alexandre salim marcelo andré de azevedo

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2021 10 ª Edição revista atualizada ampliada DIREITO PENAL PARTE ESPECIAL - DOS CRIMES CONTRA A PESSOA AOS CRIMES CONTRA A FAMÍLIA Alexandre Salim Marcelo André de Azevedo 2

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2021

10ªEdição

revista atualizada ampliada

DIREITO PENALPARTE ESPECIAL - DOS CRIMES CONTRA

A PESSOA AOS CRIMES CONTRA A FAMÍLIA

Alexandre Salim Marcelo André de Azevedo

2

C a p í t u l o

I

Crimes contra a pessoa

1. CRIMES CONTRA A VIDA1.1. HOMICÍDIO

Homicídio

Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Forma privilegiada

§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Norma interpretativa

§ 2° Se o homicídio é cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por ou-tro motivo torpe; II – por motivo fútil; III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimu-lação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V - para as-segurar a execução, a ocultação, a impunida-de ou vantagem de outro crime; VI - contra a mulher por razões da condição de sexo femi-nino; VII - contra autoridade ou agente descri-to nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguí-neo até terceiro grau, em razão dessa con-dição: Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Forma qualificada

28 Direito Penal – Parte Especial – Vol. 2 • Marcelo André de Azevedo e Alexandre Salim

§ 4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo do-loso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.

Forma majorada

§ 5º Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

Perdão judicial

Homicídio

§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: I - du-rante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acar-retem condição limitante ou de vulnerabilidade fí-sica ou mental; III - na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV - em descumprimento das medidas protetivas de urgên-cia previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.

Forma majorada

§ 6º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.

Forma majorada

§ 3º Se o homicídio é culposo: Pena – detenção, de um a três anos.

Forma culposa

1. BEM JURÍDICO

O tipo penal visa a proteger a vida humana.

2. SUJEITOS

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum). Entretanto, na hipó-tese de omissão relevante (art. 13, § 2º, do CP), será sujeito ativo a pessoa que podia e devia agir para evitar o resultado (homicídio por omissão, hipótese em que será crime próprio).

Como esse assunto foi cobrado em concurso? (NC-UFPR – 2019 – TJ-PR – Titular de Serviços de Notas e de Registros) Uma mulher que, em razão de acordo verbal com os pais, cuida de uma criança percebe que esta caiu

29Cap. I • Crimes contra a pessoa

por caso fortuito num poço profundo e, embora esteja viva, precisa ser retirada por adultos. Voluntariamente, a mulher omite dos grupos de busca que tem conhecimento de onde se encontra a criança, que é considerada desaparecida. Passadas algumas horas, a criança morre por falta de alimentação. Assinale a alternativa que identifica o crime praticado pela mulher:

a) Homicídio doloso por comissão (tipo comissivo).

b) Homicídio doloso por omissão (tipo omissivo impróprio).

c) Homicídio doloso por omissão (tipo omissivo próprio).

d) Maus-tratos com resultado morte (tipo comissivo ou omissivo preterdoloso).

e) Abandono de incapaz com resultado morte (tipo omissivo próprio preterdoloso).

Gabarito B.

Apesar da ausência de relevância prática, cita-se a situação do homicídio praticado por gêmeos xifópagos (gêmeos que estão ligados por uma parte do corpo, ou têm uma parte do corpo comum aos dois). Vejamos algumas possibi-lidades:

a) Os dois concorreram dolosamente para o homicídio: ambos responderão pelo crime.

b) Se apenas um quis praticar o crime, contra a vontade do outro: não haverá punição. Surgem duas possibilidades: i) o culpado deve ser absolvido, caso contrário o irmão inocente seria punido; ii) poderia haver condenação do culpado, mas sem aplicação da pena, a fim de que o inocente não seja punido por crime que não praticou, em violação ao princípio constitucional da intranscendência da pena.

O sujeito passivo também pode ser qualquer pessoa (ser vivo nascido de mulher).

Se o homicídio for praticado com motivação política e tendo como vítima o Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal, aplica-se a Lei nº 7.170/83, art. 29 c/c art. 2º (Lei de Segurança Nacional).

Se a ação de matar for dirigida a gêmeos xifópagos, responderá o agente por dois homicídios. Se a intenção era atingir apenas um, em relação a este haverá dolo direto de primeiro grau. Se a morte do outro for consequência necessária do meio escolhido, haverá em relação a este outro dolo direto de segundo grau (dolo de consequências necessárias). Nessa situação, as penas serão somadas, observando a regra do concurso formal imperfeito (CP, art. 70, caput, 2ª parte).

3. TIPO OBJETIVO

Elementos do tipo penal. Como se trata do primeiro tipo penal a ser analisado neste volume 2 (Parte Especial), cumpre repetir o que já foi explicado no volume 1 (Parte Geral) sobre os elementos do tipo.

30 Direito Penal – Parte Especial – Vol. 2 • Marcelo André de Azevedo e Alexandre Salim

O tipo penal possui elementos objetivos (aspectos materiais e normativos) e elementos subjetivos (dados relacionados à consciência e vontade do agente).

Tipo Penal

Elementos subjetivos especiais

DoloTipo

subjetivo

Elementos objetivos normativos

Elementos objetivos descritivosTipo

objetivo

a) Elementos objetivos (tipo objetivo):

• Objetivos descritivos: descrevem os aspectos materiais da conduta, como objetos, animais, coisas, tempo, lugar, forma de execução. São atos perceptíveis pelos sentidos, que não exigem nenhum juízo de valor para compreensão de seu significado.

• Objetivos normativos: são descobertos por intermédio de um juízo de valor. Expressam-se em termos jurídicos (ex.: funcionário público, documento, cheque, duplicata), extrajurídicos ou em expressões culturais (ex.: decoro, pudor, ato obsceno).

b) Elementos subjetivos (tipo subjetivo):

• Elemento subjetivo geral (dolo): ocorre quando o agente quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo.

• Elementos subjetivos especiais (elemento subjetivo do injusto): são dados que se referem ao estado anímico do autor (intenção específica distinta do dolo). O tipo contém como elemento uma finalidade específica do agente. Esses elementos indicam o especial fim ou motivo de agir do agente. Exemplos: para si ou para outrem; com o fim de obter; em proveito próprio ou alheio; por motivo de; para fim libidinoso etc.

Realizada essa anotação, passemos para a análise do tipo objetivo no crime de homicídio.

O tipo penal em sua figura simples (caput) possui como elementos obje-tivos matar alguém, que significa retirar a vida de outro ser humano. Assim, o sujeito passivo deve estar vivo. Caso contrário, se a conduta for dirigida a um morto, será crime impossível por absoluta impropriedade do objeto material (art. 17).

Ressalte-se, porém, que a interrupção da gravidez (que ocorre antes do início do parto) com a morte do feto configura aborto. Do início do parto em diante haverá homicídio ou infanticídio (art. 123).

C a p í t u l o

II

Crimes contra o patrimônio

1. FURTO

1.1. FURTO

Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclu-são, de um a quatro anos, e multa.

§ 1º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.

Forma majorada

§ 3º – Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.

Coisa móvel por equiparação

§ 4º – A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido: I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa; II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, es-calada ou destreza; III - com emprego de chave falsa; IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.§ 4º-A – A pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se houver emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum.§ 5º – A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior. § 6º – A pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em par-tes no local da subtração. § 7º – A pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se a subtração for de substâncias explo-sivas ou de acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego.

Forma qualificada

§ 2º – Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

Forma privilegiada

Furto

264 Direito Penal – Parte Especial – Vol. 2 • Marcelo André de Azevedo e Alexandre Salim

1. BEM JURÍDICO

Não há consenso na doutrina. Orientações:

1ª) Somente a propriedade (Hungria);

2ª) A propriedade e a posse (Nucci; Greco; Masson);

3ª) Propriedade, posse e detenção (Mirabete; Delmanto; Bitencourt). Nossa posição: entendemos que o detentor pode, em alguns casos, figurar como sujeito passivo. Isso ocorre quando ele for obrigado a reparar o dano causado em razão da subtração, uma vez que, nesse caso, sofrerá prejuízo.

Questão. “Ladrão que furta ladrão” comete crime de furto? Resposta: sim, mas a vítima será o proprietário ou possuidor que havia perdido a posse no primeiro crime. Exemplo: A furta a TV de B. Posteriormente, C furta a mesma TV de B que estava na posse de A. Nos dois crimes ocorridos, a vítima é a mesma (B). No segundo crime, A não figura como vítima, pois sua posse não era legítima.

2. SUJEITOS

Sujeito ativo: qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo de furto, salvo o proprietário.

Como esse assunto foi cobrado em concurso?(CESPE – 2012 – TJ-RO – Analista) Foi considerada incorreta a seguinte alternativa: “Qual-quer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de furto em sua forma simples, o que inclui, em alguns casos, tanto o possuidor quanto o proprietário da coisa móvel”.

Em alguns casos o proprietário responderá por outro delito. Ex.: artigos 156 e 346 do Código Penal.

Se o agente for funcionário público e subtrair ou concorrer para que seja subtraído o dinheiro, valor ou bem (que se encontra em poder da administração pública), em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe pro-porciona a qualidade de funcionário, responde por peculato-furto (CP, art. 312, § 1º). O particular que concorrer com o funcionário público, sabendo dessa quali-dade, também responde por peculato-furto. Caso a desconheça, responderá por furto e o funcionário por peculato-furto.

Sujeito passivo: são vítimas do furto o proprietário, o possuidor ou detentor legítimo da coisa.

3. TIPO OBJETIVO

3.1. Núcleo do tipo

Subtrair significa retirar a coisa da posse da vítima, passando ao poder do agente. Pode ocorrer por apoderamento direto, quando o agente apreende a

265Cap. II • Crimes contra o patrimônio

coisa manualmente, ou por apoderamento indireto, na hipótese de o agente utilizar-se de terceiros ou de animal.

3.2. Coisa

Coisa: refere-se a tudo aquilo que possui existência de natureza corpórea.

Valor afetivo. Para alguns autores (como Damásio e Rogério Greco), coisa de valor afetivo ou sentimental também pode ser objeto material de furto. Se-gundo Hungria (Comentários ao Código Penal, vol. VII, p. 23), “a coisa subtraída deve representar para o dono, senão um valor reduzível a dinheiro, pelo menos uma utilidade (valor de uso), seja qual for, de modo que possa ser considerada como integrante do seu patrimônio”. No mesmo sentido: STF, RE 100103. Em senti-do contrário, parcela da doutrina (Nucci, por exemplo) sustenta que deve haver subtração de coisa com valor patrimonial.

No HC 107615 (j. 06/09/2011, Informativo 639), a 1ª Turma do STF denegou a ordem no caso de furto de disco de ouro do cantor Milton Nascimento. O Ministro Dias Toffoli, relator, entre outros fundamentos, afirmou que o caso envolve um valor imaterial.

Transplante. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou ca-dáver, em desacordo com as disposições da Lei nº 9.434/97, configura o crime descrito no art. 14 da referida legislação.

Cadáver. A subtração de cadáver pode caracterizar crime de furto, como, por exemplo, quando pertencer a um museu ou na hipótese de ser utilizado para a finalidade científica, pois nestes casos passa a integrar o patrimônio de alguém. Caso contrário, pode configurar o crime de subtração de cadáver (CP, art. 211).

Como esse assunto foi cobrado em concurso?(FUNCAB – 2013 – Polícia Civil-ES) “Num período em que faltam corpos humanos para estudo nos institutos de anatomia das universidades de medicina, Claudionor, funcio-nário de uma universidade privada, vende um cadáver desta universidade para ou-tra, sem o conhecimento dos administradores da instituição em que trabalha. Assim, Claudionor: a) não praticou nenhum crime, haja vista o cadáver não poder ser objeto de crime. b) praticou o crime de destruição, subtração ou ocultação de cadáver. c) praticou o crime de vilipêndio a cadáver. d) praticou o crime de violação de sepultura. e) praticou o crime de furto”. Gabarito: E.(CESPE – 2012 – TJ-RO – Analista) Foi considerada incorreta a seguinte alternativa: “O cadáver, utilizado para estudos em uma universidade, que foi subtraído e destruído com o simples propósito de impedir as pesquisas acadêmicas, não caracteriza objeto material do crime de furto, em virtude de sua absoluta impropriedade”.

Animais. Podem ser objeto material de furto se integrarem o patrimônio de alguém. Obs.: a Lei nº 13.330/2016 incluiu ao art. 155 do CP a qualificadora do abi-geato (furto de gado): “§ 6º. A pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração”.

266 Direito Penal – Parte Especial – Vol. 2 • Marcelo André de Azevedo e Alexandre Salim

Folhas de cheque e cartões bancários. “(...) 2. Não se desconhece que a par-tir do julgamento do REsp 150.908/SP este Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que folhas de cheque e cartões bancários não podem ser objeto material dos crimes de receptação e furto, uma vez que desprovidas de valor econômico, indispensável para a caracterização dos delitos patrimoniais. 3. Contudo, ao examinar o CC 112.108/SP, a 3ª Seção desta Corte Superior de Justiça modificou tal posição, consignando que que o talonário de cheque possui valor econômico, aferível pela provável utilização das cártulas para obtenção de van-tagem ilícita por parte de seus detentores. 4. Embora haja casos em que a sim-ples subtração de uma folha de cheque em branco não acarrete lesão ao bem jurídico tutelado, notadamente quando não descontada, a hipótese dos autos é diversa, pois o réu entregou a cártula a terceira pessoa, que a preencheu no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) e a depositou, o que revela a potencialidade lesiva de sua conduta, impedindo a sua absolvição” (STJ, 5ª T., AgRg no HC 410.154, j. 03/10/2017). Idem: STJ, 6ª T., AgRg no AREsp 1439987, j. 20/08/2019.

Observações: 1) se o cheque subtraído for preenchido e utilizado como meio fraudulento para o agente obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, haverá es-telionato (art. 171, caput, do CP). Neste caso, conforme a Súmula 17 do STJ, o este-lionato absorve o crime de falso; 2) “Não tem aplicação o princípio da consunção na hipótese em que o agente, dias após roubar um veículo e os objetos pessoais dos seus ocupantes, entre eles um talonário de cheques, visando obter vanta-gem ilícita, preenche uma de suas folhas e, diretamente na agência bancária, tenta sacar a quantia nela lançada. De ordinário, ‘o estelionato constitui crime com desígnios autônomos em face de vítima diversa e não post factum impuní-vel, não ficando, assim, absorvido pelo furto’” (STJ, 5ª T., HC 309939, j. 28/04/2015).

Certificado de registro e licenciamento de veículo (CRLV). A Terceira Seção des-ta Corte, no julgamento do CC n. 112.108, assinalou a vulnerabilidade de que fica imbuída a vítima em crime patrimonial cujo objeto é um talonário de cheques, dado o inegável valor econômico do bem, pela possibilidade de posterior utiliza-ção fraudulenta, em prejuízo de terceiros. Deve ser adotado, mutatis mutandis, o mesmo entendimento em relação a certificado de registro e licenciamento de veículo furtado, uma vez que a vulnerabilidade e o eventual prejuízo ao ofen-dido também se configuram, de modo que é formal e materialmente típica a conduta do recorrente (STJ, 6ª T., AgRg no AREsp 1439987, j. 20/08/2019).

3.3. Coisa alheia

Alheia significa pertencente a outrem. A coisa sem dono (res nullius) não é objeto de furto.

Também não configura o crime de furto (art. 155) a subtração de coisa pró-pria, mesmo que em poder de terceiro, embora possa caracterizar o delito des-crito no art. 346 do CP ou o crime de furto de coisa comum (art. 156).

Não há furto de coisa abandonada (res derelicta), pois não integra o patrimô-nio de ninguém.

C a p í t u l o

IV

Crimes contra a organização do trabalho

1. ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE TRABALHO

Art. 197 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça: I – a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante cer-to período ou em determinados dias: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência; II – a abrir ou fechar o seu estabelecimento de tra-balho, ou a participar de parede ou paralisação de atividade econômica: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

Atentado contra a

liberdade de tra-balho

Bem jurídico: tutela-se a liberdade de trabalho.

Sujeitos: qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo e passivo.

Núcleo do tipo: o verbo típico é constranger. O agente obriga a vítima a fazer ou não fazer alguma coisa contra a sua vontade. O constrangimento é cometido mediante violência (agressão física) ou grave ameaça (intimidação). O crime é plurissubsistente, admitindo tentativa.

Exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria: segundo Hungria (Comentários ao Código Penal, vol. VIII, p. 33-4), “Arte, no sentido com que figura no artigo penal, é toda atividade econômica que depende de certa técnica ou especial habilidade manual. Ofício é qualquer ocupação remunerada e habitual, consistente em prestação de serviços manuais. Profissão é toda e qualquer for-ma de atividade (material ou intelectual) exercida habitualmente com o fim de lucro, compreendendo, naturalmente, o comércio (exercício habitual da compra e revenda lucrandi animo) e as chamadas ‘profissões liberais’. Finalmente, in-dústria é a atividade econômica que tem por fim a transformação de produtos orgânicos ou inorgânicos, para melhor afeiçoá-los às necessidades humanas”. O

416 Direito Penal – Parte Especial – Vol. 2 • Marcelo André de Azevedo e Alexandre Salim

crime consuma-se no momento em que alguém exerce ou deixa de exercer ofício, arte, profissão ou indústria. O verbo exercer indica permanência, de sorte que se trata de crime permanente.

Trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias: aqui o delito se consuma no momento em que alguém trabalha ou deixa de tra-balhar em certo período ou em determinados dias.

Abrir ou fechar o seu estabelecimento de trabalho: na modalidade abrir, o estabelecimento encontra-se fechado por qualquer motivo (ex.: encerramento de suas atividades por desinteresse econômico; para reforma do edifício; lockout). Na figura típica fechar, o estabelecimento encontra-se aberto e o agente visa à interrupção da atividade econômica. Estabelecimento de trabalho pode envolver atividade industrial, comercial ou agrícola. Deve ser compreendido como qualquer lugar, intramuros ou não, onde é exercida atividade econômica. O delito consuma--se com a abertura ou o fechamento do estabelecimento de trabalho. O sujeito passivo é o proprietário do estabelecimento de trabalho, se pessoa física.

Participar de parede: o direito de greve (parede) é regulamentado pela Lei nº 7.783/89. Parede é o abandono coletivo do trabalho por parte dos trabalhado-res de uma empresa. O grevista deve induzir o seu colega a participar da greve de modo pacífico e não mediante constrangimento. Existe posicionamento no sentido da revogação dessa modalidade.

Participar de paralisação de atividade econômica: pressupõe que a atividade econômica que será interrompida seja exercida por várias pessoas. Isso porque o coagido irá ‘participar’, o que envolve outras pessoas. Ocorre a consumação com a paralisação da atividade econômica. Nesta última conduta típica, também figura como sujeito passivo o proprietário do estabelecimento de trabalho, se pessoa física.

Observe-se que se o constrangimento for exercido para que apenas o sujeito passivo feche seu estabelecimento, ocorrerá a conduta típica descrita na primei-ra parte do inciso II, de sorte que, para configurar esta modalidade, é necessário que outras pessoas tenham paralisado a mesma atividade. O legislador visou a impedir o constrangimento para participação de lockout.

Tipo cumulativo: nas condutas acima, além das penas cominadas ao delito, o agente responde também pela violência. Ex.: art. 129 do CP.

Como esse assunto foi cobrado em concurso?(IBFC – 2018 – TRF2 – Juiz Federal) Foi considerada incorreta a seguinte alternativa: “Para a configuração típica do crime de atentado contra a liberdade de trabalho, a grave ameaça capaz de constranger alguém a trabalhar durante certo período de tempo ou em determinados dias, pode se consubstanciar na promessa, pelo empregador, de rescisão do contrato de trabalho”.

(MPT – 2017 – Procurador do Trabalho) Foi considerada correta a seguinte alternativa: “O crime de atentado contra a liberdade de trabalho está disciplinado no título do Código Penal que trata dos crimes contra a organização do trabalho, admitindo a tentativa”.

418 Direito Penal – Parte Especial – Vol. 2 • Marcelo André de Azevedo e Alexandre Salim

Como esse assunto foi cobrado em concurso?(CESPE – 2016 – TJ-AM – Juiz de Direito) Sobre o art. 198 do CP, foi considerada incorreta a seguinte alternativa: “Cometerá o referido crime aquele que constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a não celebrar contrato de trabalho”.

2.2. BOICOTAGEM VIOLENTA

Bem jurídico: tutela-se a liberdade de trabalho, mais especificamente a liber-dade de permanecer no exercício de atividade econômica.

Sujeitos: qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo e passivo.

Núcleo do tipo: o verbo típico é constranger. O agente obriga a vítima a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto indus-trial ou agrícola. O constrangimento é cometido mediante violência (agressão física) ou grave ameaça (intimidação). Se o constrangimento é no sentido de forçar a vítima a fornecer a matéria-prima ou o produto, não configura o delito.

Como esse assunto foi cobrado em concurso?(CESPE – 2016 – TJ-AM – Juiz de Direito) Sobre o art. 198 do CP, foi considerada incorreta a seguinte alternativa: “A conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial agrícola configura o crime previsto no referido artigo”.

Não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produ-to industrial ou agrícola: o agente obriga certas pessoas a não fornecerem os elementos indispensáveis para que outrem (pessoa atingida pela boicotagem) exerça sua atividade econômica, ou proíbe as vítimas a adquirirem de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola. O sujeito atingido pela boicota-gem se verá excluído do círculo econômico.

Consumação: ocorre a consumação no momento em que a pessoa constran-gida não fornece a outrem ou não adquire de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola.

Tipo cumulativo: além das penas cominadas ao delito, o agente responde também pela violência.

IMPORTANTE: Ocorrerá apenas um crime de boicotagem mesmo sendo várias pessoas coagidas. Po-rém, no que tange à violência, cada ato violento corresponderá a um crime (concurso de delitos na violência), podendo, inclusive, configurar crime continuado.

Como esse assunto foi cobrado em concurso?(FCC – 2015 – TRT23 – Juiz do Trabalho) “Paulo, industrial do ramo de plásticos, me-diante promessa de mal futuro, sério e verossímil, constrangeu Pedro, proprietário de empresa concorrente, a não adquirir de Antônio matéria-prima necessária para a fabricação de seus produtos. No caso, Paulo cometeu o crime de:

419Cap. IV • Crimes contra a organização do trabalho

a) atentado contra a liberdade de contrato de trabalho; b) constrangimento ilegal; c) atentado contra a liberdade de trabalho; d) sabotagem; e) boicotagem violenta”. Gabarito: E.

3. ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO

Art. 199 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a participar ou deixar de participar de determinado sindicato ou associação profissional: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

Atentado contra

a liberdade de associação

Bem jurídico: a liberdade de associação e filiação a sindicato. Trata-se de direito assegurado pela Constituição (CF, arts. 5º, XVII, e 8º, V).

Sujeitos: qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo e passivo.

Núcleo do tipo: o verbo típico é constranger. O agente obriga a vítima a parti-cipar ou deixar de participar de determinado sindicato ou associação profissio-nal. O constrangimento é cometido mediante violência (agressão física) ou grave ameaça (intimidação).

Como esse assunto foi cobrado em concurso?(VUNESP – 2018 – PC-BA – Delegado de Polícia) Foi considerada incorreta a seguinte alternativa: “O crime de atentado contra a liberdade de associação configura-se pela conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a participar de sindicato. Já a conduta de impedir a saída de sindicato é atípica”.

CLT, art. 511: “É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como em-pregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou ativida-des ou profissões similares ou conexas”. Sindicato é a associação profissional reconhecida na forma da lei (CLT, art. 561).

Participar de sindicato ou associação sindical determinada: não configura o delito se o constrangimento visar a que a vítima participe ou não de sindicato ou associação profissional indeterminados, e sim o crime subsidiário de constrangi-mento ilegal (art. 146).

Tipo cumulativo: além das penas cominadas ao delito, o agente responde também pela violência.