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AgroecologiA sem agricultores

locais? Uma reflexão sobre implicações da

agroindustrialização em projetos de desenvolvimento sustentável de

territórios rurais

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© 2016

EdiçãoWilson Schmidt

Projeto Gráfico e DiagramaçãoRicardo Straioto

ImpressãoGráfica Soller - Editora e Impressos Gráficos

ISBN 978-85-64093-25-6.

A281 Agroecologia sem agricultores locais?: uma reflexão sobre implicações da agroindustrialização em projetos de desenvolvimento sustentável de territórios rurais / Wilson Schmidt [Editor]. – Florianópolis : NEA EduCampo/UFSC, 2016. 144 p.

Inclui bibliografia.

1. Agricultura - Aspectos ambientais . 2. Agroindústria. 3. Desenvolvimento sustentável – Agricultura. I. Schmidt, Wilson.

CDU: 631

CATALOGAÇÃO NA FONTE PELA BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIADA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

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AgroecologiA sem agricultores

locais? Uma reflexão sobre implicações da

agroindustrialização em projetos de desenvolvimento sustentável de

territórios rurais

Wilson Schmidt

NEA EduCampo

UFSC

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Rabiscado de letras,

vale mais o papel branco?

Escreva primeiro,

arrependa-se depois –

e você sempre se arrepende.

Dalton Trevisan

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Sumário

ApresentaçãoThaise Costa Guzzatti

IntroduçãoWilson Schmidt

Capítulo 01A agroindustrialização dos alimentos produzidos pelos colonos nas Encostas da Serra Geral: a perspectiva de

um ator social • Wilson Schmidt

Capítulo 02Do tradicional ao agroecológico, do agrícola ao agroin-dustrial; Transições vividas pelos agricultores familiares

de Santa Rosa de Lima • Jovânia Maria Muller

Capítulo 03Agroindustrialização e diferenciação; complexidade do

processo, problemas e desafios • Luiz Otávio Cabral

Capítulo 04A agroindustrialização nas Encostas da Serra Geral e o

papel do Cepagro • Valério Alécio Turnes e Vanice Dolores Bazzo Schmidt

Capítulo 05Uma agroecologia fora do rumo? Atenção às

armadilhas... • Wilson Schmidt

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Apresentação

O texto e seu contextoThaise Costa Guzzatti

Com muita honra recebi o convite do Professor Wilson Schmidt (Feijão, como é conhecido) para fazer a apresenta-ção deste livro. Conhecemo-nos, em 1994. Eu era estudante de agronomia e ele, professor da disciplina “Introdução ao Desenvolvimento Rural”, no Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi a partir de suas aulas que consegui reconhecer o patrimônio que é a agricultura familiar, identificando o potencial produtivo, cultural, ambiental e social dela. Ele me ajudou a perceber os desafios desta “categoria social” e, mais do que isso, que eu, então com o privilégio de estudar em uma Universidade pú-blica, gratuita e de qualidade, não poderia – e não deveria – me omitir frente às restrições que a agricultura familiar sofria para expressar sua força produtiva, de construção de justiça social e de cuidado com a natureza. Aderi a muitas de suas abordagens teórico-práticas quando passei a ação, ou seja, quando me engajei, já como agrônoma, na tentativa de con-tribuir para a promoção do desenvolvimento rural sustentável nas Encostas da Serra Geral (no Sudeste de Santa Catarina).

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Dito isso, posso falar que conheço suficientemente bem o “escritor”/editor, da mesma forma que conheço a realidade sobre a qual ele escreve/organiza, já que trabalho naquele território desde 1997. Assim, sinto-me muito à vontade para apresentar o contexto que permite o surgimento deste livro e as contribuições que espero que a publicação possa trazer para agricultores e agricultoras do território e para o fortale-cimento da agroecologia.

Esta obra começa a ser materializada com o lançamento da Chamada Pública MCTI/MAPA/MDA/MEC/MPA/CNPq Nº 81/2013, instrumento de política destinado à coletividade que buscou (e conseguiu!) fomentar a criação de Núcleos de Estudos em Agroecologia no país. Na Licenciatura em Edu-cação do Campo da UFSC – curso no qual, atualmente, eu e Professor Wilson atuamos como docentes, vislumbramos uma oportunidade para fortalecer um dos eixos estruturan-tes do curso: a agroecologia. Além disso, tratava-se de uma possibilidade de dar continuidade a atividades de pesquisa e extensão no território com o qual tínhamos ligação, ou seja, o das Encostas da Serra Geral.

Neste quadro, a fim de responder à chamada pública, esta-belecemos diálogo com lideranças da Associação dos Agri-cultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral (Agreco) e da cooperativa que foi criada como seu “braço econômico”, a CooperAgreco, para identificação de temas prioritários para a proposição de atividades no âmbito do projeto a ser enviado ao CNPq. No debate gerado, foram apontados temas que es-tavam limitando o desenvolvimento da produção orgânica no território. Foram sugeridas: a realização de ações relacionadas com a melhoria de sistemas orgânicos de produção vegetal;a pesquisa de alternativas para melhorar a alimentação animal;

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o trabalho com sementes crioulas; a definição de estratégias para recuperação de áreas degradadas; e, também, ações re-lacionadas ao desenvolvimento de técnicas de compostagem.

O NeaEducampo (Núcleo de Estudos em Agroecologia da Edu-cação do Campo) surge, logo em seguida, com a aprovação da proposta submetida e da articulação de pessoas, conhecimen-tos e recursos para construção coletiva de soluções aos proble-mas apontados. Definiu-se, como objetivo geral da proposta, a implantação de vinte unidades de experimentação e socia-lização (UES) relacionadas com a produção orgânica e com a agroecologia, nos quatro municípios abrangidos pelo projeto (Santa Rosa de Lima, Anitápolis, São Bonifácio e Rio Fortuna) e, a partir delas, o desenvolvimento deatividades definidas no projeto e a formação e socialização dos conhecimentos pro-duzidos e/ou resgatados.A propostaesteve ancorada na pers-pectiva da pesquisa-ação e na estratégia de construção do conhecimento do tipo “de agricultor para agricultor”.

Como resultado, agricultores e agricultoras testaram técnicas de compostagem, de produção de húmus, incluindo pesquisas para avaliar dosagens mais eficientes na produção de horta-liças. Fizeram experimentação para a reformulação da ração utilizada na produção de frangos orgânicos, obtendo melhor ganho de peso das aves, melhor conformação de carcaças e menores custos de produção. No âmbito das sementes criou-las, participaram da realização de um inventário dos materiais presentes em Santa Rosa de Lima, seguido de trabalhos mais aprofundados para milho, feijão e arroz crioulos, culturas que eles próprios selecionaram como as de maior interesse para os agricultores e à agricultura locais. Do ponto de vista da recu-peração das áreas degradadas, apesar de requerer um trabalho de mais longo prazo que o permitido pelo projeto, foram es-

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tabelecidas orientações para a recuperação de mata ciliar no território. Realizou-se, ainda, ações de capacitação de agricul-tores e agricultoras, de agentes de Assistência Técnica e Exten-são Rural (ATER) e de professores universitários, além de um seminário de socialização. Muitas das Unidades Familiares de Produção que abrigaram as UES passaram a integrar o progra-ma de agroturismo do território e, com isso, os conhecimentos produzidos e/ou sistematizados passaram também a ser com-partilhados com visitantes urbanos e agricultores e técnicos de outras cidades e estados, que visitam o território justamente em busca de intercâmbio de “saberes e fazeres”. Foi produzida, igualmente, uma série de seis documentários (“curtas”) sobre os diferentes temas envolvidos na proposta e um outro livro – que preferimos chamar de Almanaque, dos guardiões eguardiãs da agrobiodiversidade de Santa Rosa de Lima.

Esta relação do NeaEducampo com os agricultores e agri-cultoras associados à Agreco – e com a própria Associação –gerou o estímulo para que acadêmicos envolvidos refletis-sem – ou revisitassem antigas reflexões – sobre a história, a conjuntura atual e os rumos do projeto de construção de um território sustentável e solidário nas Encostas da Serra Geral. Este livro nasceu neste – e deste –ambiente.

O leitor vai se deparar com a visão de vários autores que, em momentos diferentes, se empenharam na construção das estratégias territoriais ou se dedicaram à reflexão aca-dêmica sobre a dinâmica territorial. Pode-se dizer que a leitura da obra envolve, surpreende, estimula a reflexão e conduz a assumir uma postura crítica diante das diversas visões apresentadas. Tenho, por isso, a impressão de que cada leitor assumirá um posicionamento próprio, diante de cada capítulo e do conjunto do livro.

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Este produto, última contribuição formal desta etapa do projeto, busca colaborar com o processo de desenvolvimento em construção nas Encostas da Serra Geral, sobretudo no que se refere ao que sempre foi apresentado, por todos os atores sociais que dele participam ou participaram, como sua essência: o fortalecimento da agricultura familiar “local”, via agroecologia. Faço questão de destacar que o editor da obra e todos os autores que a compõem conhecem profunda-mente a realidade e a dinâmica de Santa Rosa de Lima e do território que é seu entorno.

Por último, mas não menos importante, ressalto que o Ne-aEducampo continuará comprometido com as Encostas da Serra Geral, com sua agricultura familiar e com organiza-ções voltadas à agroecologia e ao desenvolvimento territorial efetivamente solidário e sustentável. Espero, desta maneira, que o Núcleo continue encontrando uma boa interlocução “no terreno”. A atuação dele estará focada, para os próximos anos, no aprimoramento das estratégias relacionadas à salva-guarda e à disseminação de sementes crioulas, no fortaleci-mento da agroecologia e na construção de alternativas para os agricultores familiares, especialmente jovens e mulheres. Continuo acreditando no território das Encostas da Serra Geral e na possibilidade – mais do que isso, na necessidade – de ali construir um espaço “limpo” (sem agrotóxicos, ou-tras substâncias de síntese química e sem transgênicos), com equidade social e com uma agricultura familiar local perma-nente, inclusive porque economicamente viável.

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Desde a sua concepção, em 2008, a Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal de Santa Catarina (Edu-Campo-UFSC) tem a agroecologia como seu eixo estruturante. O fato da aula inaugural do curso ter sido ministrada pelo Professor Miguel Altieri, da Universidade da Califórnia em Berkeley, é icônica.

Já no primeiro Projeto Político Pedagógico da EduCampo- UFSC, o objetivo do “módulo Agroecologia” é apresentado claramente: “explicitar a relação entre as técnicas propostas para a produção e o crescimento agrícolas com os processos de concentração e exclusão atuais, trabalhando a necessidade de construir novos padrões técnicos e outros princípios éticos, ligados à noção de sustentabilidade e a uma visão de mundo solidária e respeitosa das diferenças e do meio ambiente”.

Como é sabido, nas Instituições Federais de Ensino Superior, uma ideia compor um planejamento “bem definido” não asse-gura a sua implantação. Houve, principalmente, dificuldades na efetivação das contratações de docentes para a EduCam-po-UFSC, destaque-se, previstas, aprovadas e com calendá-rio definido pelo Ministério da Educação e seus programas.

Introdução

Wilson Schmidt

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Da mesma forma, faltava uma linha de apoio claro à implan-tação de uma iniciativa ou ação de Pesquisa e Desenvolvi-mento (P&D) que servisse de alavanca para o “fortalecimen-to” institucional da agroecologia”.

Essa oportunidade chegou com a Chamada 81/2013, que en-volveu diversos ministérios (MCTI, MAPA, MDA, MEC, MPA) e o CNPq. Ela buscou “selecionar propostas para apoio finan-ceiro a projetos que integrem atividades de pesquisa, educa-ção e extensão para a construção e socialização de conheci-mentos e práticas relacionados à Agroecologia e aos Sistemas Orgânicos de Produção”.

A EduCampo-UFSC já havia decidido, anteriormente, interio-rizar as suas turmas, aproximando o curso de territórios ru-rais e dos jovens do campo, seus potenciais estudantes. Para a composição da quarta turma, em 2012, foi feita uma parceria com atores sociais do território das Encostas da Serra Geral, no Sudeste de Santa Catarina, especialmente com a prefeitura municipal e com organizações de agricultores familiares de Santa Rosa Lima, considerada a “Capital catarinense da agro-ecologia”. Nasceu uma nova parceria. Agora, para a “constru-ção” conjunta de uma proposta de ação de P&D para a Cha-mada 81/2013, que atendesse às necessidades dos agricultores das Encostas da Serra Geral, buscando superar os principais “gargalos técnicos” que eles enfrentavam, sempre respeitando os saberes acumulados e/ou gerados localmente. O resultado foi a implantação do Núcleo de Estudos em Agroecologia da Educação do Campo da Universidade Federal de Santa Cata-rina (NEA EduCampo UFSC).

Já nos debates iniciais com as organizações que se afirmam de agricultores familiares das Encostas da Serra Geral, ficou claro que a (re)aproximação com aquele processo de desen-volvimento territorial rural, dentro de uma perspectiva de distanciamento analítico, implicaria em uma reflexão críti-ca sobre a história e, especialmente, os rumos que estavam

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tomando aquele “projeto” ou “construção social”. Uma coisa ficava evidente. O número de agricultores familiares inclu-ídos no processo e a própria perspectiva de inclusão posta no final da década de 1990 pareciam ter perdido expressão e consistência. Um foco muito maior no produto alimentar (ou agroindustrial) “saudável-saboroso-orgânico” –caracte-rísticas consideradas “básicas para estar no grande varejo” – parecia ter superado a ideia de viabilizar a inclusão social de agricultores marginalizados (porque familiares e “peque-nos”), situados em um território marginalizado (porque fora de eixos dinâmicos, em relevo acidentado e em condições de montanha) frente às condições impostas pelo mercado e pelos poderes públicos no que se refere à produção agrícola e ali-mentar. O que esses agricultores ouviam, àquela época, é que frente à globalização e às exigências da indústria alimentar e da grande distribuição, eles certamente seriam excluídos. A contraposição, no processo de animação e mobilização fei-to junto a eles, foi que poderiam se incluir se fizessem “di-ferente" para um mercado segmentado e agregassem valor aos produtos com uma produção “limpa” em um território “limpo” e “com imagem de limpo”.

Chamou a atenção, por isso, praticamente dezoito anos de-pois, ouvir de lideranças dessas organizações, como se os dados nada significassem, informações como: “no ano pas-sado, 90% da matéria prima para as geleias foi comprada fora” (leia-se de agricultores familiares orgânicos de outras regiões do país); ou, até, “o tomate vindo da Itália chega às nossas agroindústrias a um custo menor do que o produzi-do localmente” (logo, por que “gastar tempo e atenção com produtores e produção locais”?). A tudo isso se somava uma afirmação de que “formas puras ou perfeitas de projetos de agricultura orgânica” não teriam “durado uma década” e que ao agirem dessa forma, estariam “abrindo mercado”, para, à frente, “possibilitar a produção local de matérias primas”,

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ou que estariam colocando “a base para crescer” que, depois, permitiria “continuar crescendo, mas mantendo a essência”.

Naturalmente, não se trata de julgar tais lideranças ou as op-ções que elas fizeram. Muito menos, de opor, como algumas delas o fazem, “orgulho” e “mácula”. Trata-se de pensar quais as consequências que podem ter projetos de “verticalização da produção” ou “agregação de valor” – como são denomina-dos aqueles de construção, funcionamento e consolidação de agroindústrias – para processos de desenvolvimento de terri-tórios rurais com forte presença da agricultura familiar. Mais do que isso, pensar sobre tendências e/ou rumos. Ou, ainda, tentar contribuir para a reflexão sobre possibilidades de mu-dança de direção e de ritmos para esses processos ligados, a princípio, ao fortalecimento da agricultura familiar apoiado nos conhecimentos da agroecologia.

Para o caso das Encostas da Serra Geral, avaliamos como fundamental recuperaros primórdios e os princípios (bases) do processo ligado à construção da Associação dos Agriculto-res Ecológicos das Encostas da Serra Geral (Agreco). Não teria sentido nós mesmos refazermos esse histórico. O esforço e a produção acadêmica de muitos pesquisadores – mestrandos e doutorandos – é farta, relativamente disponível e de muito boa qualidade. Além deles, há a memória e as reflexões dos atores sociais que viveram “visceralmente” o processo.

Para esta última contribuição, optamos, primeiro, por um de-poimento do “homem-providência”, como chamam os fran-ceses, de Santa Rosa de Lima. Homônimo do autor deste livro, Wilson Schmidt foi o “notável” local que construiu e mobili-zou redes para viabilizar, como ele próprio diz, um caminho alternativo e, ao mesmo tempo, conflitante ao do agronegó-cio, no município em que ele viveu a infância e cresceu, que sempre teve como referência e no qual, hoje, como professor universitário aposentado, voltou a viver: Santa Rosa de Lima, ao pé da Serra Geral, no Sudeste catarinense.

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Além desta colaboração, avaliamos fundamental recuperar memórias e análises de lideranças e técnicos da Organiza-ção Não Governamental que apoiou, no início, a concepção – como se verá, é mais exato dizer: adaptação – do projeto de “agroindustrialização” ligado à Agreco. Valério Alécio Tur-nes, junto ao Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro), e Vanice Dolores Bazzo Schmidt, jun-to ao Programa de Desenvolvimento da Agricultura Familiar Catarinense pela Verticalização da Produção – Desenvolver, acumularam um arsenal de informações e reflexões que con-tribuem para o esclarecimento e o posicionamento do leitor.

No que se refere aos estudos acadêmicos, escolhemos os dois que nos parecem mais fundadores e passaram a ser referência obri-gatória para as pesquisas seguintes sobre o processo em Santa Rosa de Lima e região. Tais trabalhos nos interessam, também, por-que são contemporâneos dos acontecimen-tos ligados ao “projeto de agroindustrializa-ção” e, captam, por isso, “a quente”, o que se viveu, sentiu, pensou, projetou, à época. Acreditamos que ficará claro ao leitor que as agroindústrias eram vistas como um meio para viabilizar a pequena agricultura fami-liar local e não, como um fim em si mesmo. Fizemos uma “releitura”, extrato ou edição, com o foco em nossa discussão, dos textos originais da Dissertação de Mestrado de Jo-vânia Maria Muller1 e da Tese de Doutorado de Luiz Otávio Cabral2 . Estes materiais “re-visitados e revistos”, por nós, foram subme-tidos aos autores que consideraram que nos-sa intervenção não gerou distorções e, por isso, autorizaram a publicação neste livro.

1 MÜLLER, Jovania Maria. Do tradicional ao

agroecológico: as veredas das transições (O caso dos

agricultores familiares de Santa Rosa de Lima/SC).

Florianópolis, 2001. 216p. Dissertação (Mestrado

em Agroecossistemas) – Curso de Pós-Graduação

em Agroecossistemas, Universidade Federal de

Santa Catarina.

2 CABRAL, Luiz Otávio. Espaço e ruralidade

num contexto de desenvolvimento voltado

à agricultura familiar. Florianópolis, 2004.

267p. Tese (Doutorado em Geografia) - Curso de Pós-graduação em

Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina.

Disponível em: http://repositorio.ufsc.br/xmlui/

handle/123456789/86848

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Fique claro que a autoria e os méritos são deles. Sublinhamos que para o texto de Jovânia Muller, por considerá-lo, hoje, praticamente “confidencial” – somam-se a data em que foi produzido, as dificuldades para localização de exemplares em bibliotecas e, sobretudo,o fato de não estar disponível na in-ternet –, optamos por uma versão que a própria autora julgou um pouco longa. Como ela também teve dificuldades para fazer “cortes”, prevaleceu nosso “formato estendido”.

Fique claro que a mobilização dessas colaborações, na for-ma de depoimentos ou textos, não engaja seus autores nas – ou os torna corresponsáveis pelas –nossas (do organizador do livro) reflexões ou conclusões, apresentadas no Capítulo 5. Dizendo de outra forma, eles (textos e depoimentos) estão neste livro para contribuir para a reflexão do leitor. O que não significa que os autores deles estejam, necessariamente, sintonizados ou solidários com nossas ilações.

Especialmente porque os resultados de nosso exame po-derão ser considerados por alguns – injustamente, avalia-mos – como diatribes. Afinal o que sempre se afirmou aos parceiros, apoiadores e financiadores públicos dos projetos de agroindustrialização propostos para Santa Rosa de Lima e as Encostas da Serra Geral é que se buscava construir “estratégias socioeconômicas alternativas para as famílias de agricultores locais”, ou, dizendo de outra forma, “a via-bilização técnico-econômica, social, ambiental e cultural das unidades de produção familiares daquele “território em construção”, que se previa poderia ser “limpo” (livre de fer-tilizantes e agrotóxicos de síntese química e de organismos geneticamente modificados).

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Pensando no leitor, optamos pela seguinte disposição dos capítulos. Isso não significa que essa ordem seja obriga-tória para a leitura, a compreensão do processo e para a reflexão autônoma sobre ele. Inicialmente, a contribuição do “outro” Wilson Schmidt apresenta os princípios e as perspectivas colocadas na gênese do processo de “ecologi-zação” e, depois, de agroindustrialização da produção agrí-cola em Santa Rosa de Lima e nas Encostas da Serra Geral. Em seguida, o texto de Jovânia Maria Muller e suas “vere-das da transição” da agricultura tradicional, passando pela convencional e chegando à agroecológica. Tal abordagem contribui para compreender a gênese de todo o processo. Depois, o texto de Luiz Otávio Cabral, porque ele apresenta e analisa com muita pertinência o contexto e o processo de construção do Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede, ou Piamer. Posteriormente, há a recu-peração e a análise do trabalho do Cepagro na animação, mobilização e elaboração do projeto propriamente dito, as-sim como elementos da ação do “Desenvolver”. Finalmente, trabalhamos o que consideramos os impasses atuais, quan-do constatamos que o processo de crescimento e consolida-ção das agroindústrias pode estar se dando em detrimento da agricultura e dos agricultores familiares locais.

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Os antecedentesA partir de 1982, depois de ter saído do meio rural e do meu município para estudar e trabalhar, com passagens por São Paulo e pelo Acre (Porto Walter), eu me reaproximei da região. Primeiro, fui candidato a prefeito de Santa Rosa de Lima. E per-di! Depois, fui trabalhar na Secretaria Municipal de Educação de Tubarão e vinha com muita frequência aqui no município.

O que eu queria era tirar meu pai da produção no agronegócio integrado do fumo. E que ele tivesse uma boa renda. Naquele momento, eu já pensei no intercâmbio campo e cidade. E vis-lumbrei um quadro novo. Novo porque a atividade agrícola do fumo – prejudicial à saúde e com trabalho penoso – era a prin-cipal produção agrícola do território. Além deste, expandia-se, também, o agronegócio integrado da criação em granjas de porcos e de aves. Creio que, então, os pesquisadores e profes-sores das universidades, assim como técnicos da Embrapa (Em-presa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), já tinham uma avaliação do significado negativo destas práticas agríco-las. Destaque para as consequências ambientais, com ameaças à qualidade da água que abastecia as cidades.

Capítulo 1A agroindustrialização dos alimentos produzidos pelos

colonos nas Encostas da Serra Geral: a perspectiva de um

ator socialWilson Schmidt

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A nova atividade, para o local, foi a produção de verduras. Na-quele momento, tivemos a ousadia de comprar uma “picape” zero quilometro. Que foi quitada com uma venda de madeira. Era para transportar os produtos para vender, uma vez por se-mana, em Tubarão, um município então com oitenta mil habi-tantes, situado a setenta quilômetros da sede de Santa Rosa de Lima. Ao mesmo tempo, trabalhávamos a “casa do mel”.

Em 1988, tendo sido convidado a participar da equipe de ges-tão da Secretaria Estadual de Educação, eu passei a trabalhar e morar em Florianópolis. E percebi que os moradores urbanos sentiam consequências diretas da “modernização” da agricul-tura, na falta de sabor nos alimentos. De fato, os alimentos resultantes de práticas antigas e tradicionais só resistiam nas festas votivas dos padroeiros católicos das comunidades rurais, ou nas festas religiosas protestantes.

A parceria com os Supermercados Santa Mônica, de Florianó-polis, na virada para a década de 1990, foi o segundo passo para estimular a mesma atividade para os colonos. O Egídio Locks era um “comprador”. Ele vinha aqui em Santa Rosa de Lima, porque “era [nativo] daqui”, porque conhecia os colonos daqui, e porque deles podia comprar verduras. E nós vendí-amos a nossa produção para ele. Tudo,in natura. E também para o Giassi, que foi outro supermercadista parceiro desde o início. Finalmente, em 1991, a primeira GemüseFest estimulou a expansão na região deste tipo de produção.

Uma protoagroindustrializaçãoLogo depois, começa a haver a cobrança do Egídio Locks para fazermos o “minimamente processado”, ou seja, selecionar, pa-dronizar, preparar e embalar as verduras. Segundo ele, esta era uma exigência dos consumidores. Assim, naquele momento, já surgiu a ideia de um processamento centralizado, que retirasse da “cadeia”, desde antes do transporte, o que não deveria chegar ao supermercado. Minha família investiu em uma estrutura para isso. Basicamente, sem projeto, transformamos um galpão exis-tente em nossa propriedade em uma estrutura de processamento mínimo, fazendo um piso, construindo “cochos” (tanques) azu-

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lejados, para a lavação das verduras, e mesas para processá-las e embalá-las. Tudo muito artesanal, com poucos equipamentos comprados e com muita mão de obra. Mas, bem higiênico e lim-po! A expansão para a vizinhança – ou seja, engajar os vizinhos próximos nesse processo – foi uma coisa natural. Esse foi um crescimento normal e um começo de agroindustrialização.

A associação como opçãoComo consequência, eu via que a criação de associações e co-operativas havia passado a ser uma necessidade para que a nova forma de trabalhar o campo ganhasse a cumplicidade da população das cidades do litoral. Por isso, eu me contrapus à proposta de criação de uma “empresa que nos levasse a ga-nhar dinheiro”, como me propunham. Tal oposição foi devida, primeiro, à minha história de formação – no seminário; com os Jesuítas nas Faculdades Anchieta ou, especialmente, apren-dendo com os companheiros de Diretório Acadêmico e, depois, com filhos de seringueiros – e de vida, notadamente com o trabalho no Acre. Segundo, em razão do fato de eu considerar que as minhas raízes estavam aqui, local em que eu via um povo vítima de uma grande desigualdade e que não teve o acesso à escolaridade que eu tive. O que eu enxergava era a agricultura colonial, que eu conhecia e respeitava, sendo inva-dida pelo agronegócio. E esse me parecia, naquele momento, o grande problema: ter empresas organizadas que trazem tudo pronto e fazem o que bem entendem com os agricultores. Por isso, eu não queria fazer nada que imitasse o agronegócio.

Neste ponto, é preciso destacar que a organização da asso-ciação de agricultores orgânicos nas Encostas da Serra Geral precedeu a constituição de uma cooperativa, que seria uma organização mais adequada para dar suporte e ser parte do processo de agroindustrialização na região. Importante lem-brar, da mesma forma, que depois da Associação dos Agricul-tores Ecológicos das Encostas da Serra Geral (Agreco), surgiu o movimento para a criação da Associação de Agroturismo Acolhida na Colônia (de inspiração francesa!), que fortalecia e apoiava a construção de alternativas.

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O projeto de agroindustrializaçãoNaquele mesmo período, o Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro) passou a apoiar uma iniciativa coletiva voltada à agroindustrialização como forma de agregar valor. Tal ação era o resultado de uma proposta de política pública do Governo Federal, apresentada pelo Murilo Flores, então na Secretaria de Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura. A proposição tinha uma concepção interessante e uma dimensão importante. Visava beneficiar e transformar um conjunto de alimentos resultantes do cultivo vegetal e da criação animal. Ou seja, o projeto por ela apoiado deveria dar conta de uma variedade muito maior, para permitir uma venda melhor, tanto nos supermercados, como no chamado "mercado institucional", tendo à frente a merenda escolar. Para essa úl-tima possibilidade foi importante a gestão Esperidião Amin, no Governo Estadual, que começava naquele momento, associada à aproximação que já tínhamos como trabalho do Padre Vil-son Groth, no Maciço do Morro da Cruz, principalmente com as escolas existentes nas “Encostas” centrais da capital. Essa perspectiva sinalizava para a necessidade de uma produção organizada e que, inclusive em função da distância de Santa Rosa de Lima em relação a Florianópolis, exigia, pelo menos, processamento e acondicionamento.

Naquele quadro, frente à notícia de possibilidade de financia-mentos para construir agroindústrias, logo me mobilizei e vim a campo com o pessoal do Cepagro. Aderi imediatamente à pro-posta porque as agroindústrias faziam parte da cultura do colo-no das Encostas da Serra Geral. Afinal, as pequenas indústrias e as agroindústrias existiram antes. Elas foram trazidas pela co-lonização e garantiram a sobrevivência dos colonos nas Encos-tas da Serra Geral. As serrarias pica-pau, marcenarias e olarias possibilitavam a construção das casas nos estilos das diferentes culturas: açoriana, italiana e alemã. Para a alimentação, a ata-fona, o monjolo e o pilador de arroz, assim como os equipa-mentos para secar as carnes de porco e de gado, os engenhos de farinha e de polvilho de mandioca, e os engenhos de cana que produziam o açúcar e o melado, assim como os alambiques que fabricavam a cachaça que ajudava a abrilhantar as festas

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típicas e os bailes das Encostas da Serra Geral. A experiência de minha família com a verdura minimamente processada também foi importante para meu assentimento e minha arregimentação.

O sonho sobressaltadoEu pensava numa espécie de retomada das pequenas agroin-dústrias para que os colonos pudessem não ser dependentes de grandes agroindústrias. Nós já tínhamos a referência da subor-dinação que acontecia no fumo e nas granjas de suínos e aves. Eu pensava que o colono poderia passar a ser a figura cen-tral. E que ele, colono, precisava disso. Eu via, também, que a agroindustrialização aconteceria numa relação entre vizinhos.

Não deu tempo para sonhar muito com o futuro, porque os fatos foram desencadeados muito rapidamente. Enquanto as vendas para os supermercados estavam bem, parecia a todos que se iniciava um círculo virtuoso. Todavia, quando o gru-po parceiro – o Santa Mônica – faliu, passou a prevalecer, somente, uma estratégia de sobrevivência. Foram muitos os entreveros que quebraram a possibilidade de continuar so-nhando. Mas, enquanto isso foi possível, tratava-se de antever a construção de um “local” – o “território” entre Grão Pará e São Bonifácio, região com a tradição de uma ocupação por colonos – com uma agricultura colonial forte e com pequenas agroindústrias dos agricultores familiares. Nessas unidades, em que eles seriam os trabalhadores e os gestores, valoriza-riam para além das verduras, o queijo colonial e os derivados de porco – construindo uma “imagem de marca” ligada ao local e à agricultura colonial.

Uma volta ao futuroFoi desta forma que a rede de pequenas agroindústrias de alimentos ganhou dimensão territorial aose projetar nas En-costas da Serra Geral, a partir daquilo que os colonos ainda vinham produzindo na agricultura familiar da região e con-templando as culturas açoriana,italiana e alemã. Da lembran-ça dessas culturas e da trajetória na região resultou a frase escrita numa pedra do terreno de fundação da Agreco: “O que fizeram os colonos com aquilo que fizeram com eles”.

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Assim, para mim, naqueles tempos de desafios, a agricul-tura colonial deveria ser retomada, como “o novo nasce do velho”. E não na visão puramente técnica ou acadêmica. A lógica era a seguinte: eles são colonos, têm a memória do “antigo”, vão produzir de uma forma respeitosa ao meio am-biente e à cultura deles e vão beneficiar ou transformar, em agroindústrias – é verdade, adequadas às exigências atuais, o que produzem, para que também eles, na sociedade em que vivemos, possam “ganhar dinheiro”. E para, assim, não pre-cisar sair da agricultura.

A visão do técnico é de produtividade, de eficiência, de custos menores. A minha visão é que a produção deve ser feita aqui, para dar continuidade a um processo longo. Eles dizem que eu estou sonhando ao querer o que eles chamam de “retomada do antigo”. Eu insisto em falar que precisamos estudar, analisar e viabilizar a atualização do nosso “colonial”. E, até, mais do que isso, de dar futuridade ao “colonial” daqui. Minha expectativa, hoje, é justamente, com os jovens que estão estudando – che-gando até ao nível superior – e permanecendo no município e nas unidades de produção das famílias deles. É fundamental que predomine a visão de que a produção precisa ser feita local-mente, no entorno da agroindústria, por agricultores familiares.

Um fio no tempo e no espaçoTendo isso em conta, é importante pensar em um “salto”. No fi-nal do século XIX e início do XX, os colonos provenientes dos países europeus,principalmente Alemanha,Itália e Portugal, atendiam ao apelo do governo brasileiro para ocupar uma área onde viviam índios do Grupo Jê3. Agora, no início do XXI, aqueles países terão o privilégio de, na próxima Biofach(maior feira de produtos orgânicos do Mundo),em Nurenberg, iniciar o recebimento dos pro-dutos das Encostas da Serra Geral de Santa Catarina. Conhecerão o “sabor colonial” – no mel, nos doces dos frutos de época e na já famosa cachaça de melado de produtos genuínos brasileiros.

3 Valeria a pena escrever um outro texto sobre a atuação dos "bugreiros”, aqueles que organizavam a matança dos índios. Já existe,contudo, uma bibliografia sobre este assunto!

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Considerações não finalísticasConvidado a apresentar a minha visão pessoal sobre este pro-cesso de valorização das pequenas agroindústrias na região, ainda em andamento e que agora vive uma "retomada", julgo que o que mais importa é que ele é feito com pessoas,entidades e governos. E que, justamente, por ser uma construção coleti-va,não tem “salvador da pátria”. Da mesma forma, não podem ser imputadas a apenas alguns as responsabilidades por erros cometidos. Nestes processos, destaque-se, errar não é o princi-pal problema. Grave é repetir o erro!

Por ser uma proposta ousada de inovação, ligando a população que mora na cidade àquela que mora no campo,vivemos todos, a cada momento,apreendendo mais. E não apenas nos estudos promovidos nas universidades, mas, sobretudo, nas experiên-cias dos colonos. Este é o permanente sentido do que denomi-namos “Sabor e Saber”.

Sublinho que os estudos e pesquisas das universidades e de ou-tras instituições públicas só conseguiram apresentar resultados consistentes para retomada da agricultura colonial quando o espaço – todo este espaço – já estava tomado. Senti isto quan-do fui tentar desenvolver o Vida Rural Sustentável, no Norte de Mato Grosso, onde os empresários do agronegócio estavam claramente envolvidos na derrubada da Mata Amazônica, sem medir as consequências ambientais e climáticas.

Acho importante também destacar o quanto a equipe técni-ca do projeto, incluindo nós professores universitários, nos comportamos com as fragilidades que se apresentavam. Um parêntese para dizer, sem ter medo de errar,que Murilo Flo-res,então na Secretaria de Desenvolvimento Rural do Minis-tério de Agricultura do Governo Fernando Henrique, foi um protagonista e teve atitude ao fazer aprovar e andar um pro-jeto de pequena agroindustrialização voltado à agricultura familiar e ao desenvolvimento local.

No geral, contudo, estávamos somente "resistindo" a uma polí-tica pública inconsequente. Ou seja, as condições externas não ofereciam as melhores perspectivas para um projeto de tal ino-vação e ousadia. Eram 53 agroindústrias,em sete municípios da

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Encostas da Serra Geral, metade delas beneficiando verduras. Na área animal, com um número mais significativo no mel, não foi esquecida a agregação de valor nos alimentos colo-niais, como o frango, o porco e o leite. Nos municípios, o apoio também foi limitado,quando consideramos a infraestrutura. E o Governo do estado não disponibilizou agrônomos e veteriná-rios para apoiar a continuidade das iniciativas dos agricultores e as ações dos técnicos contratados pelo Projeto. Era mais um sinal da falta de engajamento governamental na “nova agri-cultura familiar”. Mesmo empresas como Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina) e Cidasc (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina), em tese diretamente comprometidas com esse segmento, não mostraram empenho efetivo. Apenas em Santa Rosa de Lima, foi cedido um agrônomo. Ou seja, ficou longe de acontecerum ambiente institucional favorável, com política pública para o desenvolvimento da agricultura familiar.

Falei das fragilidades que vinham do meio externo. Menciono, neste ponto, os problemas internos. Compor uma equipe que não se conhecia antes e quenão conhecia o território onde iria atuar não nos dava condição de afirmar que estávamos fazen-do uma política pública não governamental de agricultura.

Enquanto isso, a iniciativa privadavia a atividade dos colonos com desconfiança e como possível adversária ou, no mínimo, concorrente. A exceção era de protagonistas nascidos nas En-costas da Serra Geral, como Egídio e Lucas Locks, também responsáveis pela promoção da Gemüse Fest. A falência do Supermercado Santa Mônica e a venda do seu espólio para o Grupo Angeloni foi o primeiro grande teste de sobrevivência da Agreco. Conquistar novos mercados foi um grande desafio. Junto à “grande distribuição”, esse esforço contou com a par-ticipação do mesmo Egídio Locks, que havia sido presidente da Associação Catarinense de Supermercados. E com a postura de supermercadistas como a família Giassi, que tinham participa-do da Gemüse Fest. O chamado Mercado Institucional também ajudou muito,com as compras da merenda escolar, no Governo Esperidião Amim e com a participação direta da Universidade Federal de Santa Catarina, comprando alimentos para o pre-

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paro de refeições no Restaurante Universitário, nas Gestões de Diomário Queiroz, Álvaro Prata – com participação especial do Pró-Reitor Cláudio Amante – e Roselane Neckel.

Defendendo o que foi feito e atualizando a perspectiva otimista

Meu registro é, assim, a favor de um projeto encaminhado em um momento em que não se tinha hegemonia no que se refere às propostas de produção e desenvolvimento. Um projeto que propôs uma forma coletiva de atuar e que garantiu a sobrevi-vência de uma organização de colonos.

Se, mesmo na elaboração, este projeto não foi completo, no sentido de responder pelo equilíbrio, e se erros foram cometi-dos em todo processo, não se deixou os adversários tomarem conta de uma organização cada dia mais forte, defendendo os colonos que lutam em uma coletividade.

A ida para a maior Feira de Orgânicos, a Biofach, será para afirmar que é possível continuar sonhando com uma perspec-tiva melhor de vida,principalmente para os jovens. Os projetos elaborados no passado, entre colonos e nossos técnicos, têm as suas incompletudes, que precisam, agora, numa retomada, ser colocados em prática. Se a inspiração do colono vem do tempo das agroindústrias da produção colonial, acrescida da tecno-logia nova oferecida pelos técnicos contratados pela Agreco, é preciso avaliar que faltam, ainda, mais agroindústrias para consolidar uma rede completa.

Considero que os colonos podem ter recebido com estranheza a "envergadura do projeto" a eles proposto em 1998 e preferiram, para mais da metade das agroindústrias, dar continuidade à agregação de valor à produção de verduras. Pergunto quem dos técnicos e dos colonos tinha a noção da possível fragilidade de uma rede de supermercados parceira como a do Santa Mônica?

Destaco que os irmãos Egídio e Lucas Locks, ao vender o es-pólio da rede para o Grupo Angeloni, sofreram um calote do intermediário das vendas, fazendo com que os colonos rece-bessem apenas pouco mais que a metade dos pagamentos a que tinham direito. Apesar dos esforços de achar novos ca-

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nais de comercialização, as vendas caíram muito e uma parte das agroindústrias de verdurafechou as portas, o que produziu muitos ressentimentos. Esta é a minha visão do problema. Ou-tros atores do processo podem ter outra.

A conclusão mais imediata é que aprendemos uma lição. Mas, que pagamos caro por ela. As vendas teriam que ser feitas por diversos canais. Da mesma forma, a produção com valor agregado teria que ser organizada de forma a permitir a venda de produtos alimentares que contemplassem o conjunto dos alimentos de sabor colonial.

Recorde-se que na crise das vendas, uma das agroindústrias de verdura passou, com apoio da Embrapa, a produzir o frango caipira. Os responsáveis pelas atividades de abate e transfor-mação do porco, assim como pela transformação de leite, não buscaram, no entanto, obedecer às normas da produção orgâ-nica. Com isso, se sobreviveram e cresceram como empreendi-mentos privados, enfraqueceram o projeto coletivo.

O período com poucas vendas da primeira metade dos anos 2000, marcado, contraditoriamente, pela falta de alimentos com valor agregado, levaram a Agreco a viver um longo perí-odo de mera sobrevivência.

Hoje, a retomada do processo exige que os colonos possam ter como respaldo os alimentos coloniais. Na festa pró-formatura dos estudantes da Turma das Encostas da Serra Geral da Edu-cação do Campo da UFSC, em julho de 2016, a feijoada do Tino Bonetti apontou um caminho baseado na carne de porco, que, no período da agricultura colonial, foi o principal produto de venda da região. É preciso que uma agroindústria assuma tal papel, com a finalidade de abastecer o mercado brasileiro com esse sabor típico colonial. Ou, que possa até exportar.

A agroindústria de leite tem produzido queijos. Com o trabalho de piqueteamento de pastagens e de pastoreio racional rota-tivo, apoiado por ações de professores do Centro de Ciências Agrárias da UFSC, algumas dessas unidades de transformação poderiam ser convidadas a participar da certificação orgânica. As normas permitem que a agroindústria processe leite con-

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vencional e orgânico, desde que haja garantias de separação e não contaminação. Essa nova agregação de valor daria um estímulo aos colonos que já realizam esforços de produzir de forma sustentável.

No caso de frangos, com o registro da agroindústria no Serviço de Inspeção Federal (SIF), vai se poder vender em todo territó-rio nacional.

Poderíamos, da mesma forma, expandir a produção de mel criando um entreposto.

As unidades de beneficiamento das frutas de cada época e de atomatados poderiam ser multiplicadas na região que vai do Mar até a Serra. A ideia, já posta em prática pelo Adilson Lunardi, de formar uma rede de cooperativas, funciona nas vendas em conjunto.

A agregação maior de valor às verduras precisa ser avaliada por inteiro, desde o abastecimento de mercados próximos, até as necessidades para venda em “praças” mais distantes. A dire-ção da CooperAgreco já está tomando as medidas necessárias, com uma iniciativa de planejamento.

Recentemente, foi estabelecida uma parceria entre uma in-dústria de envasamento de melado de cana e duas agroindús-trias da Rede Agreco para processar cachaça de melado. Junto com alguns outros produtos da CooperAgreco, quero apresen-tá-la na Biofach, em Nurenberg, na Alemanha, em fevereiro de 2017. Considero que as muitas cachaçarias da região têm “transformado” o saber artesanal existente em algo com lógica industrial. Para a cachaça, quero, dentro da CooperAgreco e de outras cooperativas parceiras, estruturar um sistema de produ-ção no qual todas as etapas sejam comunicadas aos associados. Ou seja, combinando agregação de valor e transparência.

Parece-me que este conjunto de atividades, a ser planejado com as atuais agroindústrias e a projetar a criação de novas unidades, criaria um círculo virtuoso na produção da região, agregaria mais valor à produção da agricultura familiar e per-mitiria o aumento das vendas.

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Eu acho isso uma coisa boa. Não prejudica a saúde. (...) Hoje, tá ruim, mas a

esperança é de melhorar! Todo mundo acha que daqui a alguns anos vai ser a solução,

porque ninguém mais vai comprar essas coisas com veneno (...) Pode levar mais dois, três, cinco anos, mas daí ninguém mais vai comprar esses [alimentos] com

veneno. Esta é a saída!”

(Antigo agricultor tradicional que passou a ser agroecológico, 2003, entrevista direta)

A agricultura tradicionalNa área que hoje corresponde ao município de Santa Rosa de Lima, a Unidade Familiar de Produção (UFP) “colonial”, se ca-racterizou, desde o início, pela policultura vegetal associada à pequena criação de animais. O essencial para atender às neces-sidades básicas da família era obtido no interior da UFP. Desta forma, a diversificação produtiva foi adotada como estratégia central para garantir a reprodução do grupo familiar.

Embora houvesse uma tendência dos colonos em fazer o maior uso possível do trabalho e da unidade produtiva familiar na

Capítulo 2Do tradicional ao

agroecológico, do agrícola ao agroindustrial; Transições

vividas pelos agricultores familiares de Santa Rosa de Lima

Jovânia Maria Muller

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obtenção dos instrumentos de trabalho e dos meios de subsistência, de modo algum isso significava que não se tinha que obter, como mercadoria, parte do que era necessá-rio. Os colonos não produziam somente para o consumo da família, mas também para a obtenção de um “excedente”4 destinado à comercialização. Isto porque a própria so-brevivência dos agricultores dependia da existência de produtos para a comercia-lização, a fim de que pudessem realizar a compra de gêneros alimentícios e de outros bens que não eram produzidos no interior das UFP, tais como sal, roupas, querosene e instrumentos agrícolas.

Nos primeiros anos, no entanto, só um mí-nimo do excedente da produção dos agri-cultores era destinado à venda, porque era necessário primeiramente garantir o com-pleto estabelecimento da família no local. Para isso, a maior parte da produção obti-da com as primeiras “roças” era reservada para o sustento dos seus membros e dos animais que possuíam.

O “porco macau”5, além de prover a carne e a banha para o autoconsumo da família, foi o principal produto da agricultura familiar colonial destinado à comercialização, constituindo-se na maior fonte de renda das UFP. A organização do “espaço” e do sistema de produção era feita em torno de sua criação. A “engorda” dos porcos era o objetivo central deste sistema de criação, uma vez que a banha era o principal produto comercializado, chegando a ser chamada de “ouro branco”, tamanha era a sua valorização mercantil. Cabe ressaltar que esta agricultura familiar colonial, desenvolvida sobretudo em moldes de subsistência, era em parte também reflexo de relações externas pouco desenvolvi-das, em virtude, principalmente, do isolamento geográfico que dificultava o acesso aos mercados.

4 Paulilo (1990: 46) afirma que “na literatura sobre o campesinato” não existe consenso a respeito do conceito de excedente de produção. Para o contexto deste trabalho, será utilizado o mesmo ponto de vista da referida autora: “a necessidade de produzir excedentes é a necessidade de vender produtos para comprar aquilo que não se pode ou não se quer produzir na própria propriedade”, ou seja, independentemente se for produzido especificamente, ou não, para a comercialização.

5 Raça de suíno “rústico ou crioulo”, de pelagem escura, com alta concentração de gordura, destinada à produção de banha.

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O gado bovino e, em especial, a vaca leiteira, sempre foi outro componente importante nos sistemas de produção destes agri-cultores, promovendo a integração de várias atividades dentro da UFP. Era comum a presença de uma ou duas cabeças, que garantiam o abastecimento do leite. Além de atender ao consu-mo familiar, o leite era transformado em coalhada e manteiga, esta também destinada à comercialização. O soro era reservado aos porcos, como complemento alimentar. O esterco, inicial-mente, não foi utilizado na fertilização das lavouras, mas logo passou a ser empregado com este objetivo. Como a “safra” dos porcos era feita uma vez ao ano somente, era a manteiga que garantia uma renda familiar melhor distribuída, complementa-da com a venda dos ovos e, em alguns casos, com o excedente da produção do feijão e do arroz. É interessante observar que o queijo não era produzido, não somente porque a manteiga é que tinha valor comercial, mas também porque era um produ-to, segundo o depoimento de uma agricultora, que “não fazia parte da tradição dos alemães”. Ele teria se tornado conhecido com o contato com os “serranos”.

A relação dos colonos com o mercado parece estar próxima à ideia desenvolvida por Abramovay (1992: 115-116), carac-terizando-se por uma “integração parcial a mercados incom-pletos”. A parcialidade refere-se principalmente ao aspecto da flexibilidade entre a venda e o consumo de certos produtos. Em outras palavras, o agricultor, dependendo das circunstân-cias momentâneas do mercado e de sua expectativa com re-lação aos preços, pode optar entre a comercialização destes produtos ou pelo consumo direto pela família ou pelos ani-mais. O grau de integração ao mercado não é previamente es-tabelecido, sendo, por isso, parcial. Esta parcialidade também é dada em função de que nem todos os meios de produção são adquiridos de fora e sim obtidos no interior da unidade. Isto não significa afirmar que o agricultor tivesse muitas possibili-dades de escolher o momento mais adequado para a venda do seu produto. O que parece importante observar neste contexto, é o fato de que, caso as condições de mercado não estivessem propícias, o objetivo central – o de alimentar a família – não estaria comprometido.

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Da relativa dependência do agricultor ao ambiente externo, um outro “elemento” importante também merece ser destacado: a figura do comerciante local. As relações dos agricultores com os donos de “venda” eram desiguais, porque existiam poucos estabelecimentos comerciais e porque era o comerciante quem detinha o “poder” de estabelecer o preço, tanto na hora de comprar como na de vender os produtos. A falta de opções e as dificuldades enfrentadas no processo de comercialização, bem como a busca de um mercado mais seguro, com uma remu-neração mais justa para seus produtos, são alguns dos fatores que influenciaram na opção dos agricultores pela “integração às fumageiras” e, posteriormente, pela proposta agroecológica, através da Agreco, conforme será visto mais adiante.

A “crise do porco”A partir dos anos 60, este modo de vida demarcado por um perí-odo de relativa “fartura” começa a mostrar sinais de estagnação e de instabilidades. O mercado e o preço do porco macau come-çam gradativamente a diminuir e, da mesma forma, o sistema de engorda de grandes lotes de animais é, aos poucos, reduzido; a produção da “roça” já não é mais a mesma, o agricultor passa a buscar outras alternativas... Começam a se processar importan-tes mudanças na forma de produzir e de viver desta agricultura familiar. É o início de uma fase de transição (BUTTEL, 1995), engendrada a partir de elementos externos, mas também in-ternos às próprias unidades familiares de produção (BENNETT, 1982; SAHLINS, 1979; WOORTMANN, 1990 e 1995).

A maior parte dos agricultores busca nos fatores externos a ex-plicação para o declínio do sistema de produção do porco ma-cau. O principal deles é atribuído ao mercado, devido à entrada do óleo de soja, que passou a substituir o uso da banha na ali-mentação principalmente da população da zona urbana, antes grande consumidora da gordura animal. No mesmo sentido, a margarina passou a ocupar o lugar da manteiga, restringindo sua comercialização. Na criação, há introdução do sistema de integração agroindustrial, com a gradativa substituição do “por-co macau” pelo “porco branco”, ou “tipo carne”. Destaque-se que apesar da integração agroindustrial na suinocultura passar a ser uma das atividades centrais da região Sul do estado, ela nunca

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foi significativa em Santa Rosa de Lima, em função do isola-mento do município, seja em relação aos “frigoríficos”, seja em relação aos polos dinâmicos da criação, seja pela lógica e tradi-ção cultural dos agricultores. A substituição do porco “macau” pelo “branco” não representava, para os agricultores, simples-mente uma mudança no aspecto técnico-genético, ou mesmo a necessidade de investir na construção de novas instalações para abrigar os animais. Tratava-se também de profundas mudanças em sua forma “tradicional” de conduzir o sistema de criação dos porcos, em torno do qual estava organizada toda a unidade de produção familiar. O porco “branco” trouxe consigo a necessi-dade de substituir o “trato úmido” – a “lavagem”, produzida no interior das propriedades – pelo “trato seco” – a ração trazida “de fora”. Em adição, representava alterações na concepção do “espaço”, seja porque não era mais possível criar os animais sol-tos – dando lugar às instalações fechadas, seja na reorganização das lavouras, uma vez que a mandioca, a batata-doce e a abó-bora não mais eram considerados a base da dieta dos animais.

A integração agroindustrial, desta forma, não foi um elemento direto na promoção da “modernização” agrícola de Santa Rosa de Lima, já que a grande maioria dos agricultores não optou por esta atividade. Ela pode ser considerada, todavia, o princi-pal fator desencadeador da crise que obrigou os agricultores a buscar outras alternativas econômicas e, desta forma, levando ao processo de transição da agricultura tradicional em direção à “modernização”. Trata-se de um processo relativamente longo: embora o sistema de produção do “porco macau” tenha dado indícios de sua crise por volta dos anos 60, a sua desestruturação e estagnação como atividade econômica principal das unidades familiares de produção e do município vai se dar somente por volta dos anos 80, quando o fumo passou então a ocupar o papel central dos sistemas de produção da maior parte dos agricultores.

A transição “modernizadora”Em vista da conjuntura da “crise do porco macau”, os agricul-tores que permaneceram em Santa Rosa de Lima foram, aos poucos, levados a buscar outras alternativas econômicas, e as-sim, a traçar outras estratégias produtivas visando garantir sua reprodução social.

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No início do processo desta crise, as alternativas encontradas localizavam-se no interior mesmo das unidades familiares de produção. Neste sentido, algumas culturas ou produtos tradi-cionalmente presentes nos sistemas de produção como é o caso do feijão, da mandioca e do leite, destinados primordialmen-te ao consumo familiar, passaram a ser priorizados enquanto produtos com valor de troca, aumentando o excedente de pro-dução para a venda, sem que isto representasse, no entanto, alterações significativas no processo técnico-produtivo.

O leite, embora já fosse comercializado através da sua transfor-mação em manteiga e representasse uma renda complementar à venda dos porcos, nesta fase, passa a ser transformado em queijo, representando a principal garantia de um ingresso re-gular de recursos, no decorrer do ano, na propriedade.

Esta agricultura mais autóctone (BUTTEL, 1995), ou seja, base-ada primordialmente nas alternativas e nos processos internos de produção sofre, aos poucos, significativas alterações em sua base técnica e ecológica, com a entrada da integração agroin-dustrial do fumo.

É nesta época também que o desmatamento na região é inten-sificado. Apesar das derrubadas da mata nativa serem frequen-tes desde a colonização da região, seus objetivos e intensidade, no decorrer do tempo, também sofreram mudanças. Se ini-cialmente a retirada da mata era a condição necessária para a sobrevivência das famílias, aos poucos esta prática passou a se constituir também em uma atividade comercial. Embora a ex-ploração comercial da madeira tenha iniciado ainda por volta da década de 50 – com a instalação das primeiras serrarias “pi-ca-pau”, movidas por rodas d’água –, foi nesta nova fase que a atividade se consolidou, estabelecendo uma relação ainda mais conflituosa do Homem com a Natureza.

A integração agroindustrial e as primeiras estufas de fumo foram instaladas em Santa Rosa de Lima no final da década de1950 e princípio dos anos 60, mas somente a partir de me-ados dos anos 70 é que a atividade começou a se expandir de fato, atingindo seu auge, em termos de agricultores integrados, por volta dos anos 80.

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O cultivo do tabaco, embora já fosse conhecido pelos agricul-tores e realizado, principalmente, com o objetivo da confecção artesanal do “fumo de corda”, era pouco expressivo em termos econômicos e em volume produzido, como também prescindia da utilização de insumos externos. Com o fumo “de estufa”, no entanto, “a firma” introduzo adubo sintético e a pulveriza-ção com agrotóxicos. Estes últimos que, no início,eram usados “somente quando preciso” – ou seja, por ocasião do apareci-mento de alguma doença ou inseto, passaram a ser aplicados com frequência, ao mesmo tempo em que eram aumentadas as concentrações de princípios ativos e, por consequência, agra-vada a toxicidade. O agricultor passou, então, a depender da “instrução” ou “orientação” técnica para a condução de sua lavoura, o que não implicou, todavia, na correta utilização dos agrotóxicos, sendo poucos os cuidados tomados no manuseio e aplicação desses biocidas.

Além de mudanças no processo produtivo e dos prejuízos à saú-de humana e ambiental, a integração agroindustrial do fumo também alterou a própria organização e dinâmica da Unidade Familiar de Produção. Uma das alterações centrais foi em rela-ção ao trabalho, uma vez que o fumo é uma das culturas que mais demanda mão-de-obra em seu processo produtivo. Desta forma, o trabalho dos membros das famílias passou a ser exigido em maior proporção, ocasionando uma sobrecarga, principal-mente no momento da colheita, quando a atenção e os esforços de toda a família são totalmente direcionados a esta operação.

Por que se integrar?Mas o que fez com que grande parte dos agricultores de Santa Rosa de Lima passassem a se dedicar ao cultivo de uma cultura como o fumo? Afinal, além das implicações e prejuízos à saú-de, do trabalho exaustivo e do fato do fumo não se prestar ao consumo alimentar humano nem animal, não era uma ativida-de que, segundo os entrevistados, “se fazia com gosto”.

Com a crise do “porco macau”, foram poucas as alternati-vas econômicas que restaram aos agricultores, seja devido à própria dificuldade de escoamento da produção, seja pela

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baixa remuneração alcançada. Além disso, por ser intensiva (realizada em pequena área), a cultura do fumo permite, de certa forma, que sejam utilizadas apenas as áreas mais planas e melhores da UFP.

Outros aspectos foram centrais neste con-texto de transição à modernização: as “van-tagens” oferecidas pela empresa Souza Cruz: a instrução técnica, o crédito para custeio e investimento e o compromisso de compra. Essa fumageira foi, durante muitos anos, a única empresa do setor presente em Santa Rosa de Lima e, no período de sua insta-lação no município, fazia um processo de seleção para a entrada dos primeiros produ-tores integrados e estabelecia um limite para a área a ser cultivada. “Ela escolhia”, como afirmou um agricultor entrevistado, para que as primeiras experiências fossem “bem-sucedidas” e servissem de “demonstração” para a futura adesão de outros produtores.

Com a expansão crescente do mercado do tabaco – especialmente o internacional, outras (e menores) empresas fumageiras passaram a atuar no município, estabele-cendo condições mais flexíveis e integran-do novos produtores. Os “instrutores de fumo” passaram a desempenhar a impor-tante função de “convencimento” junto aos agricultores sobre as vantagens oferecidas pelo tabaco e pela empresa a que estavam vinculados. Por isso, geralmente, esses pro-fissionais eram escolhidos entre os filhos dos agricultores. Recorde-se que, embora o preço do fumo fosse tabelado, as empresas, através da classificação6,podiam melhorar a remuneração do produtor, o que servia para atrair integrados das concorrentes. Para “puxar” novos integrados, o principal

6 Além do peso, a composição final do preço do fumo é também definida pela sua qualidade. Para tanto, depois da secagem, as folhas do fumo são classificadas em mais de 40 classes diferentes, de acordo com a cor, tamanho e posição que as folhas ocupam no pé. O agricultor faz uma pré-classificação visual, enquadrando as folhas em quatro classes principais. Posteriormente, a empresa, através do auxílio de equipamentos especiais faz uma reclassificação do produto. Muitas vezes, estes dois processos de classificação não coincidem, geralmente em desfavor do agricultor. Desta forma, uma das maiores reivindicações dos produtores de fumo sempre foi, além da melhoria do preço final, a aceitação da classificação feita no paiol (PAULILO, 1990).

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mecanismo utilizado pelas fumageiras foi o repasse dos cré-ditos subsidiados para investimento e custeio agrícola, asse-gurados pelo Governo Federal, a partir de 1965, no quadro das políticas de “modernização conservadora” da agricultura adotadas pela ditadura civil-militar instalada em 1964. Desta forma, o agricultor recebia o dinheiro emprestado, por inter-médio da empresa fumageira, para a construção da estufa e mais todos os insumos necessários ao ciclo produtivo, dire-tamente na casa dele. E pagava a dívida, com as isenções dos juros e da correção monetária asseguradas pelo Governo Federal, por ocasião da entrega do produto, quando então era feito o “desconto” do que o produtor tinha a receber da fuma-geira. Recorde-se que o ressarcimento total do crédito de in-vestimento podia ser parcelado em até cinco anos. Apesar das fumageiras atuarem somente como avalistas e repassadoras do crédito agrícola governamental, a visão dos agricultores era a de que a própria empresa é quem “dava” o dinheiro, sem a cobrança dos juros. Prova disso é que, com exceção de um dos entrevistados, todos os agricultores, integrados ou ex-pro-dutores de fumo, responderam que nunca haviam utilizado o crédito agrícola, mas somente “o dinheiro da fumageira”.

Nessas condições, ficam as perguntas: por que há agricul-tores que não realizaram a transição à produção do fumo. Como eles justificam esta posição?Para estes agricultores, os “atrativos” – especialmente, o maior retorno econômico da atividade – não compensavam as desvantagens de culti-var o tabaco: o uso dos “venenos” (agrotóxicos) e o trabalho exaustivo, exigido, especialmente na safra e na secagem das folhas. Pode-se inferir que a lógica subjacente ao processo de decisão destes agricultores que permaneceram num sistema mais “tradicional” não é guiada por um utilitarismo, visando questões de ordem econômica, mas, primordialmente, por va-lores fundamentais, como o resguardo da saúde e a não expo-sição da família ao trabalho exaustivo exigido pela atividade (SAHLINS, 1979). Ou seja, a existência da preocupação com o valor-família, que ultrapassa a sua percepção enquanto um simples pool de trabalho (WOORTMANN, 1990). Isto não sig-nifica dizer que os agricultores que se integraram à fumi-

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cultura fossem movidos exclusivamente por razões práticas utilitaristas. Ao integrar-se à agroindústria, embora o compo-nente central tenha sido a possibilidade de um maior retorno econômico, esta opção pode também ser analisada enquanto representativa de um “meio” para atingir o “fim” desejado: quer seja, o bem-estar familiar através da construção de uma casa melhor, quer seja o de fazer investimentos na proprieda-de ou possibilitar “o estudo” aos filhos etc.

O fumo e seu impacto sobre o sistema de produçãoA integração agroindustrial do fumo promoveu, ao longo do tempo, importantes mudanças na base técnica e produtiva dos sistemas de produção dos agricultores familiares do município. Embora inicialmente a utilização do “pacote tecnológico” te-nha se restringido à “modernização” da cultura do fumo, pos-teriormente seu uso foi estendido a outras culturas, com desta-que para o milho híbrido. É interessante observar que o fumo também interferiu, mesmo que indiretamente, no processo pro-dutivo daqueles agricultores que não optaram por seu cultivo. Face à queda crescente do sistema de criação do porco macau, a necessidade de grandes áreas destinadas ao plantio dos ali-mentos básicos destinados à engorda dos animais diminuiu. Áreas menores começaram a ser cultivadas e o uso do solo foi intensificado através da utilização do arado e da “aduba-ção química” (utilização se fertilizante de síntese química, em substituição à fertilização pelas cinzas resultantes da queima-da da vegetação). A “lavração da terra” também aumentou a produtividade do trabalho. Em várias atividades realizadas na UFP houve diminuição da penosidade do trabalho, facilitando a vida dos agricultores.

Apesar da grande maioria dos entrevistados não saber “expli-car ao certo como aconteceu isso”, alguns agricultores afirma-ram que foi “através dos agrônomos da Acaresc” (Associação de Crédito e Assistência Rural de Santa Catarina), “no final dos anos 1960, início dos 70”. Sublinhe-se que a assistência técnica prestada pelo serviço de extensão rural aos agricul-tores de Santa Rosa de Lima era muito precária, pois somente em 1979 foi aberto um escritório local da Acaresc no muni-

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cípio. Antes disso, a orientação técnica era feita por um extensionista sediado em Rio Fortuna, município vizinho que teve seu es-critório local da Acaresc instalado em 1968. Apesar de contingente, tal extensão rural foi decisiva na difusão em Santa Rosa de Lima do uso do milho híbrido e dos insumos a ele “associados”, quer seja, o calcário, a ureia, além do “NPK” (formulações de fertilizantes de síntese química compostos de Nitrogênio – N, Fósforo – P, e Potássio – K) já utiliza-do no fumo e, de maneira pouco expressiva, na batata inglesa. Foi com a instalação de “lavouras demonstrativas”7 nas “terras la-vradas” que o milho passou a ser “plantado na técnica”, tornando também a correção dos solos uma prática corrente entre os agri-cultores. Além do “convencimento”, através dos resultados práticos, o crédito agrícola subsidiado, a exemplo do que ocorria no fumo, foi um elemento “difusor” da “nova forma de produzir”, uma vez que o uso dos insumos era uma condição para o finan-ciamento. É preciso ressaltar que o crédito agrícola subsidiado foi pouco usado pelos agricultores não fumicultores do município. A maioria dos entrevistados que não foram integrados a fumageiras declarou nunca ter feito uso dele ou, em alguns casos, de forma pouco frequente. Um dos motivos para isso era a distância das agências bancárias. Até 1976, era preciso deslocar-se até a agência

do Banco do Brasil em Tubarão (distante 80 quilômetros, então, na quase totalidade, em “estrada de terra” – não pavimentada – e sem a disponibilidade de transporte coletivo direto). Nor-malmente, a única linha de crédito disponível era para inves-timento à aquisição de maquinário agrícola. Somente naquele ano (1976), coincidindo com a instalação de um posto de aten-

7 A lavoura demonstrativa foi um dos mecanismos

de larga utilização pela extensão rural no

processo de difusão dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde.

Era preciso “convencer” os agricultores

dos benefícios da modernização agrícola.

Na seleção das propriedades onde estas

lavouras eram instaladas, um dos principais critérios

utilizados pelos técnicos era a identificação

dos “agricultores inovadores”, ou seja,

os mais propensos à adoção de novas

tecnologias e, portanto, menos “resistentes” às mudanças. Desta

forma, o perfil destes inovadores geralmente

estava associado ao fato de exercer poder de liderança e de ser

bem-conceituado pela comunidade, em melhor

situação econômica, com um certo nível de escolarização e,

preferencialmente, jovens.

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dimento em Braço do Norte8, estiveram mais disponíveis linhas para custeio agrícola. Ha-via ainda outros empecilhos: a falta de in-formações e as exigências bancárias quanto à garantia do empréstimo. De forma geral, a falta de canais de comercialização desesti-mulava o financiamento para culturas que não fossem o fumo. Neste caso ainda, mesmo não havendo a certeza de se colher uma safra boa, havia a garantia da compra pela fumageira do que fosse produzido e o “seguro agrícola” fornecido pela Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra).

A maioria dos agricultores entrevistadosassocia a entrada do milho híbrido no município com a cultura do fumo. Eles con-tam que as fumageiras incentivavam seus integrados a plantar o milho, em sucessão, logo após a colheita ao fumo. O plan-tio na mesma área objetivava, fundamentalmente, “aproveitar” os resíduos da adubação química feita para o fumo, o que era apresentado como uma “vantagem adicional” da fumicultura. Com essa sucessão de culturas fumo-milho, outro importante elemento iria se somar ao processo de modernização dos sis-temas de produção das unidades familiares de produção: o uso dos herbicidas, substituindo a “tradicional” capina manual com enxada ou o uso do cultivador tracionado pelo boi. Embora tenha diminuído a penosidade do trabalho, foi mais um tipo de agrotóxico incorporado. Pouco a pouco, os herbicidas, em especial o dessecante Roundup, foram se difundindo também entre os agricultores não integrados às fumageiras. Inclusive, de acordo com informações obtidas junto à Secretaria Munici-pal de Agricultura, era comum os fumicultores(re)venderem este produto aos demais agricultores, já que, de início, ele não estava disponível no comércio local.

A sucessão fumo-milho, de modo geral, também passou a se as-sociar à maior presença da atividade leiteira nas UFP, com a con-fecção de silagem para complementar a alimentação dos animais, principalmente no inverno, período mais crítico do ano. Ademais, o leite passa, então, a ser transformado em queijo (e não mais em manteiga), como nova fonte de entradas frequentes e regulares de recursos no caixa único da Unidade Familiar de Produção.

8 A partir de 1980 que Santa Rosa de Lima passa a contar com uma agência bancária, do Banco do Estado de Santa Catarina.

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O milho comum sempre foi um componente importante para as propriedades familiares. Embora seu cultivo nunca tenha sido canalizado para a venda na forma de grãos, seu lugar dentro dos sistemas de produção sempre foi estratégico. Ele era básico na alimentação dos animais, sendo transformado em carne, banha, leite, manteiga e ovos, produtos importantes tanto para o consumo direto da família,quanto para a composição de sua renda. Além disso, a transformação em “fubá” (farinha), desti-nava-se à confecção do pão de milho, um produto tradicional e considerado indispensável (o trigo não era cultivado no mu-nicípio) à alimentação das famílias.

Ao incorporar o milho híbrido e o “pacote tecnológico” a ele ligado em seus sistemas de produção, o agricultor passou a ter que adquirir, anualmente, no comércio, além da própria semente, os outros insumos, o que exigia desembolso ou fi-nanciamento. Ademais do aspecto econômico, em torno do milho comum e dos sistemas de produção praticados por es-tes agricultores, havia também um conjunto de conhecimentos construído e acumulado pelos agricultores em seu cotidiano, através da observação, da “tentativa e erro” e da troca de expe-riências. Estes conhecimentos incluíam o processo de obtenção das sementes, as características e os usos específicos de cada “variedade”, além de outras práticas tradicionais de manejo e cultivo das plantas.

Aliado aos impactos à cultura local, à saúde humana e ao meio ambiente, também outros problemas de ordem ecológica se in-tensificaram com a hegemonia da cultura do fumo. A necessi-dade de uma grande quantidade de lenha para o aquecimento das estufas de fumo fez com que o desmatamento, já presente através da exploração comercial da madeira, aumentasse ainda mais. O incentivo das fumageiras a programas de refloresta-mento com eucalipto, além de implementado tardiamente no município, não deu conta de fazer com que os plantios des-sa exótica fossem conduzidos em velocidade e extensão pro-porcionais às áreas devastadas. Além disso, a devastação das florestas nativas e a sua substituição parcial por monocultivo com árvores que não pertencem à flora nativa resulta numa perda praticamente irreversível de biodiversidade.

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Tradição e modernização: faces de uma mesma moedaApesar dessa agricultura mais “autóctone” (BUTTELL, 1995) de Santa Rosa de Lima ter sofrido um processo de transição em direção a sua modernização – promovendo, inclusive, um rear-ranjo nas estratégias de reprodução nos seus diversos segmen-tos, elementos importantes do modelo tradicional persistiram. Exemplo disso é o milho comum, ainda presente em mais de 80% das propriedades visitadas (em 2003), embora com signi-ficativa redução em termos de área plantada, cedendo espaço, de forma majoritária, para o cultivo do milho híbrido. É inte-ressante observar que a preferência pelo milho comum para o consumo da família se justifica devido ao seu “sabor”, à sua coloração “mais amarela” e à sua melhor qualidade na confec-ção do tradicional pão de milho, que continua presente, hoje (2016),à mesa dos agricultores.

Outro ponto a ser destacado diz respeito aos fumicultores. Com a integração agroindustrial, a cultura do tabaco passou a ser a mais importante, em torno da qual a propriedade passou a ser organizada e assim as atividades e cultivos priorizados. Em-bora o agricultor se dedicasse mais à agricultura comercial, já que o fumo significava dinheiro certo, a diversificação de cul-tivos nunca deixou de ser praticada. Com exceção de algumas culturas como o milho comum, o arroz e, em menor proporção o feijão, que em muitos casos deixaram de ser cultivados, as demais “miudezas” – como a batata inglesa, a batata doce, o cará, o amendoim, a mandioca, vários tipos de verduras e fru-tas – e a criação de pequenos animais estão presentes em todas as propriedades visitadas, com certa diferenciação quanto ao número de espécies cultivadas, como também em relação ao tamanho das áreas plantadas.

Apesar do fumo propiciar, de modo geral, um bom rendimento com uma entrada “certa” de recursos no ano, depender somen-te desta cultura também se tornava inviável. Segundo os entre-vistados, o fumo “dá”, desde que seu “ganho” não seja compro-metido com outras despesas, como “o gasto da família”. Para tanto, a produção para o autoconsumo é de fundamental im-portância a fim de que o dinheiro do fumo possa ser canalizado à realização de “negócios maiores” e, assim, “a família poder

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ir pra frente”. Desta forma, grande parte da ascensão econômi-ca dos fumicultores é creditada justamente à manutenção da tradição do plantio das “miudezas”. A rotação de culturas e o consórcio de espécies são algumas práticas também utilizadas por parte dos agricultores. A diversidade de cultivos e ativida-des é, comparativamente, ainda maior nas propriedades que nunca se dedicaram ao cultivo do fumo, permanecendo num sistema mais próximo ao tradicional. Nestas, a diversificação é ainda adotada como uma importante estratégia produtiva, porque visa, além de atender à alimentação básica da família, aumentar as opções de comercialização. “Plantar um pouco de tudo” permite também contornar possíveis riscos de perdas de produção ou de renda frente às adversidades climáticas, como também de possíveis alterações nas condições de mercado e preços. Ou seja, trabalha-se na perspectiva da continuidade da reprodução social do grupo familiar.

Segundo os agricultores entrevistados, práticas “tradicionais”, como o uso do esterco, a capina com a enxada ou através do cultivador tracionado pelo boi, o plantio com a “matraca” (chamada, ainda, de “saraquá” ou “máquina”) ou mesmo ma-nual, também continuam sendo usuais em maior ou menor in-tensidade entre os agricultores, até mesmo pelos fumicultores.

É pertinente destacar que entre os produtores de fumo, de for-ma geral, a utilização do pacote tecnológico – incluindo os insumos e as técnicas agrícolas “modernas”, no conjunto da UFP e das atividades, é proporcionalmente maior quando com-parados aos “tradicionais”.Em algumas das UFP tradicionais visitadas, inclusive, nunca se fez o uso de qualquer tipo de agrotóxico ou mesmo de fertilizantes de síntese química. Em outras, limitam-se ao da ureia e do “adubo formulado”, sendo estes os insumos mais difundidos entre os agricultores. Tam-bém, em algumas situações, à adubação química é acrescido o uso de agrotóxicos, porém com sua aplicação limitada a algu-mas culturas, sendo seu uso ocasional, especialmente no caso de doenças, ou mais rotineiro, quando se trata do controle de plantas indicadoras (“inços”) através do dessecante.

Embora o esterco seja também utilizado em culturas como o milho e o feijão por muitos dos agricultores convencionais ou

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tradicionais, de modo geral, é prioritariamente destinado para o cultivo das “miudezas”. A dificuldade para sua coleta, feita nos “potreiros”, como também para o transporte até as lavou-ras, faz com que se use este insumo nas imediações da sede da propriedade onde, geralmente, estão localizadas as hortas e muitas das miudezas. Nas roças mais distantes, portanto, é sempre preferido o uso do “adubo químico”, embora alguns agricultores ressaltem as vantagens do esterco sobre este tipo de fertilizante, principalmente em relação ao “maior tempo de permanência no solo”.

A maior ou menor adoção de técnicas e insumos “moder-nos” pelos agricultores parece estar vinculada às restrições ou oportunidades determinadas por fatores externos e internos à unidade de produção familiar. Os fatores externos podem es-tar relacionados aos preços dos insumos, ao acesso ao crédito agrícola e a “(lojas) agropecuárias” para sua aquisição, à in-fluências da assistência técnica (fazendo “sedução” para a sua adoção), a informações veiculadas pelos meios de comunicação ou pela escola etc. Já os fatores internos estão relacionados, principalmente, às vantagens percebidas pelos próprios agri-cultores. Pode ser pela “otimização” geral dos fatores de produ-ção, principalmente em se tratando do curto prazo, como o au-mento da “produtividade”(rendimento físico da terra) e maior retorno econômico, como também na redução da intensidade e na quantidade de trabalho despendida em operações como ca-pina, aração e fertilização. A percepção de desvantagens pode, por sua vez, restringir tal uso. Incluem-se entre elas os danos à saúde provocados pelos agrotóxicos e os significativos au-mentos nos custos de produção. Finalmente, pode a família valorizar e ter preferência por técnicas e cultivos tradicionais.

Do convencional ao agroecológicoEmbora o fumo ainda seja cultivado por agricultores familiares do município, o setor tem apresentado uma crescente diminui-ção no número de plantadores. De acordo com informações da Secretaria Municipal de Agricultura de Santa Rosa de Lima e dos próprios entrevistados, a estagnação e o abandono do cul-tivo do fumo vêm acontecendo a partir do início dos anos 90 e, de forma mais expressiva, a partir da safra 1996/97.

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É a partir desse quadro – com o início de uma nova crise na agricultura, agora devida principalmente à estagnação da in-tegração do fumo, que muitos agricultores vão buscar outras estratégias produtivas e econômicas, visando garantir sua re-produção social. Estas alternativas serão encontradas, num primeiro momento, na intensificação da produção leiteira.

A configuração da crise do fumo

No final dos anos 70 e, de forma mais expressiva, no decorrer da década de 80, a aplicação dos instrumentos de moderniza-ção agrícola trouxe mudanças significativas para o contex-

to da agricultura brasileira, principalmente em se tratando das políticas referentes ao crédito rural.

Uma primeira mudança na relação do fumi-cultor com o crédito subsidiado ocorreu por volta do final dos anos 70. Até aquela época, todo o acerto de contas, desde o repasse dos recursos para os financiamentos como a qui-tação das dívidas, era feito junto às fumagei-ras integradoras, através de seus representan-tes, mediante um contrato de compra e venda do produto. A partir daí, no entanto, o com-promisso do fumicultor passou a ser direta-mente com “o Banco”, através da assinatura de um segundo contrato entre estas partes9.

Uma segunda alteração nesta relação viria em 1982. Até então, as empresas fumageiras não cobravam os juros sobre as despesas de investimento e custeio, sendo responsáveis pelo seu ônus junto ao Banco. Em 1983, essa política mudou. Os juros sobre os emprés-timos para o custeio passaram a ficar por conta do produtor. No caso dos financia-mentos para investimentos – especialmente à construção das estufas – os juros eram pa-gos pelo agricultor ao Banco, sendo o valor posteriormente ressarcido pela integradora. Apesar da permanência deste “benefício”, o

9 Este contrato autorizava o débito dos recursos da conta do produtor para a fumageira, destinados

a cobrir as despesas provenientes da entrega antecipada dos insumos químicos para o plantio

e condução da safra agrícola. Desta forma,

o papel das fumageiras passou a ser o de avalista

e facilitadora, na obtenção do crédito bancário.

Devido à concorrência estabelecida entre as

empresas, contudo, estas continuaram fazendo o trabalho

de levantamento das necessidades de recursos

junto aos produtores e encaminhando o contrato de financiamento junto ao Banco. Este procedimento

visava estabelecer um “compromisso” do

agricultor em relação à fumageira, como forma

de tentar garantir o maior número de integrados para a safra seguinte.

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prazo de pagamento das estufas, foi sendo reduzido para, no máximo, dois anos. Até então, o parcelamento da dívida podia ser feito em até cinco anos, a critério do agricultor.

A partir da metade da década dos anos 1980, se instaurou no país um quadro de instabilidade econômica, refletindo-se no dia-a-dia dos agricultores. Planos econômicos e políticas agrí-colas se sucederam, sendo que, de forma geral, pouco contri-buíram para a melhoria da atividade agrícola e para a situação econômica dos agricultores. Além do expressivo aumento nas taxas de juros dos financiamentos bancários, houve também um aumento nos custos de produção, principalmente dos preços dos insumos, sem um acréscimo paralelo nos preços dos pro-dutos agrícolas, o que ocasionou uma perda gradativa do poder aquisitivo dos agricultores e a crescente descapitalização deles.

É nesta época (meados da década de 80) que a atividade de produção de carvão vegetal ganha destaque em Santa Rosa de Lima. Embora a produção comercial do carvão já estivesse presente no município, foi a partir da entrada da carvoeira Cecrisa, em 1985, que a atividade se intensificou. Além de ex-plorar diretamente as áreas vegetadas, aquela empresa passou a atuar também como intermediária na comercialização do carvão, adquirindo-o dos agricultores. Com isso, grandes áreas de remanescentes de Mata Atlântica foram sendo destruídas, aumentando ainda mais os problemas com a depredação da vegetação nativa e secundária, já acentuada em decorrência do desmatamento para a instalação das lavouras, para o uso como lenha na secagem do fumo e para a exploração madeireira.

O ganho dos agricultores com o fumo também sofreu um de-créscimo. A queda da renda dos agricultores foi de aproxima-damente 62%, no período compreendido entre as safras 1993/94 e 1997/98. Fatores climáticos desfavoráveis e o “aperto na clas-sificação” (enquadrar o fumo em classes de qualidade inferior) criaram as condições para o crescimento das situações de ina-dimplência junto às empresas integradoras e aos Bancos. Deste modo, a conjuntura geral de instabilidade, associada às arbitra-riedades no mercado fumageiro e às restrições aos benefícios do crédito agrícola, fizeram com que muitos agricultores refizessem seus balanços em relação às vantagens e desvantagens da opção

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pela integração na fumicultura. As desvan-tagens, como o uso dos agrotóxicos e o tra-balho penoso10, inicialmente minimizadas e aceitas pelos fumicultores, passam a ser vis-tas como centrais e a determinar o abandono da atividade. Apesar da grande exigência em trabalho ter sido sempre uma constante na vida dos fumicultores, o fator mão-de-obra passou também a “pesar” mais sobre os cus-tos de produção. De um lado, porque dimi-nuiu a prática da troca de dias de serviço en-tre os vizinhos. Em geral, porque as famílias diminuíram de tamanho, uma vez que os fi-lhos casaram, saíram da propriedade para es-tudar ou para buscar outras oportunidades de trabalho. De outro lado, porque a contratação de “camaradas” refletia a diminuição do nú-mero de trabalhadores dispostos a auxiliar na colheita do fumo, com o aumento crescen-te do valor pago pelo dia de serviço. Com a diminuição da renda da lavoura,passou-se a avaliar que a tal contratação – mesmo que informal – já “não compensava mais”. O re-sultado foi o agravamento da autoexploração da mão-de-obra familiar. Se, antes, isto era aceito, devido ao bom rendimento financeiro

do fumo, agora, com a crescente perda de renda dos produtores, ela passou a ser vista como um esforço pouco compensador.

Ao lado desta razão prático-utilitaristaé também preciso consi-derar outro aspecto. Os problemas com a saúde resultantes do trabalho exaustivo e em decorrência do uso dos agrotóxicos também passaram a emergir de forma significativa como coro-lários da atividade, contribuindo para questionar ainda mais a validade deste sobre-esforço familiar e da própria permanência na atividade. Ou seja, o “valor família” também é considerado pelos agricultores na mudança de suas estratégias produtivas e econômicas. Assim, configura-se o “cenário” de crise vivencia-da pelos fumicultores, levando à desistência da atividade por parte de muitos produtores.

10 O “tipo de serviço” exigido pela atividade

é avaliado de forma negativa, como um

trabalho “ruim” e “difícil”. É interessante observar

que os entrevistados fazem uma diferenciação entre “trabalho pesado” e

“trabalho exaustivo”. O fumo não é um trabalho pesado,

que exige força física. É, sim, um trabalho que demanda

muita mão-de-obra durante todo o seu ciclo, já que é composto de diversas

etapas, sendo, portanto, necessário que “ele passe muitas vezes pelas mãos” até que fique pronto. No

entanto, é a concentração de trabalho na etapa da

colheita e secagem que o torna, de fato, cansativo.

Esta distinção também foi constatada por PAULILO

(1990) em seu estudo com os fumicultores realizado na região sul de Santa Catarina.

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O leite e a proposta da agroecologia

A atividade leiteira foi a opção econômica que, primeiramente, os agricultores encontraram em substituição à cultura do fumo. Inicialmente, o produto continuava sendo transformado artesa-nalmente em queijo nas UFP e vendido aos feirantes e atraves-sadores. Em função da procura crescente pelo leite fluído por compradores de fora de Santa Rosa de Lima, os técnicos da Epa-gri(Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de San-ta Catarina)e da Prefeitura Municipal passaram a incentivar os agricultores a investir na atividade, principalmente através de cursos técnicos e de apoio ao melhoramento genético dos ani-mais. A melhoria das condições de comercialização do leite ocor-reu, quando um morador local instalou, em meados da década de 90, um “laticínio”. Com a concorrência estabelecida, o preço pago ao produtor se elevou, gerando mais ânimo e estímulo para que mais agricultores apostassem na intensificação da atividade.

O leite tornou-se, em muitas UFP, o principal responsável pela composição da renda, agora com ingresso mensal. Vantagens eram percebidas em relação ao fumo. Além da entrada regular de recursos no caixa da UFP, a demanda por trabalho é menor e melhor distribuída ao longo do ano agrícola. Em adição, o leite trouxe consigo a redução no uso excessivo de agrotóxicos. A intensificação da atividade leiteira – mesmo tendo alterado tanto a dinâmica interna das unidades familiares de produção, quanto o entorno socioeconômico local – não foi, contudo, a principal mudança ocorrida em Santa Rosa de Lima, naquele período. Em 1996, é fundada a Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral (Agreco).

Embora a Agreco tenha surgido oficialmente em dezembro de 1996, o início das experiências que iriam culminar com sua fundação data de anos anteriores. Ainda na década de 80, uma das famílias da comunidade de Rio do Meio, que tinha o fumo como a principal atividade, já buscava algumas alternativas econômicas através da apicultura e do cultivo (convencional) do morango. Estes produtos, além do queijo “colonial” adqui-rido de outros agricultores, eram comercializados em Florianó-polis, através de um dos membros do grupo familiar que, na época, cursava Agronomia.

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No quadro dessa reflexão sobre agroindustrialização, é impor-tante ressaltar que a consolidação da atividade apícola permi-tiu à referida família construir inclusive sua própria unidade de beneficiamento do mel. No início dos anos 90, juntamente com outras famílias, passou também a investir no cultivo de verduras, comercializando a produção com a rede de super-mercados Santa Mônica, na capital. Embora a produção tenha sido conduzida nesta fase ainda de forma convencional, havia o diferencial do uso do cultivo protegido, ou seja, da introdu-ção das “estufinhas” (os agricultores se referiam assim para diferenciar das estufas de fumo).

É a partir deste contexto, que começa a se destacar a liderança de Wilson Schmidt, membro dessa família. Ele próprio men-ciona o momento que julga decisivo para que se começasse a produzir as verduras “sem agrotóxicos e sem adubos químicos”. Na primavera de 1996, foi realizada a terceira GemüseFest, reu-nindo, além das pessoas do próprio local, também aquelas que habitavam em centros urbanos. Entre estes participantes estava um dos proprietários da rede de supermercados Santa Mônica que, em uma viagem feita pouco antes à Europa e aos Estados Unidos, havia entrado em contato com o mercado emergente dos produtos orgânicos. Evocando sua “origem rural e local” e vislumbrando a oportunidade de ser pioneiro na capital cata-rinense nesse segmento ou nicho de mercado (Frutas, Legumes e Verduras – FLV “limpos”), propôs uma “parceria” a famílias de Santa Rosa de Lima, incentivando-as a produzir de “forma ecológica”. Além de se comprometer a disponibilizar um espaço físico diferenciado no interior de suas lojas e de adquirir toda a produção dos agricultores, o empresário também assumiu o compromisso de comercializar junto a outras redes de supermer-cados produtos que ele não conseguisse escoar em suas lojas. Motivadas por essa oportunidade, algumas famílias iniciaram, de imediato, o primeiro plantio das verduras “sem o uso de agrotóxicos e adubos químicos”. No decorrer dos meses seguin-tes, novas famílias se incorporaram à proposta. Esse grupo de agricultores passou a contar com a assessoria de professores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Epagri, do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura em Grupo (Cepa-gro) e do poder público local. Como consequência, em dezem-

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bro de 1996, foi fundada a Agreco, aprovado o seu Estatuto e eleita sua primeira diretoria. Aqueles que aderiram à proposta firmaram o pacto de não utilizarem toda a Unidade Familiar de Produção todo e qualquer insumo de síntese química.

Traçado o contexto em torno do qual se desencadeou a pro-posta inicial de constituição da Agreco e do “projeto agroeco-lógico”, é possível passar a analisar a concepção e as percep-ções dos principais atores sociais envolvidos neste processo, os agricultores familiares.

A opção pela agroecologia

Por que a opção pela Agrecoe pela proposta da agroecologia? A resposta a esta pergunta não é única. Pelo contrário, são várias as razões apontadas pelos agricultores que optaram por este caminho11. A “conjuntura de crise” em relação à in-tegração agroindustrial do fumo, já discutida anteriormente, foi o ponto central que fez com que parte dos produtores de fumo transitassem diretamente à proposta da agroecologia. Desta forma, é a partir do “contraste” percebido entre ambas às “for-mas de fazer agricultura”, que os entrevis-tados manifestam e justificam sua lógica de decisão em realizar a transição.

Neste sentido, a possibilidade de poder substituir a fumicultura por outra atividade com a perspectiva de obter um bom retorno econômico foi referenciada por todos os ex-produtores de tabaco. Por sua vez, os que nunca haviam aderido à produção do ta-baco também vislumbraram na “agroecolo-gia” uma forma de “melhorar o rendimento econômico da família”.

A “propaganda” por parte da Agreco da renda obtida pelos primeiros associados serviu como um forte “atrativo”, estimu-lando, no final de 1998, a incorporação de novos sócios, conforme será visto mais adiante. A constituição da Associação tam-

11 É adequado, aqui, fazer uma importante ressalva. O trabalho de campo indicou claramente que os agricultores não levam em conta um único parâmetro para orientar suas decisões no estabelecimento de suas estratégias produtivas, muito embora um ou outro elemento possa “pesar” mais neste processo. Desta forma, a análise procurará contemplar, na medida do possível, o conjunto destes elementos, sem haver a preocupação, no entanto de hierarquizá-los pela sua importância, mas sim de contextualizá-los na realidade em questão.

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bém indicava a oportunidade de “entrada” em uma atividade (horticultura) adequada às condições ecológicas das UFP, aprovei-tando a pequena superfície agrícola útil das “propriedades” e a presença abundante de boa água, requisito importante na agricul-tura orgânica. Além disso, como já foi cita-do, havia a percepção negativa dos agricul-tores em relação ao uso de agrotóxicos e ao trabalho penoso. Dizendo de outra maneira, para além da mudança no processo pro-dutivo – apontando o não uso de insumos químicos de síntese, principalmente os “ve-nenos” – o tipo de trabalho exigido foi um dos “atrativos” da proposta agroecológica12. Outro aspecto considerado pelos entrevista-dos é que havia a garantia de comercializa-ção da produção. Este fator pode ser julgado como de suma importância na tomada de decisão dos agricultores, uma vez que a fal-ta de canais adequados para a venda dos seus produtos sempre foi uma preocupação constante entre eles.

Aqueles agricultores que nunca aderiram à integração agroindustrial do fumo e os que já haviam abandonado a fumicultura perceberam na agroecologia, para além da-queles aspectos ligados ao essencialmente econômico, outros valores mais “subjeti-vos” e “simbólicos”. Destaque-se que não se tratava da introdução de uma atividade “totalmente nova”. A produção de hortali-ças, como também de outros produtos que, posteriormente, passaram a ser comercia-lizados, sempre fez parte das “miudezas” e dos sistemas de produção da grande maio-ria dos agricultores13. Além disso havia se-melhanças entre as formas “agroecológica” e “tradicional” de produzir.

12 Se por um lado os agricultores tinham uma

“percepção prévia” acerca das “vantagens” da proposta

agroecológica – tendo elas sido levantadas, inclusive,

como elementos motivadores da decisão de associar-se

à Agreco, é interessante observar que tais benefícios

são melhor percebidos a partir do momento em que se dá

a prática e a vivência em agroecologia.

13 Além de cerca de setenta espécies de hortaliças, outros

produtos vegetais e animais também passaram a ser

produzidos para o mercado, principalmente a partir do

desenvolvimento do projeto ligado a agroindústrias

rurais. Embora tenha havido algumas alterações no

processo produtivo como um todo – como, por exemplo, na escala de produção e na

canalização para o mercado – e nas etapas do processo – como o processamento e

a industrialização, a “forma ecológica” de produzir

não foi considerada uma novidade pelos agricultores. Isto não quer dizer, todavia, que mudanças significativas

não tenham se processado tanto nos sistemas de

produção como, também, em outros âmbitos da vida das

famílias e da realidade local. Pelo contrário! Este processo foi permeado por conflitos e

contradições.

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A proposta de ingressar na Agreco também representava a oportunidade – em um quadro de crise econômica e de sérias dificuldades para a própria agricultura – de se manter na con-dição de agricultor. Ou mesmo, para alguns, de retornar à UFP. Ou seja, havia “uma aposta no futuro”.

No ano de 1998, entretanto, um novo fato vai promover mu-danças decisivas nos rumos da Agreco e das famílias asso-ciadas, juntando novas e diferentes percepções em torno da trajetória de construção social da proposta.

A proposta de agroindustrializaçãoe de espraiamento regional, o aumento do número de associados e suas decorrências

(...) pensei em entrar. Mas, nós desistimos (...) A gente ia entrar com o [nome do vizinho] na

agroindústria dele. Nós ia de sócio. Nós era em 7 sócio. Aí o [cita o nome], que é o coordenador

da Agreco, ele que veio aqui e falou comigo. Disse que vinha um dinheiro meio a fundo

perdido e o juro era barato. Achei que até ia dá. Quando chegou na hora de pegar o dinheiro

pra fazer esta agroindústria, o dinheiro que veio pra fazer o investimento, aí precisava

fazer cadastro no Banco. Precisava de escritura de terra, precisava um monte de coisa! Aí fui

me informar no Banco, certinho, qual era o valor da prestação que a gente teria que pagar depois de vencer, pois tinha dezoito meses de

carência. Aí, o gerente do Banco me informou certinho a prestação! Aí, eu fiquei com medo, né? Quando eles vieram fazer a proposta pra

nós, este dinheiro ia vir do governo federal. Aí não deu certo. Daí, o BESC ia financiar e o juro

era alto...(...) Daí mudou, tinha que hipotecar a terra e tudo! Daí, a gente vai se arriscar, sem

ser preciso? Se dá prá viver de outro jeito...”

(Fumicultor, 42 anos, 2003, entrevista direta)

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No transcurso do ano de 1997 e da primeira metade de 1998, gradativamente, outros grupos passaram a se organizar em torno da produção ecológica, envolvendo um total próximo a 50 famílias, perfazendo em torno de 200 associados. Destas, cerca de 30 famílias de agricultores eram de Santa Rosa de Lima, sendo as outras pertencentes aos municípios vizinhos de Gravatal e Rio Fortuna.

Na Assembleia Geralda Agreco realizada em dezembro de 1998, contudo, estes números se elevaram para211 famílias, ou aproximadamente 500 pessoas, incorporando também o município de Anitápolis. Este crescimento foi motivado pela mobilização para implementar o Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede (Piamer). O projeto, co-ordenado pelo Centro de Estudos e Promoção da Agricultu-ra de Grupo (Cepagro), visava à instalação de 53 pequenas indústrias rurais de pequeno porte, financiadas pelo Prona-f-Agroindústria, através de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. De acordo com alguns mediadores locais, aquele período foi marcado por um intenso processo de reuniões envolvendo dirigentes da Agreco, téc-nicos das entidades apoiadoras, principalmente do Cepagro, e representantes do poder público dos municípios abrangidos pelo projeto. Além disso, foram realizadas reuniões em uma série de “comunidades” (localidades rurais), visando a “an-gariar” mais agricultores para a proposta e, se fosse o caso, envolvê-los na elaboração dos respectivos projetos técnicos.

Paralelo às discussões em torno da Agreco, da proposta agro-ecológica e, então, dos projetos das agroindústrias, também foram emergindo problemas relacionados ao desenvolvimen-to socioeconômico dos municípios, bem como a busca de so-lução e alternativas. Tudo isso é incorporado às preocupações e à dinâmica do processo. Desta forma, foi constituído um Conselho de Desenvolvimento Regional que, posteriormente, foi transformado no “Fórum de Desenvolvimento dos Peque-nos Municípios das Encostas da Serra Geral”. Este fórum, de acordo com um dos membros da diretoria da Agreco, buscava integrar as ações dos atores sociais envolvidos para a cons-trução de uma proposta de desenvolvimento local/regional integrado e sustentável.

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É unânime, entre os agricultores entrevistados, a avaliação de que os maiores impactos e a diferença na velocidade das mu-danças foram sentidos a partir da entrada do grande número de sócios na Agrego, no final de 1998. A referência a este fato fica tão explícita nos depoimentos dos agricultores que se po-deria, grosso modo, dividir este período de transição em dois grandes momentos: o “antes” e o “depois” da ampliação do número de famílias associadas.

O “antes” teria sido um período marcado pelo grande “conten-tamento” por parte dos agricultores incluídos, principalmente em função da experiência estar “dando certo” do ponto de vis-ta econômico, uma vez que os ganhos obtidos com a produção agroecológica de hortaliças passaram, gradativamente, a ser a principal fonte de ingresso e de composição da renda daque-las famílias. A aceitação positiva da “novidade” por parte dos consumidores, combinada como preço recebido pelos produto-res,podem ser apontados como os componentes centrais desta situação favorável. Além disso, havia um certo equilíbrio entre as quantidades ofertadas pela Associação e o volume e fluxo de vendas pelas lojas da rede parceira, resultando em poucas “quebras” na lavoura (o produto não é sequer colhido) e “de-voluções” pelos supermercados por não venda e/ou perdas na armazenagem. Com a entrada do grande número de famílias, a partir do início de 1999, a produção total da Agreco aumentou consideravelmente num espaço relativamente curto de tempo. A rede de supermercados Santa Mônica, que até então era o único canal de comercialização, não foi capaz de absorver e escoar este acréscimo de produtos, gerando uma desarmonia entre o que era produzido e o que era vendido.

Tal desequilíbrio tem relação com o planejamento e a organi-zação da produção. Como, inicialmente, eram poucos sócios, buscava-se abastecer às lojas do supermercado de acordo com a capacidade de cada família, com poucas restrições quanto ao limite e ao tipo de produto a ser obtido e fornecido. Frente ao desequilíbrio constatado a partir da ampliação, passou-se a adotar um sistema de cotas. Ou seja, cada UFP ou grupo de produtores recebia uma determinada quantidade de mudas das espécies que deveria (ou estava autorizado a) produzir. Por

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essa forma, as UFP ou grupos eram “estimulados” – ou melhor, “condicionados” – a produzir “um pouco de tudo”, durante todo o ano agrícola. De acordo com os técnicos da Agreco, a diversi-ficação,via sistema de cotas,foi adotada não somente para con-tornar problemas de escassez ou de excesso de determinados produtos, mas também para atender à exigência do distribuidor de ofertar uma gama variada de espécies durante o ano todo. Não é preciso dizer que a maioria dos agricultores buscava pro-duzir apenas o que era “mais fácil” (com menos dificuldades técnicas) e apresentava ciclos produtivos mais curtos.

Em maio de 2000, as portas do Santa Mônica se fecharam em definitivo. Além da perda do principal canal de comercializa-ção, somente parte dos pagamentos foi quitada junto à Asso-ciação. A consequência da descontinuidade das vendas foi a perda de produção ainda no campo, em um quadro em que o financiamento para o projeto das agroindústrias havia con-templado também a construção das novas “estufinhas”. Antes do Piamer, sócios da Agreco já haviam contado com recursos do Pronaf-Investimento para este fim. Em março de 1999, por ocasião da vinda do Ministro da Agricultura à região para o lançamento oficial do projeto de agroindústrias, houve a ga-rantia de que, a partir do mês seguinte, os recursos estariam à disposição dos grupos. Mediante aquele aceno positivo, os agricultores deram início às construções das estufas.

Quanto às agroindústrias, além das primeiras parcelas dos fi-nanciamentos terem sido liberadas com atraso, apenas catorze dos 53 projetos foram aprovados e tiveram os recursos à dis-posição, uma vez que o agente financeiro (ver a seguir) alegou problemas técnicos com os demais. Ao mesmo tempo, as regras dos contratos mudaram. Se de início o projeto previa o aval solidário dos grupos e as unidades agroindustriais como ga-rantias, isto não mais foi considerado possível. De acordo com Wilson Schmidt, então presidente da Agreco, estes problemas foram decorrentes das reformas ocorridas no âmbito do Minis-tério da Agricultura. Com a criação do Ministério do Desen-volvimento Agrário, o Pronaf e, por consequência, o projeto-piloto das agroindústrias, passou a ser da competência deste último. O tempo necessário para a reestruturação da equipe

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responsável pelo Pronaf e para a redefinição das atividades do Programa, que incluíram uma concepção diferente em torno da proposta de agroindústrias nele incorporada, fizeram com que o Pronaf-Agroindústria fosse, na forma proposta anterior-mente pela Secretaria de Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura, na prática, extinto. Isso impediu, num primei-ro momento, que o BNDES liberasse os recursos. Uma ação do Governos Estadual – mais particularmente, do Governador Esperidião Amin – e do Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) permitiram o financiamento das catorze primeiras uni-dades agroindustriais, que passaram a funcionar experimen-talmente em março de 2000. Seis meses depois, em agosto, foram oficialmente inauguradas. Sublinhe-se que a exigência da hipoteca das propriedades, acrescida das burocracias liga-das ao financiamento, fizeram com que parte dos agricultores desistissem dos seus projetos.

Embora os entrevistados tenham ressaltado os aspectos nega-tivos do aumento dos associados, não reclamaram da entrada das famílias em si, mas pelo fato disso ter acontecido “de ve-reda” (logo e de uma só vez) e pelas consequências e refle-xos imediatos trazidos para a situação de relativa “estabilidade econômica” conquistada pelos agricultores associados até en-tão. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que para os primei-ros agricultores da Agreco foi um grande desafio adentrar na proposta agroecológica e apostar na sua viabilização enquanto atividade econômica, responsável pela sua reprodução social, principalmente em se tratando de um novo segmento de mer-cado. Embora existisse a garantia de um canal de comerciali-zação, oferecido pelo empresário do Santa Mônica, isso não significava que havia a certeza de que fosse seguro quanto à aceitação dos produtos (e dos preços) e à aquisição dos alimen-tos diferenciados por parte dos consumidores. O que havia para os “pioneiros”, na verdade, era uma “aposta”em torno de uma possibilidade. Já para os sócios mais novos, havia uma “pro-messa concreta de vendas” – a partir de “algo que estava dando certo” –, o que, posteriormente, não se cumpriu. Desta forma, o processo de entrada de grande número de famílias é avaliado muito criticamente. Se, de um lado, os agricultores “pioneiros”

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se sentiram “usados” para “atrair” mais famílias, “porque tinha que ser coisa grande”, de outro, os novos sócios sentiram-se “traídos” frente ao não cumprimento das “promessas” feitas.

Mas, afinal, quem definiu que “tinha que ser coisa grande”? De acordo com um dos membros da Diretoria da Agreco, em-bora a dimensão do projeto das agroindústrias estivesse vin-culada aos critérios do Ministérios da Agricultura, também foi aceita por parte dos “agricultores”. Não é objetivo, aqui, identificar “culpados” pela situação, que é por demais com-plexa, não comportando raciocínios e análise lineares e sim-plificadores. Trata-se, sim, de procurar indicar a existência de relações de poder, de conflitos, de incoerências e de contradi-ções presentes na essência dessa transição. Estas relações são primeiramente estabelecidas a partir da atuação dos órgãos públicos que continuam concebendo suas políticas pautados em critérios e regras pré-estabelecidas, dentro de uma visão “tecnicista e burocrática”, o que os leva a desconsiderar as es-pecificidades da agricultura familiar, bem como dos processos locais de desenvolvimento. Por outro lado, estas relações tam-bém parecem estar presentes entre os associados com relação à “instituição” Agreco, vista como sua diretoria e sua equipe técnica. Foram vários os momentos em que os associados en-trevistados se utilizaram de expressões como “eles da Agreco”, ou “a gente produz pra Agreco”. Esta oposição entre “eles” e “nós” parece deixar evidente a diferença entre o “fazer” e o “ser” parte da Associação. Em outras palavras, os depoimen-tos e as observações feitas no trabalho de pesquisa de cam-po parecem revelar que, embora o fato de serem “produtores agroecológicos” permita que os associados “façam parte” da Agreco, não garante, necessariamente, a condição de “se sen-tirem parte” de algo maior. Ou seja, eles não se veem como sujeitos sociais de desenvolvimento, com participação ativa na construção e concepção da proposta da organização ou entidade à qual pertencem.

Os agricultores, ao que parece, foram “chamados” a participar e a compartilhar da proposta. Com isso não se está querendo dizer que há uma simples “imposição” por uma minoria, aos demais,de decisões pré-concebidas. O que se procura indicar

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é que, apesar de haver mecanismos e instâncias de discussões que permitiriam que as decisões fossem tomadas pela maioria, na verdade, parece, o processo de funcionamento não estaria garantindo a efetiva participação do conjunto dos agricultores.

Ao mesmo tempo, o aumento de “tamanho” foi, sem dúvida, essencial para a projeção e a expansão da Agreco e da pro-posta agroecológica em termos geográficos. Como também da maior “visibilidade social” que elas tiveram. Mostra dis-so foi a aprovação e viabilização do projeto das agroindús-trias, além do maior poder de barganha e força política para o estabelecimento de negociações em torno de parcerias e de novos canais de comercialização. Por outro lado, promoveu um “distanciamento” e um “esvaziamento” das relações de participação e solidariedade, construídas até então “entre” e “pelos” agricultores.

A forma e a rapidez como se deram os processos de discussão e de ampliação do número de associados, somada às suas con-sequências, são os aspectos fundamentalmente questionados pelos agricultores. Pelo fato de não poder controlar esta situa-ção desfavorável, gerada a partir de condicionantes externos à unidade familiar, os agricultores procuram achar um “respon-sável” por isso. A Agreco, materializada por sua diretoria, que intermediou o processo, é a indicada.

Cabe aqui, no entanto, um questionamento: estariam os agri-cultores se manifestando dessa forma, caso não tivessem ocor-rido os “percalços” que acabaram por interferir diretamente no aspecto econômico da proposta? Não seria uma forma en-contrada pelos agricultores de reagir ou até mesmo de omitir sua parcela de responsabilidade no processo, apontando um suposto “culpado” pela situação desfavorável atualmente (em 2003) vivenciada? Independentemente da resposta e do fato da situação ser ilustrativa do que Woortmann&Woortmann (1997) definiram como uma “crise reveladora”, o que fica explícito é a maneira como os agricultores estão se percebendo, enquanto atores e sujeitos sociais do processo. O que importa destacar é o fato dos agricultores terem se posicionando criticamente, o que indicava o início da tomada de consciência em torno do processo que estava em curso.

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Considerações Finais

A história do suinocultor, do fumicultor, ou pode ser a história da Agreco com a

agroindústria... A pessoa tem que ser muito firme, muito cabeça no lugar, para

se sair bem, para não ficar no meio do caminho! E também tem que assumir um

compromisso de não sair, depois, sem mais nem menos! (...) E outra coisa que

precisa, em um grupo, é um confiar no outro, para formar uma agroindústria que possa funcionar! (...) Mas, se depender de mim tudo vai dar certo, desde o trabalho e a organização! Mas eu espero que para os

outros também seja assim... (Ex-fumicultor e produtor agroecológico,

2003, entrevista direta)

Os associados da Agreco são famílias de agricultores familia-res de várias comunidades de Santa Rosa de Lima, bem como dos outros municípios abrangidos pela proposta. As famílias que compõem “os grupos” se reúnem pelas afinidades, pelo critério de vizinhança ou mesmo devido a laços de parentesco. Os grupos, desta forma, variam em relação à sua composição como também ao número de famílias, sendo na média em torno de quatro.

Para ser sócio da Agreco não precisa estar obrigatoriamen-te organizado em grupo. No entanto, a forma associativa é estimulada e preferida por uma série de fatores. O primeiro deles é por facilitar o processo de organização e planejamento da produção, transporte e comercialização. Além disso, para implementar o projeto das unidades agroindustriais, os finan-ciamentos foram assumidos coletivamente – dado o custo re-lativamente elevado dos investimentos necessários, frente às exigências sanitárias, técnicas e de escala mínima de produção – assegurando, ao mesmo tempo, sua viabilidade econômica. Dividir esta responsabilidade e poder contar com seus pares em situações de emergência, permite diminuir as incertezas e os riscos que seriam enfrentados individualmente.

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Apesar da grande maioria dos entrevistados ter se manifestado favoravelmente a este tipo de organização – dizendo preferir o trabalho de grupo ao individual, as “vantagens” oferecidas por intermédio do grupo não são, no entanto, compartilhadas igualmente por todas as famílias. Porque os princípios da or-ganização associativa são vivenciados, no interior dele, com a existência de conflitos.Um deles, a título de exemplo, diz respeito à repartição igualitária dos prejuízos entre as famílias quando da ocorrência de “perdas” na comercialização do gru-po, pela devolução de produtos que foram ao mercado. Para al-guns agricultores, isso não é um procedimento justo, uma vez que “uns capricham” mais e outros, menos. Eles veem, assim, que a penalização seria, para os que entregaram um produto de melhor qualidade “visual” – seja em relação ao processo produtivo agrícola, seja nas etapas subsequentes (lavação, se-leção, acondicionamento em embalagens etc.) – e que tinha condições para ser – ou foi – vendido.

A diversidade produtiva existe no seio das Unidades Familia-res de Produção ligadas à Agreco. O fato de cada grupo se reunir em torno de uma unidade agroindustrial especializada em uma “linha de produto” (ou “cadeia produtiva”: hortaliças, leite, mel, cana-de-açúcar etc.) destinada à comercialização não significa dizer que as UFP estejam voltadas unicamente à obtenção do produto que é foco. É pertinente sublinhar, entre-tanto, que, em alguns casos, foi constatada uma certa tendên-cia à diminuição da diversidade de produção e de atividades. Ainda que um dos fatores explicativos esteja no ambiente ex-terno – a lógica e o ritmo impostos pelo mercado, outros ele-mentos internos às UFP também podem ser agregados. É cor-rente entre as famílias a referência à pouca disponibilidade de mão-de-obra “para dar conta de tudo”, o que pode fazer com que certos produtos e/ou atividades sejam priorizados. Neste sentido, mais uma vez é preciso lembrar e reforçar a impor-tância do manejo e da gestão da “propriedade como um todo” e a incorporação de práticas ecológicas com baixa utilização em capital e adaptadas ao contexto ecológico e sociocultural local, inclusive, portanto, “poupadoras” de trabalho.

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É interessante observar que os ex-fumicultores foram os que se manifestaram de forma mais expressiva sobre as vantagens da proposta agroecológica no que se relaciona aos ganhos de saúde e de qualidade de vida. Não significa dizer que os agri-cultores tradicionais que realizaram a transição para a agro-ecologia não tenham indicado mudanças significativas neste quesito. Em função da exposição dos fumicultores aos riscos e aos danos causados pela maior utilização dos agrotóxicos e do trabalho exaustivo exigido pelo cultivo e secagem do tabaco, estes agricultores têm condições de fazer um contraste mais acentuado entre o “antes” e o “depois”. Se um dos elementos que mais contaram a favor dos tradicionais no processo de transição agroecológica foi justamente o fato de terem se uti-lizado em menor escala do “pacote tecnológico” da agricultura moderna, a prática de uma agricultura “mais convencional”pe-los ex-fumicultores possibilitou uma maior problematização sobre os efeitos dela, o que servia como um elemento “mobili-zador” em direção à transição agroecológica.

Em ambos os casos, é preciso lembrar que a preservação, em maior ou menor grau, do patrimônio sociocultural e das práticas e identidades de “colono e colona” foram elementos “facilitadores” e de importância fundamental no processo de transição. Desta forma, é importante destacar que a dimen-são “simbólica” está presente na mudança do “ato produtivo” destes agricultores. Se, no caso dos ex-fumicultores, o traba-lho era antes direcionado, principalmente, à obtenção de uma “mercadoria”, agora o é para a produção de um alimento, algo que, além de ter um “valor de troca”,tem também “valor de uso”, pois é consumido pela família (TOLEDO, 1993). E, por ser mais saudável, é ainda produzido com mais satisfação. Além disso, para os entrevistados, o trabalho, apesar de ser mais uma vez “apurado” (com sobrecarga), é feito, agora, “com mais prazer”, sobrando “mais tempo livre para conversar com as pessoas” e melhorando a “vivência”. Também se percebe um processo de autovalorização, de resgate da autoestima por ser agricultor ou “colono e colona”.

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Destaque-se que a organização e a gestão da UFP e do processo produtivo no interior dela não separam trabalho e esfera privada da família, ou e seu viver cotidiano. Am-bas as dimensões – trabalho e família – estão diretamente ligadas. Gostar do que se faz é, desta forma, um quesito muito importante para permanecer no meio rural e para exercer a “profissão e identidade” de agricultor, isto porque o “mundo do trabalho” é também o “mundo da vida” (Habermas, citado por BRANDENBURG, 1999)14. Neste sentido, é de fundamental importância para o agricultor familiar a possibilidade de poder construir um “am-biente saudável”, em relação ao lugar que optou para trabalhar e viver. Pode-se afir-mar, destarte, que a prática agroecológica contribui para a realização do agricultor familiar não somente na esfera produtiva e econômica, mas, também, enquanto su-jeito social e cultural.

Estas considerações podem, em resumo,re-forçar o parecer de Tailor& Miller (1978), discutido por Guivant (1992), de que seriam os “pequenos agricultores” os mais propen-sos à prática de uma agricultura “mais sus-tentável”, uma vez que estes vislumbram nessa atividade um “modo de vida” e não uma simples forma de “ganhar a vida”.

14 Ainda de acordo com a interpretação de Habermas, “a esfera da subjetividade é responsável por engendrar uma visão de mundo, um modo de ser e de viver, por isso mundo da vida, (...) um mundo que realiza os atores não tanto pela sua prática enquanto uma atividade que proporciona rentabilidade econômica, mas mais pela identificação com a natureza dessa prática” (BRANDENBURG, 1999: 239 e 243).

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ReferênciasABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário

em questão. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: ANPOCS; Campinas: Ed. da UNICAMP, 1991.

BENNETT, John W. Of time and the enterprise: North American family farm management in a context of resource marginality. Minneapolis: UniversityofMinesota Press, 1982. pp. 3-27.

BRANDENBURG, Alfio. Agricultura familiar, ONGs e desenvolvimento sustentável. Curitiba: Editora da UFPR, 1999.

BUTTEL, Frederick H. "Transiciones agroecológicas en el siglo XX: análisis preliminar". In: Agricultura y Sociedad, n. 74, ene/mar, 1995. pp. 9-37.

GUIVANT, Julia S. O uso dos agrotóxicos e os problemas de sua legitimação: em estudo de sociologia ambiental em Santo Amaro da Imperatriz/SC. Universidade de Campinas (Tese de Doutorado), 1992.

PAULILO, Maria Ignez S. Produtor e agroindústria: consensos e dissensos. Florianópolis: UFSC, 1990.

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

TOLEDO, Víctor M. "La racionalidad ecológica de la producción campesina". In: SEVILLA GUZMÁN, E. & GONZÁLES DE MOLINA, M. (eds.): Ecología, campesinado e historia. Madrid: La Piqueta, 1993. pp. 197-218.

WOORTMANN, Klaas. "Com parente não se neguceia: o campesinato como ordem moral". In: Anuário Antropológico. Brasília: UnB, n. 87, 1990. pp. 11-73.

WOORTMANN, Ellen F. "Teorias do campesinato e teorias do parentesco". In: Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec; Brasília: EDUNB, 1995. pp. 29-93 .

WOORTMANN Ellen F. & WOORTMANN, Klaas. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 1997.

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Aqui, por exemplo, além da agroindústria de mel e de frango caipira, nós temos

parceria com a agroindústria de ovos, com a unidade de conservas, com a unidade de

doces. Então, a rede de agroindústrias vai ao encontro dessa necessidade de diversificação

da propriedade e aí que eu vejo o salto, porque a rede funciona como canais abertos

para o escoamento da produção ”

(produtor e técnico da Agreco)

O Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede (Piamer)

Embora, em 1997, os documentos internos e de comunicação da Agreco já viessem dando destaque à agroindustrialização de pequeno porte como um instrumento indispensável à amplia-ção do processo de desenvolvimento, sua formulação enquan-to estratégia dependeu da parceria com uma outra entidade.De acordo com Luzzi (2001), no início de 1998, a Secretaria de De-senvolvimento Rural do Ministério da Agricultura propôs ao Ce-pagro que gerenciasse, em Santa Catarina, a implantação de dois projetos piloto de indústria rural de pequeno porte, financiados

Capítulo 3Agroindustrialização e

diferenciação; complexidade do processo, problemas e desafios

Luiz Otávio Cabral

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pelo Pronaf Agroindústria, com a condição de que tivessem resultados em curto prazo. Na verdade, o governo havia lançado oito projetos em todo o Brasil, mas nenhum ha-via sido implantado. Então, era crucial que algum fosse estabelecido e apresentasse re-sultados positivos. A proposta do Pronaf Agroindústria tinha como público alvo os agricultores familiares e não exigia que eles fossem agroecológicos. O crédito seria cole-tivo, isto é, com aval solidário e deveria ser concedido (via Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e Social, BNDES) para a instalação de agroindústrias que reunissem em torno de 20 famílias. Para cada grupo de 200 produtores haveria a liberação de R$ 30.000,0015 a fundo perdido para ser aplicado em assistência técnica e 10% do valor do projeto para obras de infraestrutura (AGRECO, 1998).

Em maio daquele mesmo ano, numa nova edição da Gemü-seFest, houve um ciclo de debates sobre agroecologia e um professor da UFSC e assessor do Cepagro participou proferindo uma palestra sobre agroecologia. Entusiasmado pela experiên-cia e pela proposta da Agreco, sugeriu numa reunião do Cepa-gro que a região de atuação da entidade fosse beneficiária do referido projeto, o que foi prontamente aceito.

Para divulgar a ideia, os dirigentes da Agreco iniciaram um intenso trabalho de contato e de mobilização. Uma primeira iniciativa foi convocar, por meio de um programa de rádio, uma reunião para apresentar a proposta e efetuar um levantamento de quem estava interessado. Uma outra estratégia de divulgação se deu via cultos dominicais. Com um grupo de agricultores que demonstrasse interesse, era agendada uma reunião para deta-lhamento da proposta e para esclarecimentos (LUZZI, op. cit.).

Convém dizer que já em meados daquele ano – devido aos bons resultados em termos de produção, comercialização e, por conseguinte, de renda logrados pelos produtores Agreco – o número de famílias associadas era de aproximadamente 50 (algumas em Rio Fortuna e Gravatal), perfazendo um total de 200 filiados. Entretanto, a partir da mobilização em torno do

15 Para permitir uma relativa atualização desse valor, correspondia a aproximadamente US$ 26.000,00 (em maio de 1998, um dólar americano comprava R$1,15), ou a 231 salários mínimos (o salário mínimo nacional em 1º de maio de 1998 era de R$ 130,00)

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projeto das agroindústrias, o contingente de associados quase triplicou num tempo relativamente curto.

Isto porque havia uma corrida contra o tempo, em função dos prazos (data de entrega do projeto) e dos parâmetros buscados (200 famílias, para ter acesso aos estímulos complementares postos pela Secretaria de Desenvolvimento Rural do Ministério da Agricultura), o que acabou acelerando o processo de for-mação dos grupos e comprometendo a participação efetiva dos agricultores na construção da proposta, bem como na avalia-ção de suas limitações e implicações.

Os grupos de agricultores mobilizados foram enquadrados ju-ridicamente sob a forma de “condomínios rurais”. A priori, todo condomínio seria proprietário de uma agroindústria e responsável pelo seu gerenciamento. Apesar das recomenda-

ções da Secretaria de Desenvolvimento Ru-ral do Ministério da Agricultura para que os grupos formados tivessem ao menos 20 famílias, o número de membros de cada “condomínio rural” mostrou-se reduzido (em média quatro) e bastante variável (de uma a onze famílias).

A formulação do projeto, por sua vez, ocor-reu paralelamente ao processo de organiza-ção dos condomínios sob a responsabilidade de uma equipe de trabalho composta por técnicos do Cepagro e das prefeituras envol-vidas. Desse modo, foi concebido o Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede, cujo objetivo geral consistia em alavancar um amplo processo de desenvol-vimento solidário na região, pela agregação de valor à produção da agricultura familiar e pela geração de oportunidades de trabalho e renda (AGRECO, 2000b).

Assim é que se propôs a implantação de 53 agroindústrias de pequeno porte16. Vi-sava-se ainda, manter ou gerar 499 postos

16 Do total de agroindústrias, 26 eram

de beneficiamento mínimo de hortaliças,

6 de produção de conservas (conservas vegetais, compotas e geleias de frutas), 5

de processamento de cana-de-açúcar (açúcar,

melado e cachaça), 4 de industrialização de

leite (leite pasteurizado, queijo e iogurte), 3 de beneficiamento de mel, 2 de abate

de aves, 2 de abate e processamento de suínos

(carnes, defumados, embutidos e banha), 2 de beneficiamento de

grãos (feijão, arroz), 1 de beneficiamento de ovo, 1 de panificação e 1 de

processamento de raízes (AGRECO, 1998).

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de trabalho na produção de matéria prima e criar 208 empregos diretos nas unidades de beneficiamento e/ou transformação. A renda líquida mensal a ser alcançada em cada unidade agroindustrial equivaleria a R$ 573,4017 por família. O total de recur-sos financeiros mobilizados para o Pro-jeto seria da ordem de R$ 2.512.618,6018 (AGRECO, 1998).

É fácil perceber, pela própria denomina-ção, que o Projeto propõe que as unidades agroindustriais fossem de âmbito intermu-nicipal e articuladas em rede. A grande variedade de unidades de beneficiamento estava em sintonia com a necessidade de diversificação das atividades produtivas nas unidades familia-res de produção agrícola, permitindo que cada agricultor, além de produzir a matéria-prima para a agroindústria a que esti-vesse associado, fornecesse outros produtos (excedentes) para outras unidades agroindustriais. O conjunto destas unidades associativas e descentralizadas seria organizado em torno de uma Unidade Central de Apoio Gerencial – Ucag, administrada pelos próprios agricultores e com a finalidade de prestar servi-ços de assistência técnica, capacitação, marketing, comerciali-zação e aquisição de insumos, máquinas e equipamentos para as unidades agroindustriais (AGRECO, 1998).

Consumadas as etapas de organização dos condomínios rurais e de elaboração do projeto, em novembro de 1998, o Piamer foi encaminhado, apreciado e aprovado pela Secretaria de Desen-volvimento Rural do Ministério da Agricultura. No mês seguin-te, por ocasião da Assembleia Geral da Agreco, foi aprovada a filiação do grande número de famílias que haviam ingressado em função de seus projetos dentro do Piamer. O contingente de filiados chega, assim, a aproximadamente 500, envolvendo formalmente 211 famílias de pequenos agricultores dos muni-cípios de Santa Rosa de Lima (grande maioria), Rio Fortuna, Anitápolis, Gravatal, São Martinho, Armazém e Grão Pará.

17 O que correspondia a, aproximadamente, 4,5 salários mínimos da época.

18 De novo papar permitir uma ideia de valor ao leitor: o que correspondia, à época, a US$ 2.184.885,74 ou 19.328 salários mínimos.

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Num certo sentido, este processo de am-pliação estava de acordo com o que defen-dia a coordenação da Agreco, isto é, que a alternativa produtiva e organizativa em curso deveria ser acessível ao maior nú-mero de famílias possível (AGRECO, 1999). Schmidt et al. (2002, p. 88), acrescentam que os dirigentes da entidade “(...) busca-vam implementar um projeto que não fosse apenas uma experiência ‘marginal’ e que pudesse provocar um impacto significativo na dinâmica de geração de emprego e ren-da na região”.

Entretanto, apesar de ter sido essencial à projeção e visibilidade social da Entidade, a ampliação do espaço mobilizado pela Agreco através do aumento significativo do número de filiados e do território de atuação foi acompanhado de um quadro de tensões e dificuldades relacionadas tanto à cadeia produtiva (problemas na produção primária, dificuldades na comercialização) como à aprovação e implementação do próprio Piamer, desafiando, desse modo, o propósito e a persistência dos agricultores vinculados à proposta19.

Antes de caracterizarmos este quadro de dificuldades, é preciso lembrar que o Pia-mer foi sendo implementado juntamente com a realização de outras estratégias de desenvolvimento, bem como do aprimora-mento da equipe técnica e da metodologia de trabalho.

19 Neste caso, deve-se mencionar o desmonte da

Secretaria de Desenvolvimento Rural do Ministério da

Agricultura, com a passagem do Pronaf para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, em

janeiro de 1999. Para Schmidt et al. (2002), isso representou

um duro golpe porque o quase desmantelamento da equipe

do Pronaf-Agroindústria significou a perda da

interlocução com Brasília e a descontinuidade do processo,

com mudanças nos acordos já estabelecidos e nas exigências

(documentação e aval) colocadas aos agricultores.

Segundo os referidos autores, esse golpe só não foi definitivo

porque o Governo Estadual buscou, através de sua

Secretaria da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, honrar

os compromissos assumidos. Luzzi (2001), observa que

dos 53 grupos incluídos no projeto, 15 desistiram já no começo. Segundo a autora,

estas famílias foram seduzidas por um discurso que prometia

renda e comercialização através da Associação e

acabaram desistindo quando as dificuldades começaram

a surgir.

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Diversificação das estratégias e aprimoramento do quadro técnico

Na medida em que começa a ser implantado, o Piamer passa a demandar um ritmo intenso de trabalho, tanto por parte da equipe técnica, como dos próprios agricultores. Com a libe-ração da primeira parcela do financiamento, começam a ser construídas, a partir de julho de 1999, as primeiras quinze uni-dades agroindustriais (AGRECO, 2000a).

Dois meses antes disto, diante da necessidade incontornável de pessoal qualificado para assessoria e assistência técnica na construção e funcionamento das agroindústrias, assim como nas questões de comercialização e marketing, a Agreco se integra ao Programa de Desenvolvimento da Agricultura Familiar Catarinense pela Verticalização da Produção, ou De-senvolver,e formaliza um acordo de cooperação técnica que disponibilizou, por um período de dois anos, para as diferentes etapas da cadeia produtiva: quatro técnicos (dois engenheiros agrônomos, uma engenheira de alimentos e uma engenheira química) com atuação exclusiva; três técnicos (um engenheiro civil, um engenheiro sanitarista e um técnico de marketing) com atuação esporádica; e alguns técnicos locais das prefei-turas envolvidas que, juntamente com a equipe central, assis-tiam os agricultores na produção primária e no processo de formação dos condomínios (AGRECO, 1999).

A partir da atuação da “equipe regional" (ou, do “Polo 6”) do Desenvolver, a metodologia de trabalho teve que ser redefi-nida, até porque tudo estava acontecendo ao mesmo tempo: construção das primeiras agroindústrias, revisão dos projetos que não haviam sido aprovados, aprimoramento e enfrenta-mento de dificuldades nos sistemas de produção primária e de comercialização, organização de cursos e seminários, formula-ção de novos projetos ou estratégias etc.

Em relação a este último caso, cabe ressaltar que três impor-tantes iniciativas estavam em curso naquele momento: i) um projeto de apoio ao agroturismo, que objetivava promover o desenvolvimento de serviços de hospedagem e/ou recepção de visitantes (técnicos, agricultores e consumidores) por agricul-

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tores familiares em suas unidades familiares de produção; ii) a mobilização em torno de uma cooperativa de crédito, que viesse a facilitar o acesso do agricultor familiar a recursos fi-nanceiros (com custos reduzidos) necessários à sua conversão e/ou consolidação como produtor agroecológico; iii) e a cons-tituição de um fórum de desenvolvimento entre os municípios atendidos pela Agreco, com o intuito de mobilizar seus diri-gentes em torno da busca de soluções para problemas comuns. Posteriormente, tais iniciativas institucionalizam-se como en-tidades autônomas e parceiras da Associação.

Retomando as questões concernentes ao quadro técnico, es-clarecemos que, inicialmente, a equipe técnica atuava de for-ma conjunta, mas devido ao grande volume de trabalho isso foi revisto e passou-se a adotar uma abordagem mais partici-pativa e uma divisão de tarefas a partir de três frentes: o setor primário, a construção e gestão de agroindústrias, e o setor secundário (LUZZI, 2001).

No atendimento ao setor primário, os técnicos locais faziam visitas quinzenais (registradas em formulários de acompanha-mento técnico) aos grupos: em uma, o atendimento se desti-nava ao setor produtivo, na outra, com a presença da equipe central, eram abordadas as questões relacionadas aos condo-mínios. A reunião de produção era realizada com o grupo e de forma alternada nas unidades familiares de produção.

Na assistência à construção e gestão das agroindústrias, feita mensalmente pela equipe central e técnicos locais, as ques-tões tratadas incluíam: construção, formulação dos contratos de condomínio, gestão e controle (planilhas, contabilidade) das unidades etc.

No acompanhamento ao setor secundário, os membros da equi-pe central (engenheiras de alimento e química) responsáveis pelo processamento ou beneficiamento orientavam os agricultores sobre questões relacionadas à compra de equipamentos, contro-le de qualidade, processamento, embalagem e armazenamento.

Desta forma, a atuação destes profissionais fez-se indispensá-vel ao processo de ecologização e de agroindustrialização da produção. Entretanto, segundo Luzzi (2001), duas reclamações

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eram feitas pelos agricultores: uma, em relação à própria di-nâmica da assistência técnica (elevada frequência de reuniões, metodologia um tanto intimidativa, assistência mais coletiva) e outra, a respeito da formação inadequada dos técnicos (conhe-cimento e experiência restritos em termos de produção agroe-cológica e agroindustrialização de pequeno porte).

Por outro lado, deve-se observar que a emergência de uma série de dificuldades, direta ou indiretamente associada ao Pia-mer, tornou inadiável a alteração de outros aspectos da estru-tura organizacional da Entidade, especificamente das formas de planejamento e controle da produção e do sistema de trans-porte e comercialização.

Crise(s) e mudança(s) no sistema de produção e de comercialização

Nos últimos meses de 1999, dentre os problemas enfrentados pela Agreco, sobressaiam-se: excesso de produtos e elevado percentual de “quebra” (na lavoura), perda da qualidade dos produtos, deficiências no planejamento das cotas e no con-trole da produção, falta de agilidade quanto às decisões sobre preços e promoções, taxas elevadas de devolução (produção não vendida), acirramento da concorrência no setor de frutas, legumes e verduras (FLV) orgânicas, dificuldades para abertura de novos pontos de comercialização. Como se não bastasse, a rede de supermercados Santa Mônica (que representava mais de 50% das vendas) enfrenta sérias dificuldades financeiras e passa a atrasar os pagamentos (AGRECO, 2000a).

Em resposta à explicitação destas dificuldades, foi criada, em setembro de 1999, a “Comissão de Produção e Comercializa-ção (CPC)”. Reunindo representantes dos agricultores, trans-portadores e diretoria, assessorados por um membro da equipe técnica, a CPC tinha a incumbência de planejar e distribuir as “cotas de produção” por grupo de agricultores, abrir novos postos de vendas, ajustar os preços de acordo com a cotação de mercado, efetuar promoções e negociar as sobras ou devo-luções (AGRECO, 1999).

Note-se que a partir de então, começa-se a regular a produção através do estabelecimento de cotas, ou seja, por meio da de-

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finição do “quê” e “quanto” cada condomínio deveria produzir num determinado período. No caso das hortaliças, esse plane-jamento era baseado na previsão de demanda do mercado (his-tórico das vendas e estimativa fornecida pelos supermercados) e nas características das unidades familiares de cada grupo (disponibilidade de mão-de-obra, aptidões do solo, tamanho das áreas de cultivo, cultivo a céu aberto ou protegido etc.) (AGRECO, 1999; 2001b).

Teoricamente, além de procurar controlar a escassez ou exces-so de produtos, as cotas visavam uma regularidade e diversida-de dos produtos exigidos pelo mercado. Observe-se ainda que embora vários parâmetros fossem levados em conta, a variável principal é o mercado. Em outras palavras, na medida em que se planejava a produção a partir da demanda, a expansão da produção passava a depender cada vez mais da abertura de novas frentes de venda.

Meses depois, a necessidade de aprimorar ainda mais a es-trutura organizacional da Entidade impôs outras inovações: a constituição, em dezembro de 1999, de um “Conselho Deli-berativo” formado por representantes dos condomínios e por assessores reunidos formalmente em torno de um Conselho Consultivo e, no mês seguinte, a transferência da sede de gerenciamento e dos serviços de atendimento de associados – que primeiro estava centralizada na propriedade da família Schmidt e depois, por quase um ano, numa sala da Prefeitura – para o prédio cedido pelo Sindicato Rural e localizado no centro de Santa Rosa de Lima.

No entanto, apesar de todas estas mudanças, os problemas re-lacionados à produção/comercialização persistiam. Nos meses subsequentes, dois outros eventos com repercussão imediata sobre a renda dos agricultores agravaram a problemática: a consumação do processo de falência da rede de supermer-cados Santa Mônica (maio de 2000) e a ocorrência de fortes geadas que resultaram em perdas de até 70% da produção de hortaliças (AGRECO, 2000a).

Devido a vários fatores, portanto, o quadro de dificuldades de-lineado acima marcou profundamente a trajetória da Agreco e,

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de uma certa forma, passou a ser direta ou indiretamente as-sociado ao processo de mobilização e implantação do Piamer. A ponto de Muller (2001) e Luzzi (2001) terem delimitado, a partir do discurso dos agricultores, dois grandes momentos na história da Associação: o “antes” e o “depois” da ampliação do número de famílias associadas. O “antes” teria sido um período próspero, marcado pelo grande contentamento dos agriculto-res, pelo fato da experiência estar dando certo do ponto de vista econômico e por haver um certo equilíbrio entre oferta e demanda, resultando em poucas quebras ou devoluções. O “de-pois”, uma fase de dificuldades, uma situação de agravamento do descompasso entre oferta e demanda, fazendo com que o sistema de cotas passasse a ter um caráter altamente restritivo sobre a produção de todos os associados.

Em agosto de 2000, as primeiras 15 unidades agroindústrias entram em funcionamento e contribuem para a ampliação da pauta de itens comercializados. Na ocasião, mais de 150 itens (folhosas, raízes, grãos, frutas e manufaturados) estavam cadas-trados para a venda. Ao mesmo tempo, outras dez agroindústrias estavam em construção. Além disto, uma vez que os primeiros meses de funcionamento das agroindústrias coincidem com o aumen-to do volume de produtos comercializados, passa-se a alimentar a perspectiva de chegar “(...) ao faturamento de 100 mil reais20 até o final do ano” (AGRECO, 2000a, p. 1).

O mais comemorado evento do final de 2000 foi o lançamento do “Projeto Vida Rural Sustentável” – PVRS. Aproveitando o entusiasmo dos atores e instituições envolvidos e a repercus-são da sua experiência, especialmente no âmbito do Piamer, em meados de 2000 a Agreco propõe ao Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae Nacional – a realização, de um projeto piloto de desenvolvimento local que propunha a consolidação das ações protagonizadas pela Asso-ciação aliada à formulação de referenciais metodológicos capa-zes de orientar iniciativas de desenvolvimento local e voltadas à agricultura familiar em outras regiões do país. Os principais objetivos do PVRS eram a viabilização técnico-econômica, so-

20 Equivalente a, aproximadamente, US$ 55.500 dólares, ou a 662 salários mínimos da época.

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cial, ambiental e cultural das unidades de produção familiares a partir da região piloto; a melhoria da qualidade de vida dos agricultores familiares e a sua permanência no meio rural; e a produção e oferta de produtos sadios aos consumidores.

A operacionalização destes objetivos pressupunha a imple-mentação das seguintes etapas (sequenciais ou não) ou ações: motivação – estímulo à participação e inclusão de novos agri-cultores; aprendizado – capacitação de agricultores através de cursos, estágios, visitas; produção agroecológica e agroindus-trialização – estímulo à produção e beneficiamento de produ-tos; estudo de mercado, marketing e comercialização – subsí-dios à comercialização de produtos; agroturismo, comunicação e cultura – resgate da cultura e capacitação para o agroturis-mo; Implantação de sistema de gestão, qualidade e certificação (AGRECO, 2000b)21. Embora o PVRS devesse se estender por

toda a área de atuação da Agreco, os mu-nicípios atendidos prioritariamente foram Anitápolis, Santa Rosa de Lima e Rio For-tuna.Na avaliação de Schmidt et al., (2002), a implementação do PVRS – principalmen-te das iniciativas que buscavam promover ações de sensibilização, apoio e capacitação, visando aumentar a organização e propiciar assistência técnica e gerencial – contribuiu bastante para o fortalecimento do empre-endedorismo associativo que caracteriza a proposta da Agreco.Com a liberação das pri-meiras parcelas no início de 2001, as ações iniciais do PVRS se voltam principalmente para a estrutura de comercialização: contra-tação de um coordenador ou gerente e início do processo de informatização do sistema.

Naquele período, o desajuste entre produção e comercialização, de certa forma, havia se invertido. Isto é, se desde os últimos meses de 1999 a tônica do quadro de dificuldades enfrentado pela Agreco pôde ser resumida como “excesso de produção e falta de mercado”, a partir do início de 2001, passa a ser “falta produção e sobra mercado”, mesmo com o funcionamento, em

21 Os custos de implantação do PVRS

são de R$ 2,6 milhões. Destes recursos, R$ 1,4

milhões ficaria a cargo do Sebrae e R$ 1,2 milhões

a cargo dos parceiros técnico/financeiros que são o Banco de

Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina/

BADESC, o BESC, a CIDASC, a EPAGRI, as

prefeituras municipais, a Secretaria do Estado de Desenvolvimento Rural

e da Agricultura/DAS e a UFSC (id. ibid.).

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fevereiro, de mais 15 unidades agroindustriais. Visando en-frentar o problema, a Comissão de Produção e Comercialização aprova um “Plano Emergencial da Produção Primária” em três segmentos: hortaliças, produtos não perecíveis e produção ani-mal. Ao mesmo tempo, deve-se enfatizar que parte do referido déficit se deveu às perdas ocasionadas por fortes enxurradas ocorridas em fevereiro.

Além disto, o quadro de dificuldades incluía os seguintes pro-blemas: perda de qualidade devido ao acondicionamento in-correto e falta de padronização dos produtos; crescimento do volume de quebras (quando produto fica na lavoura e sequer é colhido) e devoluções (o produto não vendido na loja do su-permercado retorna à associação); aumento da participação do transporte no custo de produção; dificuldade de comunicação; demora entre a colheita e entrega; manuseio incorreto dos pro-dutos; prejuízos dos transportadores devido ao baixo volume de vendas; aumento da concorrência; mau acondicionamento dos produtos nas gôndolas; identificação duvidosa do espaço orgânico; preços abusivos; atraso nos pagamentos e calote por parte de uma grande rede de supermercados; dificuldades de comunicação entre associados, condomínios, escritório e dire-toria; descontentamento entre os associados; descumprimen-to das decisões dos fóruns de deliberação (AGRECO, 2001a; 2001b; 2001c).

Uma vez que estas dificuldades afetavam principalmente os condomínios de hortaliças, era de se esperar que as metas pro-postas para o período referiam-se, basicamente, a mudanças na dinâmica deste segmento produtivo: aproximadamente 30% das hortaliças deviam sair dos condomínios na forma de produtos processados, lançamento de novos produtos na área de hortaliças (massa de tomate, molho italiano, sopas e chás desidratados, geleias e doces), aumento paulatino da produção numa média de 10% ao mês, elevar para 60-70% a capacidade de produção das agroindústrias de hortaliças de forma a torná-las economicamente viáveis.

O curioso é que ao mesmo tempo em que boa parte dos pedidos não estava sendo atendida, a Associação tomava iniciativas que procuravam consolidar e ampliar o espaço mercantil: seja

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buscando outras frentes de mercado como a venda direta ao consumidor de “cestas de produtos orgânicos” e o fornecimen-to de alimentos ecológicos para a merenda escolar, seja através da constituição, em março de 2001, de uma microempresa, a “Agreco Produtos Orgânicos Ltda”, a fim de atender certas exi-gências impostas por grandes clientes e superar alguns proble-mas emergenciais ligados à comercialização (AGRECO, 2001b).

Em junho de 2001, a Rede Agreco de Agroindústrias passa a contar com 26 unidades em funcionamento e, dentre as fragili-dades levantadas, sobressaem-se: a falta de clareza do que cada um deve fazer dentro do grupo, indefinição de responsabilidades da diretoria e da gerência da agroindústria, divergências entre sócios e na relação com parceiros, poucos sócios ou afastamen-to de sócios, insuficiência de matéria-prima, falta de recursos e venda de produtos por fora da Associação (AGRECO, 2001b).

No mês seguinte, devido ao aumento da complexidade da estru-tura de produção e de comercialização (grande número de pro-dutores, de unidades agroindustriais, de produtos e de clientes) implantou-se a informatização do sistema de comercialização. Uma outra mudança na forma de gerenciar a produção pode ser percebida no fato de que o planejamento das ações passa a se dar em função da diferenciação dos condomínios em gru-pos: “núcleo de hortaliças e conservas”, “núcleo de produtos de origem animal”, “núcleo de mel” e “núcleo de cana-de-açúcar”.

Ainda na ocasião, aAgreco ganha o processo de licitação e inicia o fornecimento da merenda orgânica a escolas de ensino fun-damental de Florianópolis e Criciúma, tornando-se, desse modo, pioneira no que vem sendo qualificado como “mercado institu-cional”, isto é, naquele circuito de vendas cuja clientela é cons-tituída por coletividades ou instituições (escolas, hospitais etc.).

Num certo sentido, os primeiros meses de 2002 não foram mais favoráveis do que o período anteriore é possível entender por-que dentre as perspectivas projetadas para a faseseguinte desta-cam-se: intensificar as vendas para supermercados e aumentar as vendas fora do “grande mercado” (diversificaçãodas formas de comercialização), organização da produção e aumentar a diversidade nas propriedades(AGRECO, 2002a). Interessa-nos,

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contudo, caracterizar melhor e ilustrar certos aspectos vincula-dos às estratégias de desenvolvimentoda Entidade, no período entre outubro de 1999 e outubro de 2003.

Com relação à evolução do faturamento, é possível identificar duas fases distintas naquele mesmo intervalo de tempo: 1) uma, de comportamento menos irregular, que se estende até meados de 2001, na qual predominam as vendas para a “grande distri-buição” (supermercados), com variações gradativas ao longo do ano e picos de venda coincidindo com os meses de verão; 2) outra, bem mais irregular, que começa a ser evidenciada a partir do segundo semestre de 2001 e coincide com o início do forne-cimento para o “mercado institucional”, acompanhado da redu-ção das vendas aos supermercados. Nessa segunda fase, houve a ocorrência de variações mensais abruptas no faturamento e a mudança dos picos de venda que passam a ocorrer nos períodos letivos, em função das vendas para a merenda escolar.

Em relação à Rede Agreco de Agroindústrias, é sabido que foram construídas 26 unidades: 11 de beneficiamento mínimo de horta-liças, 5 de cana-de-açúcar (açúcar mascavo e melado), 3 de lati-cínios (leite e queijo), 2 de mel, 2 de conservas, 1 de ovos caipira, 1 de suínos (carne e salame) e 1 de panificação (pão de milho).

Por outro lado, a partir do início de 2002, três classes de even-tos vêm contribuindo para redefinir esta configuração ori-ginal: desligamento, readequação e fechamento de unidades agroindustriais. A primeira, pela Entidade, quando identifica irregularidades (como a utilização de matéria-prima produzida com agroquímicos). A segunda e a terceirasão consequências do acirramento e persistência das dificuldades em torno do sistema de produção e comercialização de hortaliças. Em face disto, enquanto algumas unidades de beneficiamento mínimo de hortaliças têm modificado suas instalações a fim de pro-cessar produtos de maior valor agregado, outras, com dificul-dades diversas e incapazes economicamente de promover tais mudanças, interrompem suas atividades de beneficiamento e ocorre o seu fechamento. A readequação das agroindústrias de hortaliças ajuda, por sua vez, a explicar as mudanças na pauta de itens comercializados pela Agreco, que cada vez mais passa a incluir produtos processados e de maior valor agregado (la-

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ticínios, derivados da cana-de-açúcar, panificados, conservas, carnes e derivados, ovos, desidratados, mel etc.) em detrimento dos produtos minimamente processados.

Sobre o serviço de assistência técnica, com o término do convê-nio com o Programa Desenvolver e a saída dos técnicos, a Agre-co passou a contar apenas com a atuação do técnico agrícola cedido pela Prefeitura Municipal de Santa Rosa de Lima (desde março de 1999), sendo que em agosto de 2001, o quadro foi reforçado mediante a contratação pelo Projeto Vida Rural Sus-tentável de um veterinário. Posteriormente, a Associação passou a receber assessoria não-exclusiva dos técnicos da Epagri que foram lotados no município de Santa Rosa de Lima, em setem-bro de 2002 (um agrônomo e dois técnicos agrícolas). Em me-ados de 2003, foi contratada, pela Agreco, uma agrônoma com

especialização em agroecologia, para efetuar o levantamento necessário ao processo de certificação dos produtos.

Aliás, é sabido que, desde o primeiro ano de existência da Agreco, a certificação já figu-rava na sua agenda de prioridades. Somente em janeiro de 2003, no entanto, como algu-mas negociações com clientes importantes vinham esbarrando na falta de certificação dos produtos, uma proposta elaborada pelo presidente da Comissão de Formação, Cer-tificação e Ética foi apreciada e aprovada em reunião do Conselho Deliberativo. Op-tou-se pela “certificação em grupo” proposta pela Ecocert-Brasil22, uma empresa de ori-gem francesa.Concluído o processo, foram certificados 40 produtores e 21 unidades agroindustriais (13 de produtos vegetais e 8 de origem animal), sendo que a área total cadastrada foi de aproximadamente 50ha (a maioria ocupada com pastagem) (ECOCERT BRASIL, 2003). Com base nesses números era possível afirmar que aproximadamente 10% dos estabelecimentos agrícolas de San-

22 Neste caso, a própria entidade representativa

dos agricultores é que é certificada por seu “Sistema de Controle

Interno” (SCI), que consiste do acompanhamento

das propriedades e agroindústrias, da

documentação (cadastro, croqui e ficha histórica

da propriedade e registros feitos pelo próprio

agricultor da compra de insumos, venda de produtos

e práticas de manejo) e da inspeção obrigatória pelo

menos uma vez por ano de cada unidade. Além

da auditoria sobre o SCI, a certificadora realiza

ainda a inspeção direta de um determinado número

(amostragem) de unidades produtivas e agroindustriais

escolhidas por sorteio (AGRECO, 2003).

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ta Rosa de Lima eram manejadas em sistemas de produção orgânico e estavam certificadas. Ao passo que, para Santa Ca-tarina, Oltramari et al. (2002), estimavam que apenas 0,35% do total de estabelecimentos eram manejados organicamente, o que equivalia a 706 produtores. E apenas 34% deles tinham seus produtos certificados.

Aspectos das unidades associativas e agroindustriaisSobre os condomínios, torna-se oportuno lembrar que essa forma de associativismo surgiu em função do Piamer e, por serem agrupamentos de famílias em torno do beneficiamento de um (ou mais) produto(s) numa unidade agroindustrial, sua composição (número de famílias, grau de parentesco, ocupação profissional dos sócios etc.) mostra-se mais ou menos variável. É o que se evidencia no quadro abaixo.

Quadro 1: Caracterização das unidades da rede agreco de agroindústrias.

Condomínio Agroindústria LocalizaçãoN.° famíliasInicial/ atual

(grau parentesco)

Setor deocupaçãodos sócios

Rio do Meio Início: HortaliçasDepois: Abatedouro

Rio do MeioSRL

6 / 8(forte)

Não agrícola

Morro verde Hortaliças Braço Rio do Meio SRL

9 / 2(forte) Agrícola

Willemann Início: HortaliçasDepois: conservas

Águas MornasSRL

1(forte) Misto

Rio Bravo Alto Hortaliças Rio Bravo Alto

SRL11 /2

(fraco)Misto(UF)

Nova Esperança

Início: HortaliçasDepois: +conservas

Nova EsperançaSRL

4 / 3(médio) Misto

Wiemes Hortaliças Rio dos ÍndiosSRL

2(forte) Agrícola

Recanto do Puma Hortaliças Serrinha

SRL5 / 1

(forte) Agrícola

Agrovida Início: HortaliçasDepois: conservas

Rio dos BugresSRL

3(médio) Agrícola

Doce Encanto

Cana-de-açúcar (açúcar, melado) e licores

Rios dos ÍndiosSRL

2(forte) Agrícola

Delícias da cana Cana-de-açúcar Nova Fátima

SRL2 / 1

(fraco) Agrícola

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Condomínio Agroindústria LocalizaçãoN.° famíliasInicial/ atual

(grau parentesco)

Setor deocupaçãodos sócios

Flor da Serra Cana-de-açúcar SerrinhaSRL

1(forte) Agrícola

Geração Queijo e leite Rio dos ÍndiosSRL

5(média) Agrícola

Silva Queijo Rio dos BugresSRL

1(forte) (UD)

Becker Conservas Rio dos ÍndiosSRL

2 / 5(fraco)

Não Agrícola

Florada da Serra Mel Braço Rio do

Meio SRL5

(fraco)Não

agrícola

Emigre Início: Ovos Depois: massas

Rio dos ÍndiosSRL

4 / 2(forte) Misto

Frigoprimo Suínos (carne e embutidos)

Águas MornasSRL

6 / 4(forte)

Não Agrícola

Cachoeiras Hortaliças Rio Bravo BaixoRio Fortuna

4(forte) Agrícola

Feldhaus Cana-de-açúcar Barra Rio FacãoRio Fortuna

2(forte) Agrícola

Bloemer Queijo Rio FacãoRio Fortuna

4(forte) Agrícola

Del Campo Pão (de milho) São MiguelGrão Pará

2(forte) Agrícola

Bioápis Mel, desidratados e banana-passa

São MiguelGrão Pará

2(forte) Agrícola

Gabiroba Hortaliças Rio GabirobaSão Martinho

6 / 3(médio) Agrícola

AFARP Hortaliças Rio PequenoGravatal

5(médio)

Agrícola (UF)

Sul do RioInício: cana-açúcarDepois: doces, molhos

Rio do SulAnitápolis 2 Misto

Pik Conservas São BernardoArmazém 1 Agrícola

os condomínios com nome grifado (em negrito) tiveram pelo menos um de seus membros entrevistado

A priori, para ser sócio da Agreco, o agricultor não precisa-ria estar vinculado a nenhum grupo. Segundo Muller (2001) a forma de condomínio foi privilegiada, no entanto, pelos seguintes aspectos: facilita o processo de organização e o planejamento da produção, assim como o transporte e a co-

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mercialização de produtos; viabiliza o acompanhamento e orientação técnica de um maior número de famílias; favorece o acesso a recursos financeiros e humanos através de proje-tos junto à instituições diversas; e mobiliza recursos entre os agricultores associados para a aquisição de equipamentos e para a viabilização do próprio empreendimento agroindus-trial. Por sua vez, a dinâmica da atividade agroindustrial de-pende, obviamente, tanto da natureza e do volume de matéria-prima a ser processada como do produto final. Dependendo da sazonalidade do ciclo de produção da matéria prima, o funcionamento das agroindústrias acontece num ritmo mais ou menos regular. Os laticínios e as agroindústrias de bene-ficiamento mínimo de hortaliças, por exemplo, funcionam de forma mais regular (três e dois dias por semana, respectiva-mente) do que a agroindústria de cana-de-açúcar, que tende a concentrar as atividades de beneficiamento por ocasião da colheita,nos meses mais quentes.

Em geral, as atividades nas agroindústrias são executadas por um ou dois membros de cada família associada. Não há uma divisão rígida do trabalho de beneficiamento, entretanto, apontando para uma questão de gênero, é fácil perceber que as mulheres tendem a ocupar as funções de lavação e limpeza dos produtos, inclusive por recomendação dos técnicos que consideram as mulheres mais hábeis para essas atividades. Por outro lado, as atividades mais técnicas impõem uma di-visão de trabalho que não é tanto em termos de gênero ou de faixa etária, mas, principalmente, por nível de escolaridade. Isto é, as funções de pesagem, registro nas planilhas e/ou contabilidade das agroindústrias tendem a ser exercidas pelas pessoas com mais escolaridade – que são comumente mais jovens. Ao impor a necessidade de registros administrativos e financeiros, pode-se dizer que a agroindustrialização intro-duziu um dado novo na lógica de funcionamento da pequena agricultura familiar: a da maior preocupação com as questões contábeis do empreendimento.

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Além das atividades de beneficiamento e/ou gerenciamento, os sócios de um mesmo condomínio se reúnem (reuniões e assem-bleias) para discutir e deliberar sobre as questões relacionadas ao grupo e à agroindústria. É a partir do funcionamento das agroindústrias de pequeno porte, portanto, que há um envolvi-mento mais efetivo dos agricultores com o condomínio e com a construção de um espaço coletivo, fora do núcleo familiar.

Quanto às vantagens relacionadas ao beneficiamento ou processamento numa unidade própria, os agricultores des-tacam: a possibilidade de agregação de valor ao produto e a qualificação técnica adquirida para a realização dessa etapa da cadeia produtiva. Decorrente tanto da orientação técnica como da própria experiência, esta capacitação necessária à agroindustrialização é às vezes referenciada com orgulho e com sentidos de autovalorização.

Se num primeiro momento, havia uma certa resistência, prin-cipalmente entre os agricultores de mais idade, em deixar de lado o processo de produção no estabelecimento agrícola para trabalhar na agroindústria, hoje, isso é definido como uma ex-tensão daquilo que realizam na propriedade. De um modo ge-ral, os agricultores, principalmente as mulheres, reconhecem que as instalações e os equipamentos na agroindústria permi-tem a obtenção de um produto mais padronizado e de melhor qualidade. Também é motivo de satisfação e orgulho o fato da unidade agroindustrial estar registrada e ter todos equipa-mentos em conformidade com as exigências legais – apesar de muitas delas terem sido taxadas de “absurdo” por ocasião da construção da agroindústria.

Se por um lado, as agroindústrias são associadas às vanta-gens enunciadas acima e levam ao reconhecimento da im-portância do associativismo e da própria Agreco, por outro, a ocorrência de problemas e dificuldades contribuiu para re-definir as representações e relações dos agricultores com o empreendimento e com a Associação.

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Focalizando os problemas e desafiosAo refletir sobre os empecilhos relacionados ao condomínio-a-groindústria pode-se indicar, inicialmente, dificuldades asso-ciadas à dinâmica das atividades de beneficiamento e às re-lações de trabalho. Depois, outras, mais externas e diversas, relacionadas a questões que remetem ao processo de constru-ção do Piamer e à dinâmica do sistema de comercialização e do espaço mercantil.

Entre os problemas internos...

No caso da Agreco, tanto a saída de famílias de agricultores dos condomínios como o desligamento e/ou fechamento de agroindústrias devem ser vistos não somente como uma conse-quência das renitentes dificuldades econômicas, mas também como um indicador das debilidades da base necessária à expe-riência associativa. Mais especificamente, quanto à redução do número de sócios nos condomínios, pode-se afirmar que não se tratou de casos isolados, mas sim de um traço comum a vá-rios grupos, especialmente daqueles que contavam com maior número de indivíduos.

... e a inadequação do Piamer

Indubitavelmente, o entendimento de muitas das dificuldades relacionados à dinâmica (interna) do condomínio-agroindús-tria perpassa pela análise dos aspectos de natureza mais ampla ou externa. Antes de qualquer coisa, é preciso ter em mente que o processo de degradação da renda – especialmente en-tre os produtores de hortaliças – se constitui num catalisador da percepção dos problemas que atravessam a experiência da Agreco. Isto é, muitos dos aspectos negativos levantados pe-los agricultores só adquiriram esse peso devido às dificuldades econômicas que eram enfrentadas.

Com base nas entrevistas realizadas, é possível afirmar que um dos pontos de convergência do discurso de técnicos da Agreco e de agricultores filiados reside na constatação de que o Piamere a estratégia de mobilização das famílias nele inte-ressadas incorreram numa série de equívocos. Especificamente

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em relação ao Projeto, técnicos e agricultores concordam que ele se mostrou inadequado ao contexto e às necessidades lo-cais. O maior problema apontado foi o número excessivo de agroindústrias, especialmente de unidades de processamento mínimo de hortaliças. Schmidt et al. (2002, p. 88) lembram que “os responsáveis pelo Pronaf-Agroindústria tinham uma visão idealizada e de ‘escala’ das unidades agroindustriais as-sociativas e que o programa incitava que se chegasse a um projeto com mais de duzentas famílias”. Também para os téc-nicos entrevistados, o referido problema resultou desses cri-térios pré-estabelecidos pelo Governo Federal, mais precisa-mente pelo Ministério da Agricultura.

Naquele contexto, se o “individualismo” ajudava a explicar o número reduzido de famílias da maior parte dos condo-mínios formados na época – e da totalidade dos que persis-tiram –, essa não é a razão que justifica o grande número de agroindústrias. Nesse caso, é preciso lembrar que da par-te da Agrecohavia a necessidade de ter acesso aos recursos para assistência técnica e infraestrutura quesomente seriam repassados para um projeto com um mínimo de 200 famílias. Já da parte do conjunto das instituições envolvidas (Agreco, Cepagro, prefeituras municipais), interessava atender àqueles parâmetros exigidos e implementar o maior número possível de unidades de beneficiamento, dada a visibilidade social e a dimensão política que isso representava.

A consequência direta do grande número de agroindústrias de pequeno porte se evidenciouna elevada capacidade ociosa das unidades, especialmente as de hortaliças, que chegavam a utilizar apenas 20% do potencial de beneficiamento.

Além da inadequação do Projeto, os agricultores em geral e os técnicos que se posicionaram de forma mais crítica em relação ao processo consideraram que a estratégia de mobili-zação das famílias interessadas pecou pela forte expectativa criada, especialmente em torno de uma certa “promessa” ou “garantia” em termos de comercialização e renda. Um depoi-mento é ilustrativo:

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Um ano depois que as agroindústrias estavam instaladas, a gente viu que

foi uma bobagem fazer tantas de hortaliças. Então, até pode se dizer que

os agricultores queriam tantas assim... Só que não foi bem isso. (...) A gente fez isso

aí em cima de uma propaganda... Eles vieram ali, fizeram uma reunião no salão

da igreja, aí veio gente do Cepagro, do Desenvolver, da universidade e garantiram que era um projeto piloto para o país, que

ia sair essas agroindústrias, que ia ter renda garantida, que todo mundo podia

botar que isso dava. (...) Que a gente não ia saber o que fazer com o dinheiro. E todo

mundo foi na conversa

(agricultor, entrevista direta).

Alguns informantes também se referiram à reduzida participa-ção dos agricultores na construção e implantação do Piamer como um dos maiores equívocos do processo.

O projeto realmente não foi pensado pelos agricultores. Os agricultores até

tiveram participação, mas o projeto já veio pronto (...) Faltou um trabalho

de base. Quer dizer, se constituiu o grupo de forma forçada. Porque o que é que aconteceu: “ah, tem que formar

os grupos pra pegar o recurso pra construir a agroindústria”. E nunca se

trabalhou alguns valores necessários pra se trabalhar em grupo (...) Tem pessoas que até hoje, na minha avaliação, não

conseguiram entender o processo, apesar de continuarem filiadas

(agricultor, entrevista direta).

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Em certa medida, a agregação de sentidos mais ou menos ne-gativos – e até mesmo opostos – ao significado (“original”) do empreendimento agroindustrial pode ser tomada como uma evidência do quadro de tensões e dificuldades vivenciado pelos agricultores familiares, agravadas, sobretudo, pela dinâmica do sistema de comercialização (complexidade e morosidade do es-quema de distribuição, custo de transporte elevado, redução do volume de vendas etc.) e do espaço mercantil (acirramento da competitividade, sazonalidade das vendas, assimetria das rela-ções mercantis etc.). Obviamente que o quadro de dificuldades associado às agroindústrias não tinha o mesmo sentido e nem os mesmos efeitos para todos os condomínios e agricultores filiados. Um registro da ata da Assembleia Geral realizada em dezembro de 2002 é ilustrativo:

Existem famílias que obtém renda de até 3.000,00 reais por mês com a agroecologia e agroindústria. Outras, no entanto, faturam abaixo de um salário mínimo23 com os

produtos que entregam na rede. O diagnóstico deste quadro é claro: alguns produtos têm maior agregação de valor e demanda, produzindo assim um maior resultado econômico (AGRECO, 2002b).

Uma outra evidência pode ser obtida ainda do fato de que a par-tir do funcionamento das agroindústrias, a direção da Entidade e o conjunto dos produtores filiados assumiu uma classificação baseada no grau de perecibilidade dos produtos: “grupo dos pe-recíveis” (hortaliças) e “grupo dos não perecíveis” (na realidade, os menos perecíveis como conservas, açúcar mascavo, melado, mel, embutidos, desidratados, queijo etc.). Com a persistência de dificuldades na produção e comercialização de hortaliças, era comum os produtores recorrerem a esta categorização para considerar a opção que haviam feito como desfavorável:

De verdura, a maioria tá passando por dificuldade. Tem outros, não-perecíveis, que

tão se dando bem... Hoje, a gente vê que deveria ter feito outro tipo de agroindústria

(agricultor, entrevista direta).

23 Em dezembro de 2002 o salário mínimo nacional

era de R$ 200,00.

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É importante, por isso, considerar que por ocasião da formulação e implantação do Piamer, as unidades de processamento mínimo de hortaliças eram a “vedete” da Rede de Agroindústrias Agreco. Prova disso é que o Projeto previa a instalação de 26 estabele-cimentos (50% do total). A partir de meados de 2001, contudo, em face do agravamento das restrições impostas sobretudo pelo espaço mercantil (altas taxas de devolução de produtos, aumen-to da competitividade e dificuldades de ampliação das vendas), a coordenação da Entidade e a própria Ucag começam a incen-tivar os produtores de hortaliças a readequarem suas unidades agroindustriais a fim de que chegassem a produtos de maior valor agregado, como conservas ou desidratados.

Vista com uma certa resistência, até porque isto implicava num investimento significativo, somente a partir do final de 2002 é que a “estratégia da readequação” começa a ser colocada em prática. Duas situações emblemáticas ilustram os rumos desse processo. A do Condomínio Rio do Meio, que reunia fa-mílias com maior capacidade de investimento e empresarial e que converteu a unidade de beneficiamento de hortaliças num abatedouro de pequenos animais (frango caipira, coelho, javali etc.) e a do condomínio Nova Esperança, que por reunir agri-cultores menos capitalizados optou por instalar alguns equipa-mentos (fornalha a lenha e tachos de inox) para a produção de conservas. Já entre aqueles que não tiveram condições finan-ceiras de readequar a unidade agroindustrial ou que tiveram incerteza sobre o sucesso da estratégia, venceu o desânimo.

Considerações finaisNo que se refere à dinâmica espacial do contexto mobilizado pela Agreco, não resta dúvidas de que a natureza das estraté-gias de desenvolvimento implementadas foi capaz de promover a diversificação e a revitalização do espaço rural e, insiste-se, especialmente no município de Santa Rosa de Lima: potencia-lização do capital social através da promoção de ações coleti-vas e de formas de organização dos produtores; constituição de fóruns de participação, discussão e deliberação em diferentes escalas; intensificação da sociabilidade local e revitalização das localidades rurais; capacitação dos agricultores, aumento

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das oportunidades de trabalho e de renda e ampliação das con-dições para o exercício da pluriatividade por parte das famílias envolvidas; construção e funcionamento de um grande núme-ro de agroindústrias com diferentes linhas de beneficiamento ou transformação e estruturadas em rede; implantação de di-versos tipos de empreendimentos, atividades e serviços agro-turísticos e valorização da paisagem rural; difusão de sistemas de manejo mais sustentáveis e promoção da sensibilidade e de condutas voltadas à valorização e preservação do meio am-biente; integração dos segmentos ou setores produtivos; insti-tucionalização de formas de comercialização coletiva e de cré-dito cooperativo; valorização do papel e da identidade social do agricultor, assim como de certos traços da cultura local e regional (alimentação, técnicas de manejo agrícola).

É importante sublinhar que a diversificação desencadeada pe-los instrumentos de desenvolvimento é produto e é produtora de outras diferenciações entre os agricultores familiares e os grupos organizados, assim como entre as propriedades e as localidades assistidas pela Agreco.

Se, por um lado, qualificar as estratégias de desenvolvimento implementadas como sistemas de objetos e de ações pressu-põe que se tratam de instrumentos inter-relacionados e que se complementam, por outro, não se deve duvidar que a di-versidade e combinação de estratégias estejam no cerne dos desafios e problemas impostos ao gerenciamento do contexto de desenvolvimento.

Buscando caracterizar melhor a complexidade do processo em curso, é possível enquadrar os problemas e desafios mais recorrentes na trajetória da Agreco em três classes: i) produ-ção primária e beneficiamento (perdas devido a adversidades climáticas como geadas, estiagens e enxurradas, falta ou ex-cesso de produção, deficiência no planejamento integrado das propriedades a partir de princípios ecológicos, dificuldades na organização da produção através do estabelecimento de co-tas, perda de qualidade e falta de padronização dos produtos, deficiências no serviço de assistência técnica); ii) gerencia-mento e comercialização de produtos (redução e sazonalidade

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das vendas, preços abusivos, instabilidades e assimetrias das relações mercantis, acirramento da concorrência no setor de FLV (Frutas, Legumes e Verduras) orgânicas aliado às dificul-dades de abertura de novos postos de comercialização, mau acondicionamento dos produtos nas gôndolas, volume signi-ficativo de devoluções de produtos, custo de transporte ele-vado e morosidade da logística de distribuição, lentidão nas decisões sobre preços e promoções, atraso nos pagamentos e calotes por parte de grandes redes de supermercados); iii) experiência associativa (falta de comunicação entre agricul-tores, condomínios, escritório e diretoria; descontentamento entre os associados; descumprimento das decisões dos fóruns de deliberação, centralização do processo de tomada de deci-sões, indefinição de funções entre diretoria e equipe técnica, problemas no processo de nucleação).

É fácil perceber que estas três classes de problemas apresen-tam muitos elementos em comum e que o caráter recorrente das mesmas induziu a alterações mais ou menos significati-vas na estrutura da Associação e na dinâmica do processo de desenvolvimento.

Extrapolando as dimensões mais diretamente relacionadas ao espaço institucional, buscamos evidenciar que desde sua constituição, a Agreco vem estabelecendo e se beneficiando de parcerias diversas, assim como da construção de novas re-lações campo-cidade, com o intuito de superar a tendência ao “localismo”, comum a experiências dessa natureza. Indubita-velmente, grande parte da dinâmica do processo de desenvol-vimento resultou da capacidade de articulação interinstitucio-nal da diretoria da Associação – habilidade essa extremamente centrada na figura de seu coordenador geral. Em função disso, constatou-se a ocorrência de um significativo volume de re-cursos externos à região – o que torna questionável a reprodu-tibilidade da experiência em outras regiões do país, conforme se pretende a partir do Projeto Vida Rural Sustentável.

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Ao longo do tempo, parcerias foram efetuadas, desfeitas e apri-moradas em função da conjuntura social, econômica e política vigente, seja na escala local, (micro)regional, seja nas escalas dos territórios estadual e nacional e até mesmo em nível glo-bal. Cada parceria expôs a entidade a uma equação de forças que extrapolam o lugar/local, sendo que algumas delas tiveram um peso significativo sobre aspectos específicos da dinâmica institucional: a parceria com o Cepagro, por exemplo, mos-trou-se fundamental à constituição da Entidade e à concepção e implementação das diferentes estratégias de desenvolvimen-to; com o governo estadual (Programa Desenvolver) foi pos-sível ampliar e aprimorar do quadro técnico; com o Sebrae, procedeu-se o aperfeiçoamento e a informatização do geren-ciamento do sistema de comercialização.

Contudo, se por um lado, evidenciamos que as parcerias cons-truídas pela Agreco foram indispensáveis à dinâmica do pro-cesso de desenvolvimento, por outro, concluímos que nem sempre as forças que compõem este espaço interinstitucional são sinérgicas, podendo vir a configurar determinados setores do referido espaço num campo de disputas e conflitos. Além disso, deve-se chamar a atenção para o fato de que, com o término dos projetos e da injeção de recursos externos, certas dificuldades e problemas assumiram um peso cada vez maior.

Finalmente, estamos certos de que a descrição da dinâmica do espaço institucional e interinstitucional nos autoriza a qua-lificar o contexto de desenvolvimento relacionado à Agreco como um evento resultante da convergência de circunstâncias sociais, econômicas e políticas advindas de diferentes escalas espaciais, ou melhor, como algo “conjuntural”.

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ReferênciasAGRECO – ASSOCIAÇÃO DOS AGRICULTORES ECOLÓGICOS DAS

ENCOSTAS DA SERRA GERAL. Agroindústrias Modulares em Rede: Anitápolis, Gravatal, Rio Fortuna, Santa Rosa de Lima/ Santa Catarina, Florianópolis, 1998.

______. Informativo, Santa Rosa de Lima, v. 1, n. 1, dez. 1999.______. Informativo, Santa Rosa de Lima, v. 1, n. 3, set. 2000(a).______. Projeto Vida Rural sustentável. Florianópolis, 2000(b). 55p.______. Informativo, Santa Rosa de Lima, v. 2, n. 4, fev. 2001(a).______. Informativo, Santa Rosa de Lima, v. 2, n. 5, jun. 2001(b).______. Informativo, Santa Rosa de Lima, v. 2, n. 6, jul. 2001(c).______. Santa Rosa de Lima. Ata da Assembléia Geral

Extraordinária do dia 19 de janeiro de 2002 (a).______. Santa Rosa de Lima. Ata da Reunião do Conselho

Deliberativo do dia 10 de agosto de 2002 (b).______. Carta do Conselho de Certificação, Formação e Ética aos

membros da AGRECO, Florianópolis, 30 jan. 2003.ECOCERT-BRASIL. Relatório de Inspeção: produção vegetal/

produção animal/ beneficiamento transformação/comercialização. Florianópolis, 25 ago. 2003. 20p.

LUZZI, Nilza. A associação dos agricultores ecológicos das encostas da Serra Geral: análise de uma experiência agroecológica. 2001. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.

MULLER, Jovânia Maria. Do tradicional ao agroecológico: as veredas das transições (o caso dos agricultores familiares de Santa Rosa de Lima). 2001. Dissertação (Mestrado em Agroecossistemas) – Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001.

OLTRAMARI, A. C. et al. Agricultura Orgânica em Santa Catarina. Florianópolis, Instituto CEPA SC, maio 2003.

SCHMIDT, Wilson. et alii. Associativismo e cooperativismo: o Terceiro Setor no Desenvolvimento Rural Catarinense. In: VIEIRA, P. F. (org.). A pequena produção e o modelo catarinense de desenvolvimento. Florianópolis, APED, 2002. p. 59-11

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Para uma reflexão sobre um processo que completa sua maioridade (18 anos) de mo-bilização, debate, elaboração de projetos, instalação de unidades de processamento, beneficiamento ou transformação de ali-mentos, o funcionamento delas, sua per-manência, expansão ou “fechamento”, é necessário compreender, antes de tudo, o contexto em que foi elaborado o Programa Intermunicipal de Agroindústrias Modula-res em Rede (Piamer).

Para isso, por sua vez, é preciso conhecer o papel desempenhado por algumas orga-nizações, principalmente aquele exercido pelo Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo, o Cepagro. É fun-damental conhecer, ainda,o quadro em que o Cepagro é criado, sua origem e sua di-nâmica. Afinal, só dessa forma é possível entender as expectativas postas e a lógi-ca adotada na concepção deste programa inovador e pioneiro.

Capítulo 4A agroindustrialização nas

Encostas da Serra Geral e o papel do Cepagro24

Valério Alécio Turnes e Vanice Dolores Bazzo Schmidt

24 Para escrever esse capitulo, baseamo-nos principalmente em três documentos: FUNCITEC

(1998); SCHMIDT W. e TURNES V. (2002) e

CEPAGRO (1999).

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Uma organização que semeou alternativas Fundado em abril de 199025, por técnicos originários da extensão rural oficial (então, Acaresc26), por professores universitários e organizações de pequenos produtores, o Cepagro nasce com o objetivo de estudar e propor novas estratégias de desenvolvi-mento para o meio rural, tendo como foco a agricultura familiar catarinense e o estí-mulo ao associativismo.

A criação da entidade se dá em um mo-mento marcado por intensos debates sobre o “esvaziamento” do meio rural e sobre a importância da agricultura familiar no Bra-sil. Em Santa Catarina, por exemplo, cons-tatava-se, que os agricultores familiares respondiam de forma extremamente posi-tiva à demanda de produção de alimentos que lhes era colocada e, também, que eram responsáveis por grande parte da matéria prima que abastecia o parque agroindus-trial do estado. Apesar disso, verificava-se que parcela significativa dessa população passava por enormes dificuldades e entrava num processo in-tensivo de exclusão econômica e social. Os números do desa-parecimento de unidades de menor potencial eram crescentes e as que conseguiam “sobreviver” não eram capazes de gerar a renda necessária para manter dignamente uma família. Contri-buía para o agravamento dessa situação, o chamado processo de “expansão vertical” praticado pelas grandes agroindústrias. A opção pela automação dos processos e a redução de custos, obrigando à intensificação mais rápida da produção, aumen-tava a pressão sobre as unidades agrícolas familiares levando, no limite, ao seu desaparecimento. Os agricultores que, por uma razão ou outra, ficavam fora desse processo produtivo vivenciavam dificuldades em face das poucas alternativas que lhes eram oferecidas. Assim, um número importante de pes-

25 O Cepagro foi fundado em 20 de abril de 1990 e registrado no Cartório Civil de Pessoas Jurídicas de Florianópolis em 9 de maio daquele mesmo ano. Foi declarado como entidade de utilidade pública municipal, por Florianópolis, em março de 1996, através da lei 4846/96; e de utilidade pública estadual, em agosto do mesmo ano, pela lei nº 10.212/96. (CEPAGRO, 1999)

26 Associação de Crédito e Assistência Rural do Estado de Santa Catarina, antecessora da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina – Epagri.

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soas, especialmente jovens, deixava o meio rural, indo para as periferias das cidades, cada vez menos aptas a absorver tal contingente da população.

O Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo nasce do entendimento de que o grande desafio que se apresentava a uma parte da sociedade era o de encontrar formas de reverter essa situação de exclusão, com a criação de um espaço rural vivo, capaz de oferecer oportunidades de emprego, renda e qua-lidade de vida para as pessoas que nele viviam. Forma-se, assim, uma ONG composta, em sua maioria, por entidades de abran-gência regional ou estadual de agricultores familiares, e por suas entidades de apoio. O foco do Cepagro era, por consequência, o desenvolvimento de estratégias que fortalecessem a agricultura familiar, com formas e estruturas de organização, com a diver-sificação de atividades, ou com o enfrentamento de estrangu-lamentos legais, financeiros ou para o acesso a equipamentos.

Com sua sede construída, com suporte fi-nanceiro da GTZ27, na área do Centro de Ci-ências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina, o Cepagro tinha como ins-tância maior de decisão uma Junta Admi-nistrativa formada exclusivamente por pe-quenos agricultores, que representavam suas respectivas entidades: ONG e o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais de Santa Catarina. Esse foro sempre esteve aberto ao

ingresso de novos segmentos da agricultura familiar, nos âm-bitos regional ou estadual, que desejassem se organizar tendo como base o esforço solidário.

O funcionamento diário da entidade era assegurado por uma Se-cretaria Executiva e por Coordenações Técnicas ligadas aos pro-jetos trabalhados. Os responsáveis técnicos eram assalariados do próprio Cepagro e/ou estavam a serviço de projetos conduzidos em parceria com órgãos do governo. Grupos de Trabalho for-mados por técnicos, especialistas e por pessoas interessadas na promoção da agricultura de grupo ofereciam aos coordenadores dos projetos subsídios técnicos para suas tomadas de decisão.

27 O Gesellschaftfür Technische Zusammenarbeit

(Agência de Cooperação Técnica Alemã), atual GIZ

- Deutsche Gesellschaftfür Internationale

Zusammenarbeit (Agência Alemã de Cooperação

Internacional)

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Além do apoio citado da GTZ, o Cepagro re-cebeu, na sua criação, uma forte influência e colaboração de entidades parceiras fran-cesas, a ALDIS28 e o CEDAG29. Tais organi-zações não governamentais desenvolviam, na França, trabalhos focados na busca de alternativas capazes de reverter o quadro de esvaziamento dos territórios rurais através da promoção, nesses espaços, do desenvol-vimento local sustentável (“durable”) e da revitalização. Esses parceiros traziam, como princípios de base o voluntariado, a solida-riedade, o trabalho coletivo, a cooperação, sempre ligados à preservação ambiental e cultural dos territórios rurais.

Estas referências criaram um ambiente de constante reflexão e crítica interna, imprimindo à organização um intenso ritmo de atuação e uma contínua necessidade de obtenção de resultados. Tornou-se assim uma organização com forte vocação para a proposição de estratégias e implementação de inovações de ca-ráter técnico e político para o meio rural.

No relatório de atividades anuais de 1998, o Cepagro se afir-mava como

(...) uma entidade que tem como características principais: buscar constantemente alternativas voltadas ao desenvolvimento da agricultura familiar; manter sua autonomia nas relações com o Estado e com outras instituições; preservar um ambiente de estímulo ao raciocínio e à reflexão; constituir-se num espaço de convivência para ideias e instituições diferentes; facilitar relações entre as entidades que o compõe e destas com o ambiente externo; ter na sua direção uma maioria de organizações dos agricultores;

[que] (...) norteia suas ações pelos seguintes valores éticos: compromisso social; coerência institucional e fidelidade aos seus objetivos; democracia participativa e transparência na relação com as entidades que o compõe, e seus parceiros; busca de consensualidade; solidariedade.

28 Action Local e pour um Développement Solidaire (Ação Local para um Desenvolvimento Solidário) – Laval – França

29 Centre D'études et de Développement de l'Agriculture de Groupe (Centro de Estudos e de Desenvolvimento da Agricultura de Grupo) – Rennes - França

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[e que] (...) tem como suas finalidades maiores: representar quando formalmente delegado para tal, coordenar e promover as relações/interesses das entidades que o compõe, no que diz respeito ao desenvolvimento da agricultura de grupo e de outras formas de solidariedade no meio rural.Assessorar, apoiar, animar e promover ações que busquem o desenvolvimento local sustentável, tendo a agricultura familiar solidária como base para o desenvolvimento rural. (CEPAGRO, 1999, p.2)

Um dos temas recorrentes nas discussões daquele momento era a necessidade de estimular o surgimento de novas ati-vidades e novas organizações (condomínios, Cooperativas

de utilização de máquinas e equipamentos agrícolas, as CUMA30 etc.) no meio rural, como forma de dinamizar econômica e so-cialmente localidades rurais.

Esta tese confrontava-se com a visão tra-dicional e hegemônica que imputava a este espaço o papel de produtor de matéria pri-ma e de fornecedor de mão de obra para atender às demandas do meio urbano.

O Cepagro tinha compromisso, desta ma-neira, com a promoção de um “novo mo-delo de desenvolvimento do meio rural” e reivindicava políticas de fortalecimento da agricultura familiar e de inclusão social para as famílias rurais. Para além de de-mandar, a entidade realizava ações efetivas em torno de três eixos estratégicos: Desen-volvimento Local31, Cooperativismo de Cré-dito e Agroindústrias de Pequeno Porte. Os dois últimos, sendo vistos como instrumen-tos importantes para a consecução do pri-meiro. Centraremos nossa análise no eixo relativo às agroindústrias de pequeno porte.

30 Em francês, Cooperatives d’Utilisation

de MatérielAgricole, agrupamentos de no

mínimo quatro agricultores que investem, juntos,

para adquirir máquinas e equipamentos agrícolas e

para organizar a utilização coletiva deles. Trata-se de

um tipo de organização comum na França (http://www.coopdefrance.coop/

fr/36/cuma/, acesso em 01/08/2016)

31 Processo de desenvolvimento que

atribui às potencialidades e capacidades locais o poder

de promover a melhoria da qualidade de vida de

um território (endogenia). (BUARQUE, 2002

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O debate sobre a agroindustrialização ou “verticalização” da produção

Naquele momento, despontava a discussão sobre a capacidade da verticalização da produção da agricultura familiar se tornar um instrumento de promoção do desenvolvimento local sus-tentável. Argumentava-se que esse tema podia ser abordado a partir de duas perspectivas: uma, que propõe a criação de grandes plantas industriais em que o agricultor participa uni-camente como fornecedor de matéria prima e, outra, que aposta na construção de um modelo baseado em pequenas unidades, localizadas no meio rural, em que os agricultores são os donos e gestores dos empreendimentos.

Evidenciava-se que a opção pela formação dos grandes con-glomerados agroindustriais, apoiados pelas políticas públicas, estava gerando problemas sociais e ambientais. Suas estratégias de concentração, intensificação e especialização da atividade estavam provocando exclusão de agricultores, degradação dos recursos naturais, especialmente a poluição da água e do solo, e esvaziamento de comunidades rurais.

Em contrapartida, crescia o debate sobre o papel da agroin-dústria de pequeno porte, localizada no meio rural e gerida pelos agricultores, diante das novas propostas de desenvol-vimento sustentável, apresentando-a como um instrumento capaz de contribuir para a criação de uma nova forma de gestão do “local” e a ampliação de oportunidades de trabalho e renda, pela agregação de valor aos produtos oriundos da agricultura familiar.

A visão e a ação do CepagroAssim, em 1994, articulado com suas entidades aderentes, com outras ONG do estado, com entidades governamentais e com prefeituras municipais, o Cepagro deu início ao Programa Agroindústria de Pequeno Porte. Tal iniciativa visava promover a organização dos agricultores familiares para a implantação, no meio rural, de unidades de beneficiamento/transformação da produção agropecuária, gerenciadas pelos próprios agricultores e direcionadas aos mercados locais e a segmentos de mercado. O programa era visto como promissor, pois a realidade do meio

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rural catarinense evidenciava a existência de um imenso “sa-voir-faire” relacionado ao beneficiamento e ao processamento artesanal de matérias primas, destinadas ao autoconsumo ou à obtenção de renda pelos agricultores familiares. Práticas decor-rentes das culturas e das histórias das diversas regiões do estado e que, assim, por ele estavam espalhadas.

Um dos desafios enfrentados pelo Cepagro foi o de transformar estas práticas em fonte complementar de geração de renda e trabalho, aumentando as possibilidades de viabilização da agri-cultura familiar.

Na verdade, esta estratégia já estava sendo utilizada por outras ONG e mesmo pelo serviço público de extensão rural. No Ce-pagro, ela ganhou importância especial por ser compreendida como um eixo catalisador do desenvolvimento local e não so-mente como fonte suplementar de geração de renda para uma família ou um pequeno grupo de agricultores. Destaque-se que no entendimento do Cepagro essa proposta deveria ser vista não como solução individual para um ou outro agricultor, mas como instrumento de desenvolvimento rural que, articulado com ou-tros instrumentos nessa mesma perspectiva – como a promoção do agroturismo ou a valorização do artesanato, seria capaz de contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos agricultores familiares e para a consolidação do importante segmento socio-econômico e cultural por eles formado.

A forte reflexão interna permitia que a organização tivesse cla-reza e consciência do tamanho do desafio. Era sabido que no caso da agroindústria rural de pequeno porte existia (como ain-da existe!) uma série de problemas que interferem na produtivi-dade e na qualidade do que é produzido: características quali-tativas da matéria prima, dimensionamento e desenvolvimento de equipamentos e instalações adaptados às condições locais e aos volumes de produção, racionalização dos processos, higie-ne e profissionalização das pessoas, uniformidade dos produtos, legislação, legalização e gestão dos empreendimentos, comer-cialização, dentre outros. Não se podia subestimar o fato de que nessas unidades o agricultor e seus familiares assumiriam todas as funções da cadeia produtiva. De simples produtores de ma-

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téria prima, passariam a desempenhar funções polivalentes que iriam desde a de principal executivo até a de vendedor, com to-das as dificuldades que isso comporta (FUNCITEC, 1998). Logo, tinha-se claro que não bastaria implantar essas unidades. Seria necessário, desde o início, pensar em introduzir alternativas ins-titucionais que permitissem a garantia e a ampliação de parte do mercado para esses produtos.

Em seu Programa de Agroindústrias de Pequeno Porte, o Ce-pagro utilizava, como estratégia, a organização de pequenos grupos de agricultores e o fomento à implantação de pequenas unidades agroindustriais.

Numa primeira fase, as ações foram bem-sucedidas e geraram uma série de “cases” que se tornaram referências no estado e no país. A partir de um determinado momento, no entanto,o Ce-pagro passou a reavaliar sua prática em função de um conjun-to de evidências que foram sendo sistematizadas e explicitadas durante o processo de acompanhamento do desenvolvimento de cada empreendimento. Foi no contexto dessa reavaliação da estratégia de ação do seu Programa de Agroindústrias de Pe-queno Porte, que o Cepagro gestou o Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede, como veremos a seguir.

Agroindústrias de pequeno porte: prática, autocrítica e nova prática

Em 1998, o Cepagro passava por um processo de reavaliação interna de seus programas de trabalho. Tomava força na en-tidade a visão de que as ações de crédito cooperativo, agroin-dústria de pequeno porte, turismo rural e outras deveriam es-tar inseridas numa perspectiva de desenvolvimento local. Não bastava, portanto, organizar grupos de famílias e dotá-las de capacidades que possibilitassem sua permanência no meio ru-ral. Era preciso fazer com que estas ações permitissem a via-bilização do território como um todo e não apenas dos grupos mais competentes ou competitivos.

No que se refere ao Programa Agroindústria de Pequeno Porte, não foi diferente e, como mencionado anteriormente, sentiu-se a necessidade de repensara estratégia até então adotada.

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Isso porque, embora as avaliações mostrassem que os empre-endimentos estavam alcançando ótimos indicadores de desem-penho econômico (volume de produção, volume de comercia-lização, faturamento,geração de postos de trabalho, renda por família etc.), constatava-se que a mediação do Cepagro e o es-tabelecimento de diversas parcerias geravam uma estrutura de suporte técnico, político e financeiro muito diferente das condi-ções tradicionais, privilegiando um número restrito de agricul-tores. Aos poucos, cristalizava-se a “cultura do projeto piloto”, iniciativa que servia de modelo, mas que, na prática, era pouco replicável e replicada.Em muitos casos, viabilizava um pequeno número de pessoas e servia como justificativa para a existência de várias organizações públicas e privadas de apoio.

Percebia-se ainda que os impactos sociais gerados no entorno dos empreendimentos – localidades e municípios – eram pouco evidentes e, em alguns casos, até mesmo acirravam o processo de exclusão no meio rural.

Além disso, alguns grupos, em função do aumento de sua ren-da, passaram a comprar matérias primas de vizinhos, adotando relações comerciais idênticas ou piores do que aquelas pratica-das por atravessadores tradicionais. Na contratação de mão de obra, em geral também de vizinhos, prevalecia a informalidade e baixas remunerações. Passou a se constatar, ainda, nesses grupos bem-sucedidos, o desejo de aumento da capacidade produtiva e, por consequência, do patrimônio fundiário. Isso em geral se dava pela aquisição das propriedades lindeiras, quase sempre de agricultores familiares.

Em síntese, as avaliações e as reflexões feitas sobre o Programa Agroindústria de Pequeno Porte, após quatro anos da implanta-ção dele, mostravam que o efeito da estratégia adotada era po-sitivo quando se levava em consideração o crescimento econô-mico de um pequeno grupo, mas estava se mostrando pouco ou nada efetiva na promoção do desenvolvimento local e solidário.

Em paralelo a esse processo de reflexão interna, surgem, na-quele mesmo ano, para o Cepagro duas novas possibilidades de parceria.

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De um lado, a Associação dos Agricultores Ecológicos das En-costas da Serra Geral – Agreco apresentava ao Cepagro uma demanda de apoio para a ampliação da área de atuação e do escopo de ação da organização. A Agreco tinha sido fundada em 1996, com o objetivo, dentre outros, de

(...) organizar os agricultores filiados, segundo os princípios das técnicas agroecológicas, prestando-lhes serviços relacionados à produção, beneficiamento, industrialização, armazenagem e comercialização dos produtos agrícolas e seus derivados. (AGRECO, 1996, p.1)

A associação passava por um momento de expansão do número de associados e afirmava a necessidade de reforçar parcerias que lhe ajudassem a atingir seus objetivos. A busca pelo apoio do Cepagro se deu, inicialmente, nessa direção. É importante sa-lientar que a Agreco centrava sua ação em Santa Rosa de Lima, um pequeno município rural isolado, onde nunca o Cepagro ha-via atuado. É válido destacar, também, que nas discussões so-bre desenvolvimento rural sustentável e produção de alimentos “limpos”, bastante presentes à época, a Agreco aparecia como uma referência, já que incorporava, desde sua criação, como condição de existência, a organização de produtores e da pro-dução, a adoção e a promoção de princípios, práticas e técnicas da “agricultura ecológica” para a obtenção de “alimentos livres de agrotóxicos e adubos sintéticos” (AGRECO, 1996).

De outro lado, a Secretaria de Desenvolvimento Rural do Minis-tério da Agricultura (SDR/MA) procurou o Cepagro para propor que ele gerenciasse, em Santa Catarina, a implantação de um projeto piloto de indústria rural de pequeno porte. A grande pre-ocupação da – e condição posta pela – SDR/MA era a obtenção de resultados no curto prazo. Essa premência se justificava porque o Ministério da Agricultura pretendia lançar, em seguida, uma nova linha de financiamento vinculada ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, que denominou de Pronaf Agroindústria. Tal linha promoveria o apoio à consti-tuição de unidades associativas destinadas ao beneficiamento e à industrialização da produção oriunda da agricultura familiar. Para isso julgava necessário desenvolver projetos com potencial de replicação para servirem como referências para o Brasil.

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Uma das estratégias adotadas pela SDR/MA havia sido a identi-ficação de oito áreas em várias regiões do Brasil que apresentas-sem potencial e, em seguida, a constituição, nelas, de projetos de agroindustrialização ligados à agricultura familiar. Até aquele momento, contudo, nenhuma das iniciativas teria se consoli-dado e apresentado os resultados esperados pela SDR/MA. Era, então, crucial que alguns projetos fossem implantados e apre-sentassem rapidamente resultados positivos.

Por conhecer a experiência na área de agroindústrias rurais de pequeno porte e por reconhecer a capacidade de ação e tra-balho do Cepagro junto aos agricultores familiares de Santa Catarina, a equipe da SDR/MA veio a Florianópolis para pro-por ruma parceria. A contrapartida da SDR/MA era a oferta de apoio financeiro para os trabalhos de informação e mobilização dos agricultores e de elaboração técnica do projeto piloto. Além disso, garantia o financiamento das unidades e infraestruturas projetadas, através do Pronaf Agroindústria, em gestação. Aten-didos certos condicionantes, havia, também, a garantia de apoio financeiro para a assistência técnica necessária à implantação e à “decolagem” do projeto.

O Pronaf Agroindústria 1998-2000continha algumas diretrizes e condições relativas ao número de famílias a serem envolvidas, à quantidade de associados por agroindústrias e à existência de uma unidade central de gerenciamento. Como recuperam Dori-gon, Silvestro e Mello (2000, p. 4):

O Pronaf Agroindústria tem como normas (Pronaf Agroindústria, 1998):

(a) a gestão integrada das cadeias produtivas pelos agricultores familiares associados, o que significa a integração da produção primária, secundária e terciária, sendo o agricultor familiar o público beneficiário direto e gestor desse processo, nas suas diferentes formas de organização. Os agricultores familiares devem produzir, pelo menos, 80% da matéria prima processada pela sua agroindústria, para evitar a dependência externa e também evitar que agricultores se organizem para se inserir apenas naqueles elos da cadeia produtiva que agrega mais valor.

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b) Projeto centrado na gestão social: os agricultores participam efetivamente da organização, do planejamento e das decisões sobre o Projeto. Parte-se do princípio de que quanto menor o grupo, limitado no máximo a 40 famílias - mais fácil será a gestão social, facilitando a participação e a democratização das decisões;

c) pequenas ou médias agroindústrias concebidas dentro de escalas mínimas de processamento;

d) conglomerado de agroindústrias, com abrangência intermunicipal, integrado a uma Unidade Central de Apoio Gerencial (Ucag).

Eram números altos e resultados esperados desafiadores. O Cepa-gro viu nesta proposição uma possibilidade de redirecionamento de suas ações no campo da agregação de valor aos produtos da agricultura familiar. Avaliou que a dimensão do projeto propos-to era um elemento instigante e muito interessante, justamen-te pela possibilidade de tornar as pequenas agroindústrias um verdadeiro instrumento de desenvolvimento local. A expressão então usada era que ele poderia “mudar a cara” do “local” em que estivesse inserido. Por isso, o desafio foi aceito.

Como se verificou mais tarde, esta conjugação de oportuni-dades possibilitou a construção de uma nova estratégia de ação. Através de um modelo inovador de constituição de uma rede de agroindústrias de pequeno porte, ela inseria, de forma efetiva, a agregação de valor aos produtos da agricultura fa-miliar nas ações e articulações voltadas ao desenvolvimento de um território rural.

Passou-se então ao levantamento no estado dos locais com potencial para a implantação do referido projeto, sempre considerando a perspectiva de respeitar as pré-condições es-tabelecidas pela Secretaria de Desenvolvimento Rural do Mi-nistério da Agricultura.

Após várias discussões internas e com anuência da própria equi-pe da SDR/MA, foi feita a escolha da região das Encostas da Serra Geral, em especial, a área potencial de abrangência da Agreco.A proposição inicial dessa região foi trazida por um pro-fessor da UFSC que, dentro de suas atividades de extensão uni-versitária assessorava o Cepagro. Ele havia realizado, um pouco

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antes, uma palestra em um debate sobre agricultura com técni-cos e agricultores em Santa Rosa de Lima e afirmava ter sido surpreendido pelas ações e projeções da Agreco. A opção pela região foi inicialmente avaliada positivamente pela diretoria do Cepagro, que a submeteu, em seguida, à apreciação da Junta Administrativa. Essa instância deliberativa respaldou, após uma significativa discussão e avaliação, a posição da secretaria exe-cutiva e do corpo técnico.

Um aspecto importante a ser destacado neste processo de de-cisão está relacionado às condições de base identificadas pela equipe do Cepagro. A região escolhida apresentava, pelo me-nos, duas características diferenciadoras das demais de atuação da entidade. Uma delas era a possibilidade de fortalecimento de uma organização inovadora, que se propunha a atuar com a produção orgânica, estabelecer relações com diversos tipos de mercados e catalisar um processo de desenvolvimento de toda uma região. Outra, dizia respeito à sede da Agreco, Santa Rosa de Lima. Um município isolado dos eixos dinâmicos de cresci-mento econômico (rodovias, portos, mercados consumidores), que vivia uma crise de sua principal atividade, a fumicultura integrada, ao mesmo tempo em que era desprovido de estru-turas básicas para o apoio à agropecuária, e que constatava a continuidade de um processo de esvaziamento demográfico. Pode parecer estranho, mas foi este quadro que contribuiu para que a escolha recaísse sobre a região. O argumento principal era de que ao mesmo tempo em que isso significava uma fragilida-de, poderia significar uma menor reação à implementação das propostas inovadoras apregoadas pelo Pronaf Agroindústria.

Após esta definição, o Cepagro, os representantes da Agreco e da SDR/MA (Programa Pronaf Agroindústria) estabeleceram algu-mas orientações que balizariam a elaboração do projeto piloto.Houve, nesse processo, uma sinergia das ações e concepções das três partes. Não sem conflitos, a nova estratégia foi delineada a partir de alguns pressupostos e princípios de base. Muitos deles foram gerados a partir do processo de autocrítica realizado pelo Cepagro e seus parceiros. Outros, do conhecimento da realidade local que a Agreco possuía. Outros ainda, diretamente da pro-posta original do Programa Pronaf Agroindústria.

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Chegou-se, então, a um consenso. O de que, na sua concepção, o projeto seria de abrangência intermunicipal. Como os empre-endimentos deveriam ser concebidos a partir do reconhecimento das capacidades e/ou potencialidades territoriais, estabeleceu-se como área de abrangência o conjunto formado pelos municípios de Gravatal, Rio Fortuna, Santa Rosa de Lima e Anitápolis, que apresentavam características históricas, culturais e ambientais que sugeriam uma relativa identidade. A abordagem intermu-nicipal buscava, ao reduzir o grau de interferência de decisores locais, superar determinados entraves relacionados a posturas clientelistas ou paternalistas por parte dos poderes públicos, tí-picas de pequenos municípios catarinenses e que, por vezes, res-tringem as possibilidades de desenvolvimento local. As unidades de beneficiamento e transformação deveriam ser associativas e situadas fora das sedes dos municípios envolvidos, fortalecendo os laços de cooperação e solidariedade, com linhas de produtos diversificadas, que promovessem a valorização das identidades locais. Nesta perspectiva, seria adotada a ideia do trabalho em rede e uma lógica baseada no portfólio de produtos oferecidos (escopo), em detrimento da quantidade produzida (escala).Em função desta perspectiva viabilizou-se a ideia de que cada uni-dade poderia ser composta por um número menor de famílias.Toda produção e seus derivados estariam livres de agrotóxicos e fertilizantes de síntese química. Em favor desta proposta, consi-derava-se a facilidade de transporte das matérias primas das la-vouras para as agroindústrias, a facilidade para o aproveitamen-to da mão de obra dos agricultores e suas famílias, a agilidade no processo de decisão e na solução de problemas, a dispersão na geração de efluentes e resíduos com menor impacto ambiental.

Como consequência, o objetivo geral do Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede foi definido como:

Implantar agroindústrias, vinculadas à pequena produção familiar em forma associativa, nos municípios de Gravatal, Rio Fortuna, Santa Rosa de Lima e Anitápolis, articuladas em rede através de uma Unidade Central de Apoio Gerencial como forma de agregar valor à produção, com a finalidade de melhorar a qualidade de vida das famílias envolvidas e contribuir para o desenvolvimento com sustentabilidade da região.(CEPAGRO, 1998, p.4)

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Delineou-se, então, um projeto técnico com agroindústrias de pequeno porte localizadas nas localidades rurais onde ficavam as unidades familiares de produção de seus proprietários, ges-tores e trabalhadores, produzindo produtos orgânicos e arti-culadas em rede. A articulação em rede e a produção orgânica eram vistas como os maiores diferenciais deste modelo em re-lação ao anterior adotado pelo Cepagro.

A proposta técnica original...Foi projetada a implantação de 53 indústrias rurais de pequeno porte no Território das Encostas da Serra Geral. Cada agroindús-tria seria constituída por um grupo de famílias de, em média, quatro associados, organizadas na forma jurídica de condomí-nios. Estimava-se o envolvimento, de forma direta, de duzentas e onze famílias de agricultores, a manutenção ou geração de quatrocentos e noventa e nove postos de trabalho na produção de matéria prima nas unidades familiares e a geração de duzen-tos e oito postos de trabalho diretos nas agroindústrias.

Considerava-se que as condições acima elencadas e estes núme-ros eram pressupostos para a consolidação e a sustentabilidade da proposta. Da mesma forma, que a localização no meio rural, ou em municípios com essas características, contribuiria para a dinamização local e a permanência das pessoas nesse espa-ço, com qualidade de vida. Esse aspecto era visto como espe-cialmente importante quando relacionado com as comunidades que passavam por um processo de esvaziamento e precisam ser revitalizadas econômica e socialmente. A localização fora da sede dos municípios faria com que a infraestrutura necessária ao funcionamento das agroindústrias (estradas, telefonia, ener-gia elétrica etc.) chegasse às comunidades mais distantes e não ficasse restrita ao núcleo “urbano” dos municípios.

O pequeno porte e a descentralização evitariam a concen-tração da produção e de resíduos poluidores e tornariam os sistemas para o tratamento muito mais simples, garantindo a preservação do ambiente.

Da mesma forma, a adoção de práticas, técnicas e processos ecológicos na obtenção da matéria prima e dos produtos fi-nais. Característica que, além de preservar o meio ambiente,

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contribuiria muito para a agregação de valor a esses produtos, especialmente porque crescia a demanda dos consumidores ur-banos por produtos orgânicos.

A característica associativa de cada unidade seria fundamen-tal para assegurar o suprimento da matéria prima a ser trans-formada ou beneficiada, a mão de obra necessária para seu funcionamento e uma melhor gestão do empreendimento. Por isso, todos os empreendimentos seriam resultado da associação de grupos de agricultores familiares, ou seja, não se admitiria, na rede, empreendimentos de caráter individual. A gestão e o controle das decisões relativas não só à unidade própria, mas ao conjunto da rede, deveriam ser mantidos pelos agricultores associados. O objetivo era capacitar e empoderar os agriculto-res associados para a instauração de novas práticas de gestão e controle social, evitando-se a concentração de poder, a per-sonalização e a falta de transparência, comuns em alguns tipos de organizações similares.

Os associados a cada um dos empreendimentos deveriam as-sumir o compromisso com a produção da maioria da matéria prima a ser utilizada. O que não fosse produzido pelo grupo deveria ser obtido, preferencialmente, de agricultores da rede, criando um mercado intra-rede que valorizasse e estimulasse a diversificação de cada unidade de produção familiar, um prin-cípio básico da agroecologia. Havia, ainda, como orientação, o estímulo à troca ou à comercialização de matéria prima en-tre as unidades produtivas dos diferentes grupos associados, fortalecendo assim a rede de cooperação e solidariedade. De forma complementar, admitir-se-ia a compra de matéria prima de agricultores familiares não associados, desde que vivessem e produzissem no território. Destaque-se que a aquisição de matéria prima ou insumos de fora da região do projeto eram compreendidos como inadequados e indicativos de possíveis fragilidades na construção do modelo.

A articulação em rede possibilitaria a consolidação do princí-pio da diversificação e da escala de produção, pela organização solidária dos agricultores familiares, diminuindo as perdas e ampliando as possibilidades de mercado para seus produtos. A rede seria formada pelo conjunto de empreendimentos asso-

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ciativos da região, articulados em torno uma Unidade Central de Apoio e Gerência – Ucag, de âmbito intermunicipal, a ser criada, mantida e administrada pelos próprios agricultores fa-miliares. Essa Ucag seria a responsável pela animação e coor-denação da rede e pela prestação de serviços de assistência téc-nica, marketing e comercialização. Deveria, ainda, assessorar o conglomerado no sentido de otimizar sua inserção no mercado, eliminando o que fosse possível de intermediação na aquisição de insumos e equipamentos para as unidades agroindustriais e, principalmente, na venda dos produtos finais aos distribuido-res e/ou consumidores. Essa unidade de apoio seria detentora de uma marca coletiva para os produtos da rede e deveria es-tabelecer uma estratégia de marketing e de comunicação que valorizasse as características diferenciadas dos produtos, os atributos do território em que são produzidos, o fato de se-rem orgânicos, oriundos de pequenas agroindústrias ligadas à agricultura familiar e contribuírem para um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente equilibrado.

Outro ponto importante da proposta se referia aos processos. Segundo ela, deveria ser dada prioridade àqueles que incor-porassem elementos da tradição e da cultura, aproveitassem, valorizassem e preservassem os recursos locais/regionais dis-poníveis e resultassem em produtos diferenciados. Os produ-tos a serem disponibilizados para o mercado deveriam possuir atributos específicos de forma a explicitar sua identidade com o território das Encostas da Serra Geral. Esperava-se que a produção fosse realizada através de tecnologias e processos amparados pelo “savoirfaire” adquirido ao longo da história de construção do território. Tais processos deveriam acontecer em unidades simples, utilizando-se de instalações e equipamentos adaptados à pequena escala, mas capazes de garantir a higiene, a sanidade e o sabor dos produtos.

No que se refere aos produtos finais destas agroindústrias, pre-conizava-se ainda que deveriam contar com a garantia de um acompanhamento técnico e de um serviço de inspeção sanitária e cumprir os demais requisitos exigidos pelo mercado formal.

Ressaltava-se, ainda, que a estética das instalações e o cuida-do com os equipamentos deveriam contribuir para a construção

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da imagem dos produtos: ligados à agricultura familiar e a um meio rural vivo e preservado (SCHMIDT E TURNES, 2002).

Além disso, a concepção do projeto previa como condição ne-cessária a participação efetiva dos poderes públicos municipais, como atores fundamentais no processo de desenvolvimento local.

Outro objetivo claro do Projeto Intermunicipal de Agroin-dústrias Modulares em Rede era de, no médio prazo, buscar reincorporar à produção os filhos de agricultores desses mu-nicípios, que haviam migrado para grandes cidades e que, em função da crise de emprego no meio urbano, retornavam na-quele momento para a região.

... e os seus desdobramentosDesta forma, a partir de junho de 1998 as ações do Programa de Agroindústrias de Pequeno Porte do Cepagro foram con-centradas na região da Agreco, envolvendo os municípios de Anitápolis, Gravatal, Rio Fortuna e Santa Rosa de Lima. Nesta região, com a participação de lideranças locais, dos técnicos do Cepagro e de outros disponibilizados pelos parceiros locais (prefeituras, Epagri, Agreco etc.), foram desenvolvidas diversas ações referentes à animação, discussão e organização dos agri-cultores, resultando na elaboração do Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede.

Em novembro de 1998, a proposta consolidada do projeto foi levada, em mãos, a Brasília para que fosse analisada e aprova-da pela SDR/MA.

Naquele momento, o Cepagro concluía o trabalho acordado com o Ministério da Agricultura, de coordenar a elaboração do Projeto de Agroindústrias Modulares em Rede das Encos-tas da Serra Geral. Cabia, então à Agreco seguir coordenando o seu desenvolvimento (AGRECO, 1999b). De fato, o Cepagro encer-ra neste ponto sua participação e não vai participar da implementação do projeto téc-nico que co-construiu32.

32 É Foge ao escopo deste capítulo apresentar e debater os motivos desta ruptura.

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A Agreco vai buscar novas parcerias para garantir a continuidade dos trabalhos. Uma das mais significativas foi a inclusão, em maio de 1999, da região de atuação da Agreco como um dos polos do Programa de Desenvolvimento da Agricultura Fa-miliar Catarinense pela Verticalização da Produção – Desenvolver. Esse programa foi o resultado de um esforço de muitas instituições, tendo sido as proponentes, além do Cepagro: a Fundação de Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (Funcitec), a Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (Apaco) e as prefeituras municipais de Blumenau e de Joinville. Teve por objetivo apoiar as iniciativas de agroindústrias rurais de pequeno porte em Santa Catarina. Para isso, por intermédio de um Convênio entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológi-co (CNPq) e a Funcitec, previu e permitiu a

contratação, através de bolsas de fomento tecnológico, con-cedidas pelo CNPq, de profissionais especializados nas diver-sas etapas da cadeia produtiva33.

Por um período de dois anos, a Agreco pode contar com o tra-balho de sete técnicos. Quatro deles tinham dedicação exclu-siva na região (dois Engenheiros Agrônomos, uma Engenheira de Alimentos e uma Engenheira Química) e três com atuação esporádica (um Engenheiro Civil, um Engenheiro Sanitarista e um Técnico de Marketing). Estes profissionais, juntamente com os técnicos locais das prefeituras envolvidas e da equipe central da Agreco, formaram a equipe técnica que passou aassessorar os agricultores na implantação dos projetos de cada agroin-dústria, na produção primária, na transformação dos produtos, no controle de qualidade e no processo de constituição jurídica dos condomínios e da Rede (AGRECO, 1999b).

33 Aproximadamente 70 bolsas distribuídas nas áreas de infraestrutura

(engenheiros civis, sanitaristas e

mecânicos), extensão (agrônomos, veterinários,

administradores de empresa, economistas

etc.), controle de qualidade dos produtos (engenheiros

de alimentos, tecnólogos de alimentos, químicos, engenheiros químicos),

marketing e comunicação (especialistas em

marketing, publicidade, desenho industrial) e

capacitação de técnicos (14 bolsas para cursos

no Brasil e no exterior). (FUNCITEC, 1998)

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Essa parceria veio preencher uma lacuna importante do Pro-jeto, que era a ausência de profissionais capacitados nas di-ferentes etapas da cadeia produtiva, especialmente porque as agroindústrias apresentavam grande diversidade de produtos (derivados de cana, frutas, hortaliças, grãos, carnes, leite, mel e padaria) o que exigiu um grande esforço pela busca de solu-ções técnicas e tecnológicas. Foi preciso identificar máquinas e implementos adequados às especificações técnicas de cada unidade. Além disso, executou-se um trabalho intenso de ca-pacitação e treinamento dos agricultores para atender os pa-drões de qualidade impostos deste o início pela Ucag.

Em fevereiro de 1999, o Projeto, já aprovado pelo Ministério da Agricultura, foi encaminhado ao Banco Nacional de Desen-volvimento Econômico e Social (BNDES). No dia 12 de março, ocorreu em Gravatal o lançamento do Projeto de Agroindús-trias Modulares em Rede e se anunciou que ele seria finan-ciado pelo Pronaf Agroindústria. Foi um grande evento em que estiveram presentes os então Ministro da Agricultura e Governador do Estado de Santa Catarina, Deputados Federais e Estaduais, além de muitas autoridades da região e aproxima-damente 800 agricultores.

Finalmente,em maio de 1999, aconteceu o lançamento solene do projeto, com a inauguração da primeira agroindústria. O ato, que ocorreu em Santa Rosa de Lima, contou com a pre-sença do Ministro do Desenvolvimento Agrário, uma vez que o MDA tinha assumido a responsabilidade pelo Pronaf e, por extensão, pelo Projeto, e, de novo, do Governador do Estado de Santa Catarina (AGRECO, 1999a).

Este marco histórico encerrou uma etapa de um processo que ainda hoje repercute em Santa Catarina e no Brasil. O Projeto avançou em sua implementação e, mesmo sofrendo adequa-ções ao longo do tempo, demonstrou a possibilidade de promo-ver processos de desenvolvimento territorial inovadores e bem fundamentados conceitualmente. Deixou claro que políticas públicas adaptadas às especificidades territoriais se constituem em instrumentos poderosos de inclusão social e redução de

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desequilíbrios regionais. E, sobretudo, consolidou uma certeza, defendida na época pelos protagonistas daquela empreitada, de que o espirito pioneiro e a sabedoria dos agricultores podem promover verdadeiras revoluções, transformar organizações e mudar a vida de territórios e pessoas.

Considerações finaisO Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede demandou, ao longo de sua elaboração, um amplo esforço téc-nico e político. E. após sua implementação, contribuiu para co-locar o Território das Encostas da Serra Geral e, principalmen-te, a Agreco “no mapa” das iniciativas visando à agregação de valor e ao fortalecimento da agricultura familiar. Seu principal trunfo ou especificidade: o foco na produção orgânica e na ideia de solidariedade e inclusão. Foi por buscar combinar o sistema orgânico (na produção, beneficiamento e transforma-ção) com o esforço de criar uma rede solidária, somando-se ao agroturismo, na perspectiva da constituição de uma cesta de bens e serviços sustentáveis, que a construção social do Terri-tório das Encostas da Serra Geral e as suas organizações moto-ras, Agreco/CooperAgreco e Acolhida na Colônia, passaram a receber reconhecimento nacional e, até, internacional.

Hoje, o “Projeto” vive outra realidade. O faturamento econô-mico atual da Agreco (Marca) /CooperAgreco (Produtos) am-pliou-se para além do que era imaginado pelos seus pioneiros. Atualmente,são novos dirigentes, lideranças e técnicos que fazem o dia-a-dia e constroem as estratégias da Associação (Agreco) e da Cooperativa (CooperAgreco) que resultou da dinâmica econômica criada. Pensamos que a eles cabe a res-ponsabilidade de zelar pelo respeito aos princípios técnicos, políticos e éticos que foram fundadores da iniciativa. É evi-dente que mudanças na realidade exigem adaptações cons-tantes e definição de novas estratégias. Perder a identidade e renegar pressupostos que marcam o “DNA organizacional” significaria, contudo, menosprezar a história e enfraquecer as perspectivas de futuro, inclusive mercadológicas.

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Afinal, a imagem de marca dos produtos da Agreco/Co-operAgreco está, na sua quase totalidade, baseada em uma longa construção, por vários meios (mídia, traba-lhos acadêmicos, visitas de turistas, redes sociais, inter-net), da imagem de um território de produção agrícola familiar, de qualidade de vida, de respeito à natureza e de construção de solidariedade. Para confirmar isso, basta ler o que consta nos rótulos dos produtos ou no site da organização (www.agreco.com.br)

Nossa colaboração a este livro procura manter viva esta preocupação, recordando o passado e lembrando que é preciso “cultivar” o futuro. Muitas experiências indicam que nem sempre o que pode parecer muito interessante no curto prazo e no plano estritamente econômico será o que garantirá uma vida longa à organização. Assim o é especialmente no mercado dos produtos sustentáveis, orgânicos ou “ecológicos”. Os consumidores e os distri-buidores deste segmento são e estão atentos.

Óbvia, nossa contribuição! E ela é apenas isso, uma con-tribuição. Porque não pretende ser mais.

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ReferênciasAGRECO – ASSOCIAÇÃO DOS AGRICULTORES ECOLÓGICOS

DAS ENCOSTAS DA SERRA GERAL. Estatuto da Agreco. Santa Rosa de Lima, 1996. 9p.

______. Convite de Lançamento. Santa Rosa de Lima. 1999 (a)______. Informativo. Santa Rosa de Lima, v. 1, n. 1, dez. 1999 (b).BUARQUE, S. C. Construindo o desenvolvimento local

sustentável; metodologia de planejamento. Rio de Janeiro, Garamond, 2002. 177 p.

CEPAGRO – CENTRO DE ESTUDOS E PROMOÇÃO DA AGRICULTURA DE GRUPO.Relatório Anual 1998. Florianópolis, 1999. 31p.

______ Agroindústrias Modulares em Rede: Anitápolis, Gravatal, Rio Fortuna, Santa Rosa de Lima / Santa Catarina (Resumo do Projeto). Florianópolis, 1998. 8p.

DORIGON, C. SILVESTRO, M.L. e MELLO, M.A. de. A construção de um projeto de Desenvolvimento Regional; possibilidade e limites. In X World Congressof Rural Sociology e XXXVIII Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural. Anais... Rio de Janeiro, agosto de 2000. Disponível em: http://intranetdoc.epagri.sc.gov.br/producao_tecnico_cientifica/DOC_33824.pdf Acesso em agosto 2016.

FUNCITEC – Fundação de Ciência e Tecnologia de Santa Catarina. Proposta Técnica do Programa de Desenvolvimento da Agricultura Familiar Catarinense pela Verticalização da Produção – Desenvolver. Florianópolis 1998. 28p.

SCHMIDT.V.D.B e TURNES V. A. Metodologia para construção de projetos de Agroindústrias Rurais de Pequeno Porte em Rede. V Simpósio Latino-Americano sobre Investigação e Extensão em Pesquisa Agropecuária e V Encontro da Sociedade Brasileira de Sistemas de Produção. Anais... Florianópolis, 2002. CD-Rom.

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Este Capítulo está fortemente apoiado nas importantes colabo-rações anteriores. Ele pode, no entanto, ser lido em separado. Com certa dificuldade, me alertou um primeiro e qualificado leitor. Esperamos, inclusive, que os que começarem por aqui a leitura deste livro se sintam provocados – ou, estimulados – a estudar os capítulos precedentes. Os que fizeram a leitura na ordem de apresentação, contudo, terão melhores condições de avaliar o exame aqui proposto.

Como foi mencionado na introdução, um olhar externo sobre o “projeto agroecológico” ligado à Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral – e à cooperativa que dela resultou, a CooperAgreco, em Santa Rosa de Lima e nas Encostas da Serra Geral, indica que o número de agricultores familiares incluídos no processo e a própria perspectiva de in-clusão posta no final da década de 1990 parecem ter perdido expressão e consistência. Um foco muito maior no marketing e na inserção no “grande varejo” parece ter superado a ideia de viabilizar a inclusão social de agricultores marginalizados (porque familiares e “pequenos”), situados em um território marginalizado (porque fora de eixos dinâmicos, em relevo aci-dentado e em condições de montanha), frente às condições im-postas pelo mercado e pelos poderes públicos no que se refere à produção agrícola e alimentar. Há duas décadas, o que se disse

Capítulo 5Uma agroecologia

fora do rumo? Atenção às armadilhas...

Wilson Schmidt

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aos agricultores familiares de Santa Rosa de Lima é que eles permaneceriam agricultores se fizessem “diferente" para um mercado segmentado e se agregassem valor aos produtos com uma produção “limpa” em um território “limpo” e “com ima-gem de limpo”.Por isso, passado esse período, surpreende ouvir lideranças da CooperAgreco citando, como se nada significas-sem, informações do tipo: “no ano passado, 90% da matéria prima para as geléias foi comprada fora” do município e da re-gião; ou, “o tomate vindo da Itália chega às nossas agroindús-trias a um custo menor do que o produzido localmente”. São um indicativo de que o componente local da produção orgâ-nica foi secundarizado e que o “projeto agroecológico” perdeu componentes centrais: os da solidariedade e da democratiza-ção das oportunidades e dos resultados.Assim como indicam, fundamentalmente, que a agroindustrialização, implantada para fortalecer a agricultura familiar local,tem uma ruptura com esse escopo e se autonomiza em relação ao projeto de de-senvolvimento sustentável do território rural, priorizando seu próprio – das agroindústrias e dos seus proprietários e gestores – crescimento econômico.

O objetivo deste capítulo não é o de fazer uma discussão teóri-ca, mas de buscar contribuir, através de uma reflexão externa, para um repensar interno – ou seja, um repensar pelos que deveriam ser os verdadeiros protagonistas do processo, os agri-cultores familiares – sobre os rumos tomados pelo projeto de desenvolvimento rural sustentável que, como ficou claro nos capítulos anteriores, começou a ser construído há duas décadas e teve como marco principal a criação da Agreco. O que faze-mos é, sim, uma crítica, mas, no sentido de apreciar os fatos e não, no de censurar. Um olhar externo sobre uma prática pode, em geral, construir subsídios a um processo de reflexão. Desde que, é claro, se queira de fato refletir.

Nos processos de “conversão” de agricultores e territórios à agricultura orgânica, normalmente, se discute porque tal fenô-meno acontece e se procura estabelecer perfis ou categorias que ajudam a compreendê-lo e facilita ou estimula essa passagem do sistema convencional para o orgânico. Van Dan (2005), por exemplo, o faz tendo em conta a motivação dos agricultores,

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estabelecendo as categorias dos “convertidos” (que o fazem por um evento na trajetória, como uma intoxicação ou problemas de saúde na família), dos “militantes” (que defendem uma “vi-são de mundo” ecológica e solidária), dos “que buscam ouro” (privilegiam o sobrepreço e a renda suplementar), e os “que buscam sentido” (privilegiam a qualidade de vida). O que se quer apontar aqui é que, para Santa Rosa de Lima e as Encos-tas da Serra Geral, essa perspectiva não se coloca atualmente, simplesmente porque a produção orgânica local foi gradati-vamente posta em segundo plano, quando a ênfase passou a estar nas agroindústrias, nos seus processos e na inserção e permanência dos produtos delas – sempre exigindo inovação, qualidade e apresentação (embalagens, rótulos e “literatura de prateleira”), mas não necessariamente coerência – nos grandes circuitos de comercialização.

Não se quer neste capítulo renovar a tensão entre aqueles que veem a agricultura orgânica como uma abordagem mais ecolo-gicamente benéfica de fazer agricultura e aqueles que buscam, nela, uma alternativa radical para o sistema alimentar hege-mônico (Guthmann, 2004, p. 3). Sempre defendemos a Agreco/CooperAgreco das acusações de que ela teria um “pecado origi-nal” por ter nascido vinculada ao circuito longo, pela parceria com uma rede de supermercados. Isso teria dado a ela, se-gundo esses críticos, uma perspectiva estritamente econômica. Replicávamos com diversos casos de organizações que diziam ter “DNA agroecológico e anti-firmas” e que precisaram, após ações bem-sucedidas de expansão do número de agricultores orgânicos e da produção do entorno, entrar, temporária ou decididamente, no grande circuito. Justamente para manter o processo crescente de inclusão de agricultores e de conversão de áreas e cultivos. Como foi explicitado nos capítulos anterio-res – e, alertamos, iremos repetir várias vezes nesse –, a pers-pectiva posta pelos líderes que construíram a Agreco era a de “mudar a cara” do município e do território, dando vida a um território “limpo”. Para essas lideranças, isso não se faria com um ou outro agricultor eco-social-politicamente correto – a ser exibido com pompa: “esse é o nosso agricultor...” – vendendo uma pequena produção na feirinha, um dia por semana, na

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pracinha local, para poucos consumidores. Era preciso gerar oportunidades para muitos agricultores. Era preciso um pro-cesso mais amplo. Tal abordagem é coerente com a aplica-ção dos princípios agroecológicos e com o desenvolvimento de opções produtivas “permanentes” quedevem, segundo Altieri (2009, p. 79-80), ter como objetivos “garantir que os sistemas alternativos tenham efeito benéfico não somente nas famílias individuais, mas também na comunidade total”.

A esse processo veio se somar a agroindustrialização – da mes-ma forma, muito bem descrita nos capítulos anteriores – que acaba por romper a coerência da proposta “conjuntural”, para recuperar a expressão de Luiz Otávio Cabral. Simplesmente, porque se “descobre” que é possível fornecer ao mercado mais alimentos orgânicos e ter, ao mesmo tempo, menos agriculto-res locais e menos produção local.

É sobre essa distorção no processo que buscamos alertar. Jus-tamente porque avaliamos que há (ou deveria haver), por parte dos envolvidos, interesse de médio e longo prazos em superá-la. E porque julgamos que esse sinal para estar vigilante possa alterar a disposição de certos atores sociais para tratar frontal-mente o que eles parecem buscar contornar: o esvaziamento de uma “proposta para muitos” se dá – no curto prazo destaque-se – em benefício de poucos. Já no médio prazo, contudo, pode não haver sobreviventes.

Inicialmente, trabalhamos a tendência geral – ou nos países – à diminuição do número de agricultores e procuramos indi-car que a pressão é ainda mais forte para regiões “marginais”, para os padrões da agricultura industrial ou, como se prefere no Brasil, da agricultura do agronegócio. Nessas regiões, normal-mente de relevo acidentado e com estrutura agrária baseada na agricultura familiar, é indispensável que os atores sociais bus-quem elementos de competitividade na diferenciação de produ-tos e na segmentação do mercado. Essa estratégia combinada com a agroindustrailização, se não for respeitado o princípio de abastecimento com matéria prima local, pode, contudo, ter um efeito reverso ou, pelo menos, não ter os efeitos esperados de permanência e fortalecimento da pequena agricultura familiar.

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Em seguida, tratamos especificamente da associação de um processo de agroindustrialização com uma “imagem” agroe-cológica, para discutir os limites temporais e relacionais (es-pecialmente com os consumidores urbanos) desta, podemos considerar, “tática de marketing”.

Depois, apresentamos a diminuição do número de agricultores e da expressão da agricultura no município de Santa Rosa de Lima, fenômeno que ocorre também com os produtores e com a produção orgânica local. Estranhamente, esse fenômeno é tratado localmente como algo alheio às escolhas das organiza-ções que foram criadas visando construir estratégias alternati-vas justamente para as famílias de agricultores de Santa Rosa de Lima e do Território das Encostas da Serra Geral.

Finalmente, colocamos à vista do leitor ponderações e o pos-sível alerta antes mencionado. Reforçamos: nossa intenção é apenas subsidiar. Quem define – ou, deveria definir – são os protagonistas – ou, os que deveriam ser os protagonistas – des-sa construção social: os agricultores familiares locais, tantas vezes mobilizados para justificar a captação de recursos e de apoios externos que ajudaram a dar corpo ao projeto.

Regressão da agricultura e a proposta para contrapô-la em uma região de montanha

Há, na literatura sobre a economia agrícola, uma concordância sobre a “regressão da agricultura” na produção e no emprego em escala nacional (MOUNIER, 1992, p. 236). De um lado, por-que as despesas que um domicílio consagra à alimentação são inversamente proporcionais ao seu nível de renda; de outro, porque a demanda para a agricultura cresce menos rapida-mente do que a demanda alimentar, justamente por causa da agroindustrialização. Sendo mais claro, no primeiro “efeito”, se cresce a renda de uma população, parte proporcionalmente menor dessa renda será destinada ao gasto com a alimentação. No segundo, cada vez mais se compra alimentos industrializa-dos e a parcela da agricultura no preço final desses alimentos é decrescente. Explicando: quando o consumidor compra um “prato pré-preparado” – por exemplo, uma pizza pronta con-gelada – em um hipermercado, menos de dez por cento do

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preço que ele paga se refere à agricultura. Os mais de noventa por cento cobrem os muitos transportes, a industrialização, o marketing, as muitas embalagens, a grande margem do distri-buidor etc. Desta forma, com esses dois “efeitos” descritos por Mounier (1992), há uma tendência à redução da participação da agricultura na distribuição da renda gerada e, por conse-quência, ao número de pessoas mobilizadas na produção agrí-cola. Ou seja, há uma forte pressão sobre a produtividade do trabalho na agricultura.

Ao mesmo tempo, o espraiamento do Padrão Técnico Moder-no e da agricultura industrial, apoiados por políticas públicas agrícolas que a estimularam (e estimulam), geraram vantagens para regiões onde a “tratorização” é possível e onde há dis-ponibilidade de água e de infraestrutura. Isso faz com que a agricultura e agricultores de regiões de relevo acidentado e isoladas de polos econômicos dinâmicos precisem buscar al-ternativas ligadas à diferenciação de produtos e à segmentação de mercados. Um caminho importante é “marcar” (identificar e buscar reconhecimento) a procedência (agricultura familiar) e a origem (um território com características específicas) dos produtos. Combinado pode estar, ainda, outro diferencial de mercado, por exemplo,o respeito a normas de um sistema de produção orgânico que tenha por finalidade a oferta de produ-tos saudáveis isentos de contaminantes intencionais; a preser-vação, recomposição ou incremento da diversidade biológica; e basear-se em recursos renováveis e em sistemas agrícolas organizados localmente, entre outros.

Estas foram as questões de fundo que, como foi visto nos Ca-pítulos anteriores, orientaram a proposição de construção de uma agricultura familiar “sem agrotóxicos” em Santa Rosa de Lima e “das” Encostas da Serra Geral, no final dos anos 1990.

O que se disse, à época, aos agricultores familiares (os “co-lonos”, como insiste o “outro” Wilson Schmidt) que viviam nas Encostas da Serra Geral (o “território colonial”) é que eles precisavam produzir “limpo” (sem fertilizantes solúveis e sem agrotóxicos de síntese química) e construir um território pro-dutivo e “limpo” que continuasse marcado pela agricultura fa-miliar. Ou, de outra forma, só produzindo solidariamente (e

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não, “solitariamente”) e “sem agrotóxicos” eles conseguiriam persistir na agricultura e viver como agricultores. Mais do que isso, a própria noção de sustentabilidade proposta levava a que se pensasse nas gerações futuras. O que se dizia, há aproxi-madamente vinte anos, é que se não houvesse, em Santa Rosa de Lima e nas Encostas da Serra Geral, uma nova geração de agricultores familiares para quem entregar solo, água, outros recursos naturais e sociedade melhores do que as que foram recebidas, não se teria construído algo, de fato, sustentável. Por isso tudo, se afirmava que era necessário fortalecer o senso de pertencimento a Santa Rosa de Lima e às Encostas da Serra Ge-ral e construir alternativas que fortalecessem, nesse território, a agricultura familiar, tirando, ao mesmo tempo, dela, os resquí-cios da postura predatória das primeiras gerações de “colonos”.

De novo, como mostraram os capítulos anteriores, logo em seguida, o processamento (beneficiamento e transformação), ligados a exigências como embalagens, rótulos e códigos de barras, vai ser (im)posto pelos atores da distribuição. E, frente a essa pressão, os atores sociais locais se deparam com a “ofer-ta”, na esfera Federal, de políticas públicas de agroindustria-lização de pequeno porte,voltadas à “agregação de valor” na agricultura familiar.

Naquele período, começam, também, os debates sobre a nor-matização e regulação do mercado de alimentos orgânicos no Brasil. A Portaria nº 505, de 16 de outubro de 1998,do Ministé-rio da Agricultura, seguida da Instrução Normativa número07, também do MA,de 17 de maio de 1999,precipitam – ou forçam – o debate em Santa Catarina, que tinha um mercado de orgâni-cos bastante incipiente. A participação da Agreco em reuniões chamadas pela Delegacia Federal de Agricultura no estado vai consolidando um deslocamento da denominação “sem agro-tóxicos” para a, “orgânica”. Ela vai gerar, ainda, uma relação mais próxima e também conflituosa com os atores sociais que estavam estruturando a Rede Ecovida. Uma desavença surgiu justamente pela comercialização acidental, via Agreco e com o selo de “orgânico”, de frutas “em transição” originárias de uma organização do Planalto Serrano. O que a Agreco procurou fazer foi apoiar,nos circuitos e redes que havia construído, a

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comercialização de agricultores que se diziam sem canais de escoamento. Em Santa Rosa de Lima, contudo, um agricultor responsável por preparar uma partida de produtos para Flo-rianópolis – equivocada, mas não intencionalmente, colou os “selos orgânicos” em cada das frutas “em transição”. A Agreco foi acusada de má-fé e um imbróglio se gerou.

É interessante que apesar dessa tensão, gradativamente, as lideranças da Associação – e, especialmente, seu presidente, Wilson Schmidt – vão sendo seduzidos pela concepção de agroecologia veiculada pelos membros da então embrionária Rede Ecovida.

Os textos que antecedem este capítulo mostraram que, nesse período de virada da década de 1990 para a de 2000, a Agreco vivia o processo do Projeto Intermunicipal de Agroindústrias Modulares em Rede – Piamer e insistia que tinha dado um “salto” quantitativo para duzentas famílias associadas e mais de quinhentas pessoas envolvidas. Esse número, na verdade, nunca foi atingido e, contraditoriamente, quando mais o tem-po passa, mais essa organização (ou a CooperAgreco que a sucedeu no plano econômico) se afasta dele.

É interessante que em 2002 o Instituto de Planejamento e Eco-nomia Agrícola de Santa Catarina publica o estudo “Agricul-tura Orgânica em Santa Catarina” (OLTRAMARI et al. 2003), que aponta Santa Rosa de Lima, com 61 produtores orgâni-cos, como o município com o maior número de produtores orgânicos do estado. Se somados os de outros municípios de abrangência da Agreco – Anitápolis (13), Grão Pará (5), Gra-vatal (5) e Rio Fortuna (9) – a Associação, sozinha, respondia, então, por 14% do número de produtores orgânicos no estado (93/706). Ou seja, de cada sete agricultores orgânicos em Santa Catarina, um pertenceria à Rede Agreco.

O mais curioso é que esses números servirão de base para que, em 2005, a Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina conceda a Santa Rosa de Lima o título de “Capital Catarinense da Agroecologia” – e, não, da agricultura orgânica.

Por isso, torna-se importante discutir que agroecologia se está mobilizando ao longo desse processo.

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Agroecologias, práticas e possível contrafaçãoNão se quer, aqui, repetir longos debates sobre o que é e o que não é agroecologia. Diversos autores têm feito isso com competência e pertinência no país34. O que se busca é si-

tuar o posicionamento das lideranças da Cooperativa de Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral – CooperAgreco, criada em 2005 para ser o braço econômi-co da Agreco e que acabou esvaziando o papel de agência de desenvolvimento rural sustentável que vinha tendo a Associação.

Certamente, não é – e não poderia ser, dadas as característi-cas socioeconômicas e políticas da região – a da “agroecologia militante”, que prega uma “agricultura camponesa ecológica” (Guterres, 2006). Seria extravagante associar o agricultor fami-liar – ou “colono” – da área de atuação da Agreco à condição, situação ou posição de camponês. Certamente, ele tem seus saberes tradicionais, que precisam e devem ser valorizados na busca pela construção de uma agricultura “como agricultura” e “permanente”. Mas isso não é suficiente para considerá-lo como membro de um pretenso campesinato.

Colocá-lo no campo da luta pela superação do “paradigma da modernização”, do “padrão técnico moderno” ou da “agricultura industrial” é possível. Devemos, todavia, considerá-lo inserido em uma dinâmica econômica que já foi mercantilizada e mo-netarizada por essa mesma modernização. Nessa perspectiva, para esse conjunto de agricultores das Encostas da Serra Geral e suas organizações, chega-se a falar da “convencionalização” da agroecologia, ou de uma agricultura orgânica que se limi-ta à substituição de insumos – de químicos de síntese, para os autorizados pelas normas e leis e, por consequência, pelas cer-tificadoras. Guzman (2005) considera essa uma “adulteração da agroecologia”, ou uma “agroecologia fraca”, que decorre do fato da agroecologia ter “virado moda”, ao ser utilizada como mera técnica ou instrumento metodológico para compreender melhor o funcionamento e a dinâmica dos sistemas agrários e resolver a grande quantidade de problemas técnico-agronômicos que as ci-

34 Destaque-se Francisco Roberto Caporal,

recomendando-se o blog: http://frcaporal.blogspot.

com.br/

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ências agrárias convencionais não conseguem esclarecer. O pior é que nas Encostas da Serra Geral, como mostraram as deman-das dos agricultores ao NEA-EduCampo, a agroecologia sequer vinha cumprindo esse papel. Ou seja, ali, ainda não havia a mo-bilização das “bases científicas para uma agricultura ecológica”.

O que se quer deixar claro é que não é isso o que é “cobrado” das lideranças da CooperAgreco: uma agroecologia “militante” ou “política”. Mesmo tendo claro que “agroecologia não é um tipo de agricultura alternativa”, como tem insistido Francisco Rober-to Caporal, o que fica evidente, desde o título deste livro, é que não se aceita que se proclame a existência da agroecologia nas Encostas da Serra Geral sem que haja o efetivo fortalecimento e a ampliação da agricultura familiar local. Simplesmente, porque, nesse caso, não há como se dar a mobilização da ecologia para o manejo dos agroecossistemas locais. Afinal, agroecosssitemas são entendidos como ecossistemas modificados pela ação hu-mana para o desenvolvimento dos sistemas agrícolas de cultivo.Ou seja, ele deve ter a presença de, pelo menos, uma população agrícola. Dizendo de outra forma, para o caso específico, uma Capital da Agroecologia sem agricultura não faz o menor sen-tido. Nunca é demais repetir que para mobilizar a “imagem” da agroecologia e, mais do que isso, a agroecologia ela mesma, pre-cisamos vê-la como “novo paradigma científico para a agricul-tura, para o desenvolvimento rural e para a própria organização da sociedade”, o que pressupõe a preocupação com a justiça na repartição dos seus resultados (EMBRAPA, 2006, p.37).

No limite, até do ponto de vista de mercado – onde os líderes da Cooperativa dizem se posicionar e por ele justificam suas opções estratégicas, trata-se de uma contrafação. Afinal, na chamada “literatura de prateleira” (o que se escreve nos rótulos) dos produtos da Agreco, lê-se: “A vida da associação está nas famílias de agricultores que cultivam e fabricam alimentos or-gânicos”. Ao mesmo tempo, há claros indicativos de que os pro-dutos alimentares (beneficiados ou transformados) “orgânicos” ou “ecológicos” anunciados como das Encostas da Serra Geral, de fato, não o são. O principal indício disso é o reconhecimento, pelos próprios dirigentes e lideranças da CooperAgreco, de que tal situação estaria sendo resolvida, ou, de forma mais coerente

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com os fatos, de que precisa ser corrigida. Afinal, uma pergunta se impõe: até quando essa contrafação resistirá?

Por isso, é importante voltar no tempo e buscar um cotejamen-to entre “faturamento” e o número de agricultores associados, assim como as linhas de produtos – ou cadeias produtivas, ou “filières” – que compõem a prática ou a dita opção estratégia atual da CooperAgreco.

Os dados coletados por Oliveira et al. (2013) junto à CooperA-greco dão conta que, em 2010, era de 73 o número de membros da cooperativa. Em 2011, 125. E em 2012, 198. Nesse mesmo período o faturamento passa de em torno de 1,1 milhão de dólares/ano, para 1,9 milhão de dólares/ano. Esses dados, en-tretanto, escondem contradições importantes. Vamos trabalhá-las a partir de informações apresentadas pela própria direção da Cooperativa em um evento de planejamento. Em 2015, o faturamento da CooperAgreco foi em torno de R$ 4,6 milhões. No entanto, um terço desse faturamento (R$ 1,5 milhões) pro-vinha da cadeia de frangos orgânicos, que envolvia apenas seis produtores e uma agroindústria. Somados às linhas do mel (16% do faturamento, duas agroindústrias), molhos (14%, uma agroindústria) e geleias (11%, uma agroindústria), chega-se a três quartos do faturamento. Destaque-se que, como reconhe-ceram os próprios dirigentes da organização, as agroindústrias ligadas às duas últimas cadeias se abastecem, na quase tota-lidade, com matérias primas orgânicas de “fora do território”. Sublinhe-se, ainda, que na criação dos frangos, a produção local de um dos principais componentes da ração – o milho orgânico – continua sendo vista ainda como um “desafio” e, atualmente, as compras seguem sendo feitas no Paraná (a, aproximadamente, 700 quilômetros de Santa Rosa de Lima).

Esse tipo de questionamentos fez com que em uma atividade de planejamento – parte do projeto “Mais Gestão”, apoiado pelo então Ministério do Desenvolvimento Agrário – fossem incorporados nas preocupações e possíveis ações futuras da Cooperativa, elementos sobre a “sucessão nas propriedades”-que ainda são agrícolas e de “inclusão de jovens e mulheres”. O que nos leva a voltar a tratar do retrocesso quantitativo da agricultura no município de Santa Rosa de Lima.

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Evolução ou involução?Inicialmente, deve se destacar que os dados sobre a agricultura e a produção agrícola35 de Santa Rosa de Lima, são precários e con-troversos. O Censo Agropecuário de 2006 aponta a existência de 566 estabelecimen-tos agropecuários. Essa unidade recenseá-vel é em si problemática. Para o IBGE, ele:

É toda unidade de produção dedicada, total ou parcialmente, a atividades agropecuárias, florestais e aquícolas, subordinada a uma única administração: a do produtor ou a do administrador. Independente de seu tamanho, de sua forma jurídica ou de sua localização em área urbana ou rural, tendo como objetivo a produção para subsistência e/ou para venda, constituindo-se assim numa unidade recenseável (IBGE, 2009, p. 40).

Dois dados nos colocam em alerta em relação a esse número. Seguindo o mesmo IBGE, dos 566 estabelecimentos agropecu-ários, apenas 41 (7%) são “muito integrados ao mercado”. E 174 (31%), são considerados “integrados ao mercado”. Além disso, aproximadamente um décimo deles tem menos de cinco hectares e, mais de um quinto, menos de dez hectares, áreas que, dadas as características produtivas da região, salvo na horticultura, são insuficientes para garantir a viabilidade so-cioeconômica de uma família. Recorde-se que o módulo fiscal do município é de 14 hectares.

Vanderlinde et al. (2013) buscaram, através de entrevistas di-retas, uma aproximação mais adequada. De acordo com o técnico local da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Exten-são Rural de Santa Catarina (Epagri), seriam “em torno de 330 propriedades rurais que executam alguma atividade geradora de renda”. Este número ainda tem a aparência de exage-rado, uma vez que parece incluir unidades em que residem apenas idosos que fazem somente uma produção acessória e para ocupação laboral. E, principalmente, áreas plantadas – e insuficientemente manejadas – exclusivamente com mono-cultivos de espécies florestais exóticas, em geral o eucalipto.

35 Em sentido amplo, ou seja, incluindo a produção animal – pecuária, apicultura, meliponicultura, piscicultura – e o reflorestamento.

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As mudanças na paisagem do município explicitam tal redução da agricultura, que tem como indicador maior – e, nesse caso, positivo, se consideradas as condições de trabalho e de subsun-ção dos agricultores descritas por Jovânia Muller – o declínio quase total da fumicultura no município. A paisagem própria da “agricultura colonial”, mencionada pelo “outro” Wilson Sch-midt, marcada pelos cultivos diversificados combinados com a criação animal, praticamente deixou de existir. Às margens das estradas secundárias do interior do município, restou, apenas, a combinação pastagens – agora, com o piqueteamento do Pasto-reio Racional Voisin – e bovinocultura de leite, em “proprieda-des” que se especializam e que são em um número seguramente inferior à centena. Há, de fato, uma clara redução do número de unidades familiares de produção que se dedicam à agricultura e os problemas de sucessão ligados a conflitos de gênero e de geração são explicações pertinentes. Neste caso, é indispensável lembrar diretamente da ausência de ações públicas governamen-tais ou não governamentais para se contrapor a esse problema. Isso, inclui, é claro a ausência de ação da Agreco e da Coope-rAgreco. É alvissareiro, mas parece muito pouco efetivo, que essa preocupação tenha sido tratada em um processo inacabado de planejamento estratégico da Cooperativa, realizado entre no-vembro de 2015 e abril de 2016. O foco, contudo, parece estar mais no teor de açúcar e no tamanho das porções dos produtos colocados no mercado pela Cooperativa, do que nessas questões estruturais, com impactos já no médio prazo.

E os agricultores orgânicos?Para medir o número de agricultores orgâ-nicos em Santa Rosa de Lima, utilizamos o Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos, mantido pela Coordenação de Agroecolo-gia (Coagre), do Ministério da Agricultura. No sítio do cadastro36, para Santa Rosa de Lima, aparecem 41 agricultores associados à CooperAgreco, em produção primária ve-getal e/ou animal37. Destaque-se que é for-temente provável que esses dados se refi-

36 http://www.agricultura.gov.br/desenvolvimento-

sustentavel/organicos/cadastro-nacional Acesso em

setembro de 2016.

37 Além dos associados da CooperAgreco e das unidades

de processamento a ela ligadas aparecem no Cadastro

Nacional de Produtores Orgânicos, em Santa Rosa

de Lima, apenas duas outras unidades de processamento.

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ram ao processo de certificação do ano anterior e que há uma perspectiva, na renovação, de significativa redução, que pode atingir mais de metade dos agricultores. A CooperAgreco cer-tifica com o Organismo de Avaliação da Conformidade Orgâ-nica (OAC) Ecocert Brasil, dentro do processo de certificação em grupo de agricultores familiares organizados. Para isso, em respeito à Instrução Normativa número 19 do Ministério da Agricultura, de 28 de maio de 2009, a Cooperativa deve ter estrutura para assegurar um Sistema de Controle Interno (SCI) fundamentado numa avaliação de risco e que garanta a adoção, por parte das unidades de produção individuais, dos procedimentos regulamentados. Durante um bom tempo, a CooperAgreco conseguiu viabilizar esse SCI com verbas de projetos ou iniciativas externas de apoio. Em 2015, com mais uma descontinuidade desses suportes “de fora”, ela decidiu contratar o técnico responsável e internalizar os custos do SCI. Isso teve forte impacto sobre o valor rateado para cada agricultor ou agroindústria. O resultado dessa opção é uma tendência – a ser confirmada – de que só permaneçam cer-tificados aqueles agricultores com maior escala ou com atividade mais rentável e aquelas unidades de processamento que atuam nas cadeias de maior valor agrega-do (frango, molhos e geleias) que, como vimos, no caso das duas últimas, não têm se abastecido com matéria prima local38. Uma estimativa feita por agricultores que conhecem a estrutura e o funcionamento da CooperAgreco projeta a saída de vinte dos atuais 41 agri-cultores certificados, em Santa Rosa de Lima. E eles alertam: alguns dos que se mantêm na Cooperativa só o fazem, exata-mente, por causa da certificação. A saída do processo de cer-tificação não significa que o produtor deixará a agricultura e, mesmo, a agricultura orgânica. Alguns deles, têm buscado a “certificação participativa” e/ou outros canais de comercia-lização. Há sinais, contudo, que o abandono da agricultura também tende a ocorrer de forma significativa.

Trata-se, portanto, do fenômeno contrário ao “sonho” ini-cial de “mudar a cara” do município e do território, através

38 Para o frango, recorde-se que todos os ingredientes para a composição das rações – mencione-se especialmente o milho orgânico – são produzidos, também, fora da região.

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de “um projeto de vida coletivo”, em que “as agroindústrias associativas de pequeno porte” norteariam “qualquer deci-são” nos “princípios éticos, ambientais e de solidariedade” da agroecologia (ENCOSTAS DA SERRA GERAL – UM PROJETO DE VIDA, janeiro de 2003, p.11). “Mudar a cara” significava exatamente viabilizar a agricultura familiar local – ou “co-lonial” – por intermédio da agregação de valor propiciada pela produção agrícola orgânica e pelo beneficiamento e/ou transformação dos alimentos.

Considerações finais; a não serem lidas como bulaFique claro que não nos colocamos numa posição prescritiva, ditando o que deve ser feito. Até porque sabemos que os di-rigentes da CooperAgreco consideram que “quem dá conta de resolver os problemas são os que estão dentro” daquela orga-nização, como foi ouvido em uma reunião aberta, no início de 2016. De nossa parte, concordamos com Scherer (2002, citado por Theys, 2006, p. 183):

o essencial em matéria de desenvolvimento sustentável não cabe num programa prescritivo, numa forma ideal e única, e sim na opção por boas práticas; o que coloca em primeiro plano o “como fazer” e as práticas de implementação ou de negociação realizadas num contexto de descentralização. (grifos WS)

São essas boas práticas de negociação – o que inclui a trans-parência – que parecem estar faltando. Por isso, surge tanto na fala de dirigentes e lideranças da CooperAgreco um su-posto problema de comunicação com os cooperados e uma incerta falta de envolvimento dos agricultores com a orga-nização. Mira-se nos sintomas, deixa-se de tratar as causas. Como criar uma ação de fato coletiva? Como (re)pensar e reforçar o “velho” sonho de “mudar a cara” do município e do território? A expressão “precisa-se de uma volta para o futuro” parece ser adequada à situação. E não, simplesmen-te, afirmar, como fazem os dirigentes da CooperAgreco, que a prática atual de priorizar o mercado gerará oportunidades futuras para a produção local, e que o problema estaria na in-compreensão pelos atores sociais do território. Acreditamos

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ser preciso reflexão séria e não o simples martelar do bordão: "It's the economy, stupids" (É a economia, seus idiotas), tão frequente entre os defensores do mercado.

É claro que sistemas agrícolas de produção alternativos ao mo-delo industrial – capazes de economizar em recursos e em capi-tal, gerar empregos produtivos e conservar o meio ambiente – precisam ser viáveis e, para além disso, viabilizar os agricultores que a eles aderem. Necessitam, contudo e acima de tudo, ser inclusivos e democráticos. Se é preciso modernizar processos de beneficiamento e transformação e os próprios produtos alimen-tares, é preciso desenvolver a “capacidade coletiva de moderni-zação da ação coletiva” (THEYS, 2006). Voltemos à ideia inicial de construção de um território “limpo” e solidário. E sigamos Bruno Jean, quando afirma que os territórios “são entidades re-lacionadas às atividades humanas conduzidas num dado espaço” e, por isso, refletem “um procedimento de construção política”. (JEAN, 2010, p. 51) Trata-se, por consequência, de nos pergun-tarmos se a CooperAgreco vai continuar sendo regida por uma lógica de curto prazo e individualista, ou até mesmo egoísta, por algumas famílias que, aparentemente, passaram a controlá-la, ou se vai ser regida por uma lógica solidária, que pressupõe o compartilhamento dos recursos, tendo em vista o bem-estar coletivo do maior número de cooperados. Para isso, aliás, ela precisa de uma ampliação de seus quadros, especialmente com jovens e mulheres. Essa lógica solidária poderia contemplar, de forma bem mais ampla, o bem-estar de um número bem maior de agricultores familiares residentes no município e no território.

Como já foi destacado, é auspicioso que nas atividades de planejamento estratégico da Cooperativa, entre as discussões sobre micro potes, rótulos e tendências de mercado, tenha surgido como uma aspiração para um prazo de cinco anos “a preparação da sucessão, com a inclusão de jovens e mulhe-res”. É preciso, contudo, que essa intenção se transforme em ações concretas. A princípio – e por princípio – no prazo mais curto possível. Afinal, o que todos defendemos é que, como disse um dirigente da organização, “a CooperAgreco continue crescendo, mas, mantendo a sua essência”. Seria mais preciso, se emendássemos: recuperando a sua essência.

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Autores

Jovânia Maria MullerEngenheira Agrônoma (Universidade Estadual de Ponta Grossa, 1994) e Mestre em Agroecossistemas(Universidade Federal de Santa Catarina, 2001), é, desde 2004, servidora do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ocupando o cargo de Orientadora de Projetos de Assentamento.

Luiz Otávio CabralEngenheiro Agrônomo (1989), Mestre (1999) e Doutor (2004) em Geografia, sempre pela Universidade Federal de Santa Catarina, é professor-pesquisador do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), no campus Continente de Florianópolis e, atualmente, Pró-Reitor de Ensino da Instituição.

Thaise da Costa GuzzattiEngenheira Agrônoma (1998), Mestre em Engenharia de Produção (2003) e Doutora em Geografia (2010), sempre pela Universidade Federal de Santa Catarina, é professora-pesquisadora do Departamento de Educação do Campo e da Licenciatura em Educação do Campo da UFSC.

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142 • AgroecologiA sem Agricultores locAis?

Valério Alécio TurnesEngenheiro Agrônomo (1986), Mestre em Engenha-ria Civil (1996) e Doutor em Engenharia de Pro-dução (2004), sempre pela Universidade Federal de Santa Catarina, é Professor-pesquisador do Centro de Ciências da Administração e Ciências Socioeco-nômicas da Universidade do Estado de Santa Cata-rina (Udesc).

Vanice Dolores Bazzo SchmidtEngenheira Agrônoma (Universidade Federal de San-ta Catarina, 1982), Especialista em Ciências do Solo (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,1985) e Mestre em Agroecossistemas (Universidade Federal de Santa Catarina,2004), depois de longa trajetória profissional em um Organismo de Avaliação da Con-formidade Orgânica,é consultora na área de certifi-cação de produtos orgânicos.

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Autores • 143

Wilson SchmidtGraduado em Filosofia (Faculdade Anchieta, 1975), Mestre (1988) e Doutor (2004) em Educação, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é Professor aposentado do Centro de Ciências da Educação da Universidade Fede-ral de Santa Catarina. Tendo sido animador, mobilizador e co-fundador da Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral (Agreco), foi seu presidente durante anos.É considerado ator-chave no desencadeamento e nos avanços do processo de construção social do Território das Encostas da Serra Geral.

Wilson Schmidt (Editor)Engenheiro Agrônomo (Universidade Federal de Santa Catarina, 1982), Mestre em Ciências Sociais - Desenvol-vimento, Agricultura e Sociedade (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 1990) e Doutor em Estudos de Sociedade Latino Americanas (UniversidadeNova Sorbon-ne - Paris 3, 1996), é professor-pesquisador do Depar-tamento de Educação do Campo e da Licenciatura em Educação do Campo da UFSC.

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NEa EduCampo UFSC

Núcleo de estudos em Agroecologia da educação do campo - uFsc

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