além da "boca do sertão": pay-bangs e sertanistas nos campos de palmas (1810-1859)

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Além da “Boca do Sertão”: Pay-bangs e sertanistas nos Campos de Palmas (1808-1859) por Roberto Pocai 1 RESUMO: Este artigo possui por finalidade discutir a representação do índio nos documentos oficiais do estado e correspondências encontradas no Arquivo Público do Paraná e que tratam do primeiro período de colonização dos Campos de Palmas durante o século XIX. Da parte dos nativos, a reação com o (re)ocupar também aparece registrada em diversas posturas que variam da aceitação a rejeição. Conflitos e propostas de pacificação se confundem de momento a momento do processo colonial. Sobre o silêncio na História, é dessa maneira que esse artigo se apresenta. Ruas, avenidas, prédios, grandes construções... parece que tudo aquilo age na História como uma borracha sobre o passado. O silêncio, aliás, se compartilha no cotidiano pacífico de muitas pequenas cidades da região. A única coisa que irrompe sobre essa calmaria seja o barulho das britadeiras, o ronco dos caminhões que ao serem emitidos simbolizam um tímido crescimento urbano de tempos em tempos na região sudoeste do Paraná, um crescimento que ao florescer o cinza urbano vem a tampar todas as povoações indígenas que aqui viviam e da forma como viviam. Esse artigo tem por finalidade descrever e analisar uma série de fontes entre documentos e correspondências que relatam episódios antecedentes, interiores e posteriores da colonização dos Campos de Palmas no sudoeste do Paraná e que remetem ao processo de desenvolvimento da região e de encontro com os povos nativos. 1 Graduado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ilustração 1: Mapa político da atual região sudoeste do Paraná, tratada genericamente como Campos de Palmas no século XIX (em azul) Ilustração 2: Os chamados Campos de Palmas (mapa de 1938)

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Este artigo possui por finalidade discutir a representação do índio nos documentos oficiais do estado e correspondências encontradas no Arquivo Público do Paraná e que tratam do primeiro período de colonização dos Campos de Palmas durante o século XIX. Da parte dos nativos, a reação com o (re)ocupar também aparece registrada em diversas posturas que variam da aceitação a rejeição. Conflitos e propostas de pacificação se confundem de momento a momento do processo colonial.

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Page 1: Além da "Boca do Sertão": Pay-bangs e sertanistas nos Campos de Palmas (1810-1859)

Além da “Boca do Sertão”: Pay-bangs e sertanistas nos

Campos de Palmas (1808-1859)

por Roberto Pocai1

RESUMO: Este artigo possui por finalidade discutir

a representação do índio nos documentos oficiais do

estado e correspondências encontradas no Arquivo

Público do Paraná e que tratam do primeiro período

de colonização dos Campos de Palmas durante o

século XIX. Da parte dos nativos, a reação com o

(re)ocupar também aparece registrada em diversas

posturas que variam da aceitação a rejeição.

Conflitos e propostas de pacificação se confundem

de momento a momento do processo colonial.

Sobre o silêncio na História, é dessa maneira que esse artigo se apresenta. Ruas,

avenidas, prédios, grandes construções... parece que tudo aquilo age na História como

uma borracha sobre o passado. O silêncio, aliás, se compartilha no cotidiano pacífico de

muitas pequenas cidades da região. A única coisa que irrompe sobre essa calmaria seja o

barulho das britadeiras, o ronco dos caminhões que ao serem emitidos simbolizam um

tímido crescimento urbano de tempos em tempos na região sudoeste do Paraná, um

crescimento que ao florescer o cinza urbano vem a tampar todas as povoações indígenas

que aqui viviam e da forma como viviam.

Esse artigo tem por finalidade descrever e analisar uma série de fontes entre

documentos e correspondências que relatam episódios antecedentes, interiores e

posteriores da colonização dos Campos de Palmas no sudoeste do Paraná e que

remetem ao processo de desenvolvimento da região e de encontro com os povos nativos.

1 Graduado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Ilustração 1: Mapa político da atual região sudoeste do Paraná, tratada genericamente como Campos de Palmas no século XIX (em azul)

Ilustração 2: Os chamados Campos de Palmas (mapa de 1938)

Page 2: Além da "Boca do Sertão": Pay-bangs e sertanistas nos Campos de Palmas (1810-1859)

I. “Meu reino, minhas leis” - “O Clemente” Dom João VI perante o sertão, utopias da

colonização, processo civilizatório e guerra contra o “bárbaro”.

1808: Entre bárbaros e selvagens, é dessa maneira que se apresenta para nós essa

História. Isolados e distantes das mãos do homem branco, os Campos de Palmas se

apresentavam até certa maneira esquecidos por esse agente da colonização. Antes de

tratarmos diretamente a chegada do homem branco a essa inóspita e apartada localidade,

devemos conceber uma sequência de acontecimentos anteriores que não somente

explicam essa chegada que colocam perante nós a visão de mundo do conquistador, mas

desvendam um encontro com aqueles que ali já residiam, eram chamados de “índios”,

“selvagens”, “bárbaros”, eram eles, os nativos que ali estavam praticamente despidos e

desguarnecidos de qualquer culpa, os primeiros ocupantes de toda aquela extensão de

terra.

Apesar de fugir de Napoleão Bonaparte, Dom João VI se demonstrava irredutível em

seus projetos coloniais para o Brasil. E isso não se mantinha apenas aos recém erguidos

centros urbanos na costa tropical, sua utopia colonial era além de ultramarina, era

ultraterrena.

Imaginava-se um Império Luso-tropical. Os monarcas dessa época detidos aos rituais

de “beija-mão” do Rio de Janeiro, cidadezinha escaldante pertencente a uma terra

selvagem cercada de mosquitos zumbizentos e macacos. Entretanto, sequer imaginavam

o que se alardeava e o que se silenciava nos confins de todas aquelas terras que

chamavam rudemente de “sertão”. A servidão, sinal de respeito e submissão, era o projeto

de colonização colocado perante conquistadores e nativos. Logo, o discurso do

colonizador se circunda de um imaginário puxado de todo um medievalismo cavaleiresco.

Uma carta é assinada pelo príncipe em 05 de novembro de 1808, seu título chamava a

Ilustração 4: "Botocudos" por Jean­Baptiste Debret

Ilustração 3: Cerimônia de beija­mão na Corte de D. João VI,   no   Paço   Imperial,   em   caricatura   de   1826   (autor desconhecido)

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atenção: “Sobre os indios Botocudos, cultura e povoação dos campos geraes de Coritiba

o Guarapuava”. Os Campos de Guarapuava incorporavam desde a região central do

Paraná até a foz do Rio Paraná, incorporando também os futuros Campos de Palmas. Era

uma localidade inóspita e selvagem na visão do colonizador, D. João indica a

necessidade de ocupação de toda essa faixa de terras2 em nome de duas preocupações:

a delimitação de fronteiras com as nações vizinhas e a vingança das cruéis mortes de

tropeiros - essas recebiam a autoria dos chamados “bugres”3.

A reação a esses ataques deveria ser imediata. Uma de suas constatações se deve a

impossibilidade de

civilisar povos barbaros, senão ligando-os a uma escola severa, que por alguns annos os force a deixar a esquecer-se de sua natural rudeza e lhes faça conhecer os bens da sociedade e avaliar o maior e mais solido bem que resulta do exercicio das faculdades moraes do espirito, muito superiores ás physicas e corporaes: tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzil-os a aldeiar-se, e gosarem dos bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos, e até mostrando a experiencia quanto inutil é o systema de guerra defensiva (BRASIL, 1891) (sic!).

O discurso colonial tomou corpo no indignado príncipe, que ignorava a possibilidade

de permanência de povos indígenas naquela região. a menos que esses servissem a ele

e aos interesses da Coroa Portuguesa. Uma verdadeira declaração de guerra. O

derramamento de sangue ficaria a cargo do capitão general da capitania de São Paulo,

Antonio José Francisco da Franca e Horta. A “natural rudeza”4 dos “Botocudos”5 aparece

como o substrato de justificativa para a guerra. Dom João assume um processo

civilizatório contra o “bárbaro inculto”, como se lustrasse o Luso império com o sangue

indígena.

2 Esse processo previsto nas palavras de Dom João se configurou entre a primeira e segunda etapa de colonização do Paraná. Segundo Luiz Carlos Tourinho esse processo se deveu em meados do início do século XIX: “A seguir, com a valorização dos animais de carga, organizaram-se os Campos Gerais, ao longo dos caminhos das tropas. Finalmente estenderam seus tentáculos ainda mais para o ocidente. Com isso não só povoaram os campos de Guarapuava e de Palmas, como consolidaram nossas fronteiras com o Paraguai e a Argentina (TOURINHO apud WACHOWICZ, 1987: 5). 3 O imaginário do colonizador ainda era muito medieval, o termo “bugre” vem de búlgaro. “Como membros da igreja greco-ortodoxa, os búlgaros foram considerados heréticos, e o emprego do vocábulo para denotar a pessoa indígena liga-se à ideia de inculto, selvático, estrangeiro, pagão, homossexual, e não cristão - uma noção de forte valor pejorativo” (WIKIPÉDIA, 2010)4 A reprodução desses termos no interior do texto não tem por finalidade reproduzir o discurso civilizador, mas sim refletir sobre o mesmo. Para Lúcio Mota, não podemos simplificar a relação nativo-colonizador. As ofensivas e táticas de guerra por parte dos Kaingang nesse momento no Paraná devem ser atribuídas como formas de resistência aos colonizadores durantes os séculos XVIII e XIX. A relação de conflito teria sido provocada como uma forma de reação a ocupação de suas terras, ao aprisionamento e a escravidão indígena nas fazendas (MOTA, 1994).5 O termo botocudos é a denominação dada pelos portugueses aos indígenas pertencentes a grupos de diversas filiações linguísticas e regiões geográficas, uma vez que a maior parte usava botoques labiais e auriculares (WIKIPÉDIA, 2010).

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Para Norbert Elias, um processo civilizador se expressa segundo: “a consciência que

o Ocidente tem de si mesmo”. O autor resume o percurso da sociedade ocidental com

essa se julgando superior às sociedades mais antigas ou às sociedades contemporâneas

“mais primitiva” (ELIAS, 1990:23). Nesse caso, não basta ser civilizado, se torna

necessário estar perante o “outro” não civilizado. O europeu invasor via na existência do

índio uma real oportunidade de inflar seu ego. Para ela, ser civilizado era não ser bárbaro.

Em sua imaginação, o monarca pensava em uma “sociedade pacifica” (sic!) onde

homens viveriam “debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos”, nessa

oportunidade ele cita apenas homens brancos, os nativos aparecem na carta tratados de

uma maneira bem distinta:

tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzil-os a aldeiar-se, (...) e até mostrando a experiencia quanto inutil é o systema de guerra defensiva: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os effeitos de humanidade (...) ou qualquer morador que segurar algum destes Indios, poderá consideral-os por quinze annos como prisioneiros de guerra (...); tendo porém vós todo o cuidado em fazer declarar e conhecer entre os mesmos Indios, que aquelles que se quizerem aldeiar e viver debaixo do suave jugo das minhas Leis, cultivando as terras que se lhe approximarem, já não só não ficarão sujeitos a serem feitos prisioneiros de guerra, mas serão até considerados como cidadãos livres e vassallos especialmente protegidos por mim e por minhas Leis: e fazendo praticar isto mesmo religiosamente com todos aquelles que vierem offerecer-se a reconhecer a minha autoridade e se sujeitarem a viver em pacifica, sociedade debaixo das minhas Leis (op. Cit) [sic! Sem grifos no original].

Além da morte, Dom João

proporcionava uma outra “justa”

opção aos povos indígenas. Um

processo civilizador cercado de leis

regia uma vida de trabalho aos

“bárbaros índios”, era necessário

domesticá-los aos interesses da

metrópole portuguesa.

Da colônia, Portugal apenas

tinha um interesse: explorar. O

sentido original do termo cultura é

intrínseco nas palavras do príncipe.

Antes de pensarmos os diversos significados atuais de cultura, baseados em padrões de

comportamento atuais, devemos pensar a forma como Dom João pensava a cultura em

sua época. Uma vida pelo trabalho.

Ilustração 5: "Tropeiro" por Debret

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Segundo Raymond Williams, cultura significa atividade, como a cultura de alguma

coisa, em geral animais e produtos agrícolas (WILLIAMS, 1992). As picadas estavam

cercados de um “sertão despovoado” por ambos os lados. A oportunidade onde é citado o

termo “sertão”, palavra que fundamenta uma ideia de abandono e infertilidade, já traz

consigo a necessidade de uma ação humana por parte do homem branco diferente da

exercida ali.

A forma como os chamados “bugres” tratavam a terra não servia para a Coroa. Essa

cultura da qual fala o príncipe, civilizaria a terra e seus habitantes não somente em seus

costumes, mas também na sua concepção de agricultura na colônia, servindo às

necessidades da metrópole Portugal. A carta esclarece minuciosamente a forma como

deveria ser realizada a cultura de diversos cereais e produtos naquelas terras. Linhas

abaixo, o monarca previa também a existência de metais preciosos na região.

Por fim, após desconsiderar a possibilidade de um “systema de guerra defensiva”, o

aprisionamento dos índios era inevitável. A liberdade daqueles povos estava com os dias

contados, depois disso ou se tornariam escravos de algum grande fazendeiro ou seriam

catequizados por uma religião dogmática e estranha a seus costumes. Uma coisa é certa,

os seus costumes deveriam mudar, muito distante da liberdade que possuíam abaixo dos

céus, agora seriam meros vassalos sustentando as demandas da Coroa “protegidos” por

estranhas leis. Dom João VI, se autointitulando dono de todas aquelas bravas terras,

finaliza a carta com quatro ordenações:

I. Iniciar a guerra contra os “barbaros indios” que segundo o próprio Dom João eram

“infestadores do seu território”, podendo considerá-los por aproximadamente 15

anos como prisioneiros de guerra, “destinando-os ao serviço que mais lhe convier”.

Aos índios que desejassem viver sob o julgo das leis da Coroa, de propriedade do

próprio Dom João, seriam considerados “cidadãos livres e vassallos”;

II. Ceder sesmarias6 aos fazendeiros que tornarem aqueles campos suscetíveis a

“cultura de trigos, cevadas, milhos e de todas as plantas cereaes e de pastos para

gados, mas de linhos canhamos” afim também de encontrarem metais preciosos

como ouro e diamantes;

III. Ordenar João Floriano da Silva7 como “Intendente da cultura dos campos de

Guarapuava”. Ficaria ele responsável por cultivar os campos abandonados e ali

6 A insistência de Dom João em se estabelecer sesmarias em toda região se deve também a ocupação desregrada daquela região por parte de outros fazendeiros. A ocupação do território por parte dos chamados “homens bons” com suas cartas de sesmaria tinha por finalidade criar uma relação de servidão para com Portugal.7 Seu nome não aparece em nenhum dos documentos procedentes.

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estabelecer a chamada “boa cultura”. Além dele outros parceiros da colônia

apresentam-se citados no documento. Esses por sua vez receberiam uma carta de

sesmaria cada um8;

IV. Encontrar metais preciosos, sendo que todo o diamante encontrado seja entregue

a Real Fazenda, “que toda a lavagem de terras para tirar diamantes fora prohibida;

e que os que assim obrarem, ficam expostos á maior severidade das Leis”.

A terra era fruto da relação de servidão dos futuros fazendeiros com a Coroa. A

criação de pastagens, trigo e canhamo serviria para os interesses da Colônia, sendo

esses respectivamente usado na alimentação do gado, para a produção de pães e

alimentos e para a produção de papéis, roupas e vestes – em substituição ao algodão9.

A presença colonial aparece na carta como o fator de progresso da região, sendo a

cultura Kaingang ali presente como sinônimo de atraso para os Campos de Palmas. Dom

João ordena um tipo de “guerra justa”10 contra os nativos.

O destino daqueles campos estavam traçados, o extermínio indígena era previsto e

ordenado pela Coroa. Sobre aquelas terras se ergueria uma sociedade sobre o que eles

acreditavam estar vazio, terras essas adubadas pelo sangue de muitos nativos que ali

tombaram e pela égide da violência do branco colonizador. Entretanto, esse

relacionamento do branco com o “outro” nas terras de Palmas se desenvolveu em

episódios procedentes, sofrendo influência de outras teses coloniais que iam desde

membros do clero e até integrantes de uma guarda armada improvisada para ocupar o

devido território. Diversos conflitos marcam a construção do indígena enquanto mero

“selvagem”. Essa construção se deve a um discurso de interesses coloniais que procurou

de todas as formas influenciar, mudar e interferir na cultura Kaingang de diversas formas.

8 Além de João Floriano da Silva apresentam-se citados também o seu irmão José Telles da Silva, o Tenente Coronel Manoel Gonçalves Guimarães e o Tenente Coronel Francisco José de Sampaio Peixoto. Todas essas sesmarias foram nomeadas para os Campos de Guarapuava, sendo que o fato de não se ordenar nenhum homem para os Campos de Palmas influenciou no tipo de colonização dessa região. Uma região destacada pelo esquecimento por parte das autoridades, o caso da cidade de Palmas não foge a regra, grandes concentrações de terra na mão de poucos. Ainda assim, algumas cidades fundadas no século XX se destacam por uma uma colonização de posseiros e pequenas propriedades (Pato Branco, Francisco Beltrão, etc.).

9 Essa concorrência se deve ao fato de que o cânhamo é cerca de 5 vezes mais resistente e resiste em diversos tipos de solo enquanto o algodão devia ser adicionado em seu plantio a diversos tipos de adubo de origem animal e fertilizantes.10  A chamada guerra justa pode ser identificada em todo processo colonial contra os nativos que habitavam as Américas. A guerra era tratada por colonizadores e membros do clero como “justa” porque era travada contra selvagens primitivos, bárbaros e pagãos. Ao tratar do tema, o padre Bartolomeu de las Casas teceu um argumento contra os colonizadores: "...toda a intervenção armada provoca mais pecados e destruição do que as ofensas que trata de eliminar” (EDUCATERRA, 2010)

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II – A goela da “Boca do Sertão”: A cruz, a espada e o butim guarapuavano. Índios

refratários e colaboracionistas.

É difícil tratar a cronologia11 como modelo aqui. Diversos fatores anteriores e externos

aos Campos de Palmas geram perspectivas de sua ocupação. O espírito do tempo será

tratado aqui como algo que proporciona o contato de diversos personagens com a

História. São muitos métodos de análise das fontes e logo abaixo eles serão

destrinchados afim de evidenciar os acontecimentos a partir dessa diversidade de

personagens.

Os índios continuavam atacando tropeiros nas picadas. Ainda assim, aos poucos a

aproximação dos indígenas com os brancos começava. Relações se estabeleciam,

relações que não podem ser simplificadas apenas pela chegada dos colonizadores ou dos

chamados “pioneiros”12. Lideranças indígenas se manifestam nesse momento,

grandes levas de nativos se movimentam em diversos pontos que durante muito

tempo estavam esquecidos pela província. Nativos esses que antes apenas possuíam os

costumes ritualizados da pesca, da caça, da arte, rituais esses praticados apenas

vestidos de suas cores... Tudo era interrompido, esses seres agora passavam a vestir

roupas, praticar o artesanato em grande escala com a finalidade de troca e a construir

fortificações que serviriam ao homem branco recém-chegado.

Guarapuava, 1810: Como fruto dessa política de contato nativo-colonizador foi

estabelecido o aldeamento Atalaia. Criado pelo capelão da 1a. Real Expedição de

ocupação dos “sertões” de Guarapuava, o padre Francisco das Chagas Lima13. Esse

aldeamento recebeu proteção armada do comandante Diogo Pinto, suas atitudes

influenciaram muito o relacionamento do branco com o indígena e até dos diferentes

grupos indígenas entre si. O aldeamento estabelecido há cerca de 10 léguas de distância

do acampamento dos antigos bandeirantes que por ali passaram um século antes14.

11 Os estudos que evidenciam a sequência dos fatos são reveladores, mas aqui o relato é portado de diversos elementos e versões que não se degladeiam para descobrir quem é o dono da verdade sobre o passado.12 Coloca uma distinção quilométrica entre essa versão oficial e a minha. Não uso o termo “pioneiro” pois quem chegou primeiro àquelas terras foram os indígenas.13 A Real Expedição de ocupação dos “sertões” de Guarapuava foi organizada pelo presidente da província de São Paulo da época, Antonio José da Franca e Horta. Foi seguida de 200 homens armados e 100 povoadores, todos saídos de Curitiba. A tropa partiu no primeiro dia de agosto de 1809 para chegar a Guarapuava dezesseis dias depois. O padre Chagas Lima é descrito em todos os documentos com grande prestígio perante o clero nacional, sendo teólogo e único missionário evangelizador de indígenas nessa época.14 O aldeamento foi instalado, para além do rio Coutinho ao redor do Atalaia onde nenhuma população habitava. Augusto Souza “menciona um forte, sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo (Forte de Nossa Senhora do Carmo), erguido pelo Tenente-coronel Cândido Xavier de Almeida e Souza, para defesa do aldeamento indígena, núcleo da povoação de Guarapuava.” Um ofício de 22 de dezembro de 1771, do Tenente-coronel Afonso Botelho de Sampaio, versa sobre um forte que encontrara na entrada dos Campos

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O quadro de Joaquim José de

Miranda15 (Ilustração 1) demonstra um

típico butim realizado na presença de

militares. A troca, o proveniente

relacionamento de Guarapuava com o

índios que vinham mais ao sul descreve

o chamado “butim”, carregando

alimentos e presentes os índios eram

vestidos com os chamados Kurus

(mantas)16. A História contada por

imagens apenas elucida os fatos.

Enquanto os índios eram adornados ao

centro, perifericamente podemos ver dois caciques, logo atrás dos oficiais. Ao invés de

chamarmos de escambo, mita, alguns documentos usavam esse termo Kaingang para

designar esses rituais de troca. O butim era uma palavra carinhosa, indicava um tipo de

conhecimento sobre o outro, sobre o que ele trazia. Sobretudo, um primeiro contato, a

palavra aparece emprestada às fontes produzidas pelo homem branco naquele lugar

chamado pelo colonizador de “Boca do Sertão”17.

Sabemos que em muitas das oportunidades essas especiarias do branco eram

trocadas por trabalho, mas o morro evidenciado pelo pintor (il. 1) mostra um interesse por

parte do colonizador em ausentar os índios de suas condições naturais18. Ao descrever

de Guarapuava. (SOUZA apud WIKIPÉDIA, 2010 [a]).15 José de Miranda teve quadros expostos em Milão. A exposição chamada “Sob o signo da cruz” exibe artigos, quadros e objetos da época colonial do Brasil (1500-1822). Poucas de suas obras foram digitalizadas e estão disponíveis na internet, porém, seus quadros são a imagem da colonização da região de Guarapuava. O uso de fontes retiradas da internet que vão desde documentos até imagens mostram as diversas fontes alternativas sendo usadas nesse artigo, procurando expandir as versões presentes nesse artigo.16 Segundo relato do próprio pintor (apud POVOS INDÍGENAS DO BRASIL): “Chegão os novos Indios ao arranchamento, tirão os Camaradas da sua rôpa quanto puderão até ficarem alguns sem camiza, e só os ponches cubertos, e os vestem. Guache e aquarela”.17 A localidade recebia esse nome por ser estratégica. A partir dali, na visão do colonizador da época, todos os povos seriam conquistados. Apesar de ser chamada de 1a. Expedição, diversas expedições ocorreram em Guarapuava no século XVIII, todas foram derrotados pelos guerreiros Kaingang. Segundo o Portal Índios do Brasil: “Foram onze expedições organizadas entre 1768 e 1774, pelo Tenente-coronel Afonso Botelho com o objetivo de reconhecer e tomar posse das pastagens naturais existentes no interior da Província. Em 1770, a expedição comandada pelo Tenente Bruno Costa chegou aos campos de Koran-bang-rê (atual Guarapuava). Mais duas chegaram em 1771, uma comandada pelo sertanista Martins Lustosa e outra pelo Tenente Cândido Xavier. Os armamentos incluíam peças de artilharia e todas as armas de guerra da época. Os contatos com os Kaingang do Koran-bang-rê, como resultado da distribuição de presentes, foram inicialmente amistosos. Mas a reação indígena não tardou, ao desconfiarem que a amizade oferecida pelos brancos não era bem intencionada.”18 Contudo, nem todos os nativos da região de Guarapuava foram influenciados pela cultura do branco. Segundo informações do Portal Indígenas do Brasil (op. Cit.): “Pode-se relacionar a expansão geográfica dos Kaingang com as pressões que as expedições de conquista foram promovendo. Alguns caciques foram-se aldeando e tornando-se aliados dos brancos, obrigando os grupos

Ilustração 6: Butim nos Campos de Guarapuava, de Joaquim José de Miranda

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um butim que aconteceu próximo do Atalaia, Tatiana Takatuzi coloca a relação social de

colonizadores e indígenas da seguinte forma:

Os índios vieram em aproximadamente 150 indivíduos e, apesar do avultado número não ter causado “horror” à tropa, Botelho deu ordem aos seus oficiais que cada qual mantivesse a sua peça de artilharia “pronta para dar fogo”, sem levantar a suspeita de que a tropa desconfiava deles. Os índios traziam milhos e bolos de milho que ofereciam à tropa, porém “tão asquerosos, que só o desejo de os agradar tirava o horror de os aceitar, sendo dificultoso o achar meios de disfarçar comê-los, no que instavam fortemente” (…) Persuadidos por “carinhos”, possivelmente das mulheres, os soldados acompanharam os índios até meia légua de distância, em um monte quase em frente ao abarracamento, onde sofreram ataque mortal (TAKATUZI, 2005: 19) [acima, entre aspas, a autora citou um documento19].

Enquanto carícias evidenciam a admiração do indígena sobre o colonizador, esse

responde com seu nojo e um consequente golpe homicida. A vigilância e o uso das armas

contra o “outro”, se evidencia nesse e em outros episódios a função do exército enquanto

mais uma instituição colonial. Esse era o contexto do início do século XIX. Antes das

primeiras casas de madeira formarem as ruas e os pequenos comércios de secos &

molhados, o cenário que se ilustrava não era parecido com o Paraná atual.

Não haviam grandes construções suntuosas, apenas pequenas igrejas em algumas

vilanias cercadas de estradas de barro, que por ali passava todo tipo de gente. O contato

com os indígenas ocorria no chamado “sertão” (todas as terras que ficavam entre o oeste

de Guarapuava e o rio Paraná), terras que durante muito tempo foram contestadas pela

Coroa espanhola, agora se viam habitadas de nativos Kaingang e por uma minoria

Guarani. Consequência disso, ocorreu a ocupação dos Campos de Palmas.

A “Boca do Sertão” era somente a gênese. Aqueles outros campos, apareciam abaixo

de uma neblina que descia ao solo. Uma terra caracterizava pelo período anual da

invernada, ideal para a pastagem do gado. Além das questões naturais, as grandes

estâncias seriam consequência de um grupo de fazendeiros e tropeiros que viriam de São

Paulo, acompanhados de funcionários e de escravos, seguiram aqueles homens que

atravessaram colinas, morros, rios, e que acabaram chegando a uma região quase nunca

recalcitrantes a se retirarem para lugares mais distantes da rota expansionista, que lá permaneciam até serem novamente localizados e pressionados a se aldearem, liberando parte dos seus territórios para os fazendeiros e colonos nacionais e estrangeiros”.19 Ofício do ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro para o governador e capitão-general da capitania de São Paulo, D. Luis Antonio de Souza (Botelho Mourão)...,1774, Abril, 21, Palácio de Nossa Senhora da Ajuda” .

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citada nos documentos da província.

O Atalaia passou a aproximar de si diversos nativos provenientes de outras regiões. A

ida desses nativos, o seu devido êxodo dos lugares onde viviam e o seu trajeto até as

proximidades de Guarapuava criaram imensas picadas do sudoeste ao centro do

estado20, essas grandes levas produziam carreiros em volta da cidade. A concentração de

boatos em torno de Guarapuava também gerou diversas rotas até a os seus campos. A

concentração indígena aparece em todos os documentos, vinham de todos os lados,

imaginemos os mitos que circundavam as redondezas de Guarapuava, centro daqueles

campos. E sobre um tal líder religioso que distante de um pajé, vestia batina e carregava

uma cruz – a vestimenta de autoridade e de toda martirização cristã representariam a

pungência do pacto colonial e todos os valores da branquidade europeia.

Sobre toda essa autoridade Chagas Lima aproximou de si todo contingente indígena

possível. A utopia do aldeamento Atalaia, na realidade, além de seus procedimentos

catequéticos servia para confirmar a presença do colonizador. Em frente vinha a cruz,

levemente lubrificada pelo batismo, mas logo depois desse encontro as relações eram

menos sagradas e mais friamente econômicas.

Em 1812, cerca de 500 índios das tribos “Camés” e “Votorões”21 passaram a conviver

no aldeamento. Essa manobra somente pôde ser realizada a partir do consentimento de

Antonio Pahy, reconhecido nos documentos como líder das tribos e braço direito de

Chagas Lima.

Considerado um fato histórico, o consentimento de Pahy para Guarapuava fecunda o

estabelecimento do colonizador sobre as terras da recém-fundada Nossa Senhora de

Belém de Guarapuava22. Nesse período, diversas marchas a oeste e ao sul de

20 Entre as diversas discussões em torno da colonização do Paraná, uma muito empolgou os debates acadêmicos nos últimos anos é se manifesta dizendo que antes dos atuais topógrafos e engenheiros existiam apenas índios que construíam caminhos para chegar a lugares. Esses lugares muito comentados de uma roda a outra nas terras indígenas faziam grandes aglomerações de oeste a leste e em sentido contrário. Grandes levas como essa criaram o chamado caminho do Peabiru. Por que não crer que a formação das atuais estradas durante a época da colonização se tornaram as atuais estradas de asfalto e calçamento?21 O próprio Padre Chagas Lima, da chamada expedição colonizadora dos “sertões” de Guarapuava em que ali chegou em 1809, observa a existência naquela região de diversos povos que viviam agrupados e possuíam diferentes líderes. Entre os diversos agrupamentos indígenas existia rivalidade e desacordo de ideias, mas também momentos em que os líderes se entendiam. Entre esses índios relatados nos chamados “sertões” estavam Camés, Votorões, Dorins e Xocrens - todos do tronco Jê (TAUNAY, 1931). Existem muitas discussões acerca do registro étnico dessas populações, muitos colocam o Paraná como possuidor de Kaingang, Guarani, Xetá e Xocleng . Alguns documentos estabelecem divisões étnicas pelo conceito de hordas, entretanto, todo e qualquer rótulo colocado sobre as povoações indígenas pode ser entendido como uma manifestação de etnocentrismo. Aqui o ideal seria proporcionar o caráter de grupo (usando termos como “povos”, “populações”), igualando e diferenciando sua participação perante os colonizadores.22 A vila fundada com o estabelecimento de uma Catedral em 1810 recebe a data de 9 de dezembro seu aniversário. Segundo a enciclopédia virtual Wikipédia: “Este local foi escolhido para início da colonização porque naquela época se tinha uma predileção em aproveitar-se dos campos, com horizontes amplos, que através desta característica natural, oferecia facilidade de defesa contra os índios” (WIKIPÉDIA, op. Cit.).

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Guarapuava foram organizadas. Em 1819, numa dessas expedições de reconhecimento

da região ocorreu a morte de Pahy23. Ao relatar esse fato, Ruy Wachowicz (1987)

caracteriza os índios entre “colaboracionistas” e “refratários” quanto a colonização do

homem branco.

A evidência do chamado “conflito fratricida” oportuniza uma citação desses

historiadores sobre o posicionamento neutro das autoridades colonizadoras: “O padre

Chagas e o comandante Diogo Pinto, aparentemente nada podiam fazer para evitar que

os índios colaboracionistas fossem atacar seus desafetos em suas próprias habitações”

(op. Cit.: 14). Nesse caso, aqueles que se intitulavam civilizados permitiram a “barbárie”

alheia. Isso não indica que esses seres “civilizados” também não tenham influenciado na

existência de conflitos entre os diversos agrupamentos indígenas em outras localidades

do Paraná. Se alguns desses registros não colocam tal influência, se torna importante

frisar que eles foram escritos pelo próprio colonizador, possivelmente esse enquanto se

dizia “civilizado” não tinha por interesse revelar sua participação no conflito.

Após a morte de Pahy, foi escolhido por Chagas Lima um novo “Capitão dos Índios” 24,

chamado de Luiz Tigre Gacon. Os relatos do padre sustentam a imagem de Gacon como

um líder indisciplinado que desorganizou o aldeamento. Sua liderança aparece

caracterizada por requintes de autoritarismo e truculência, "não perdoava aos seus menor

delito, castigando aos homens com chibata, e com palmatória as mulheres" (OFÍCIOS,

1861). Em decorrência de seus abusos para contra os “selvagens” ocorre uma eventual

vingança de antigos subordinados e por parte dos refratários “Dorins”, um ataque provoca

a destruição do aldeamento Atalaia em 182525. Takatuzi (2005) coloca uma ordem de

fatores que condicionam o fim do aldeamento:

Os registros eclesiásticos e oficiais contabilizados sobre os indígenas demonstram que o aldeamento de Atalaia teve momentos de auge, mas também de decadência, como freqüentes evasões em conseqüência de uma epidemia que se

Entretanto, sua descoberta pelos brancos ocorreu muito antes, em 1770. O nome é de origem Tupi - Guara (lobo), Puava (bravo). A carta régia antes citada serve de impulso para a colonização cada vez mais a sudoeste e oeste por parte da Província de São Paulo. A povoação em campos e morros promove grande observação ao colonizador assim como oportuniza que a construção de Catedrais e Matrizes seja observada de muitos quilômetros. Muitos são os relatos de tropeiros que o primeiro elemento que viam era o signo da cruz no alto da Catedral, logo já percebiam que ali era um lugar “sagrado” e “temente a Deus”.23 O registro de falecimento de Pahy escrito por Chagas Lima relata o seguinte: “chegaram seis índios adultos (...) e disseram uniformemente, que por efeito de um golpe mortal, recebido em debate, que tiveram no interior do sertão com certos índios bravos, denominados tac-taios, tinha falecido haveria oito dias o capitão Antônio José Pahy, índio nacional deste continente de Guarapuava, de idade de trinta anos ”(...). (CHAGAS apud SHALLENBERGER; FASSHEBER, 2007) 24 O que é interesse chamar a atenção aí é quanto aos primeiros nomes “Luiz”, “Antonio” e a alguns títulos cedidos como “capitão”. Essas nomenclaturas servem para entender outro divisor de águas entre a resistência cultural indígena e a influência dos colonizadores.25 Segundo Wachowicz 200 dorins, agrupamento indígena refratário a colonização branca, destruíram o Atalaia (op. Cit.: 12). Chagas Lima havia por permanecer em Guarapuava até 1828.

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propagou logo no início da catequese e devido à proibição das relações poligâmicas por parte do pároco Chagas Lima. Outros fatores que contribuíram para o declínio de Atalaia relacionaram-se às constantes relações marcadas por conflitos entre seções Kaingang e destes com os brancos (TAKATUZI, 2005: 10).

Usar como única tese a versão oficial de que Gacon foi responsável pelo fim do

Atalaia se torna um pouco irrisório. Esses outros registros usados pela autora retiram o

encargo de culpa sobre Gacon. Diversos fugitivos do massacre desceram aos Campos de

Palmas, ali se estabeleceria uma grande rota de fuga de muitos indígenas que fugiram da

disciplina da catequese ou que simplesmente se ausentaram em decorrência do fim do

Atalaia.

III – As primeiras tropeadas ao sudoeste, resistência e consentimento indígena: O

conflito fratricida entre Vaitom e Viri.

Até chegarem a Palmas, diversas viagens de tropeiros foram interrompidas por

antigos catecúmenos do Atalaia. Os ataques e provenientes assaltos eram

frequentemente relatados em correspondências do governo. Sobre um desses assaltos,

Ruy Wachowicz citando Joaquim Bandeira descreveu como uma expedição que

procurava minas de ouro chegou aos Campos de Palmas:

Nesta mesma época, [índios] atraíram seis moradores de Guarapuava, com promessas de lhes mostrar a existência de minas de ouro. Dirigiram-se com eles para o sul, em direção aos Campos de Palmas. Apenas um dos seis escapou ao massacre, auxiliado que foi por um índio seu amigo. Para conduzi-lo novamente para Guarapuava, tiveram que passar pelos Campos de Palmas. Desta forma, foi este sobrevivente "quem melhores e mais amplas informações deu ao referido campo" (BANDEIRA apud WACHOWICZ. op. Cit.: 14).

Previsto Gonçalves da Fonseca, ao

endereçar um relatório ao secretário do

governo em 1865 se referiu da seguinte forma

sobre o massacre do Atalaia: “os que

escaparão desta terrível matança, assustados,

abandonarão aqueles campos e asylarão-se no

sertão que limita o Paraná com o Rio Grande

do Sul” (sic!) (OFÍCIOS, 1865: vol. 3). Ainda

antes desse fato, o major Atanagildo Pinto Martins comandou tropas pela Real Expedição,

entre 1814-1819. Naquela época, a única estrada que ligava o São Paulo ao Rio Grande

Ilustração  7: A chegada da Companhia de Municipais Permanente   nos   Campos   de   Palmas   (autor desconhecido)

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era o Caminho de Viamão, o major tinha por objetivo criar uma rota alternativa que ligasse

os Campos de Guarapuava ao Rio Grande. Martins foi guiado pelo líder indígena

Yongong, descrito como grande conhecedor da região chamada pelos povos nativos de

“Bituruna” ou “Ibituruna” - Terra Alta das Palmeiras26.

A existência desses Campos como rota de fuga não é um mero fato inédito da época.

Conta ainda Bandeira que tais campos não eram revelados aos colonizadores, “a fim de

terem ali um asilo seguro, quando algum desvario provocasse contra eles as iras do

comandante de Guarapuava” (BANDEIRA, 1851: 386). Essa citação de Bandeira situa-

nos no contexto do relacionamento entre brancos e indígenas na época. Se por um lado

existiam os chamados “colaboracionistas”, esses não possuíam uma total confiança nos

brancos. No caso, o descobrimento indígena sobre Bituruna pode ser considerado um

fator de resistência.

Entre lendas e fatos se organizam as primeiras expedições que proporcionam vulto a

colonização branca dos Campos de Palmas. Antigas picadas indígenas passam a ser

usadas por tropeiros para chegar no destino proposto. Rios, sangas, pastagens,

taquarais, pedreiras, são atravessadas em Palmas afim de vencer-se a utopia da

colonização.

O horizonte daqueles grandes montes, foi atravessado por dois sertanistas em

especial: Pedro Siqueira Cortês e José Ferreira dos Santos27. Intitulados pela História

oficial como “pioneiros”, Cortês e Santos foram responsáveis por organizar duas frentes

de ocupação de Palmas entre 1836-1839.

Sobre essas duas frentes de ocupação, Wachowicz relatou

[Alguns dos habitantes dos Campos de Guarapuava, já ocupados,] deliberaram, sob liderança de José Ferreira dos Santos, fundar uma associação que teria por finalidade ocupar os campos de Palmas. Esta associação recebeu um estatuto e chamou-se Sociedade dos primeiros povoadores palmenses. Como seus membros recusaram o pedido de Pedro de Siqueira Cortes para associar-se, este resolveu organizar uma outra sociedade de povoadores dos campos de Palmas (WACHOWICZ, id.: 14).

A organização dessas sociedades era bastante grande, os líderes desses

26 “Bandeiras Paulistas no Séc. XVII teriam atravessado a região, várias vezes, quando buscavam as missões Jesuítas do Sul. Porém é ao bandeirante curitibano Zacarias Dias Côrtes que se atribui a “Descoberta dos Campos de Palmas”, quando este, por volta de 1720 - 1726 teria desbravado a região até a cabeceira do Rio Uruguai em busca de ouro (…). Porém, segundo Roselys Velloso Roderjan, em trabalho publicado no Boletim no Instituto Histórico e Geográfico e Etnográfico do Paraná, Atanagildo teria afirmado, em relatório, que o nome de Palmas foi dado por ele em homenagem ao Conde de Palma presidente da Província de São Paulo na época, à cuja Província pertenciam as terras do Paraná atual, estendendo-se, além dos Campos de Palmas até alcançar as margens do rio Uruguai ao Sul” (PALMAS, 2010).27 Expedições eram custeadas por sociedades que se uniam para explorar regiões que eram povoados por indígenas.

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agrupamentos desejavam atrair outros líderes populares em volta de si, esses seriam

autoridades na região e alguns deles passariam a ocupar outros povoamentos28. Um

exemplo disso no povoamento de Cortês eram Francisco Antonio de Araújo (fundador da

Fazenda Pitanga; Capitão da Guarda Nacional) e José Antonio de Lima Pacheco

(fundador da atual cidade de Pato Branco); e do povoamento de Santos eram o Pe.

Ponciano José de Araujo (primeiro capelão de Palmas), Francisco Ferreira da Rocha

Loures (interventor na comunicação com Vitorino Condá), Antonio de Sá Camargo

(fundador da Fazenda Floresta; deputado provincial, futuro Barão e Visconde de

Guarapuava).

Contudo, de terra em terra, existia entre ambos os fazendeiros um clima de rivalidade.

A liderança de Cortês (tropeiro curitibano) se via ameaçada. A ocupação da região por

tropeiros não era bem vista por autoridades da província de São Paulo. A província tomou

uma medida, a Companhia de Municipais Permanente foi nomeada e mandada aos

Campos de Palmas sob o mando de Hermógenes Carneiro Lobo, onde organizou uma

povoação que se localizava entre os lageados das Caldeiras e da Cachoeira.

Segundo Wachowicz, os municipais permanentes não possuíam mais o objetivo de

ocupar o sudoeste, mas sim proteger aqueles que já estava presentes na região. Ainda

segundo o autor, as sociedades organizadas pelos dois fazendeiros ocuparam aqueles

campos com pressa sendo que essa atitude pertence ao: “desejo de impedir que paulistas

protegidos pelo governo provincial se apoderassem das riquezas que aqueles campos

representavam para o futuro” (op. Cit.: 15).

O posicionamento de Pedro Siqueira Cortês foi fundamental não somente para a

manutenção da colonização de iniciativa popular naquela região, mas também para que o

movimento que reivindicava a emancipação do estado do Paraná tomasse corpo29. Logo,

28 SOCIEDADE DE PEDRO DE SIQUEIRA CÔRTES: Antonio de Siqueira Lima; Domingos Floriano Machado; Domingos de Siqueira Côrtes; Francisco Antonio de Araújo (fundador da Fazenda Pitanga; Capitão da Guarda Nacional); Francisco Inácio de Araújo Pimpão (fundador da Fazenda Cruzeiro; deputado provicinal, Capitão da Guarda Nacional); Francisco de Oliveira; Francisco de Siqueira; Jerônimo Luís Fernandes; João Lustoza de Menezes; Joaquim José de Oliveira; Joaquim José Pedroso; José Antonio de Lima Pacheco (fundador da atual cidade de Pato Branco-PR); Luiz Alves Carriel; Pedro José Pereira; Pedro Ribeiro de Souza (fundador da Fazenda Trindade; Capitão da Guarda Nacional); Pedro de Siqueira Côrtes (fundador da Fazenda Lagoa; deputado provincial, Coronel da Guarda Nacional). SOCIEDADE DE JOSÉ FERREIRA DOS SANTOS : Antonio de Sá Camargo (fundador da Fazenda Floresta; deputado provincial, futuro Barão e Visconde de Guarapuava); Candido Cordeiro de Paula; Cândido José dos Santos; Cipriano José da Silva; Francisco Ferreira da Rocha Loures; Jacob Dias de Siqueira; Joaquim Manoel de Oliveira Ribas (fundador da Fazenda Norte; primeiro Delegado de Polícia de Palmas); José Ferreira dos Santos (fundador da Fazenda da Cruz; Coronel da Guarda Nacional); José Joaquim de Almeida (fundador da Fazenda Alegrete; deputado provincial); José Matias de Freitas; Lucidoro José de Farias (fundador da Fazenda São Cristóvão); Lúcio Írias de Araújo “Gavião”; Manoel Teixeira de Freitas; Manoel Domingues de Andrade; Manoel Leirias de Almeida; Manoel Mendes de Sampaio; Manoel Narciso Belo; Maria Rita Brandina de Almeida ("mulher" do Padre Ponciano, abaixo); Pe. Ponciano José de Araujo (primeiro capelão de Palmas); Roberto José de Deus; Severo Tristão Rodrigues. 29 A erva-mate proporciona tonalidade principal atividade econômica do Paraná, essa era sua particularidade perante São Paulo. Nas palavras do primeiro governante da província, Zacarias de Goes e

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aqueles que passaram a se afirmar como paranaenses tinham mais um motivo para

permanecer na região.

É interessante frisar que apesar dessa rivalidade, não podemos registrar qualquer

conflito direto entre esses fazendeiros. Mas já entre os indígenas, esses conflitos são

frequentes e todos são procedentes ao consentimento dos chamados “homens bons”.

Esses assumiram o papel de manter contato com os líderes indígenas e

colaboracionistas, sendo que esses deveriam se unir ao processo colonial.

Um personagem fundamental para a colonização dos Campos de Palmas foi Vitorino

Condá, pay-bang (cacique) de toda a região, era frequentemente visto saindo dos verdes

campos com diversas famílias indígenas para influenciar diretamente nas decisões da

ocupação de todo atual sudoeste do Paraná, do oeste de Santa Catarina e do noroeste do

Rio Grande do Sul30. Apesar do seu aspecto de liderança, os interesses dos indígenas

não são relatados como decididos simplesmente pela autoridade de Condá. Em uma

correspondência que relata uma reunião ocorrida entre os colonizadores, ele é citado

acompanhado de outros nativos.

O Cacique rondava uma grande faixa de terras que ia de Guarapuava até Nonohay,

sempre com o objetivo de negociar a permanência indígena na região. Em um de seus

encontros com dois árbitros curitibanos que foram levados a Guarapuava para promover

essa negociação e a questão da posse das terras nos Campos de Palmas, Condá

aparece com outros indígenas provenientes do Atalaia:

entre os quais eram Chanerê mulher do cacique e duas outras criadas Maã e Vangre. Um dos índios sabia ler e escrever, por ter-se criado na aldêa de Guarapuava, d'onde fugiu para o sertão; e ainda fallava soffrivelmente a nossa língua, o que serviu à comunicação franca, até mesmo com o cacique, que também balbuciava algumas phrases portuguezas, e os entretiveram com agrados, dadivas e caricias, afim de os ganharem sua segurança (BANDEIRA. op. Cit.: 390).

Numa das ausências de Condá, quando levado para conhecer as autoridades de São

Paulo, outro líder aparece entre as fontes. Viri, também conhecido como “segundo chefe

indígena”, havia liderado os índios colaboracionistas contra os refratários – os primeiros

receberam apoio dos fazendeiros locais e esses últimos estavam sob a liderança de

Vaitom.

Vasconcelos (apud BALHANA, MACHADO & WESTPHALEN, 1969 [1854]) aquele produto se adaptaria aos “sertões desabitados” das imensas terras infindáveis do Paraná e criaria o seu vulto industrial, pois não custava aos seus habitantes “o mínimo esforço, colhem-lhes as fôlhas, secam-nas no fogo, no carijo, e quebrada miùdamente, está pronta a erva, e vão vendê-la às fábricas, que as beneficiam para exportar” (p. 110). 30 Por volta da década de 1840, dois árbitros neutros foram convocados para resolver a questão, Dr. João da Silva Carrão e Joaquim José Pinto Bandeira. Houve uma separação das duas comunidades, Siqueira Cortes ficara no poente e Santos para o nascente. (WACHOWICZ, op. Cit.: 15).

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Fechou-se um acordo, Viri aproximaria diversos guerreiros da povoação de Palmas

em defesa aos fazendeiros. Os documentos citam um grande contingente indígena saindo

de Nonohay e migrando para Palmas, um conflito era previsto linha a linha desses

documentos. Ermelino de Leão ainda cita os chamados “fangs” (cristãos), com os quais

Viri havia se comprometido. Na madrugada de 4 de março de 1843, Vaitom com seus

guerreiros atacou o aldeamento de Viri, com objetivo de atingir os fangs – para aquele

líder refratário, a influência religiosa dos cristãos sobre os Kaingang parecia uma ameaça.

O combate fratricida teve como resultado um grande número de mortos e a vitória dos

colaboracionistas, sob o júbilo do sangue indígena que irrigou aqueles campos. O

resultado desse combate registra Viri como “conhecedor de todos os acidentes

topographicos de Palmas” por parte do historiador (apud WACHOWICZ. op. Cit.: 19).

Esse combate evidencia um distanciamento entre as lideranças indígenas. No caso, a

aproximação de Viri com a sociedade colonizadora procurou desfazer qualquer fronteira

com os interesses dos fazendeiros. O nomadismo, nesse instante, não pode ser

entendido apenas como um mero processo de mobilização de grupos indígenas, existia

um interesse por parte dos fazendeiros em possuir um grande contingente populacional

em volta de si, isso para a formação de futuras cidades com suas devidas atividades

econômicas sendo desenvolvidas. Nesse processo, um processo de aculturação o

indígena era previsto. Os índios que vinham se encurralando cada vez mais a um canto

do futuro estado do Paraná, agora, se viam com sua cultura encurralado nesse mesmo

canto.

Uma guerra entre irmãos indígenas, assistida por brancos. Um olhar apurado sobre as

fontes pode nos fazer tomar uma conclusão de que os fazendeiros estiveram neutros

perante tais conflitos. Ainda assim, essa conclusão pode ser um pouco equivocada, ao

instante que percebemos essa intenção dos fazendeiros em aproximar os índios

palmenses da povoação de colonizadores em defesa desses. A inexistência de um

conflito armado entre esses fazendeiros e a defesa desses por Viri não são fatos isolados.

III – O amigo Condá: Uma picada até Nonohay, os índios e a catequese. As primeiras

políticas indianistas aceitas pelo nativo de Palmas.

A liderança de Condá foi fundamental para aproximar os nativos em volta dos

povoamentos brancos dos Campos de Palmas. Em 1846, por ordem da Província de São

Paulo, Francisco Rocha Loures31 deveria construir uma via de comunicação entre Palmas

31 O Brigadeiro Francisco da Rocha Loures era filho do antigo capitão e comandante interino da povoação de Guarapuava Antonio da Rocha Loures – que também era padrinho de batismo de Gacon. Segundo

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e o Rio Grande do Sul, para tanto usufruiu de sua amizade com Condá, que já existia

desde o aldeamento Atalaia. Do nomadismo indígena uma coisa ficou, o percurso

percorrido por esses povos formou diversas trilhas e picadas por tais campos, construir

uma estrada que ligasse esses a outras localidades não seria de total dificuldade.

Se o mato era um obstáculo fácil de se atravessar, com certeza não se pode dizer o

mesmo da população que beirava aquelas picadas. Os índios que ali residiam são

caracterizados pelas fontes como “hostis” a presença do homem branco. Após oferecer

segurança total a Loures e seus homens, em uma das passagens de Condá pela

localidade de Nonohay (noroeste do Rio Grande) foi registrada pelas autoridades

colonizadoras sua autoridade perante as demais povoações:

ahi reconhecei o imperio que o Indio exercia sobre os mais chefes, que apresentando-se em atitude hostil nos campos de Nonohay, sua voz a bem de seu amigo, foi bastante para os desarmar, e franquearam-lhe a passagem (BANDEIRA; idem: 394).

Com a passagem até Nonohay, esse clima de trégua possibilita o início da catequese.

Ao utilizar outras fontes e relatar os primeiros aldeamentos do Rio Grande do Sul,

Nonnenmacher fala sobre o relacionamento de Condá com João Cipriano Rocha Loures,

irmão de Francisco Rocha Loures e Primeiro Inspetor de Nonohay. A criação de um

aldeamento nessa localidade ficaria a cargo do pay-bang.

A sociedade indígena, no interior daqueles novos povoamentos e anterior a eles, o

nativo existia. As autoridades protagonizaram no século XIX, um divisor de águas na

questão indígena, essas passam então a pensar o indígena não apenas como mão de

obra, passando a compreender de outra forma o espaço onde essas populações viviam.

Ainda assim, isso não significa que todos pensavam de tal maneira ou que essa era

meramente uma ação humanitário por parte do colonizador. A política exercida pelas

autoridades da província tinha objetivos bem claros, seu dever era aproximar índios, vesti-

los e assemelhá-los ao costume do colonizador e administrar financeiramente o

aldeamento.

A inclusão do elemento indígena parece não procurou evidenciar diferenças culturais

com os brancos, o indígena aparece como integrante da nova sociedade daqueles

campos. Ainda assim, essa inclusão não deve ser observada como um elemento de

gratidão do branco para com o povoamento de Condá. Todas as estratégias de

Cristiano Durat: “O Brigadeiro Rocha, ostentava relações amistosas com os índios da região, entendia e falava a língua indígena, habilidades que o destacaram para exercer o cargo de Diretor Geral dos Índios, pelo presidente provincial Theofilo Ribeiro de Rezende em 1854, conforme orientava o Regulamento das missões de 1845 ” (DURAT, 2009).

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comunicação com esses outros agrupamentos possuiu intervenção direta de Condá, esse

apesar de ser reconhecido como apaziguador aparece sendo usado como um elemento

de manobra da permanência do homem branco em Palmas em troca de favores.

O primeiro passo para isso se dá culturalmente. Outro contato com a natureza, mais

precisamente com a terra, a partir de agora a preocupação dos índios deveria ser com as

plantações, isso impediria que esses “ameaçassem” os moradores das localidades

vizinhas. Ainda assim, a autora registra a falência do aldeamento em 1851, com isso,

segundo um relatório citado diversos índios recebiam roupas e alimentos, porém se

negavam a trabalhar na roça e acabaram voltando a sua “vida errante”, o que na visão

dos colonizadores era prejudicial para a “sociedade brasileira em expansão”

(NONNEMACHER, 2000: 34).

Provavelmente, decorrente desse fato, as lideranças indígenas de Palmas se dedicam

a construção de outro aldeamento. Viri, ao aceitar o contato religioso entre indígenas e

brancos, aparece citado como “homem sincero e fiel à amizade” (WACHOWICZ, id.). Um

butim aconteceu, roupas, alimentos e outros artigos de consumo foram entregues aos

indígenas como uma forma de reconhecimento. A catequese se coloca nas fontes como

parte integrante do desenvolvimento da região.

Diversos missionários foram trazidos do Rio Grande do Sul. A intenção de “educar o

selvagem” pode ser entendida como mais uma forma de contato com o elemento nativo,

procurando incluí-lo no corpo social de colonização dos Campos de Palmas. Todavia, a

criação de uma instituição catequética em Palmas pode ser interpretada pela forma que

age. Na imagem poucas vezes reproduzida, o cotidiano de qualquer dessas missões

evangelistas pode ser lembrada pela ação ininterrupta do padre.

Sua intenção era de procurar vigiar uma pequena sociedade para nela impor um

conjunto de códigos de postura em favor do colonizador. O indígena passava a estar

ausente da sua antiga realidade e do imaginário que fazia do mundo. Agora o índio era

colocado numa pequena escola, fechado nas ideias reproduzidas pela boca do padre

segurando o livro. Sob o crucifixo, a lei não era garantida pela punição do castigo, mas

pela consciência. Aquele que antes era inocente, agora poderia a qualquer momento ser

acusado de ser pecador. Uma força armada ao redor daqueles campos garantia essa

instituição normatizadora do índio não somente pelo discurso, não somente pelo diálogo,

mas sim pelas armas usadas e na forma como essas eram usadas se fosse preciso. Uma

rebelião como a do aldeamento Atalaia não seria permitida.

A educação portanto aparece seguida da punição, sua ação é a disciplina. Uma

disciplina que por si só produz um discurso de “bondade”, se justifica pelo “criador” que se

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personifica na imagem e no imaginário do colonizador. Imaginemos esse cenário, a

questão fica num índio, entre todos os outros “Índios” que olha para o padre e não

consegue entender como “um só Deus ao mesmo tempo é três” nem porque “esse

mesmo Deus foi morto por vocês” (LEGIÃO URBANA, 1986).

Essa letra evidencia a permanência dessas dúvidas. A educação dos indígenas muitas

vezes dava brecha para a existência de questionamentos como esses. Num momento,

num ambiente, numa manhã, numa escola, entre bambuzais, uma instituição catequética.

Uma instituição de controle sobre o “outro”. Qual seria o real motivo do fim do Aldeamento

Atalaia? Será que foi culpa de Gacon? Pensemos que muito antes da existência da

catequese palmense, os índios já questionavam os brancos civilizados.

Enfim, a revolta derrubou as estruturas do Atalaia... Esquecido na “Boca do sertão”, o

caminho do risco foi pensado no sucesso. Ninguém pensa como destruir um sonho, um

ideal de vida, por mais nativo e nu que seja, a instituição colonizadora apoiada na religião

se via pertencente da razão.

A catequese possuía um objetivo muito claro: concentrar os nativos numa missão

muito próxima da “civilização colonizadora”. Retirar o “selvagem” de seu habitat e colocá-

lo em outro lugar ordenado e pensado pelo branco possibilitava um catecismo a maneira

do branco. O indígena sendo “educado” se tornava disciplinado e mais dócil aos

interesses do colonizador. Suas providências seriam garantidas por essa disciplina e

obediência. Ainda assim, apenas catequizar o índio não era suficiente. Além do conluio

católico, o branco colonizador e devastador tinha por propósito construir estradas entre

aqueles campos. A melhor rota para construção de estradas era apontada pelo dedo

indicador do cacique, seu desbravamento e o ato da construção na maioria das vezes

cabia ao índio. Ao falar desse assunto Marisa Nonnenmacher relata:

um dos propósitos do aldeamento era exatamente o de fazer com que o índio Kaingang se empregasse na agricultura, para suprir seu sustento e mais tarde serem utilizados como mão-de-obra para o governo, tanto na abertura de estradas quanto na construção de pontes (NONNENMACHER. op. Cit.: 58)

Logo a escola é prenúncio do erro por indicar que existe alguém errado, ela o aponta e

pune-o em público para que ninguém mais cometa o mesmo erro. Ainda assim, do outro

lado, a imagem do fazendeiro passava impune.

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IV – Após a educação, o poder das armas: A impunidade de Pedro Siqueira Cortês.

1858: Carneiro Lobo, que era próximo de Condá, foi afastado do comando da

Companhia de Municipais Permanente. Siqueira Cortes assume o cargo em favor dos

curitibanos. Junto a Condá, Lobo se dirigiu a São Paulo afim de receber esclarecimentos,

entretanto, a emancipação do Paraná já havia ocorrido, a capital se tornara Curitiba.

Contam Leão e Wachowicz citando H. Elliot, que nesta oportunidade começaram a surgir

boatos sobre um possível ataque dos índios de Palmas. O novo comandante Pedro de

Siqueira Cortes parecia acreditar em tais boatos, mas Eliot diz a sua versão em

documento, alegando que Cortês havia invadido o mato onde viviam os índios porque:

é mais provável, desejasse neutralizar todos os planos de seu rival (…). O certo é que não perdeu tempo em deprecar força armada, como se estam tendo de vir de distancias (consideraveis), podesse obviar esse fantastico e sonhado ataque. Com a chegada desse auxilio, organizou-se uma escolta sob o pretexto de ir ao matto buscar os índios que se entretinham em suas innocentes caçadas e os conduzir a povoação; mas sua fixa atenção era de assassiná-los, porque em lugar de entregar força à disposição de uma pessoa de humanidade, honradez e intelligencia, escolheu para comandante um ignorante e brutal fanático, bem conhecido por sua ferocidade e malvadez (...). No segundo dia de viagem na sahida de uma pequena campina, por um sinal dado, os índios foram de subito acommetidos e ferozmente assassinados, sem que até então tivessem dado indício algum de insubordinação. Uma segunda escolta, procedeu da mesma criminosa forma, com algumas familias indígenas que andavam dispersas (ELIOT apud WACHOWICZ. Ib.).

Wachowicz ao citar o mesmo Eliot chega a uma conclusão rápida: ele poderia ter se

inspirado em outras fontes. Fazendo isso, voluntaria ou involuntariamente, ele acusa sem

saber quem, sem mostrar de onde tira essas fontes, torna improvável a visão do outro.

Isso não deve ter partido involuntariamente de Wachowicz, devemos lembrar que sua

publicação foi dedicada a Prefeitura Municipal de Pato Branco e Palmas, não interessava

a ele acusar alguns dos chamados “pioneiros” da região. Quis revelar a História por uma

lógica regional, sem entrar em discussões com o povo sudoestino. De forma alguma essa

publicação não-oficial procura gerar algum conflito ou desentendimento, ela dialoga com o

sudoeste, não acusa ninguém, apenas se refere às leituras já publicadas, lembrando que

entre elas estão alguns personagens.

Desmistificar nomes de ruas, praças e largos jamais será o objetivo da História, o

historiador não depende disso para ser profissional. Mas uma constatação desse artigo é

importante fazer, a versão do europeu é só mais uma versão, qual é a sua? A democracia

é só a “coisa do povo”, não temamos ela no terreno da História.

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V – Um golpe contra Condá, o cacique Antonio Prudente.

A necessidade de se comprar comercializar gado no sul não era simplesmente de

interesse das capitais das províncias mais ao norte. O Rio Grande do Sul também

necessitava de uma estrada que conduzisse as tropas até as grandes feiras do gado

muar. Segundo relatos:

Esses tropeiros (...) entravam em nosso estado pelo campo de Vacaria, atravessando o Rio Pelotas em alguns lugares, fazendo com isso uma grande curva, e, por conseguinte, aumentando muito o caminho. Em Xanxerê (SC) estava localizado o Comendador João Cipriano da Rocha Loures, encarregado da Civilização de várias tribos de índios do sul do país (PREFEITURA DE NONOAI, 2010).

João Cipriano da Rocha Loures por assumir o papel de “civilizador dos índios”

procurou desempenhar uma política de inclusão desses na sociedade branca por meio do

trabalho. No caso da formação de tropas de muares, esses índios seriam responsáveis

por fazer toda travessia juntamente com tropeiros brancos, indicando o melhor caminho

para passar a estrada. Seria chamado de charruá, aquele indígena que liderava a tropa

vindos do sul. Sua cultura era do mato, da lida com cavalos abandonados pelos brancos

ou que foram roubados de alguma criação. Grandes domesticadores de cavalo xucro.

Nem sempre esses foram apenas subordinados pelo branco dono de todas as terras.

Entre esses índios aculturados pelo trabalho, pela lida com tropeadas, existia um grande

líder de diversas tropas, era o cacique Antonio Prudente – um verdadeiro empresário do

ramo de muares.

Um dos empregados de Prudente, chamado de “charruá civilizado” que demonstrou

todos os caminhos ao seu patrão, passou por outros índios próximos da região de Palmas

e foi cruelmente assassinado. Condá logo foi citado como autor do ataque, como sinal de

vingança dois “índios de Condá” foram assassinados por parte de Prudente. Esses não

somente eram íntimos do pai-bang mais respeitado da região, mas também eram seu filho

Jacinto e seu cunhado, o velho Salvador.

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A dor, uma chaga intensa foi provocada na família

de Condá. Recebendo o apoio incondicional de Viri e

de todos os índios de toda Chapecó e toda Palmas,

esses por sua vez, exigiram vingança. Um grande

contingente migra do Paraná para Nonohay, uma

questão familiar, de honra se colocava nesse processo de mobilização de mais de 120

guerreiros – nenhum deles era branco. Em uma das correspondências de autoria de

Joaquim Andrada das Neves, Diretor do Aldeamento de Nonohay, essa autoridade previu

a incondicionável vitória das tropas de Palmas. Mas isso somente caso esses entrassem

em conflito com os do Rio Grande do Sul, esses últimos pareciam desmotivados a lutar já

que o diretor da localidade parecia ter reconhecido a derrota.

Mas a carta não se desprendeu apenas o reconhecimento da derrota. Numa das

passagens o diretor esclareceu que se por parte dele não havia interesse que os índios

entrassem em conflito, não é o mesmo que se podia dizer dos fazendeiros e estancieiros

gaúchos. Segundo denúncias do diretor, havia muitos interesses em jogo, existia por parte

de uns, sim, o interesse de "que os índios de Nonohay se desgastem e fujão para as

matas, a fim de melhor desfrutar os campos de Nonohay e reforçarem com maior numero

de índios o aldeamento e Palmas" (OFÍCIOS, vol. 10, 1859). José Joaquim de Andrade

Neves em um de seus relatórios a Província do Rio Grande do Sul nesse mesmo ano,

reconheceu a força dos índios e sua “propensão para a guerra”, sendo que esses homens

deveriam ser aldeados na fronteira “pois a bravura é a mais forte artéria do coração dos

indígenas do Rio Grande do Sul” (apud NONNEMANCHER, op. Cit.: 66).

Nos documentos constam a influência de Inácio, era mestiço e destacado como

sempre tendo “mais raciocínio que os outros” (op. Cit.) e responsável por apaziguar toda

situação. A vilania que recebia o nome de um antigo cacique Kaingang e muito se

Ilustração 8: Charrua por Debret

Ilustração 9: "Charrua civilizados" por Debret

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importava com as políticas indianistas agora recebia diversos índios de outras localidades

para tomarem uma decisão. “Não fizeram tocaias, nem atacaram de surpresa”,

boquiabertos falavam os colonizadores lá presentes, a intenção de Condá se pautou em

torno de uma palavra: justiça. Uma palavra simples mas que simboliza a aculturação dos

índios de Palmas até no momento da punição sobre outros agrupamentos indígenas.

Os criminosos foram capturados, imediatamente Condá e Viri entraram em contato

com as autoridades locais, relataram o fato e exigiram a punição imediata dos culpados.

No ditado popular: “eles pegaram a unha” aqueles que mataram membros de sua família.

Antonio Prudente foi julgado e mandado para a cadeia com mais sete capangas. A

indignação indígena aparece nas carta, com medo de prováveis linchamentos as

autoridades gaúchas mandaram os criminosos a Passo Fundo e depois Porto Alegre para

engajá-lo no serviço militar. A Câmara Municipal de Guarapuava (apud WACHOWICZ, ibi.:

23), com seus parlamentares todos perplexos relatou dessa maneira a reação de Condá e

Viri:

este pensamento que em qualquer pessoa civilizada seria bastante apreciavel, não pode deixar de merecer elogios muito especiais, partindo elle de indivíduos q. não tem recebido educação propriamente dita. (...) Voltarão delá os índios de Palmas satisfeitíssimos, e esta Câmara não póde deixar de significar à V. Exa. o prazer que nutre p. um facto de tanto alcance!

VI – Disciplinar a “selvageria”: O Aldeamento Chagú, sua origem e sua falência, e o

Destacamento Militar Indígena de Guarapuava.

Os índios de Chapecó, Chopim e Palmas então foram convocados para participarem

do Aldeamento Chagú – a oeste de Guarapuava -, convite do qual Viri recusou sem

esclarecer motivo. Esse aldeamento ao ser fundado em 13 de fevereiro de 1864 possuía

em seu plano inaugural não somente o reservamento dos índios, mas também a

catequese 400 desses. Era localizado em um terreno ideal “pela sua condição de

fertilidade do solo, do clima admiravel e facilidade de vias de transportes terrestres e

fluviaes”. Ainda segundo a o Brigadeiro Francisco Ferreira da Rocha Loures (apud

NEGRÃO, 2010), agora Diretor Geral dos Índios:

acho que não se deve esperar para o povoamento dos nossos sertões pelo braço do extrangeiro, convindo antes a organisação de solido systema de colonisação e catechese. O indigena, é o braço desoccupado tornado util e proveitoso pela boa orientação do Governo. Tendo a dupla vantagem de retirar-se de sua vida errante e indolente, que o leva ao crime, e de habilital-os á cultura da terra, á educação de seus filhos, creando-os com amor ao solo e ao trabalho propõe que se faça o aldeamento do indio sob a administração de um Director

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compenetrado dos seus deveres, e imbuido da idéa de que vai dirigir individuos ignorantes dos nossos progressos e da nossa civilisação. (…) Julgo que o Director deve ser um Official reformado do exercito, com uma guarnição militar composta de forças regulares e uma Companhia de naturaes do lugar, indios mansos, com seus officiaes proprios e commandada esta, pelo Cacique, ás ordens do Director da colonia. Deverão ter fardamentos vistosos. Os soldados se occuparão da abertura de estradas, percebendo soldos. Os indios aldeados se occuparão da lavoura e diligencia de novas catecheses, em commum. O producto da lavoura e industria indigena, será vendido como indemnisação ás despezas da colonia e o restante pertencerá ao colono. Escolas, officinas, diversões, muzicas, engenho, etc. O Governo mandará medir e demarcar as terras e dividil-as aos colonos indigenas, edificando as casas á cada família (sem grifos no original).

As políticas indianistas não ousavam esperar o “braço do extrangeiro”, seus objetivos

de desenvolver a região carregavam consigo um imediatismo de transformar aquele ser

com características “errantes” e “indolentes” proporcionadas em um trabalhador braçal a

serviço do governo. Nesse caso, percebemos algumas diferenças no conteúdo da carta

de Dom João VI para as palavras de Rocha Loures. Ao invés de anunciar uma “guerra

justa”, Loures procura incluir o índio em meio da civilização branca, ainda assim, essa

atitude não diferencia o desprezo a condição natural do índio.

A presença de forças militares na diretoria do aldeamento evidenciam uma forma de

esquadrinhamento do cotidiano do indígena fora de suas condições naturais, mas em

torno da vida pelo trabalho. Outro motivo para a presença militar no aldeamento se dava

ao fato de que ainda havia muito por se conquistar até a foz do Rio Paraná. Em tese essa

conquista somente seria possível por militares indígenas. Esse aldeamento estava

posicionado contra outros agrupamentos indígenas, uma verdadeira muralha mirada a

oeste, ali se planejava a colonização do oeste que chegaria a futura localidade onde

temos hoje os municípios de Cascavel, Medianeira e Foz do Iguaçu.

Apesar da recusa de Viri, esse se tornou uma grande autoridade militar de Palmas.

Veio a aceitar um convite de deslocar cerca de 30 índios a um destacamento militar em

Guarapuava32. Lá receberam enfardamento e se tornaram reservistas juntamente a 25

praças saídos de Curitiba - releve-se que esse era um número minoritário, mas quase

igual ao de índios. O ataque a tribos indígenas próximas ao destacamento era previsto.

Esse destacamento não aparece por nenhum dos autores relatado com minúcias,

notícias dele somente surgiram com seu fim, decorrente da falta de recursos enviados

pela capital da província. Nas palavras do Diretor Geral dos Índios, Francisco Pereira da

Rocha: "Posso affirmar a V. Exa. que nunca aqui tivemos Destacamento melhor, tanto em

asseio, como em disciplina e que mais se prestasse ao serviço Publico" (OFÍCIOS, vol.

32 Em 1.o de Agosto de 1863, o Brigadeiro Loures em Officio dirigido ao Ministro da Agricultura mostrou o erro do abandono do serviço de catechese e extincção do Aldeamento do Chagú e outros, que vem atirar ao abandono mais de 300 indios que hoje vagueam sem direcção, depois de terem procurado a civilisação.

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18, 1869).

Os requintes de selvageria que o discurso das cartas anteriores relatavam não

aparecem mais a partir desse momento. Disciplinar a selvageria, conter a barbárie, um

destacamento seria um quartel imaginário que distanciaria o índio de suas antigas

práticas cotidianas, possivelmente os índios não ficavam em regime fechado. Não porque

as autoridades não quisessem deixá-los exilados, mas talvez porque essas não tivessem

o interesse de até ele enviarem recursos. São possibilidades, que sobretudo, colocam

diante dos fatos algumas das peculiaridades da colonização dos Campos de Palmas.

Andando entre a natureza que conheciam agora a valorizavam mais ainda, com armas

em punho e em ininterrupta vigia serviam a Pátria. No aspecto defesa, os nativos

conheciam melhor essas terras, ainda assim não as consideravam fronteiras, mas se

interessavam em defendê-las dos “estrangeiros” que poderiam vir do oeste (paraguaios e

argentinos).

Vitorino Condá foi agraciado com o título de Soldo Major. Percebemos nesse

alistamento de índios e em suas condecorações uma ruptura histórica profunda. Índios

que antes viviam entre as matas, agora obedeceriam comandos militares e seriam

submetidos às ordens de um general. Contudo, nas palavras do colonizador seus projetos

pareciam ser tornados realidade muito facilmente, mas na própria realidade aplicada não

é o que percebemos.

Esse destacamento refletiu a necessidade de uma outra forma de disciplina ao

indígena, esse deveria servir ao interesse do homem branco colonizador para guerrear

contra seus irmãos hostis a colonização. Era o favorecimento do branco aos conflitos

indígenas, não que isso não havia ocorrido antes, mas agora seria oficial. Uma verdadeira

guerra instigada pelas mãos do homem branco, mas que em nenhum momento foi

praticada por essas mesmas mãos. Homem esse que se designou a escrever cartas e

relatar o genocídio do “outro”. Outro esse que era mais de um, já se fragmentava em

inúmeras hordas todas distintas entre si, umas usando roupas, sandálias, morando em

aldeamentos e outras nuas no interior das matas.

Depois de todos os conflitos, depois de toda educação seguida de punição, depois

irmãos de uns assassinarem irmãos de outros, depois de uns irem para a cadeia

enquanto outros foram para o exército, as palavras de Ruy Wachowicz procuram eternizar

a participação do indígena na tentativa de formação da “civilização” parananense,

segundo ele: “O Brasil desta forma colhia o mais importante fruto da política adotada

pelos pai-bang Condá e Viri” (WACHOWICZ, ibi.: 24).

Ainda assim, devemos reconhecer que não possuímos em mãos a versão do indígena

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sobre todo esse processo de formação dos Campos de Palmas. Uma desvantagem

descomunal de quem não se prendeu a própria História no sentido escrito, mas que

possivelmente possuem consigo os calos e muitas dores geradas pelas trajetórias

percorridas por todo chamado “Sertão do Paraná”.

Condá e Viri, agraciados como domesticadores dos Kaingang,

formaram trilhas com seus semelhantes, serviram junto a centenas dos

seus ao trabalho pesado da colonização. O homem branco vinha logo

em seguida derrubando e atropelando não somente as palmeiras - que

simbolizavam aqueles campos -, mas também araucárias, secando rios

e arrancando rochas, tapando toda nudez da natureza com suas

cidades e fazendo seu nome em diversas praças mesmo que as

pessoas nem saibam de quem é o tal busto ou a tal estátua. Hoje, o

município de Vitorino possui poucos moradores que sabem a origem do

nome da sua cidade. Alguns ligam ao rio que passa ao seu lado sem

saber que até mesmo esse recebe o nome do líder indígena33.

O sudoeste indígena na atualidade é caracterizado pelos Kaingang e por uma minoria

Guarani, ambos os grupos étnicos foram colocados na Reserva de Mangueirinha sem

relevar suas diferentes origens e sua História de conflitos, esse aldeamento é conhecido

por desentendimentos na questão de disputa de terras com fazendeiros acusados de

grilarem, tal aldeamento possui igrejas evangélicas e diversos bares no leito da rodovia

BR-158. Em 2003, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) zerou o déficit de famílias

desabitadas na reserva, entretanto, todas as casas eram de material, possuindo banheiro

completo. Essa ação por parte da Fundação pode ser interpretada como uma iniciativa de

aculturação, seja essa voluntária ou involuntária.

Nessa História de conquistadores, uma brecha ao nativo. Essa memória ufanista e

exaltadora desses líderes indígenas se torna a única forma de recorrer a sua imagem, já

que, até agora toda sua trajetória pelos Campos de Palmas foi traçada, influenciada e

transformada pelo homem branco. Perante os autos do vencedor, toda impossibilidade de

se reconstruir o processo histórico na forma como ele aconteceu. Portanto, procurei aqui

a construção de uma outra versão, uma versão que mais se aproxima de outras versões.

A História que circunda todos os Campos de Palmas, é memorizada nesses locais,

mas possui seus limites. Agora rompemos a fronteira do silêncio apenas em nome dos

fatos, que esses sejam contados pela maioria dos personagens possíveis.

33 Enquanto isso, Condá é o nome da Arena que cria e eterniza o seu semblante no metalizado guerreiro negro em ação, a casa da Associação Chapecoense de Futebol no oeste catarinense.

Ilustração 10: Monumento no estádio 

Índio Condá.

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