

francesa nos nomes de suas ruas e em suas construções. Não era a cidade que ele

imaginava — a cidade não ficou parada no tempo. Não havia mais vestígios de seu

passado, ou pelo menos não os vestígios que ele esperava encontrar. A Alexandria que

existia então era, por assim dizer, uma cidade administrativa. E sua posição estratégica

no Mar Mediterrâneo, a oeste do que depois se tornou o Canal de Suez, fazia dessa

região um território irresistível e cobiçado por potências europeias desde os tempos de

Napoleão Bonaparte. De colônia francesa ao longo do século XVIII, o Egito passou a

maior parte do século XIX governado pelos turcos, que apoiavam o quediva, e depois,

quando eles foram derrotados, por um Vice-cônsul nomeado pelos britânicos.

Refugiados de várias partes do Império Otomano, além de mercadores de vários países,

se estabeleciam e mantinham contatos ali. Em Alexandria aportavam mais expatriados

do que no Cairo, uma cidade dez vezes maior. Italianos, franceses, apátridas armênios,

judeus, malteses, comerciantes palestinos do Levante, e especialmente gregos se

amontoavam ali (MOFFAT, 2010, p. 126-127). Por volta de 1917, a cidade tinha

aproximadamente 435 mil habitantes — cifra próxima a da época de Cleópatra — sendo

que 70 mil deles eram estrangeiros, e desses, 30 mil eram gregos e 20 mil, italianos

(PINCHIN, 2004, p.53) — e é a esse fato que E.M.Forster estava se referindo quando a

chamou de “cosmopolita”.

Poucos anos antes de desembarcar no Egito, E.M.Forster havia estado na Índia.

Ele partira para o subcontinente cerca de dois anos depois da publicação e do sucesso

de Howards End e em meio ao bloqueio criativo que acabaria marcando a década que

se seguiu. No fundo, ele buscava inspiração quando resolveu aceitar o convite de um

amigo indiano e rumou para o oriente, em direção àquela que era a colônia mais

lucrativa do Império Britânico. Havia algum tempo ele cogitava em escrever um

romance cujo tema fosse a Índia e a experiência não só lhe serviu para compor aquele

que viria a se tornar o seu romance mais famoso, A Passage to India (1924), mas

Page 4: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

4

também para mostrar como ele poderia suplantar barreiras e travar vínculos. Seu

comportamento causava perplexidade entre os indianos, que não estavam

acostumados a ver um inglês que estivesse ali para conhecê-los (FURBANK, 2010,

p.222-223). Não sabemos ao certo se foi o lugar, ou o fato de estar longe do controle

materno, mas o fato é que, na Índia ele se sentiu inteiramente à vontade, enquanto no

Egito, ao menos em seus primeiros meses, ele sentiu um profundo desconforto,

demonstrando dificuldades para se adaptar. E esse estranhamento inicial aparece

nessa, que deve ter sido uma das primeiras cartas que ele escreveu a seu amigo

indiano, Sayed Ross Masood (1889-1937), datada de 29 de dezembro de 1915, em que

ele descreve sua rotina pouco mais de um mês depois de sua chegada:

(...) Sou o que se pode chamar de “Pesquisador da Cruz Vermelha” — isso quer dizer que eu vou até o Hospital e faço perguntas aos soldados pedindo notícias de seus camaradas desaparecidos. De uma certa maneira essa é [uma tarefa] um tanto deprimente porque se alguém quer notícias a respeito de um desparecido, no geral se pode esperar por más notícias. (...). Vivo em um hotel confortável aqui, saio por volta das 10 horas e retorno para o almoço e termino lá pelas 7 horas. À noite escrevo meus relatórios que vão — nos últimos tempos — para os parentes [das vítimas] na Inglaterra e para o Departamento da Guerra [War Office]. A Cruz Vermelha é uma organização semi-militar, e assim sendo, é tecnicamente civil, e eu uso um uniforme, e tenho vários privilégios e comodidades, dentre elas, [pagar] meia tarifa [nas viagens] de trem (...). Tenho um e outro amigo aqui, e o trabalho regular (...) tem conseguido fazer com que eu pare de pensar na guerra, o que é uma benção, porque [enquanto estava] na Inglaterra estive perto da loucura. (...). Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever, como espero que você chegue a fazer. Não gosto muito do Egito (...). Tudo o que eu tenho visto [aqui] parece infinitamente inferior ao que eu vi na Índia, de onde sempre sentirei saudades de um modo persistente, e onde eu espero morrer (...). Instintivamente não me sinto em casa estando entre eles como me sinto entre os indianos (...). Bem, como eu disse antes, o endereço está ali em cima, e se você se sentir inclinado, escreva (...). Se eu nunca voltar à Inglaterra, farei com que você saiba disso, mas é inútil fazer planos quando não se tem o controle da situação ou [quando você pode] ser recrutado. Você tem sorte por estar relativamente fora de alcance, tendo também a chance de manter sua carreira. Tudo com o que eu me importo na civilização se foi para sempre, e eu estou tentando viver sem novas esperanças ou medos — não é algo fácil, mas alguém tem de fazê-lo e de alguma forma (FORSTER, 1983, p.232-233).

Page 5: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

5

Existem algumas coisas que podemos pensar a partir desta carta: em primeiro

lugar, ela sugere que em seus primeiros meses em Alexandria ele acabou desenvolvendo

uma aversão com relação ao Egito, um sentimento quase inapropriado para alguém que

escreveria sobre esse país e sobre a cultura helenística que irradiou dali e que tanto

admirava. Ele compara sua relação com a Índia com a que estava travando com o Egito.

Se num primeiro momento ele esteve mais inclinado para a Índia, como no momento

em que escreveu esta carta — “instintivamente não me sinto em casa estando entre eles

[os egípcios] como me sinto entre os indianos” —, posteriormente, essa relação iria se

modificar. Ou se inverter. Se quando concebeu A Passage to India ele pretendia criar

“uma ponte simbólica entre o Ocidente e o Oriente”, (FORSTER apud FURBANK,

2010, p.106), anos depois ele acabaria por confessar sua completa decepção com os

indianos — “Acho que muitos indianos, assim como muitos ingleses, são desprezíveis”

(FORSTER apud FURBANK, 2010, p.106) — e a declarar sua afeição pela cidade: “A

Alexandria que conheci e amei pertence aos anos de guerra. Fui muito feliz ali nos

intervalos do meu trabalho, e aos poucos fui me apaixonando por seus habitantes e por

seu passado” (FORSTER, 2004, 347).

Em segundo lugar, e perto do final, ele escreveu: “Se eu nunca voltar.” É

estranho, e provavelmente ele estava se referindo à guerra e suas consequências, pois a

essa altura, o Oriente Médio e a África já haviam sido atingidos pelo conflito, o que

talvez pudesse significar que o Egito poderia acabar se envolvendo — aliás, a estratégia

alemã versava sobre isso, desviar a atenção inglesa e fazê-los deslocar tropas para

outros lugares que não o front ocidental e assim poder derrotar a França com mais

facilidade. Sendo assim, existiam duas possibilidades a que ele poderia estar se

referindo quando escreveu isso: um ataque à Alexandria e uma ocupação da cidade,

como ele mesmo relembrou na introdução da edição de 1961 de Alexandria: a history

and a guide, “o texto da primeira edição foi escrito durante a Primeira Guerra Mundial

enquanto eu estava estacionado em Alexandria como voluntário da Cruz Vermelha. (...)

A invasão turca era iminente e, embora fosse um civil, eu poderia me ver na frente da

linha de batalha” (2004, p.5); ou o recrutamento, ainda que fosse difícil de ele ingressar

nas fileiras do exército britânico. Dificilmente ele estava se referindo a uma

possibilidade de se estabelecer ali como talvez pudesse pensar se tivesse ido para a

Itália, como ele pretendia.

Page 6: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

6

Por fim, ele também faz uma referência a uma completa desilusão que estava

mesclada ao seu horror pela guerra — “Tudo com o que eu me importo na civilização se

foi para sempre.” O interessante é que ele não especifica aquilo que tinha desaparecido

ou sido varrido com o conflito — um conflito que estava ainda em sua fase inicial e que

enterraria os vestígios do Antigo Regime que ainda existiam na Europa (MAYER,

1987). No entanto, nesse momento, quando ainda parecia não haver um vencedor, ou

antes mesmo dos bolcheviques tomarem o poder na Rússia, ele tendia a acreditar que as

mudanças eram, ou viriam a ser bruscas, definitivas, inescapáveis. Havia uma sensação

de ruptura irreversível. O próprio Hobsbawm o admite: “Para os que cresceram antes de

1914, o contraste foi tão impressionante que muitos — inclusive a geração dos pais

deste historiador, ou pelo menos de seus membros centro-europeus — se recusavam a

ver qualquer continuidade com o passado. ‘Paz’ significava ‘antes de 1914’; depois

disso veio algo que não merecia esse nome,” (HOBSBAWM, 2011, p.30).

As coisas estariam bem diferentes quando, em janeiro de 1919, ele abandonaria

o Egito. E essa ruptura a que ele se refere não se operou apenas no plano político, ou

social, mas também no íntimo. Enquanto esteve ali cercado pela Alexandria que

conhecia, e pela que criava, ele não sentiu os efeitos das mudanças que estavam em

curso e que afetariam sua vida e sua carreira como escritor profissional. No entanto a

Alexandria dos anos da Primeira Guerra Mundial, a Alexandria de Cavafis acabou

fazendo do autor Howards End um outro homem.

A ALEXANDRIA DE E. M. FORSTER E CAVAFIS: HELENISMO E

IDEALIZAÇÃO

Assim como a cidade já não era mais a mesma em seu aspecto físico, a

Alexandria descrita e narrada por E. M. Forster e por Constantino Cavafis não são nem

parecidas e nem a mesma — existe uma diferença entre a cidade que existiu e a que

acabou emergindo em seus trabalhos. Cada um idealizou um aspecto e com um intuito:

Cavafis estava intimamente ligado a ela por sangue e tradição, o que parece ter

suscitado nele a ânsia por narrar e descrever em sua poesia histórica um sentimento que

parecia patente: o declínio cultural e político de Alexandria1. E. M. Forster a conheceu

1 Não trataremos neste artigo da poesia erótica de Cavafis.

Page 7: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

7

através das leituras e de seus estudos de História e Letras Clássicas na Universidade de

Cambridge, portanto, distante do sentimento patriótico ao qual Cavafis mostrava-se

sensível, o que o levou a se interessar por ela como centro irradiador de ideias e de uma

nova cultura: a helenística. Ele não tem um passado em comum com ela para narrar ou

lamentar como Cavafis. Em 1918, em carta a Siegfried Sassoon, ele revela como estava

sendo a experiência de ter um contato mais profundo com o período privilegiado por

Cavafis: “Ando muito feliz, e por bons motivos. A Antiga Alexandria — para

mencionar um deles — me tem sido uma ótima companhia,”, escreveu ele. “Venho

construindo, por meios arqueológicos e outras leituras, uma imensa cidade fantasma.

Como nela podem caber um Euclides, um Plotino e um Timóteo, o Gato, eu não sei,

mas todos eles estão ali, embora não ao mesmo tempo” (1985, p.293).

“Uma imensa cidade-fantasma.” Ou seja, ele não estava falando da Alexandria

que existiu, mas da que ele estava criando, ou dos acontecimentos e personagens ligados

a ela que lhe interessam. Suas narrativas versam sobre detalhes de sua história, desde a

sua fundação até as vidas de alguns de seus personagens mais ilustres, como o próprio

Alexandre Magno, Cleópatra, Clemente de Alexandria, Santo Atanásio. Assim, para

Pinchin, a Alexandria de Forster esta intimamente ligada a três elementos distintos: “o

amor; a pergunta teológica de como o homem e Deus estão unidos e a realidade física

— e mística — que converte a cidade em uma passagem para a Índia” (PINCHIN, 2004,

p.179). Para ela, todos esses elementos estão umbilicalmente ligados. E como estão

unidos, não podem se sobrepor uns aos outros. Mas na verdade, todos esses elementos

são facetas de uma mesma experiência. São resultado dessa experiência! Alexandria se

converteu em um eixo sobre o qual gravitaram reflexões que resultaram em decisões, e

em atitudes, que modificaram toda sua vida.

Pode parecer estranho imaginar que o homem que havia abandonado a religião

no começo da vida adulta — sua família pertencia à Igreja da Inglaterra — pudesse se

interessar ou que se sentisse atraído pelo estudo e as vidas de teólogos que surgiram na

cidade de Alexandre nos primeiros séculos da Cristandade. E mais: que se dispusesse a

escrever sobre eles. No entanto, no período em que esteve ali, ele deu sinais de que

poderia continuar refletindo sobre o assunto, sem que, por isso, tivesse que abrir mão de

suas convicções, há muito enraizadas. Talvez por isso ele tenha dito que The City

Spiritual [A cidade Espiritual], a terceira seção de Alexandria: A History and Guide, “é

Page 8: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

8

a parte mais séria e ambiciosa do livro” (2004, p.359). Contudo, tudo isso deixa de

parecer estranho quando deixamos de olhar para o conteúdo e olhamos para os

interesses. Em muitos desses artigos e ensaios, E. M. Forster se aproxima do estilo de

Constantino Cavafis porque o que interessa não é a mera descrição da vida desses

personagens, mas sua humanidade (2004, p.172). E é isso o que o faz com que ele

escreva sobre homens que levaram vidas tão díspares como Alexandre Magno e Santo

Atanásio utilizando o mesmo tom — “Em seus escritos”, escreveu ele sobre Clemente

de Alexandria (150-215), “a benevolência grega não era incompatível com a Graça de

Deus (...). E apenas em Alexandria poderia ter surgido um teólogo assim” (2004, p.65).

Sua amizade com Cavafis suscitou uma mudança de atitude com relação a sua

sexualidade, e seu estímulo propiciou o desenvolvimento de um estilo mais refinado em

sua prosa, potencializando um tipo de abordagem que ele vinha experimentando antes

mesmo de iniciar sua carreira como escritor profissional, em 1905. Como frisou Peter

Jeffreys na introdução do volume de cartas trocadas entre eles, “essas cartas são

testemunhas de uma relação assimétrica caracterizada tanto pela cordialidade como pelo

distanciamento. (...) O tom entusiasta das animadas cartas de Forster se contrasta com o

tom reservado e lacônico das de Cavafis” (2009, p.1). Eles foram apresentados por um

amigo em comum, Pericles Anastassiades (1870-1950), que como Cavafis, provinha de

uma família que havia feito fortuna com o algodão, num jantar no Mohammed Ali Club,

em meados de março de 1916.

Como frisou Wendy Moffat, “parte da atração exercida por Cavafis sobre

Morgan [Forster] era a sua tendência a uma completa divisão entre sua vida pública e a

privada (...). Isto é, a separação entre dia e noite”. Durante o dia, ele trabalhava no

Departamento de Irrigação, e à noite, em seu pequeno apartamento no bairro grego, na

Rue Lapsius, conhecida como “Rue Clapsius”, dada à quantidade de bordéis que havia

nas redondezas, ele recebia rapazes. Cavafis acreditava que o mundo homoerótico era

superior ao mundo heterossexual. Era apologético, sem timidez ou culpa. Cavafis

acreditava na normalidade, e até mesmo na superioridade, do amor homossexual. E,

para E. M. Forster, que crescera em uma Inglaterra onde até mesmo ser visto olhando

colocaria um homossexual em perigo, isso foi determinante. Em Cavafis, Forster

encontrou o impulso de que precisava — ele lhe ajudou a abrir sua mente e a liberar e

Page 9: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

9

modificar suas atitudes com relação a sua sexualidade. Foi Cavafis quem lhe mostrou

que ele podia tomar um caminho diferente (MOFFAT, 2010, p.141-146).

Como escreveu Pinchin, “a cidade moderna criou um de seus personagens mais

singulares: Constantino Cavafis, o poeta grego que a converteu em um lugar místico,

vinculando sua condição de enclave relevante para a cultura contemporânea europeia

com seu passado helenístico” (2004, p.27). Cavafis, último filho de Petros e Jariclia

Cavafis, nasceu em 1863. Sua família era de Constantinopla, e seu pai e seu tio dirigiam

uma empresa exportadora que enviava algodão egípcio para a Inglaterra, tendo filiais

em Liverpool, Manchester, Londres, Constantinopla e no Cairo. Sua família chegou a

ser uma das mais famílias gregas mais prósperas de Alexandria, e também uma das

primeiras a se estabelecer na cidade. No entanto, quando da morte de seu pai, em 1870,

tendo a situação financeira da família se alterado, e com sete filhos para criar, sua mãe

partiu e se estabeleceu na Inglaterra, onde Cavafis passaria sete anos. Como frisou

Pinchin, “este poeta alexandrino — que ao que parece falava grego com um ligeiro

acento inglês, que havia tido uma babá inglesa no Egito e que frequentemente

conversava em inglês com seus irmãos, e que tinha escrito seus primeiros poemas nessa

língua — teria sua vida marcada pelos anos que passados em Londres e Liverpool”

(2004, p.62).

Cavafis estava ligado a Constantinopla por sangue, o que explica a sua profunda

frustração com relação à capitulação da cidade em 1453 ― “Nunca se esqueça dos

gregos, que nós fomos à barrocada,” disse ele, “essa é a diferença entre nós e os antigos

gregos e, meu querido Forster, entre nós e vocês [ingleses]. Rezo para que vocês (...)

não percam sua capital, ou do contrário, vocês vão se parecer conosco, inquietos,

pérfidos, mentirosos” (LAGO; FURBANK, 1985, p.118) ― e a Alexandria por

nascimento. Nesse sentido, essa questão da decadência e da nostalgia com relação ao

passado dessas duas cidades está profundamente arraigada em sua poesia histórica. Não

é à toa que, como frisou Pinchin, tanto a energia como a curiosidade de Cavafis se

moveram mais para o período posterior ao século III a.C. do que para o período anterior,

o de expansão e do domínio de Alexandria como centro intelectual do Mediterrâneo sob

os governantes ptolomaicos. “O momento real do sentimento de decadência, tanto

pessoal como politica, se converteu em eixo central das criações imaginárias de

Cavafis”. Ele não desejava descrever os séculos I e II a.C., o período das revoltas e

Page 10: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

10

guerras em que macedônicos, lágidas e selêucidas se enfrentaram até Alexandria

capitular ante os romanos (2004, p.73). De todo, Cavafis não chega a ignorar esses

conflitos, mas também não demonstra grande interesse por eles. O que acontece é que

ele os encarava como sendo a causa da destruição dos reinos helênicos, e os utiliza

como metáfora de sua derrota pessoal (2004, p.186).

É o que se percebe em A Batalha de Magnésia, em que Felipe V da Macedônia,

que lutara contra os romanos para evitar que eles obtivessem a hegemonia sobre a

Grécia e o Mediterrâneo, os vê marchar contra Antioco III, do Império Selêucida, em

190 a.C., com ceticismo:

Nada restou do velho arroubo e valentia De corpo adoecido e frágil carecia de cuidar. Passará o fim da vida em paz. Pelo menos nenhuma outra meta Filipe traz à mente. Joga dados na penumbra, quer divertir-se. A rosa sobre a mesa o alumbra, não basta uma! Pouco importa se em Magnésia aniquilam Antioco. (...) Filipe não cogita de adiar a festa Sua vida se esgotou, mas ela ainda presta para algo, pois não foi tolhido da memória. Relembra triste a situação da Síria, inglória, sua mãe na lama, a Macedônia, e aquela malta... À festa, fâmulos! Trazei-me luz e flautas! (KAVÁFIS, 2007, p.73).

Ou em O deus abandona Antônio, um poema que tocou E.M.Forster a fundo e

que divide as duas partes de Pharos. Nele, as consequências da batalha de Accio — em

que Marco Antônio e Cleópatra foram derrotados por Octavio, fazendo com que o Egito

se tornasse província romana —, e que fascinava Cavafis, são sentidas por um Marco

Antonio disposto a aceitar a derrota:

Quando, pela meia noite, de improviso ouvires passar, invisível, um tíasos com música soberba e cânticos, a sorte que afinal abandona, tuas obras falidas, teus planos de vida — tudo ilusório — com nênias vãs não lastimes. Como um bravo que, há muito, já se preparava, saúda essa Alexandria que esta fugindo. Não, não te deixes burlar, dizendo: “foi sonho,” ou: “meus ouvidos me enganaram”; desdenha essa esperança vã.

Page 11: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

11

Como um bravo que, há muito, já se preparava, como convém a quem é digno dessa pólis, aproxima-te — não hesites — da janela e escuta comovido, porém sem pranto ou prece pusilânime, como quem frui de um último prazer, os sons, os soberbos acordes do místico tíasos: e saúda Alexandria, enquanto a estás perdendo. (KÁVAFIS, 2012, p.27).

O dramático e lento declínio do mundo helênico é narrado a partir da perspectiva

de personagens variados, notórios ou não, mas sempre sob esse estigma. O que interessa

é a humanidade de seus personagens e não os acontecimentos políticos em que estão

envolvidos. Jane Lagoudis Pinchin insiste que essa abordagem de Cavafis acabou

influenciando o estilo e a prosa de E. M. Forster a partir de então, ou seja, a partir do

momento em que ele se conheceram (2004, p.146 e 161). Não foi bem assim. No

máximo o vínculo com Cavafis despertou uma potencialidade adormecida, mas que já

havia se manifestado anteriormente — se não fosse assim, E. M. Forster não teria se

identificado tanto com Cavafis, como acabou acontecendo. Existem trabalhos

anteriores, escritos poucos anos antes com um tom muito parecido. É o caso de Cardan

[Cardano] (1501-1576), de 1904, em que ele descreve a trajetória tribulada de Girolamo

Cardano, filósofo, matemático e médico que, como frisou o próprio Forster, acreditava

que “as grandes coisas da vida eram o trabalho, o autoexame e a crença na

imortalidade” (FORSTER, 1946, p.190). “O valor de Cardano esta na sua falta de

sentimentalismo (...). De uma maneira geral, não há nada de muito interessante a seu

respeito; certamente não há nada de poético [em seus trabalhos].” No entanto, “sua

habilidade, tanto quanto sua vontade de ser sincero faz com que seus trabalhos nos

afetem com o mesmo poder da palavra falada, fazendo com que coremos por ele e,

muitas vezes, por nós mesmos.” Ele costumava dizer que

sinceridade era uma de suas virtudes, e é por isso que seus biógrafos o acusam de ser desonesto. (...) E essa é uma questão complicada; no entanto, é sempre bom lembrar que essas evidências contra a honestidade de Cardano são escassas e duvidosas. “Nunca me foi um habito,” disse ele, “contar mentiras.” [Nesse sentido], sua autobiografia parece ser um livro tão confiável quanto interessante; e é nisso que se baseia esse relato (1946, p.188).

Page 12: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

12

Ou Gemistus Pletho [Gemisto Pletão] (1905), em que ele narra a trajetória de

Georgius Gemistus (1355-1452), filósofo nascido em Constantinopla, que, junto do

imperador João VIII, paleólogo, de Bizâncio, partiu para a Itália para participar do

Concílio de Ferrara, quando se discutiu a possibilidade de unificar as duas Igrejas, e um

dos intelectuais que impulsionaram a criação da Academia Neoplatónica de Florença,

fundada por Cosme de Médici, em 1459.

O tipo de abordagem, assim como o estilo, são muito parecidos com o que foi

publicado a partir de 1917-1919. Assim sendo, não faz sentido estabelecer uma ruptura,

afinal, a distância de tempo entre esses primeiros escritos e os que vieram depois é

curta. O estímulo de Cavafis, em conjunto seu envolvimento com o lugar em que estava

certamente influíram quando ele começava a seguir outro caminho, abandonando de vez

a carreira como escritor profissional. Cavafis pode ter dado o estímulo, e é quase

impossível imaginar que ele não o tenha influenciado em algum nível, no entanto, é

provável que tanto a cidade como o ambiente, as amizades, as leituras, ou seja, o mundo

a seu redor, tenham tido um peso maior nisso. Como um buraco negro que não deixa

escapar nem a luz, ele foi tragado pela Alexandria e pela vida que pôde sustentar ali —

que era muito diferente da que ele sempre levou na Inglaterra, onde era submisso à mãe

e vivia limitado pelas convenções sociais.

De qualquer maneira, ele não se restringiu a esse período ou a essa abordagem,

ou seja, Alexandria. Como Cavafis, que se focou no período posterior ao século III,

praticamente ignorando o que viera antes disso, mas que também chegou a abordar

temas e acontecimentos que marcaram os dois mil anos de história de Alexandria como

um todo, E. M. Forster faria algo parecido. Ele buscaria outros temas, em outras épocas

e nas vidas de outros personagens com quem se identificava e por quem nutria profunda

afeição. Tanto em Voltaire and Frederick the Great [Voltaire e Frederico, o Grande], de

1941, como em Snow under Ferney [Nevoeiro sobre Ferney], de 1958, ele retoma esse

tipo de abordagem histórica fazendo uso de seu gosto pelo anedótico e com um tom de

humor muito característico, para fazer algum tipo de reflexão sobre a situação política e

social da Europa no momento em que ele esta escrevendo.

Em Nevoeiro sobre Ferney, ele começa narrando a morte de Voltaire antes de

ressuscitá-lo e trazê-lo para o ano de 1958, quando ele tem a chance de analisar o

mundo que o próprio Forster vivia: “Seus últimos momentos são notórios: um clérigo

Page 13: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

13

havia lhe perguntado se reconhecia a divindade de Jesus Cristo, ao que ele replicou:

‘Pelo amor de Deus, não me fale mais desse homem.’ ‘Como se pode ver, ele não está

de todo mal,’ observou habilmente o clérigo a um colega” (FORSTER, 1999, p.170).

Além disso, ele nunca escreveu sobre um personagem por quem ele não sentisse

certa atração — “ele foi um grande homem de seu tempo; realmente ele foi um dos

grandes homens que a civilização europeia produziu. Se existem duas pessoas com que

escolheria para conversar antes do Juízo Final, seriam Voltaire e Shakespeare.” E

acrescenta: “Shakespeare por seu gênio criativo, Voltaire por seu gênio crítico e por seu

humanismo” (FORSTER, 1951, p.167), como escreveu ele em Voltaire e Frederico, o

Grande.

Como ele mesmo escreveu em carta a seu amigo, Siegfried Sassoon (1886-

1967): “Venho construindo por meios arqueológicos e outras leituras uma imensa

cidade-fantasma. Como nela podem caber um Euclides, um Plotino e um Timóteo, o

Gato, eu não sei, mas todos eles estão ali, embora não ao mesmo tempo” (1985, p.293).

Isso é típico dessa fase. Ele vivia distante do mundo real porque ainda não havia, como

veio a acontecer na década que se seguiu, uma realidade dura que lhe causasse

inquietação. Ele não vivia em um mundo paralelo, o que acontecia é que ele

simplesmente não se interessava, e muitas vezes, depreciava o que via ao seu redor.

Nesse sentido, a literatura era seu refugio. No entanto, em Alexandria isso começou a

mudar. Na verdade, a mudança se operou quando de seu retorno. Poucos meses depois

de sua chegada, em 30 de maio de 1919, ele escreveu uma carta ao Daily Herald, um

jornal com tendência socialista, cujo editor, George Lansbury (1859-1940), chegou a ser

líder do Partido Trabalhista entre 1931-1935, que no fim foi publicada em sua íntegra,

cujo conteúdo nos dá uma noção das dificuldades e dos problemas que estavam postos à

época, e com os quais ele se preocupava:

A Europa está esfomeada. No Egito a população nativa está sendo presa indiscriminadamente. A mesma coisa na Índia. Na Rússia, nossas tropas estão sendo empregadas em uma aventura incerta. Em casa os preços sobrem, a agitação é crescente, nossas casas estão cheias de entulhos depois de quatro anos de guerra. Estamos desanimados? Não. Nós clamamos por mudança, para que se acabe a censura, para a revogação da DORA [sigla de Defence of Real Act, o ato aprovado pelo Parlamento logo após o estouro do conflito, em 1914, que limitou as liberdades civis e deu plenos poderes ao Estado]? Não, mil vezes não (FORSTER apud FURBANK, 2010, p.59).

Page 14: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

14

Se com o término da guerra, a Europa viveu sob o êxtase de alguma esperança,

ela logo se dissipou, dando lugar à desilusão e ao pessimismo. Na verdade, todos

sabiam que haveria uma quantidade imensa de problemas a serem resolvidos com o

término do conflito, como frisou Taylor. Dizia-se que as pessoas não teriam as mesmas

condições de vida de antes. Se supunha que o bolchevismo cairia sob a Europa. Que a

desmobilização dos homens provocaria perturbações violentas (TAYLOR, 1989,

p.137). Ou seja, a situação era complexa e incerta.

Nesse sentido, sua estadia em Alexandria, e o contato não só com a poesia de

Cavafis, mas com a sua visão a respeito da vida e da sexualidade, em conjunto com a

situação socioeconômica e política que se apresentou no pós-guerra fizeram dele um

outro homem. Foi nesse momento que ele se reinventou — Forster despertou como

crítico na década de 1920. Virginia Woolf, em seu diário em 6 de novembro de 1919,

escreve: “O Morgan tem um espírito de artista; diz coisas simples que as pessoas

espertas não dizem; é por isso que eu acho que ele é o melhor crítico que há”. Diante do

cenário que se desenhou ao fim da guerra de 1918, somadas as experiências que tivera,

ele passou a deixar de lado a ficção. A essa altura, ele já não conseguia trabalhar com a

mesma facilidade de dez anos antes. Prova disso é a dificuldade de concluir A Passage

to India — iniciado em 1913. Virginia Woolf, escrevendo em seu diário nesse mesmo

dia comenta essa dificuldade: ele “toca nas teclas mas por enquanto só produz

dissonâncias” (WOOLF, 1985, p.182).

Claro, ele já escrevia e contribuía em jornais e revistas antes disso. Contudo, é

depois da publicação de A Passage to India, em 1924, que ele passa a se dedicar com

mais afinco às suas atividades na imprensa e a defesa de causas sociais. Talvez porque

começasse ter uma noção das dificuldades que iriam se entrepor no âmbito político,

social e econômico em seu país. Talvez porque sua personalidade, então transmutada,

tivesse a força que ele não tinha à época da eclosão do conflito para se juntar a seus

amigos pacifistas do Bloomsbury, para fazer alguma coisa. O fato é que ele mudou.

Page 15: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

15

DE ALEXANDRIA PARA WEYBRIDGE: O NOVO HOMEM, O VELHO

POETA

Apesar dos interesses mútuos, e do estímulo recebido, a Alexandria de E. M.

Forster não é a mesma da de Cavafis. E nenhuma delas é a Alexandria que existiu. A

verdadeira Alexandria não foi apenas um polo irradiador de ideias, mas um centro

econômico e político — o que Forster parece ter esquecido de mencionar. O Farol

construído ali, tido como a Sétima Maravilha do Mundo Antigo, não foi obra do acaso.

Alexandria era a capital marítima do Egito ptolomaico, o que nos dá uma ideia do quão

movimentado podia ser o Porto Real, e sua estrutura, uma dimensão da riqueza da

cidade e de seus governantes. “Muito mais do que um farol (...), era uma das proezas

mais espetaculares de engenharia e arquitetura jamais empreendidas” (2010, p.80),

como frisou Flower.

E o período de decadência do mundo helênico, a partir do século III a.C., não foi

dominado apenas por guerras intestinas, ou por disputas de acerca de conceitos e

crenças religiosas no começo da Era Cristã — o Cavafis acabou ignorando. Embora

muitos intelectuais gregos desaprovassem, ou se sentissem inseguros ante a situação

política instaurada e as constantes crises que se sucederam, e das perseguições que

tiveram início por volta dessa época, tendo muitos deles chegado a abandonar a cidade

por conta disso, o que fez com que a fama de pertencer ao mais importante centro de

erudição se desgastasse e o patrocínio real deixasse de existir e se tornasse fonte de

perigo, Alexandria continuou exercendo sua influência através de meia dúzia de

homens, tendo, somente no ano de 642 d.C., ano em que o general árabe Amr Ibn Al As

conquistou o Egito em nome do Califa Omar, conhecido o fim de sua soberania greco-

romana (FLOWER, 210, p.89).

A única Alexandria que eles realmente compartilharam foi a da época da

Primeira Guerra Mundial. E aqui as opiniões não se dividiam: era um lugar decadente.

“A cidade moderna não pede qualquer comentário entusiasta,” como escreveu E. M.

Forster (2004, p.250).

O velho poeta permaneceu e morreu de câncer na garganta em 1933, ao passo

que o homem que deixou Alexandria em janeiro de 1919, completamente transformado,

viveria até 1970, tendo, assim, a chance de ver o mundo passar por muitas mudanças.

Page 16: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

16

Mas talvez a mais densa e a mais profunda tenha sido a que ele viu naqueles anos em

que esteve estacionado ali na cidade de Alexandre, onde ele viveu a sua revolução. O

poeta despertou no homem, que até então vivia ignorando a própria sexualidade, a

necessidade de vivê-la. E foi isso que desencadeou a transformação que o levou, não só

a modificar suas concepções, mas a seguir uma outra carreira que não a de escritor

profissional a partir da década que se seguiu ao seu retorno à Weybridge, o vilarejo em

que ele vivia com sua mãe desde 1904. Como já era outro e estava livre dos fantasmas

que o atormentavam, ele não poderia mais escrever da mesma maneira. Daí a mudança

que Cavafis ajudou a materializar, e que se manifestou a partir de Pharos e Pharillon.

REFERÊNCIAS:

BEUAMAN, Nicola. Morgan: A biography of E.M.Forster. London: Hodder & Stoughton, 1993.

EÇA DE QUEIROZ, José Maria. Cartas de Inglaterra. Porto: Lello & Irmão, 1951.

FORSTER, Edward Morgan. Alexandria – A History and Guide & Pharos and Pharillon. London: Andre Deutsch, 2004.

FORSTER, Edward Morgan. Abinger Harvest. London: Edward Arnold, 1946.

FORSTER, Edward Morgan. Two Cheers for Democracy. New York: A Harvest Book & Harcourt Brace & Company, 1951.

FORSTER, Edward Morgan. El libro del Príncipe. FURBANK, P.N. (ed.) Barcelona: Seix Barral, 1999.

FORSTER, Edward Morgan. GARDNER, Philip (org.) The Journals and Diaries of E.M.Forster. New York: Ashgate USA, 2011.

FORSTER, E.M. GARDNER, Philip (org.) Commonplace Book. Wildwood House, 1988.

FURBANK, P.N. E.M.Forster: a life. New York: A Harvest Book & Harcourt Brace & Company, 2010.

FURBANK, P.N.; LAGO, Mary. (ed.) Selected Letters of E.M.Forster: 1879-1920. Cambridge: Belknap Press and Harvard University, 1983.

FURBANK, P.N.; LAGO, Mary. (ed.). Selected Letters of E.M.Forster: 1921-1970. Cambridge: Belknap Press and Harvard University, 1985.

Page 17: ALEXANDRIA, E. M. FORSTER E CONSTANTINO CAVAFIS: … · Não sei por quanto tempo vou ficar aqui, mas no momento o endereço é este que está ali em cima, caso você queira escrever,

17

FLOWER, Dereck Adie. Biblioteca de Alexandria. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

JEFFREYS, Peter. The Forster-Cavafy Letters: Friends at Slight Angle. Cairo: The American University in Cairo Press, 2009.

KAVÁFIS, Konstantinos. 60 poemas. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.

KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de Konstantinos Kavafis. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

MOFFAT, Wendy. E.M.Forster – A New Life. London: Bloomsbury, 2010.

MONICA, Maria Filomena. Eça: Vida e Obra de José Maria Eça de Queiroz. São Paulo: Record, 2001.

PINCHIN, Jane Lagoudis. Alejandría: Cavafis, Forster y Durrell. Granada: Al-Andaluz y el Mediterraneo, 2004.

PUGH, Martin. State and Society. London: Bloomsbury, 2012.

TAYLOR, A.J.P. Historia de Inglaterra: 1914-1945. Ciudad do Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1989.

WOOLF, Virginia. Diários: Primeiro volume: 1915-1926. Lisboa: Bertrand, 1985.