acórdão do tribunal da relação de Évora

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Acórdãos TRE Acórdão do Tribunal da Relação de Évora Processo: 667/07.9TAEVR.E1 Relator: MARIA FILOMENA SOARES Descritores: INDÍCIOS NEGLIGÊNCIA MÉDICA Data do Acordão: 06/26/2012 Votação: UNANIMIDADE Texto Integral: S Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: NÃO PROVIDO Sumário: 1. A negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa; no primeiro, reside a violação de um dever de cuidado objectivo; no segundo, a censurabilidade pessoal dessa falta de cuidado de que o agente é capaz. 2. Nem toda a violação das leges artis se traduz em negligência médica penalmente relevante. Decisão Texto Integral: Secção Criminal Recurso Penal nº 667/07.9 TAEVR.E1 Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora: I No âmbito do processo nº 667/07.9 TAEVR, que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora, procedeu-se a inquérito, findo o qual o Digno Magistrado do Ministério Público deduziu, em 28.09.2009, acusação, imputando aos arguidos A e B, factos susceptíveis de integrar a prática por cada um dos arguidos, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, em articulação com o artigo 15º, ambos do Código Penal (cfr. fls. 398 a 402).--- Inconformados com a dedução de acusação, os arguidos B e A requereram a abertura de instrução, que foi admitida (cfr. fls. 429 a 438, 496 a 529 e 566 a 567).--- Finda a instrução, a Mmª Juiz de Instrução proferiu, em 03.05.2010, decisão instrutória de não pronúncia, não lhes imputando, consequentemente, a prática do mencionado crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, por ter concluído “(…) que da prova recolhida nos autos não existem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena aos arguidos (…)” – (cfr. fls. 920 a 952).- -- Inconformado com esta decisão instrutória de não pronúncia, dela recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:--- “1. Entendeu a M.ª Juiz de Instrução que os elementos de prova são insuficientes para dedução de uma acusação contra os arguidos, nomeadamente porque os elementos periciais, técnicos e testemunhais juntos aos autos não o sustentam, apenas existindo uma consulta técnico-científica do Conselho Médico-legal que dá parecer no sentido do não cumprimento adequado das legis artis, sendo que os restantes elementos indicam que os arguidos terão cumprido os protocolos e boas práticas médicas, de acordo com os actuais conhecimentos da medicina. 2. Desde logo, a M.ª Juiz entendeu que não se pode concluir com certeza quanto à causa de morte de C uma vez que não houve autópsia médico-legal do cadáver nem estudo da placenta, levantando-se várias hipóteses sobre o que poderá ter causado a sua asfixia, nomeadamente maior tempo de gestação, perda de liquido amniótico, infecção em curso de origem indeterminada, fenómeno compressivo no período de expulsão, insuficiência da placenta e do cordão umbilical, entre outras. 3. Ora, ao invés do que a M.ª Juiz entendeu, afigura-se-nos que nos autos existem elementos que permitem concluir com bastante segurança e certeza sobre qual foi a causa de morte, concretamente porque o cadáver foi observado por médico especialista, habilitado e experiente na matéria, exarando no respectivo certificado de óbito que o nascituro faleceu devido a encefalopatia hipoxico-isquémica sequente a asfixia perinatal. 4. Não foram trazidos aos autos elementos objectivos e probatórios que permitam

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Page 1: Acórdão Do Tribunal Da Relação de Évora

Acórdãos TRE Acórdão do Tribunal da Relação de Évora

Processo: 667/07.9TAEVR.E1Relator: MARIA FILOMENA SOARESDescritores: INDÍCIOS

NEGLIGÊNCIA MÉDICAData do Acordão: 06/26/2012Votação: UNANIMIDADETexto Integral: SMeio Processual: RECURSO PENALDecisão: NÃO PROVIDOSumário: 1. A negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa; no primeiro, reside a violação de

um dever de cuidado objectivo; no segundo, a censurabilidade pessoal dessa falta de cuidado deque o agente é capaz.2. Nem toda a violação das leges artis se traduz em negligência médica penalmente relevante.

Decisão Texto Integral:Secção CriminalRecurso Penal nº 667/07.9 TAEVR.E1

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal daRelação de Évora:

I

No âmbito do processo nº 667/07.9 TAEVR, que correu termos nos Serviços do MinistérioPúblico do Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora, procedeu-se a inquérito,findo o qual o Digno Magistrado do Ministério Público deduziu, em 28.09.2009, acusação,imputando aos arguidos A e B, factos susceptíveis de integrar a prática por cada um dosarguidos, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo137º, nº 1, em articulação com o artigo 15º, ambos do Código Penal (cfr. fls. 398 a 402).---

Inconformados com a dedução de acusação, os arguidos B e A requereram a abertura deinstrução, que foi admitida (cfr. fls. 429 a 438, 496 a 529 e 566 a 567).---

Finda a instrução, a Mmª Juiz de Instrução proferiu, em 03.05.2010, decisão instrutória de nãopronúncia, não lhes imputando, consequentemente, a prática do mencionado crime de homicídiopor negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, por ter concluído “(…) que daprova recolhida nos autos não existem indícios suficientes de se terem verificado ospressupostos de que depende a aplicação de uma pena aos arguidos (…)” – (cfr. fls. 920 a 952).---

Inconformado com esta decisão instrutória de não pronúncia, dela recorreu o Digno Magistradodo Ministério Público, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:---“1. Entendeu a M.ª Juiz de Instrução que os elementos de prova são insuficientes para deduçãode uma acusação contra os arguidos, nomeadamente porque os elementos periciais, técnicos etestemunhais juntos aos autos não o sustentam, apenas existindo uma consulta técnico-científicado Conselho Médico-legal que dá parecer no sentido do não cumprimento adequado das legisartis, sendo que os restantes elementos indicam que os arguidos terão cumprido os protocolos eboas práticas médicas, de acordo com os actuais conhecimentos da medicina. 2. Desde logo, a M.ª Juiz entendeu que não se pode concluir com certeza quanto à causa demorte de C uma vez que não houve autópsia médico-legal do cadáver nem estudo da placenta,levantando-se várias hipóteses sobre o que poderá ter causado a sua asfixia, nomeadamentemaior tempo de gestação, perda de liquido amniótico, infecção em curso de origemindeterminada, fenómeno compressivo no período de expulsão, insuficiência da placenta e docordão umbilical, entre outras.3. Ora, ao invés do que a M.ª Juiz entendeu, afigura-se-nos que nos autos existem elementos quepermitem concluir com bastante segurança e certeza sobre qual foi a causa de morte,concretamente porque o cadáver foi observado por médico especialista, habilitado e experientena matéria, exarando no respectivo certificado de óbito que o nascituro faleceu devido aencefalopatia hipoxico-isquémica sequente a asfixia perinatal.4. Não foram trazidos aos autos elementos objectivos e probatórios que permitam

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fundamentadamente pôr em causa esta conclusão, aproximando-se as hipóteses levantadas emInstrução mais de uma discussão académica, afigurando-se que mesmo se realizada autópsiamédico-legal o seu relatório igualmente poderia ser problematizado.5. Há que não esquecer que as autópsia médico-legais apenas deverão ter lugar nos casos demorte violenta ou causa ignorada e não, em regra, nos casos em que a causa de morte estáindicada e certificada por pessoa habilitada – art.º 18º da Lei n.º 45/2004, de 19.08.6. Este o motivo porque se discorda da ligeireza e facilidade com que a aferição sobre a indicadacausa de morte do C foi questionada, fragilizando o juízo de ciência feito, tendoobrigatoriamente de se concluir pela determinação da causa de morte do nascituro e assentarconsequentemente a análise da situação à luz dos elementos de prova reunidos para efeitos deapurar responsabilidades face à encefalopatia hipoxico-isquémica.7. Entende-se que as legis artis consistem no “(…) complexo de regras e princípiosprofissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momentohistórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. (…)Trata-se, enfim, das regras do know-how sobre o tratamento médico que devem estar ao alcancede qualquer clínico no âmbito da sua actividade profissional” (in responsabilidade Médica emDireito Penal – Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Edições Almedina, SA, Março de 2007,pág.ª 54).8. Resulta indiciado de forma suficiente dos autos, concretamente dos elementos documentais afls. 42 a 72 que D se dirigiu às urgências do Hospital do Espírito Santo, em Évora, no dia 12 deMaio de 2007, pelas 07h.41m., estando grávida de 40 semanas, por sentir dores e contracçõesuterinas.9. A equipa constituída pelos ora arguidos, médicos especialistas de ginecologia-obstetricia,observaram-na e decidiram interná-la por considerarem que já estava em trabalho de parto,detectando contracções, queixas de dores e suspeitando de ruptura de membranas, sendo que oCTG logo começou a apresentar um traçado irregular e “pouco tranquilizador” (conformeelementos a fls. fls. 71 e 76 verso).10. Os arguidos decidiram iniciar estimulação occitócica não obstante se verificarem súbitasdesacelerações cardíacas no feto e baixa variabilidade, não coincidentes com manobras dehigiene e toque (fls. 279 e depoimento da testemunha E) sendo que a dilatação do colo do úteroda parturiente não evoluiu correspectivamente.11. Além destes sinais de eventual sofrimento e fragilização fetal, foi detectado processoinfeccioso em curso, ainda assim os arguidos insistiram na estimulação farmacológica dascontracções, suspendendo e retomando essa administração, bem como num parto natural (viavaginal), potenciando o risco de sofrimento do feto, optando por não abreviarem a sua extracçãoatravés de um parto por cesariana.12. Assim, adensaram e prolongaram o sofrimento do feto, expondo-o a um parto maisdemorado, provocando com que o feto tivesse meconiado em grande quantidade e aspiradomecónio, morrendo asfixiado em decorrência das complicações daí advenientes.13. Estas conclusões decorrem com certeza bastante dos elementos de prova juntos aos autos,realçando-se o parecer de fls. 277 a 280, o relatório do processo de averiguações interno doHospital do Espírito Santo (apenso) e as declarações do seu subscritor cujo depoimento seencontra a fls. 144 dos autos. 14. Acresce ainda que não consta dos autos que os arguidos tenham sequer avaliado osbenefícios e os riscos para a saúde do feto e da parturiente advenientes da aplicação de técnicade extracção fetal por cesariana face ao parto natural, não tendo o cuidado de apurar sobre odiagnóstico e a avaliação feita à utente nas anteriores consultas de urgência nesse mesmoHospital, ocorridas nos dias 09 e 11 de Maio de 2007, por sentir dores e perdas de líquidos(violando o art.º 7º do C.D.O.M.).15. Na verdade, já no dia 09 de Maio de 2007 existiam sinais de fragilização fetal traduzidos emdesacelerações prolongadas da frequência cardíaca do feto sem correspondente contractilidadeuterina (cfr. se infere de fls. 59), o que estava documentado no Hospital e não foi doconhecimento dos ora arguidos porque não o procuraram saber, ficando apenas limitados pelosconhecimentos disponíveis no imediato.16. Toda esta actuação dos arguidos potenciou um risco de ocorrência de fenómenos como o daSíndrome de Aspiração de Mecónio (SAM), situação para a qual os arguidos concorreram deforma relevante e traduz uma flagrante desconformidade face aos seus deveres de cuidado,constituindo igualmente uma violação das boas práticas e procedimentos médicos. 17. Não obstante a especulação trazida aos autos em sede de Instrução sobre quais as causas demorte do C e factores potenciadores de fragilização do seu estado fetal, de todo o modo, éinegável que a referida actuação dos arguidos concorreu de forma determinante para o resultado

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morte, havendo que relembrar as palavras do Ex.º Prof. Doutor Jorge Figueiredo Dias, in DireitoPenal – Parte geral, tomo I, 2ª edição, Coimbra, ed. 2007 pág.ª 335: “(…)Sucede muitas vezesque, na situação, já está criado, antes da actuação do agente, um risco que ameaça o bemjurídico protegido. Não obstante, o resultado será ainda imputável ao agente se este, com a suaconduta, aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando, em consequência, a situação dobem jurídico ameaçado. São objectivamente imputáveis, por conseguinte, condutas como adaquele que dá a morte a um paciente já moribundo ou agrava o estado corporal de um doente(…)”.18. Em conclusão, está determinada nos autos a causa de morte do nascituro C e existemelementos indicativos de que os arguidos violaram deveres profissionais ao não se informaremsobre as condições concretas da parturiente D quando a receberam no serviço de urgênciahospitalar, fizeram uma interpretação desajustada dos sinais de sofrimento que o fetoevidenciava nomeadamente face ao traçado preocupante e patológico do CTG, ao processoinfeccioso em curso, à suspeita de ruptura de membranas e fraca dilatação do colo do útero,insistindo num parto natural, estimulado farmacologicamente as contracções, desta formaadensando o sofrimento do feto, o qual consequentemente meconiou em grande quantidade easfixiou durante o processo expulsivo, sofrendo graves lesões que lhe determinaram a morte.19. Estava ao alcance dos arguidos obterem toda a informação sobre a utente e interpretaremcorrectamente os sinais indicativos de sofrimento fetal de forma a aplicarem as boas práticasmédicas no sentido de atalharem e abreviarem a extracção fetal, para minorar o sofrimento dofeto, fazendo um parto por cesariana.20. Ao não o fazerem, agiram de forma descuidada e desconforme ao que lhes era exigido nomomento, assim violando as legis artis e, por isso, incorreram na prática de um crime dehomicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137º, do Código Penal.21. A M.ª Juiz, ao entender que os elementos disponíveis não eram de molde a sustentar, por taisfactos, a dedução de uma acusação por este ou por outro ilícito, violou o disposto no art.º 308º,n.º 1, do Código de Processo Penal, em articulação com o art.º 283º, n.º 2 do mesmo diplomalegal aqui aplicável «ex vi» o n.º 2 daquela disposição legal.Entendendo-se que existem elementos nos autos que, em termos indiciários, razoavelmentefazem antever a aplicação aos arguidos, em julgamento, de uma pena pela prática de tal ilícito,deve tal despacho de não pronuncia ser revogado e substituído por outro que pronuncie osarguidos pela prática de tal ilícito criminal.Vossas Excelências, no entanto, apreciarão e decidirão como for de justiça, face ao melhore mais experiente saber.”.---

Notificados os arguidos, designadamente na pessoa dos seus Exmºs Mandatários, ambosofereceram articulado de resposta.---

Em tal peça, o arguido B, conclui nos termos seguintes:--“(…)A) Sustenta o Ministério Público no presente recurso a existência de "elementos nos autos que,em termos indiciários, razoavelmente fazem antever a aplicação aos arguidos, em julgamento,de uma pena" pela prática de um crime de homicídio por negligência, razão pela qual pretendever revogado o despacho de não pronúncia proferido a fls ... dos autos; B) Alega, para tanto, o Ministério Público (i) que a causa de morte do C está demonstrada, ouseja, "encefalopatia hipoxico-isquémica sequente a asfixia oerlnatal". (ii) que a avaliação pelosarguidos da evolução do trabalho de parto da parturiente foi incorrecta quer na medicaçãoprescrita, quer na análise do traçado do CTG quer, finalmente, na opção pelo parto natural e (iii)que os arguidos não ponderaram a técnica de parto a utilizar nem tiveram o cuidado de apurarsobre o diagnóstico e a avaliação feita à utente em anteriores episódios de urgência; C) Ora, salvo o devido respeito, em primeiro lugar, não está em causa a existência de asfixiaperinatal mas antes o que provocou tal asfixia sendo admissíveis várias hipóteses a este respeito,tais como, por exemplo, "maior tempo de gestação, perda de líquido amniótico pelo menosdesde o dia 10/05/2007, infecção em curso de origem indeterminada, fenómeno compressivodurante o período expulsivo, insuficiência da placenta e do cordão umbilical" (cfr. fls. 27 dodespacho de pronúncia), sendo que sem autópsia e estudo da placenta nenhuma destas hipótesespode ser escolhida ou descartada; D) Em segundo lugar, contrariamente ao sustentado, o que os elementos probatórios constantesdos autos demonstram é que, in casu, o trabalho de parto para uma primigesta foi muito rápido,as alterações no CTG (desacelerações) coincidiram com manobras na grávida (mobilização,higiene, toque cfr. fls. 29 do despacho de não pronúncia) e não havia indícios de sofrimento fetal

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uma vez que apenas foi visualizado líquido amniótico claro (cfr. fls 30 despacho de nãopronúncia), o que equivale a dizer que não havia do ponto de vista clínico quaisquer indicaçõespara a realização de um parto por cesariana; E) Acresce que nenhum dos elementos probatórios constantes dos autos permite concluir que (i)o mocónio no qual o feto nasceu envolto tivesse sido produzido por alegado sofrimento fetal,que (ii) a realização de cesariana tivesse evitado o SAM verificado e que (iii) este tenha sidocausa directa da asfixia perinatal; F) Na verdade, o número de casos de SAM, isto é, Síndrome de Aspiração do Mecónio, é"semelhante entre os conceptos nascidos de partos vaginais e/ou cesáreos", e, por isso, em casestudy, conclui-se que "a cesariana não teve nenhum impacto na diminuição da incidência naaspiração de mecónio nestes recém-nascidos", sendo que nem sempre o SAM está associado asofrimento fetal (cardiotocografia alterada) (cfr. fis. 441 a 454 dos autos); G) Finalmente, contrariamente também ao alegado pelo Ministério Público, o que a provatestemunhal constante dos autos revela é que, perante o quadro clínico conhecido da parturiente,foi ponderado o tipo de parto, foi decidido que seria efectuado por via vaginal o foi devidamentecomunicada esta opção à parturiente. H) E o quadro clínico conhecido era o que resultava da informação transmitida pela parturiente,da avaliação efectuada pelos arguidos e pela equipa de enfermagem e dos meios técnicosexistentes; I) Na verdade, à data dos factos não estava em utilização no Hospital o sistema informático"ALERT Paper Free Hospital", sistema que permite o registo, interligação, reutilização e análisede todos os dados relacionados com os pacientes e a actividade dos profissionais de saúde, peloque, inexistindo processo clínico da paciente atento o não acompanhamento da respectivagravidez no Hospital, não haveria como - em serviço de urgência - recorrer a episódios clínicosanteriores, J) Sendo que foi omitida pela parturiente, aquando da triagem efectuada na admissão de 12 deMaio de 2007, informação essencial à avaliação do respectivo quadro clínico, a saber, a perda deliquido dois dias antes (cfr. declarações do Director do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia doHospital do Espírito Santo de Évora fls. 17 do despacho de não pronúncia). K) Assim sendo, como de facto é, contrariamente ao alegado pelo Ministério Público em 18. dasconclusões do recurso a fls... dos autos, não está determinada nos autos a causa da asfixia queesteve na origem da morte do C, não houve violação de quaisquer deveres profissionais pelosarguidos na análise do quadro clínico da parturiente e, finalmente, não existiu qualquer violaçãodas legis artis na avaliação pelos arguidos da evolução do trabalho de parto, na medicaçãoprescrita, na análise do traçado do CTG, e na opção pela realização de um parto por via vaginal. L) Por isso, na decisão de não pronúncia dos arguidos ora posta em crise se concluiu, após umaanálise exaustivamente critica e circunstanciada de todos os elementos de prova constantes dosautos, e bem, pela ausência "de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos deque depende a aplicação de uma pena aos arguidos", decisão esta que, salvo o devido respeito, aargumentação expendida pelo Ministério Público em ordem à sua revogação não abala e que,por conseguinte, se deve manter, improcedendo, assim, o recurso por aquele apresentado sobpena de, assim não acontecendo, ser efectivamente violado o disposto no art. 308°, nº 1, do CPP.TERMOS EM QUE: Deve o recurso interposto pelo Ministério Público a fls ... ser julgado improcedente por nãoprovado, mantendo-se o despacho de não pronúncia dos arguidos pelo crime de que vinhamacusados, com as legais consequências, com o que se fará JUSTIÇA.”.---

E, a arguida A, no articulado de resposta ao recurso apresentado pelo Digno Magistrado doMinistério Público, conclui nos termos seguintes:---“(…)A. Os elementos periciais, técnicos e testemunhais não apontam no sentido da acusação, nãopermitindo sustentá-la uma vez que apenas a consulta técnico-científica do Conselho MédicoLegal deu parecer no sentido de não terem sido adequadamente observadas as legis artis,devendo ter sido ponderada a necessidade de suspensão definitiva da administração de ocitocinae abreviar o parto através de extracção fetal por cesariana, o que, ainda assim, não permitiriaafirmar que se pudesse evitar o resultado morte do recém-nascido.B. Os restantes juízos técnicos e elementos testemunhais (e eles são vastíssimos) indicam queterão sido cumpridos os protocolos e boas práticas médicas pelos Arguidos, ademais porqueexistem poucas certezas quanto aos factores potenciadores da síndrome de aspiração de mecóniopresente no nascimento do C.

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C. De realçar que apenas a autópsia ao corpo do C Roger - acompanhada do estudo da placenta -permitiria chegar a um diagnóstico com algum carácter de certeza quanto à causa de morte desterecém-nascido, urna vez que ficou por explicar, com algum grau de certeza, o que provocou talasfixia, podendo alvitrar-se várias hipóteses, tais como: maior tempo de gestação, perda delíquido amniótico anterior, processo infeccioso em curso, fenómeno compressivo durante operíodo expulsivo, insuficiência da placenta e do cordão umbilical, sendo a aspiração demecónio apenas a causa mais visível.D. Acresce que os Arguidos apenas contactaram pela primeira vez com a parturiente no dia 12de Maio de 2007, pela manhã, aquando do inicio do trabalho de parto, não lhe tendo sido dadoconhecimento de eventuais factores que levassem a interpretar o traçado pouco tranquilizador doC.T.G. de outra forma.E. Dos elementos juntos aos Autos também não se pode concluir que se tivesse sido feito partopor cesariana se tivesse evitado a síndrome de aspiração de mecónio subjacente ao falecimentodo nascituro.Recorde-se:F. Que se encontra amplamente provado nos Autos que apenas após a extracção da cabeça sedetectou mecónio espesso em grandes quantidades envolvendo o nascituro, provocando-lheasfixia, estando anotado a presença de liquido amniótico claro (LAC) até esse momento edesacelerações do CTG de rápida recuperação, inexistindo sinais de sofrimento fetalinequívocos, G. A circunstância de o feto estar meconiado é indicador de sofrimento mas a sua causaconcreta, face aos elementos de prova indicados, permanece assim indeterminada, face à opçãode não realização de autópsia.H. Em nenhum dos dados analisados e recolhidos pela Arguida havia elementos concretos queinequivocamente sugerissem a existência sofrimento fetal agudo.I. Isto em qualquer altura do parto, desde a fase inicial até ao momento da expulsão.J. Para além disto, a Arguida manteve uma vigilância permanente, estando alerta para qualquersinal de sofrimento fetal agudo que implicasse intervenção cirúrgica.K. O que se passou foi que em momento algum houve elementos que indicassem, sem margempara dúvidas, que a melhor via para o parto seria a cesariana. L. Sendo também necessário ter em conta que a via fisiológica para o parto é a vaginal e que acesariana apresenta um acréscimo de morbilidade materna, não garantindo com segurança umadiminuição da morbilidade fetal.M. A isto acrescendo, que o importante será assegurar a rapidez do parto, o que também foialcançado nesta situação, mas apenas por se ter tratado de um parto por via vaginal. E assim sendo,N. Se o resultado se verificou em consequência das condutas da Arguida, tal ficou a dever-se,somente, a circunstâncias acidentais, absolutamente incontroláveis, imprevisíveis e despidas dequalquer juízo de censura para a Arguida, pelo que jamais se aceita que o seu acto seja possívelde sanção penal. O. Quanto ao momento para a arguição dos factos em causa, refira-se que a Instrução visa acomprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem asubmeter ou não a causa a julgamento – cfr. artigo 286.° n.° 1, do CPP.P. Não se está assim perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual decomprovação, e assim sendo, um dos fundamentos do arquivamento do inquérito peloMinistério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dosindícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes – cfr. artigos 277.° n.° 2 e308.° n.° 1, do CPP.Q. A contrario: a pronúncia só deve então ter lugar quando tiverem sido recolhidos indíciossuficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente – cfr. artigos 283.° e 308.° n.° 1,do CPP.Assim,R. No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesada dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissõesabusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dosDireitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional – cfr. artigo 2.° daDUDH e artigo 27.°, da Constituição da República Portuguesa.S. É por tal razão que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que o juiz sódeverá pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a suaconvicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o nãotenha cometido, isto é, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura

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condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que deabsolvição.T. A Arguida vem acusado da prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punidonos termos do artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal.Mas a verdade é que:U. Como vimos, a Arguida cumpriu, todos os deveres de cuidado a que estava obrigada legal eprofissionalmente, facto provado pela vasta prova pericial, documental e testemunhal produzidaem sede instrutória.E assim:V. A conduta da Arguida em nada se afastou da legis artis. W. Facto que resulta – insistimos - dos bastantes pareceres, opiniões médicas, documentos edepoimentos juntos aos Autos e já analisados e que a Meritíssima Juíz de Instrução do Tribunala quo correctamente soube valorizar.E assim,X. Se o resultado não foi evitado, tal não ficou a dever-se à falta de previsível representação porparte da Arguida, ficou a dever-se, isso sim, às circunstâncias do caso concreto, que nuncapoderiam ter projectado na normal previsão da Arguida a verificação do resultado morte.Y. Não se podendo assacar qualquer tipo de responsabilidade pela morte do nascituro à Arguidapor não se ter optado pela realização de cesariana.Z. Recusando-se assim determinantemente a decisão de pronúncia constante no despacho deAcusação e que o Ilustríssimo Digníssimo Representante do Ministério Público que obteratravés do presente Recurso, como vimos, perfeitamente infundado.***Termos em que, e nos demais de Direito que os Venerandos Juízes Desembargadoresdoutamente suprirão, se requer que seja mantido o Despacho Recorrido nos seus termos, com aconsequente não pronúncia da Arguida A, só assim se produzindo sábia e serena Justiça!”.---

Admitido o recurso, a Mmª Juiz determinou a remessa dos autos a esta Relação – (cfr. fls.1080).---

Nesta Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, alegando, em síntese, “(…)como o EMMP recorrente salienta na motivação e conclusões do recurso, que acompanhamosintegralmente, existem elementos que, em termos indiciários, razoavelmente fazem antever aaplicação, aos arguidos, de uma pena pelo crime por que foram acusados”. Por conseguintedefende que o recurso deva ser julgado procedente.---

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo sido usado odireito de resposta apenas pela arguida B, que pugna, uma vez mais, pela manutenção da decisãode não pronúncia.---

Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.---Foi realizada a conferência.---Cumpre apreciar e decidir.---

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-seatravés das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimentooficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e dasnulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do preceituado nos artigos 410º, nº3 e 119º, nº 1, ambos do citado diploma.---Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão aportada àapreciação deste Tribunal ad quem é a seguinte:---(i) – Se a decisão instrutória de não pronúncia viola o preceituado nos artigos 308º, nº 1 e 283º,nº 2, ambos do Código de Processo Penal, ao ter entendido que a prova recolhida em fase deinquérito e de instrução não permite concluir pela existência de indícios suficientes parasubmeter os arguidos a julgamento pela prática dos factos e crime (de homicídio pornegligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal), por que se mostram acusados.---

III

A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos, que se transcrevem:-

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“I. RELATÓRIOA) Requentes da instrução:1. Arguida A, divorciada, médica (…);2 . Arguido B, casado, médico (…).*B) Decisão comprovanda:Despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, a fls. 398 na 402 dos autos, que imputaa prática, a cada um dos arguidos, de um crime de homicídio por negligência, p. p. pelos arts.137.º, n.º 1 e 15.º, do Cód. Penal.

*C) Fundamentos dos requerimentos de abertura de instrução:1. Da arguida A: Alega, em síntese, que D deu entrada no Serviço de Urgência no dia 11/05/2007, sem referirperda de líquido amniótico, que terá ocorrido na véspera, referindo como queixas contracções eperda hemática.Tendo-lhe sido dado alta pelo Dr. F, voltou com as mesmas queixas no dia 12/05/2007.Neste dia voltou a ser avaliada pela enfermeira da triagem, por duas enfermeiras de SaúdeMaterna e Obstetrícia e pelo Dr. G que, estando de saída, deixou a grávida no CTG.A arguida viu a D pela primeira vez no dia 12 de Maio de 2007, quando entrou de urgênciaobstétrica no Hospital Distrital de Évora, em equipa com o Dr. A.Foi-lhe transmitido pela equipa de saída – composta pelo Dr. E e Dr. F, que estava uma grávidaprimigesta de 31 anos, com 39 semanas e seis dias de gravidez a fazer CTG e por decidirinternamento.Mais adiantaram que se tratava de uma grávida com várias vindas ao SU, não internada por nãoapresentar alterações no CTG e sem trabalho de parto.A queixosa foi observada pela arguida e pelo arguido B.Cerca das 9H30 foi feita a avaliação clínica conjunta da grávida (ecográfica ecardiotocograficamente).Nesse momento os arguidos decidiram o seu internamento em face dos dados recolhidos eobservados: tempo de gravidez, um CTG pouco tranquilizador com contracções irregulares;ecograficamente com boa vitalidade fetal, líquido amniótico (LA) ligeiramente diminuído; colofavorável, posterior, com apagamento permeável a 2 dedos; não se confirmando perda de LA ehistória de eventual infecção urinária.Decidiram os arguidos induzir o trabalho de parto (TP) com perfusão occitócica (PO); solicitaranálises sanguíneas; administrar antibioterapia profilática e manter a monotorização fetal e dacontratibilidade uterina.Verificando-se no CTG desacelerações (embora de rápida recuperação) e variabilidadediminuída, a arguida procedeu à avaliação do LA com eventual rotura da bolsa de águas (BA),aparentemente não conseguida, mas com visualização de líquido amniótico claro (LAC).Cerca das 11H00 a 11H45, a grávida apresentava colo grosso, permeável a 3 dedos (4-5cm),desacelerações coincidentes com observação/toque e manobras de higiene.Às 10H45, os arguidos haviam decidido parar a PO, introduzir reforço de soros para hidrataçãoe oxigenoterapia.Às 12H15 inicia-se a fase activa do TP. A grávida teve LAC no resguardo.Reiniciou-se PO, mantendo-se a monitorização externa.O CTG manteve-se com desacelerações variáveis de curta duração (recuperação rápida).A contratibilidade uterina é de elevada intensidade e maior regularidade.As análises revelaram leucocitose e PCR positiva, pelo que a grávida não fez analgesia epidural,tendo-se administrado ¼ de petidina em 100cc.Às 15H05 tem a dilatação completa.A grávida estava cansada e, no intuito de abreviar o período expulsivo, foi decido pela arguida aaplicação de ventosa de Kivi.Não foi feita qualquer tracção com a ventosa uma vez que, após a episiotomia, houve expulsãoda cabeça fetal de forma espontânea.Só depois da exteriorização da cabeça se viu mecónio espesso em quantidade abundante, o quepode estar relacionado com a compressão durante o período expulsivo.A arguida procedeu de imediato à expressão, antes que o recém-nascido respirasse, tentandoevitar a aspiração de mecónio.A pediatra assistiu ao parto, interveio de imediato, iniciando as manobras de reanimação dorecém-nascido.

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Aspirou-o e, perante a dificuldade respiratória do mesmo, tentou entubá-lo, o que terá sidodifícil.Foi pedida ajuda da anestesista de serviço, que ocorreu tão depressa quanto o espaço físico opermite, foi mudada a sonda endotraqueal e finalmente entubado o recém-nascido, de imediatoventilado e enviado para a incubadora, vindo posteriormente a falecer.Não foi efectuada a autópsia do recém-nascido ou o estudo da placenta, pelo que não se podeafirmar com certeza qual a causa da morte, apenas se podendo apontar como causa provável a deasfixia neonatal.Para primigesta, o trabalho de parto decorreu muito rapidamente, não existindo qualquerparagem no mesmo.Também nada indica uma suspensão da PO quando há variação do ritmo cardíaco fetal.Apenas não optou pela realização da cesariana uma vez que a dilatação se fez rapidamente e asdesacelerações eram de rápida recuperação.Nunca foi detectado mecónio e nada o fazia antever.O parto não foi traumático, não tendo sido efectuada qualquer tracção com a ventosa.É errado afirmar que o parto por cesariana seria mais célere do que o parto vaginal queefectivamente ocorreu.Assim como é errado afirmar que o parto vaginal é potenciador do risco relativamente àcesariana.Mesmo que se tivesse verificado aspiração de mecónio aquando da expulsão do feto não existenenhuma razão para afirmar que o mesmo não se verificasse em caso de cesariana.A conduta alternativa àquela que a arguida tomou poderia levar ao mesmo resultado, sendo certoque a cesariana apresenta um acréscimo de morbilidade materna, não garantindo com segurançauma diminuição da morbilidade fetal.Se o resultado se verificou em consequência das condutas da arguida, tal ficou a dever-sesomente a circunstâncias acidentais, absolutamente incontroláveis, imprevisíveis e despidas dequalquer juízo de censuraA arguida não admitiu nem nunca podia ter previsto como possível a realização do resultadotípico, pelo que não agiu negligentemente.A negligência apenas se deverá considerar verificada quando o agente omite os deveres decuidado a que está objectivamente obrigado e de que era capaz.Neste caso, a arguida cumpriu todos os deveres de cuidado a que estava obrigada legal eprofissionalmente, em nada se afastando da legis artis.Se o resultado morte não foi evitado, tal ficou a dever-se somente às circunstâncias do casoconcreto, que nunca poderiam ter projectado na normal previsão da arguida a verificaçãodaquele.Juntou cinco documentos, constantes de fls. 532 a 558 e 904 a 910 e arrolou testemunhas eperito.

2. Do arguido B:Alega o arguido, por seu turno, que no dia 12/05/2007, ficou com o serviço de admissões etriagem, tendo a arguida B ficado encarregue do acompanhamento dos partos.Entre os arguidos existia uma divisão de trabalho horizontal uma vez que, tendo umaespecialidade idêntica e não detendo os dois funções de chefia, se encontravam em situação deigualdade.O arguido apenas acompanhou a queixosa, nesse dia, entre as 9H30 e as 11H20.Na última observação efectuada pelo arguido, às 11H20, a queixosa tinha 5 cm de dilatação e oGTG apresentava ligeiras desacelerações com recuperação rápida, pelo que inexistiam sinais desofrimento fetal.Nada mais o arguido observou, fez, decidiu ou sequer opinou.Entre as 11H20 e as 15H24, a queixosa foi apenas seguida pela co-arguida Dr.ª A.O arguido não prescreveu qualquer medicação à queixosa, a qual foi decidida pela Dr.ª A, nãotendo sequer visto as análises cuja requisição efectuara.A co-arguida em nenhum momento lhe comunicou fosse o que fosse ou pediu opinião.Até ao termo da intervenção do arguido não existiam indícios de sofrimento fetal.A tudo isto, acresce que o Síndrome de Aspiração de mecónio (SAM) é semelhante entre osnascidos de partos vaginais e/ou cesáreos, sendo que em estudos clínicos se concluiu que acesariana não teve nenhum impacto na diminuição da incidência na aspiração de mecónio nosrecém-nascidos.Por seu turno, está por demonstrar que a presença de mecónio esteja associada a sofrimentofetal, havendo especialistas que defendem que a presença de mecónio está mais relacionada com

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a maturidade fetal do que com a asfixia.Sem realização de autópsia ou estudo da placenta, a própria causa da morte de C, sendo a maisprovável, não é indiscutível.Esta, assim, por demonstrar nos autos que: o mecónio tivesse sido produzido por sofrimentofetal; que a realização de cesariana tivesse evitado o SAM e que este tenha sido a causa damorte.O arguido não violou qualquer dever de cuidado que sobre ele impendesse.Juntou dois documentos, solicitou a requisição de outros e arrolou testemunhas.

*II. DILIGÊNCIAS EFECTUADAS Decorreu a fase instrutória, com inquirição de testemunhas, declarações ao perito indicado einterrogatório da arguida, estando os mesmos registados em suporte digital.Procedeu-se à realização de debate instrutório, o qual decorreu com observância do formalismolegal, conforme consta da respectiva acta.

*III. SANEAMENTOO Tribunal é competente e o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.Inexistem outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem aoconhecimento do mérito da causa.

*IV. DA INSTRUÇÃO E DA SUFICIÊNCIA DOS INDÍCIOS RECOLHIDOSConforme estatui o artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa acomprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem asubmeter ou não a causa a julgamento.De acordo com o disposto no artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal deverá o juizpronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indíciossuficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido deuma pena ou de uma medida de segurança. Caso não seja possível reunir tal acervo probatório,deverá ser proferido despacho de não pronúncia.Na instrução bastará a mera prova indiciária, não se exigindo ainda a certeza quanto ao méritoda questão. Tal como nota Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, III, Verbo,pag 179, “a lei não exige (…) a prova no sentido de certeza moral da existência do crime,basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se podeformar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime peloarguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só devepronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a suaconvicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que nãoo tenha cometido” Impõe-se, deste modo, que a decisão instrutória assente num suporte factual fortementeindiciador sobre a verificação ou não da infracção. Dito por outras palavras, deverá o processoconter indícios suficientes, ou seja, indícios que permitam concluir por uma possibilidaderazoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou umamedida de segurança.Refere a este propósito o Prof. Figueiredo Dias que: “os indícios só serão suficientes e a provabastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenaçãodo acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” e ”(...) a altaprobabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de referir-se no planofáctico e não no plano jurídico”(in “Direito Processual Penal”, 1.º, 1974, página 133).Indícios suficientes serão, assim, elementos factuais, sinais objectivos de suspeita, de vestígios,elementos de facto trazidos pelos meios legais probatórios ao processo, que conjugados erelacionados criam a convicção de uma séria probabilidade da condenação do arguido pelocrime que lhe é atribuído, a manter-se todo aquele acervo probatório em sede de julgamento.

*Posto isto, vejamos quais os elementos probatórios que constam do processo (salientando-os nosseus aspectos mais relevantes) e se perante os mesmos podemos concluir que é provável acondenação dos arguidos em julgamento pela morte do C:

a) Pareceres e elementos periciais e técnico-científicos juntos aos autos:· Consulta técnico-científica solicitada pelo Ministério Público e em resposta aos quesitos pelomesmo formulados ao Instituto Nacional de Medicina Legal, subscrito pelo Sr. Prof. Dr. H(cfr. fls. 276 a 280). Aqui se refere que não foram adequadamente cumpridas as legis artis uma

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vez que o GTG evidenciou características anormais (em alguns períodos claramente patológicas,particularmente após as duas iniciativas de estimulação das contracções uterinas com occitocina- cerca das 10H20 e 12h15) não se verificou evolução significativa da dilatação do colo do úteroentre o primeiro período de alterações mais graves do CTG (10h45 e 14H15) e a existência derisco infeccioso sugerido pela rotura de membranas e resultados das análises laboratoriais.Perante tal quadro, deveria ter sido ponderada a necessidade de suspender definitivamente aadministração de occitocina e abreviar o parto através da extracção fetal por cesariana. Semprejuízo, conclui que não é possível afirmar em absoluto que estes procedimentos nãoconformes à legis artis sejam causa necessária e suficiente para produzir os efeitos verificadosno recém-nascido ou que, noutra perspectiva, tal desfecho fosse garantidamente evitado pororientação diversa. Esta cautela é tanto mais de ponderar quanto existe um potencial factorinfeccioso de agressão/fragilização cujo tempo de actuação e gravidade não pode apreciarobjectivamente. Termina, concluindo que houve algumas condutas inadequadas e que éadmissível que actuação diferente pudesse ter evitado ou contribuído para minorar a situaçãoposteriormente verificada.

· Inquérito que teve lugar na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (na sequência deprocesso de averiguações que decorreu no Hospital do Espírito Santo – Évora, E.P.E. – junto porapenso) e respectiva decisão final (cfr. fls. 315 a 366 e 583 a 852). Na instrução do processo foinomeado perito na valência de Obstetrícia (Sr. Dr. I). Determinou-se aqui o arquivamento doprocesso, por não se ter evidenciado, em momento algum, comportamento ou atitudes clínicas e,ou, de enfermagem susceptíveis de crítica, por eventual violação da legis artis. Concluiu o Sr.perito nomeado para assistir a Instrutora do processo, na parte que contende com a actuação dosarguidos, que um “GTG não tranquilizador é um traçado que não nos indica estarmosnecessariamente perante um feto com sofrimento fetal (SF). A medida a tomar é o internamentoda grávida com monitorização contínua por GTG e avaliação do traçado para definição daactuação em tempo real. Refere, de igual forma, que a rotura da bolsa de águas ou perda delíquido amniótico não implica, necessariamente, a existência de um traçado não tranquilizadordo CTG. Mais elucida que o facto de ser observado LAC é um bom sinal obstétrico, poispressupõe que não haverá infecção ou SF. No que concerne à administração da occitocina,esclarece que esta é um fármaco que quando ministrado à grávida provoca contracções uterinas:no caso a grávida apresentava-se em TP com contratibilidade uterina escassa e irregular, peloque haveria necessidade de regularizar e aumentar a contratibilidade, para abreviar o parto,sempre sob vigilância do CTG. No que concerne às desacelerações que descem abaixo dos 120b.c.m., referenciadas pelas senhoras enfermeiras como manobras de higiene ou outras dagrávida, refere que as mesmas não serão verdadeiras desacelerações mas sim, “desconexões” oufalhas de captação do sinal fetal pelo aparelho. Quanto à questão fulcral, tendo por referência aconstrução em que se baseia a acusação, refere o Senhor perito ali consultado que, havendo umaprogressão do TP dentro dos parâmetros considerados normais, parece não haver indicação paraefectuar uma cesariana: o TP foi rápido (numa primigesta pode chegar às 13-14 horas), não seobservou saída de LA com mecónio e não haveria no CTG sinais directos imediatos quefizessem suspeitar de um possível sofrimento fetal agudo (SFA). No que respeita às“desacelerações com recuperação rápida”, esclarece o Senhor perito que estas são quedasrápidas de pequena amplitude da frequência cardíaca fetal e mais frequentes na presença deoligâmnios ou circulares do cordão, não apresentando significado clínico importante, portantosem relacionamento com SFA. Perante este quadro clínico, é seu parecer que a saída de mecónioespesso após exteriorização cefálica, terá resultado de eventual fenómeno compressivo durante operíodo expulsivo, o que justifica a atitude da obstetra na realização de parto instrumental.Dando-se a expulsão de mecónio nesta fase, a cesariana não teria evitado a situação. Mais refereeste especialista que, perante os dados clínicos disponíveis, a causa da morte mais provável seráa de aspiração de líquido meconial e asfixia neonatal. Perante os dados disponíveis da pediatria eObstetrícia, impunha-se a realização da autópsia e também do estudo histológico da placenta, afim de se poder concluir, com segurança, qual a causa provável da morte.· Parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos(cfr. fls. 905 a 910): Neste se conclui “Na ausência dos elementos adicionais que o exameanatomo-patológico da placenta e a autópsia fetal poderiam vir a esclarecer, nunca será possívelimputar com certeza absoluta, toda a responsabilidade do quadro de hipoxia fetal só à deficienteinterpretação do traçado cardiotopográfico. O conhecimento de outros dados clínicos obtidosatravés de autos de inquirição e constantes do processo a que “a posteriori” se teve acesso:Reserva placentar eventualmente diminuída; perda de líquido amniótico no domicíliodesconhecida dos médicos com consequente oligâmnios, provável amniotite, dissimulada pelas

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queixas de infecção urinária referidas pela doente; natural compressão do cordão a cadacontracção e respectivas alterações da perfusão fetal, poderiam ter feito a diferença e, quemsabe, alterar o curso dos factos. Não podemos esquecer ainda quantas vezes somos confrontadoscom casos previamente diagnosticados de sofrimento fetal que não apresentam posteriormentesinais inerentes ao diagnóstico e, inversamente, casos em que não existia qualquer sinal dealarme e desenvolveram posteriormente anomalias. Assim, sou de parecer que a Dra. A tomouas medidas e realizou os procedimentos com base nos elementos de que dispunha, não sendopossível afirmar que outros pudessem alterar o mau desfecho perinatal. · Dr. J, que prestou declarações enquanto perito, afirmando que a queixosa estava no termo dagravidez (39 semanas e seis dias), existindo suspeitas de diminuição de líquido amniótico, masnão perdas (referindo poder existir diminuição do LA por outros motivos). A grávida foiapresentando queixas de dores desde o dia 3 de Maio, mas não tinha sinais de se encontrar emTP – esclarece ser uma situação relativamente frequente e devida à circunstância de o útero estara criar condições para o parto. Mais referiu que o GTG é mais um dos meios de diagnósticos epode ser referenciado, clinicamente, como “tranquilizador”, “não tranquilizador” e “francamenteanormal” no que concerne ao respectivo traçado. O CTG evidencia sofrimento fetal agudo se alinha basal descer abaixo dos 120 b.c.m. sem recuperação rápida. Analisando o CTG daqueixosa, afirma que as desacelerações não baixam, por norma, abaixo dos 120, pelo que nãoera uma situação que justificasse a intervenção imediata. Mais refere que as maioresdesacelerações coincidem com manobras da grávida e existem situações em que se verifica aperda de sinal do CTG. Entende que a occitocina foi neste caso utilizada não para estimular ascontracções, pois estas já existiam, mas para as regularizar. A P.O. utiliza-se nestes casos porqueas contracções não são regulares e torna a contratibilidade eficaz. Não seria de efectuar a p.o.caso existisse indicação anterior para cesariana, o que não era o caso. A interrupção da P.O. éprática clínica (chamado “stress teste”) quando ocorre a variabilidade do traçado do C.T.G.,existindo dúvidas. Suspende-se para ver se o feto e a grávida suportam a prova. Comorecuperou, é sinal que estavam ambos bem, pelo que não haveria indicação, também por aí, paraparto por via alta. A circunstância de a grávida não se alimentar há várias horas também teminfluência no CTG, diminuindo a variabilidade. O trabalho de parto, neste caso, foi muitorápido, já que se tratava de uma primípara e sem paragens (a indicação dos 5cm anotados peloarguido Dr. Pedro, não serão os mesmos da enfermeira, parecendo-lhe que apenas às 14h15estariam efectivamente completos os 5 cm de dilatação, pois que só então as contracçõesestariam regularizadas). No caso em apreço não foi detectado, antes da expulsão da cabeça, apresença de qualquer sinal inequívoco de sofrimento fetal, que impusesse a imediata realizaçãoda cesariana. Impunha-se a imediata opção por cesariana caso as desacelerações detectadas noCTG fossem frequentes, de recuperação lenta, fosse detectado durante o TP mecónio ou agrávida apresentasse hemorragia. No que respeita ao mecónio, impunha-se a cesariana caso estefosse detectado aos 3 ou 4 cm de dilatação. Caso já só fosse detectado, por ex., com 9 cm dedilatação, o correcto seria acelerar o parto eutócico, por ex. com recurso a ventosa ou fórceps,por ser mais rápido do que ir nessa fase para cesariana. Com os elementos clínicos disponíveis,entende que o mais provável é existir um problema de placenta ou cordão umbilical quedeterminou a falência orgânica do bebé. Conclui que a realização da cesariana não garantiria umdesfecho final diferente. Mais refere este clínico que as medidas que os arguidos tomaram foramas indicadas ao quadro clínico e que estando perante um feto aparentemente sem sinais de máformação e que faleceu após o parto, impunha-se obrigatoriamente a realização da autópsia.· Parecer técnico subscrito pelo Dr. L e junto pela arguida a fls. 555 a 558, onde se conclui que“A autopsia fetal e muito em especial a histologia da placenta, seria de grande utilidade para acompreensão desta situação sem as quais é praticamente impossível determinar se a anóxia foiprovocada durante o parto, pela insuficiência placentar ou se pelo contrário foi provocada pelaaspiração meconial com consequente dificuldade respiratória. Com pequenas e esporádicasdesacelerações do CTG é lícito ficar numa atitude expectante se o líquido amniótico for claro.Se as desacelerações aumentaram de intensidade e a recuperação for mais demorada já sejustificaria actuação médica para terminar o parto. Durante o trabalho de parto houve umaocasião onde isso aconteceu e se que resolveu com a aplicação de O2 e paragem de perfusãooccitócica o que parece ter levado os médicos a continuar a evoluir o parto espontaneamente porverem que as desacelerações tinham regredido. Nos últimos minutos volta a haver maiorfrequência de desacelerações o que levou a médica a actuar de modo a terminar o parto damaneira mais rápida possível. Havendo dilatação completa e apresentação encravada optou pelouso da ventosa que na situação presente era mais rápida e menos traumatizante que umacesariana”.

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b) Declarações das testemunhas:· E, enfermeira especialista em saúde materna e obstetrícia, que assistiu a queixosa: ouvida eminstrução e em inquérito, refere que aquela, na primeira observação tinha o colo em apagamento,permeável a 2 dedos, ou seja não estava ainda em trabalho de parto. Não tocaram a bolsa, mastambém não viram líquido. O traçado do CTG não era tranquilizador: tinha baixa variabilidade edesacelerações, algumas não coincidentes com manobras de higiene e toque. Viu sempre líquidoamniótico claro, só sendo detectado mecónio após a expulsão da cabeça. Mais referiu serhabitual a suspensão da P.O. quando há desacelerações (dado ser habitual o ritmo cardíaco dofeto variar). Mais refere que ambos os arguidos estiveram presentes e observaram a queixosa (oque o Dr. B fez nomeadamente depois do almoço), ainda que só a Dr. A tenha efectuado o parto,e que é normal funcionarem em equipa, tomando conjuntamente as decisões. Após retomar aP.O. continuaram as desacelerações, mas o trabalho de parto foi rápido, para uma primigesta. · M: enfermeira especialista em saúde materna e obstetrícia, ouvida em instrução e inquérito,que referiu que apenas detectou na queixosa durante o TP, LAC e que a mesma apenas sequeixava de dores, não tendo referido perda anterior de líquido. O traçado do CTG não eratranquilizador mas também não evidenciava sofrimento fetal. Um traçado que evidenciesofrimento fetal será aquele em que a linha baixa dos 120 b.c.m., indicando que algo impede ocoração de bater normalmente. Os picos mais baixos do CTG da queixosa coincidem commanobras de grávida. Iniciaram a P.O. e suspenderam após menor variabilidade detectada noCTG e por ordem dos médicos. Após ministrarem oxigénio à grávida, esta melhorou. O trabalhode parto foi muito rápido para uma primigesta, sem paragens, e esteve monitorizado até ao fim.Só após a extracção da cabeça detectaram mecónio, tendo o bebé nascido deprimido. Areanimação foi difícil, sendo necessário a neonatologista chamar a anestesista para o entubar.Mais refere que viu sempre os dois arguidos em conjunto a observar a queixosa, não sendoprática no Serviço a divisão de tarefas. · Dr. N, Director do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital do Espírito Santo deÉvora: Refere não ser prática do serviço a divisão de tarefas entre as equipas que asseguram asurgências da especialidade. Habitualmente, o acompanhamento é efectuado pelos dois médicosque compõem a equipa. As enfermeiras são especialistas, cabendo às mesmas analisar o CGT,detectando se é tranquilizador ou patológico, comunicando a avaliação aos médicos. Para umaprimípara foi um trabalho de parto rápido – a fase iniciou-se por volta das 12H00, com 5 cm dedilatação e a fase expulsiva ocorreu cerca de 3 horas depois (pode ir até às 20H00).Interpretando o traçado do CTG, entende que este tem uma fase tranquilizadora e outra nãotranquilizadora, mas não é patológico. Algumas das “desacelerações” serão na realidade faltasde sinal. Numa situação como esta é prática realizar-se a autópsia. O que lhe parece maisprovável, perante a análise clínica dos elementos disponíveis, é que a queixosa já estivesse emtrabalho de parto há cerca de 3 dias, com início no dia 10/05/2007, no momento em que perdeulíquido, o que no entanto não referiu no momento da observação.· Dr.ª O, assistente graduada em Ginecologia e Obstetrícia, em serviço no Hospital do EspíritoSanto de Évora, ouvida em sede de instrução: Refere que o protocolo médico define o CTGcomo tranquilizador ou não tranquilizador, determinando a actuação posterior em conformidade.Sendo tranquilizador, solicita apenas vigilância de rotina. Sendo não tranquilizador, define oprotocolo de actuação médica uma maior vigilância, como monitorização constante,regularização da contratibilidade uterina, verificação dos sinais vitais da grávida. Essanecessidade de regularizar as contracções surge porque é fundamental verificar como o fetoreage às contracções – se o feto reagir bem é porque está bem. Iniciada a P.O. a suspensão damesma é obrigatória em casos como o presente, em que se verificam desacelerações no CTG.Outra das obrigações é a avaliação do LA – se está claro, é sinal que o feto está bem; se estáesverdeado é sinal de stress do feto. Detectado líquido com mecónio obrigaria a umaintervenção rápida, com realização de cesariana ou aceleração do parto, consoante o momento eoutros sinais. Não é inusual detectar-se diminuição do líquido amniótico no final da gestação, oque não significa necessariamente uma ruptura da bolsa. A detecção de proteína C reactiva eleucócitos são sinais de infecção, mas não necessariamente do líquido amniótico. Para umaprimípara, a fase activa do TP foi rápida. Da leitura do CTG não se extrai qualquer sinalinequívoco de que se tinha de partir de imediato para a cesariana. Não há sinais no processo queo feto tenha meconiado antes do momento da passagem no canal de parto. Nada do que viu nosregistos fazia prever que aquele feto não ia nascer bem e ia morrer, à luz dos conhecimentosmédicos actuais. Não tendo sido o feto autopsiado nem a placenta estudada, podemos colocarvárias hipóteses de causa de morte, mas não fazer um diagnóstico.· D, queixosa, ouvida em sede de inquérito (cfr. fls. 125 a 134 e fls. 305 a 307). Refere, ter tido

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duas datas diferentes como data provável de parto – dia 3/5/2007 e dia 13/05/2007. Recorreu àsurgências no dia 9 e 11/5, com queixas de dores e perdas de sangue. Teve alguma perda deáguas, mas a que na altura não atribuiu relevância. Quando lhe foi perguntado, pela Dr.ª A, se aságuas já tinham rebentado, disse que não. Refere não ter tido consciência de ter perdido líquidopor via vaginal nos 3 dias anteriores ao parto, só sabendo que estava constantemente a ir à casade banho para urinar e que numa das vezes não teve tempo e urinou-se antes de chegar à casa-de-banho. Segundo o que lhe havia sido comunicado pela sua médica, estava à espera que a“perda de águas” acontecesse em grande quantidade, sendo que até comprou um resguardo paraa cama. Mais referiu que ninguém a informou, não sabendo do motivo pelo qual não foi feitaautópsia.· Dr. P, médico neurologista nomeado pelo Hospital para instruir o processo de averiguações,ouvido em inquérito (cfr. fls. 144 a 147). Refere que no dia 11 de Maio não foi feita ecografiapara avaliar o estado da bolsa de águas e que no dia 12 de Maio havendo indicação desofrimento do feto é legítimo questionar se não haveria indicação para cesariana. No entanto, opróprio relativiza as suas considerações por não ter conhecimento das boas práticas médicasnestes casos e por a sua especialidade ser em outra área.· Q, médica pediatra e neonatologista que assistiu o C imediatamente após o parto, ouvida eminquérito (cfr. fls. 149 a 151): Assistiu ao parto, verificando que o líquido amniótico apresentavacaracterísticas de mecónio espesso (grau III), o que poderia ser sintomático de sofrimento dobebé. Este nasceu impregnado em mecónio e sem sinais de vida aparentes – o coração não batia,não respirava, não havia movimentos. O bebé terá sofrido asfixia iniciada in útero mas pensaque não terá tido uma aspiração maciça de mecónio nas vias respiratórias, pois o raio-x não oindicou. A asfixia terá sido provocada por qualquer outro factor (infecção/doença materna,ruptura prolongada das membranas, alterações placentares, entre outras). Mais refere que nospartos por cesariana também podem ocorrer asfixias dos recém-nascidos. · Dr.ª R, médica pediatra com a sub-especialidade em neonatologia, ouvida em inquérito (cfr.fls. 152 a 155): Tomou contacto com o C quando o mesmo já se encontrava no serviço deneonatologia. As indicações seriam de que o bebé teria sofrido asfixia antes do nascimento oudurante o trabalho de parto. Neste caso, não se chegou a concluir qual a causa da asfixia. Estetipo de asfixia tanto pode surgir num parto eutócico como num parto por via alta (cesariana),não se podendo estabelecer qualquer nexo entre o tipo de parto e eventual asfixia. O bebé tinhamecónio muito espesso, o que significaria que estava em sofrimento, mas com a aspiração essasituação foi ultrapassada, pelo que não terá sido a entrada desse líquido nos pulmões a contribuirpara a asfixia. O termo asfixia não significa necessariamente que o bebé tenha deixado derespirar mas antes que o oxigénio não chegou aos órgãos essenciais e isso poderá ter acontecidoantes da expulsão. Não sabe em que termos a questão da realização da autópsia foi colocada aosprogenitores, pois que no dia do falecimento já não se encontrava ao serviço. Não sabe o quepoderá ter provocado a asfixia neste caso, podendo ter sido problemas ao nível da placenta ou docordão umbilical. A ruptura da bolsa há mais de 12/24H é um factor de risco de infecção para orecém-nascido, daí resultando maior vulnerabilidade do bebé, nomeadamente para eventualasfixia.· S, médico pediatra inquirido a fls. 156 a 159. A morte do bebé deveu-se a asfixia – não tinhaoxigénio suficiente nos seus órgãos. Não sabe qual a causa da asfixia. Em concreto o líquidoamniótico tinha mecónio, sendo este um indicador de sofrimento fetal. Não sabe o motivo peloqual o bebé não foi autopsiado, tendo sido o seu colega, Dr. T, a tomar a decisão. Entende que osofrimento do bebé se terá iniciado no útero e não no momento da expulsão.· U, pai do C, ouvido a fls. 223 a 225; W e X (ouvidas a fls. 226 a 230) cujos depoimentos nãotêm grande relevância para a apreciação a efectuar nesta sede, assim como os da testemunha Y(fls. 270 a 272).· Z (cfr. fls. 231 a 234 e 241 a 244), médica ginecologista/obstetra especializada em medicinafetal. Refere a mesma que, segundo os cálculos efectuados na sua base de dados, o bebé teriamais tempo de gestação do que vinha assinalado. Em 22/01/2007, confirmou os dadosbiométricos – a data prevista para o parto seria o dia 3/05/2007, data em que faria 40 semanas.Em 19/03/2007, a queixosa fez nova ecografia. Aqui o líquido estava normal mas havia umparâmetro de fluxometria da artéria umbilical que indicava resistência aumentada, o que podeser sinal de futura insuficiência da placenta. Entende que a gravidez da queixosa deveria ter sidoconsiderada como de risco por ter risco acrescido de insuficiência placentar. O resultado dafluxometria que realizou às 33 semanas e 4 dias era importante para, em conjunto com os dadosdo CTG e as ecografias, esclarecer o bem-estar fetal.

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c) Certificado de óbito fetal e neo-natal de C subscrito pelo Dr. T em 15/05/2007, onde figuracomo causa da morte “encefalopatia Hipoxico-Isquémica, devida a asfixia perinatal”(cfr. fls.10).d) Certificado de óbito de C (cfr. fls. 11)e) Cópia da documentação clínica da queixosa e do filho (fls. 8, 9, 39 a 121), incluindo CRGdo dia 12/05/2007, fichas dos episódios de urgência, cópias do diários clínicos de enfermagem.f) Declarações dos arguidos (fls. 207 a 221), que confirmam basicamente o que referem nosrequerimentos de abertura de instrução;g) Informação do Hospital do Espírito Santo em Évora (cfr. fls. 853) de que os arguidostrabalhavam no mesmo através da empresa URGEV, Lda., tendo sido contratados para prestaçãode serviços médicos de urgência. São especialistas de Ginecologia/obstetrícia e cessaram a suaactividade no Hospital em Maio de 2009;h) Estudos clínicos sobre a síndrome de aspiração de mecónio:· Juntos pelo arguido (a fls. 441 a 446 e 447 a 454) sobre a SAM – Síndrome de aspiração demecónio: refere o primeiro desses estudos, em traços gerais, constituir a SAM uma forma depneumonia de aspiração passível de ocorrer principalmente em gestações de termo e em fetoscom peso adequado para a idade gestacional. Mais concluem pela íntima associação da doença aaltos índices de operação cesariana e a depressão neonatal grave. Encontraram os autores aímencionados dados clínicos que parecem apontar para uma maior incidência de SAM emprimigestas, estando relacionado a cardiotocografia alterada, mas sendo semelhante o número decasos em partos vaginais ou cesáreos. Refere-se ainda, que a presença de mecónio no líquidoamniótico é considerada por alguns como evento decorrente de um quadro hipóxicopreexistente, eventual ou não, e, em consequência, pode ser interpretado como um marcador decomprometimento fetal prévio. Deve-se evitar a pós-maturidade como factor preventivo doSAM. Refere o segundo dos estudos juntos pelo arguido, sobre a Síndrome de AspiraçãoMeconial (SAM), que a cesariana não teve nenhum impacto na diminuição da incidência daaspiração de mecónio nos RN e que a presença de mecónio no LA está mais relacionada com amaturidade fetal do que com a asfixia.

*Do crime cuja prática é imputada aos arguidos: Vem imputada aos arguidos a prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo137.º do Código Penal.Dispõe o artigo 137.º que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena deprisão até 3 anos ou com pena de multa”.Para que seja preenchido o tipo objectivo do crime é necessário que da conduta do agente resultea morte de outrem.Quanto à conduta do agente, terá esta que traduzir a violação de um dever de cuidado, isto é,terá que redundar na omissão da prudência exigível no caso.Quanto à imputação do resultado morte ao agente, impõe-se um duplo nexo causal, ou seja, temque haver um nexo de causalidade adequada entre o resultado que se verificou em concreto e aconduta do agente, por um lado e, por outro, tem que haver um nexo normativo entre aqueleresultado e a violação do dever de cuidado que lhe era imposto no caso. Daqui resulta poder haver nexo causal entre o comportamento do agente e o resultado concretomas, mesmo assim, este último não poder ser imputado àquele dado ter-se demonstrado que talresultado se teria produzido independentemente da observância ou não do dever de cuidadoimposto ao agente. É a chamada causalidade hipotética ou virtual. Como refere Teresa Beleza(Direito Penal, II vol., p. 575) o “resultado tem de ser não só imputável à pessoa, mas tem dederivar justamente da violação do dever de cuidado, que é outro elemento essencial do crimenegligente”.Tal como refere Jescheck (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edição, p. 530), nanegligência não basta que a acção contrária ao dever de cuidado constitua uma causa doresultado. Na verdade, o resultado só pode ser objectivamente imputado ao agente quando teveprecisamente o seu pressuposto específico naquela infracção ao dever de cuidado.Ao nível do tipo subjectivo é necessário que o agente actue com negligência. Estatui o art. 15.º do Código Penal que haverá negligência quando o agente, prevendo ou não apossibilidade de realizar um facto que preenche um tipo de crime (negligência consciente ouinconsciente, respectivamente), actua sem observar o cuidado a que, segundo as circunstâncias,estava obrigado e de que era capaz.Quanto à previsibilidade do resultado típico, diz Eduardo Correia (Direito Criminal, I Vol., p.426) “não ser esta uma previsibilidade absoluta - mas (...) determinada de acordo com asregras da experiência dos homens ou de certo tipo profissional de homem”.

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A capacidade do agente para se conformar com os cuidados exigíveis no caso deve ser aferida,não com base no padrão do homem médio, normal, mas sim em função das específicasqualidades do agente em concreto. Refere, a este propósito, Figueiredo Dias que “Está aquiverdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que devepartir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidadesdo agente” - “Pressupostos da Punição”, Jornadas de Direito Criminal, p. 71.

*Expostas estas considerações de direito, cumprirá, pois, analisar o caso vertente.No que respeita à alegação do arguido B, no sentido de que apenas acompanhou a utente até às11H20, não tomando qualquer participação nas decisões posteriores, nenhum elementos doprocesso permite assim concluir. Os relatórios de enfermagem, o depoimento das enfermeirasque assistiram o parto e do Director do serviço, já para não falar no depoimento da co-arguida,confirmam ser prática do serviço os dois médicos trabalharem em equipa e que também nestecaso assim aconteceu. Os dois médicos foram observando a parturiente e tomando as decisõesem conjunto, ainda que apenas um possa ter assinalado nos registos tais decisões. Terá sido aarguida A a efectuar o parto apenas por ter observado a queixosa minutos antes e verificado queas condições eram favoráveis, estando a dilatação completa.Quanto ao acerto da decisão tomada relativamente ao tipo parto e estimulação farmacológica domesmo e nexo destas decisões com o desfecho ocorrido, há que atender aos elementosprobatórios acima referidos, onde assumem particular relevância os de ordem pericial. A estepropósito, convém relembrar o disposto no artigo 163.º do CPP (que versa sobre o valorprobatório da perícia realizada em processo penal e a vinculação do juiz à mesma) «1. O juízotécnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciaçãodo julgador. 2. Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dosperitos, deve aquele fundamentar a divergência.»Tal norma contém um limite à regra da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP).Contudo, e conforme assinalam Simas Santos e Leal-Henriques [in "Código de Processo PenalAnotado", I, 1999, Rei dos Livros p. 829] tal princípio "não é esquecido aqui, na medida em quese permite que o juiz possa divergir do entendimento contido no parecer dos peritos. Nessasituação apenas se impõe ao juiz que fundamente a sua divergência, em homenagem ao pesoque o juízo oriundo da peritagem apresenta, por ter origem em entidade devidamentequalificada".Germano Marques Da Silva [in "Curso de Processo Penal", I, Verbo p. 153 e ss., também citadopor aqueles autores] entende que a presunção contida no n.º 1 do art.º 163.º «não é umaverdadeira presunção, no sentido de ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar umfacto desconhecido», pois «o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo com fundamentonuma crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatóriopericial se impõe ao julgador», não sendo «necessária uma contraprova», bastando «a valoraçãodiversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial». Econclui: «Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoasdotadas de conhecimentos especiais para valoração da prova, seria de todo incompreensível quedepois admitisse que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já érazoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser aplicado na base de argumentos damesma natureza».Ora, no caso dos autos, temos vários elementos de ordem pericial ou técnico/científico. Nãoobstante as posições divergentes que em certos aspectos apresentam, nenhum conclui pelo nexode causalidade entre os procedimentos tomados pelos arguidos e o resultado morte de C, nosentido indicado na acusação. Funda-se a acusação na circunstância de o feto ter aspirado mecónio espesso que existia emgrande quantidade durante o período em que decorreram os trabalhos de parto e na expulsão.Refere-se que os arguidos não despistaram eventual sofrimento do feto, nem ponderaramcorrectamente os riscos advenientes da opção de continuarem a insistir num parto por viavaginal com perfusão occitócica, nomeadamente após as variações detectadas no CTG e semevolução correspondente na dilatação uterina da queixosa. Mais se refere que acaso tivessemreportado diversa análise, suspendendo definitivamente a perfusão occitócica e abreviando oparto de C procedendo à extracção fetal por cesariana, logo que detectados aqueles sinais, o quepoderiam ter feito e estava ao seu alcance, constituindo as boas práticas médicas a observar,poderiam ter evitado o seu falecimento. Imputa-se, assim, aos arguidos, actuação desconforme às práticas e técnicas médicas, insistindopelo parto por via vaginal quando os elementos disponíveis indicavam que o feto estaria emsofrimento, com grande variabilidade da função cardíaca e riscos infecciosos elevados.

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No entanto, os elementos periciais, técnicos e testemunhais não apontam no sentido da acusação,não permitindo sustentá-la. Apenas a consulta técnico-científica do Conselho Médico-Legal dá parecer no sentido de nãoterem sido adequadamente cumpridas as legis artis, devendo ter sido ponderada a necessidadede suspender definitivamente a administração occitócica e abreviar o parto através da extracçãofetal por cesariana. Mas mesmo este conclui não ser possível afirmar que a opção pela cesarianaevitasse o resultado, tanto mais que existiria potencial factor infeccioso de agressão/fragilizaçãocujo tempo de actuação e gravidade não tem elementos para apreciar objectivamente.Os restantes juízos de ordem técnica e testemunhal indicam que terão sido cumpridos osprotocolos e práticas médicas instituídas por parte dos arguidos e de acordo com os actuaisconhecimentos da medicina, sendo que no que concerne ao SAM, existem poucas certezas dequais serão os factores potenciadores e de prevenção, havendo apenas indicadores queaumentam a sua probabilidade.Não podemos deixar de salientar também, à imagem dos depoimentos prestados pelos médicosouvidos no processo, estranheza pela ausência de autópsia. Apenas esta, eventualmenteacompanhada do estudo da placenta, permitiria chegar a um diagnóstico com algum carácter decerteza quanto à causa da morte. De facto, devendo-se a mesma a asfixia, o que significa que ooxigénio não chegou aos órgãos vitais do C em tempo útil, fica por explicar com algum grau decerteza o que provocou tal asfixia. Das declarações, relatórios e depoimentos constantes doprocesso podemos alvitrar várias hipóteses (ex. maior tempo de gestação, perda líquidoamniótico pelo menos desde o dia 10/05/2007, infecção em curso de origem indeterminada,fenómeno compressivo durante o período expulsivo, insuficiência da placenta e do cordãoumbilical) sendo a aspiração de mecónio apenas a mais visível. No entanto, tendo sido detectadomecónio apenas após a extracção da cabeça.De igual forma, os arguidos apenas tomaram contacto com a parturiente no dia 12, pela manhã,aquando do início do trabalho de parto, não lhe sendo então dado conhecimento de eventuaisfactores que levassem a interpretar o traçado pouco tranquilizador do CTG de outra forma (porexemplo, perda de águas desde dia 10/5, suspeita de tempo de gestação superior ou suspeita deinsuficiência placentar por força do parâmetro de fluxometria da artéria umbilical comresistência aumentada). Dos elementos juntos aos autos, também não podemos concluir que oparto por cesariana evite o SAM.Facto incontornável é que o bebé nasceu envolto em mecónio espesso e veio a falecer emconsequência de asfixia. Não tendo sido detectado mecónio antes da extracção da cabeça,estando anotada a saída de LAC e as desacelerações do CTG de rápida recuperação, nãoexistiriam sinais de sofrimento fetal inequívocos. Cumpre ainda salientar, que tendo o fetomeconiado é indicador de que poderia estar em sofrimento, mas cuja causa permanecerá, assim,indeterminada, em face da opção de não realização de autópsia.

*Posto isto o tribunal considera suficientemente indiciada apenas a seguinte factualidade de entrea alegada com relevo para a decisão:- No dia 12 de Maio de 2007, pelas 07H41m., D deu entrada no banco de urgência do Hospitaldo Espírito Santo, em Évora, estando grávida de 39 semanas e seis dias, com queixas de dores eperda se sangue.- A mesma utente já se havia dirigido a tais serviços de urgência hospitalar nos dias 9 e 11 deMaio anteriores, com queixas de dores e perdas de líquidos.- Os arguidos A e B são médicos com a especialidade de ginecologia-obstetrícia e no dia 12 deMaio de 2007, de manhã, entraram de serviço, em equipa, no banco de urgência daqueleHospital.- Após entrarem ao serviço, receberam a utente D dos colegas que renderam no turno anterior,verificando que a mesma se encontrava a ser monitorizada com C.T.G..- Procederam então à sua observação, realizando “toque” e ecografia, constatando que o líquidoamniótico estava diminuído e o C.T.G. apresentava um traçado pouco tranquilizador, sendo ascontracções irregulares.- Nessa sequência, cerca das 9H30, os arguidos decidiram internar a utente D considerando queestava em início de trabalho de parto, tendo queixas de dores e contracções e existiam dúvidasquanto à integridade das membranas, pois referiu não ter perdido líquido e tal não foi entãodetectado, não se tocando bolsa de águas. Mais requisitaram análises sanguíneas para eventualviabilização de epidural.- A situação da utente D continuou a ser acompanhada e analisada pelos dois arguidos, enquantoequipa médica de urgência hospitalar em ginecologia-obstetrícia.- Pelas 10H20, os arguidos decidiram iniciar a estimulação farmacológica de contracções

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uterinas da utente com a administração de occitocina.- Pelas 10H45m, verificaram-se súbitas desacelerações cardíacas do feto, as quais ficaramregistadas no C.T.G., pelo que se suspendeu tal perfusão occitócica.- Pelas 11H15m, as desacelerações eram variáveis, pelo que foi ministrado oxigénio à utente D.- Pelas 11H20, o arguido A procedeu a nova observação da utente D, tendo referido que amesma tinha 5 cm de dilatação.- Pelas 11H40 repetiram-se desacelerações variáveis da frequência cardíaca fetal, mas nuncainferiores a 95 b.c.m.- Aquando das maiores desacelerações detectadas no CTG neste período, foi assinalado CTG ediário de enfermagem manobras da grávida (mobilização, higiene, toque).- Como entretanto não se havia verificando evolução significativa da dilatação do colo do útero,pelas 12H15, os arguidos decidiram reiniciar a estimulação farmacológica das contracçõesuterinas com perfusão occitócica.- Foi então detectado líquido amniótico claro (LAC) no resguardo.- Pelas 12H30, entrou-se na fase activa do trabalho de parto.- Nesta fase, a arguida A não logrou romper a bolsa de águas da utente D.- Entretanto, chegaram os resultados das análises sanguíneas requisitadas à utente D, indicandopossível processo infeccioso em curso, atentos os elevados níveis de leucócitos e de proteína Creactiva detectados.- Foi-lhe administrado antibiótico.- Pelas 13H10m. e 14H15m., verificaram-se novos episódios de desacelerações da frequênciacardíaca fetal, que não baixaram para além dos 110 b.c.m., com variabilidade mais reduzida,estando a dilatação do colo do útero nos 5 cm.- Durante este período, os arguidos mantiveram a perfusão occitócica com intuito de regularizaras contracções uterinas da utente Simone e realizar o parto por via vaginal.- Cerca das 14H15 minutos, verifica-se uma evolução rápida da dilatação uterina, ficandocompleta pelas 15H05, entrando na fase final de trabalho de parto.- O parto decorreu com aplicação de ventosas mas a expulsão do feto teve lugar de formaespontânea e após episiotomia.- Sucedeu que o feto nasceu envolto em mecónio, que existia em grande quantidade e queaspirou, provavelmente durante a expulsão.- O nascimento do C ocorreu pelas 15H24m.- O nascituro estava deprimido e teve de ser reanimado com recurso a entubação endotraqueal einternado nos cuidados de neonatologia do Hospital do Espírito Santo.- A reanimação e entubação do C pese embora se tenha iniciado de imediato após a extracção,foi de difícil execução, tendo sido detectados batimentos cardíacos só após 20 minutos.- O C apresentava acidose metabólica, encefalopatia neonatal grave, insuficiência renal efalência multiorgânica, sendo o seu estado considerado muito grave.- Em consequência directa e necessária destes problemas, acabou por falecer no dia 15 de Maiode 2007, pelas 15H10m., indicando-se no certificado de óbito como causa da morte asfixiaperinatal, por aspiração de mecónio espesso durante os trabalhos de parto.

Não se mostra suficientemente indiciada, em nosso entender, a factualidade incompatível com aacima referida, nomeadamente:- Que o traçado do C.T.G fosse irregular.- Que às 11H15 as desacelerações detectadas no CTG chegaram a 60 b.c.m.- que o feto tenha aspirado mecónio durante os trabalhos de parto.- Que a monitorização do feto foi suspensa pelas 14H15 min.- Que os arguidos mantiveram aquelas decisões, não despistando eventual sofrimento do fetonem ponderando correctamente os riscos advenientes da opção de continuarem a insistir numparto nem ponderando correctamente os riscos advenientes da opção de continuarem a insistirnum parto por via vaginal com perfusão occitócica, nomeadamente após as variações detectadasno C.T.G. e sem evolução correspondente na dilatação uterina de D, não fazendo correctaavaliação da situação.- Se acaso tivessem reportado diversa análise, suspendendo definitivamente a perfusãooccitócica e abreviando o parto de C, procedendo à extracção fetal por cesariana, logo quedetectados aqueles sinais, o que poderiam ter feito e estava ao seu alcance, constituindo as boaspráticas médicas a observar naquele caso, poderiam ter evitado o seu falecimento.- Cada um dos arguidos agiu de forma livre.- Não actuaram com os cuidados que a situação impunha, fazendo uma desadequada análise dasituação da utente D e do estado fetal.

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- À revelia das boas práticas e técnicas médicas, optaram e insistiram por fazer um parto por viavaginal, estimulando farmacologicamente as contracções uterinas da parturiente, quando oselementos disponíveis indicavam que o feto estaria em sofrimento, com grande variabilidade dafunção cardíaca, sendo os riscos infecciosos elevados.- Todavia, podendo e devendo actuar de modo diferente, suspendendo a estimulaçãofarmacológica das contracções e abreviando o parto com recurso a cesariana, actuaram da formadescrita, não ignorando as previsíveis complicações decorrentes de um parto vaginal naquelasituação concreta e a consequente morte de C, situação que esperavam conseguir evitar.- Cada um dos arguidos sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.*Inexistem, pois, a nosso ver, indícios probatórios suficientes que permitam concluir pela práticapelos arguidos A e B, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137.º e15.º, do Código Penal.Terminaremos, pelo acima exposto, com a decisão de não pronúncia.

*V. DISPOSITIVO:Nestes termos e demais de direito, por considerar que da prova recolhida nos autos não existemindícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de umapena aos arguidos B e A, decide-se não os pronunciar pela prática de um crime de homicídiopor negligência.

*Sem custas. Notifique.(…)”.---

IV

Sabido é que, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou dearquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – cfr. artigo 286º, nº 1,do Código de Processo Penal –, sendo formada pelo conjunto de actos que o juiz entenda levar acabo, e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório, findo o qual o juizprofere despacho de pronúncia ou de não pronúncia – cfr. artigos 288º, nº 1, 289º, nº 1, 290º, nº1 e 307º, nº 1, do citado Código.---De acordo com o disposto no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, “Se até aoencerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado ospressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida desegurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário,profere despacho de não pronúncia.”.---Sobre o que seja o conteúdo de “indícios suficientes” alude, desde logo, o artigo 283º, nº 2, doCódigo de Processo Penal, estatuindo que “Consideram-se suficientes os indícios sempre quedeles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, emjulgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.--- A doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado abundantemente sobre o que deve entender-sepor “indícios suficientes”.---Assim, ensina o Prof. Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, vol. I, Coimbra Ed.,1984, pág. 133, que “(…) os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em facedeles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando estaseja mais provável que a absolvição.”.---No mesmo sentido vai o ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de ProcessoPenal”, vol. III, Verbo, 1994, pág. 182 e 183, ao afirmar que “(…) o juiz só deve pronunciar oarguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentidode que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido (…).A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivofundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito ena instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que oarguido seja responsável pelos factos da acusação (…). Para a pronúncia, como para acusação, alei não exige, pois, a prova no sentido de certeza moral da existência de um crime, basta-se coma existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicçãode que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido (…).”.---Note-se, até, que alguma doutrina recente – entre outros, Jorge Noronha e Silveira, “O Conceitode Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, in Jornadas de Direito Processual Penal eDireitos Fundamentais, coord. Prof, Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 171 – vem

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defendendo uma maior exigência quanto à suficiência dos indícios, sustentando que esta não sebasta com a maior possibilidade de condenação do que de absolvição, mas antes “(…) devepressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.”.---A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indíciossuficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo daprova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr.entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25.06.1988, no B.M.J. nº 378,pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.1992, no processo nº 427747, cit. em“Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e doTribunal da Relação de Évora de 22.06.1993, no B.M.J. nº 428, pág. 706. Isto é, os indíciossuficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si,conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.---Na consideração do que se deixa exposto, não pode deixar de se ter presente que a sujeição dealguém a julgamento é, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição daRepública Portuguesa, Anotada”, vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Ed., 2007, pág. 522, “(…) já de si,um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame.”.---Ou, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.06.2006, no processo06P2315, disponível em www.dgsi.pt.jstj, “a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmoque a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista dassuas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre umincómodo, se não mesmo um vexame.Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente anecessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade deprotecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardadosna Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidadeconstitucional, como é o caso da Liberdade (artº 3º daquela Declaração e 27º da Constituição daRepública).E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidaderazoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só devepronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a suaconvicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o nãotenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futuracondenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que deabsolvição» (…).”.---Acresce que, quando a atribuição de credibilidade de uma dada fonte de prova se baseia numaopção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercercensura se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende as regras daexperiência comum por contrariar as regras da lógica, os princípios da experiência e osconhecimentos científicos, ou quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou deobtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida, ou quando o tribunal valorou meios deprova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando asregras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou, ainda, quando a apreciação serevela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.---Postos estes considerandos, ressalvado o sempre muito e devido respeito pelo esforçoargumentativo do Digno recorrente, que funda a sua discordância do decidido alegando, emsíntese, que [a)] a causa da morte de C está inequivocamente demonstrada e que [b)] os arguidosnão deram cumprimento adequado às leges artis, ao não terem avaliado a evolução do trabalhode parto da parturiente de forma correcta, quer pela medicação que prescreveram, quer pelaanálise do traçado cardiotocográfico (CTG), quer pela opção pelo parto natural (via vaginal),não tendo ainda tido o cuidado de apurar sobre os diagnósticos e avaliações feitas à parturienteem anteriores episódios de urgência, e, assim, com tal actuação, contribuindo e potenciando orisco de ocorrência do fenómeno da Síndrome de Aspiração de Mecónio (SAM) determinante damorte por encefalopatia hipoxico-isquémica devida a asfixia perinatal de C, afigura-se-nos nãolhe assistir razão.-Na verdade, da compulsa dos autos e como bem salienta a decisão revidenda no excurso cuidadoe minucioso que efectua sobre os meios de obtenção de prova e meios de prova produzidos eminquérito e em instrução, dos pareceres e elementos periciais e técnico-científicos juntos aosautos e bem assim do teor das declarações e depoimentos prestados, somos do entendimento quea prova recolhida não consente, por um lado, a afirmação, como vertida no libelo acusatório que,indiscutivelmente e para além de qualquer dúvida razoável, a causa da morte, que se nãoquestiona (nem na decisão revidenda) ter sido por encefalopatia hipoxico-isquemica devida a

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asfixia perinatal – cfr. ainda certificado de óbito fetal e neo-natal constante de fls. 10 dos autos–, outrossim o que se equaciona, na senda do teor daquela prova recolhida e de que a decisãorevidenda dá nota e apreciação, é que esta, a asfixia perinatal, tenha sido devida inequívoca eclaramente a aspiração de líquido meconial aquando da exteriorização da cabeça, no processoexpulsivo, na altura do parto, ou se tal asfixia grave não se terá iniciado in utero, e não se possafiliar em outras causas como maior tempo de gestação, perda de líquido amniótico anterior,processo infeccioso em curso, fenómeno compressivo durante o período expulsivo, insuficiênciada placenta e do cordão umbilical, sendo que um tal esclarecimento apenas com exameanatomo-patológico da placenta e autópsia fetal se poderia alcançar.---É o que decorre à evidência do teor da citada prova, não correspondendo, por conseguinte, anenhuma “ligeireza e facilidade” (cfr. conclusão 6ª da peça recursiva) a apreciação que a estepropósito a decisão revidenda efectua, antes espelha o afirmado naqueles pareceres, declaraçõese depoimentos, que a mesma, aliás, com elevada correcção transcreve e que, por isso, nosdispensamos de repetir, in totum, apenas salientando, de entre tais provas recolhidas, asdeclarações prestadas pelo Srº Drº I, perito na valência de Obstetrícia e que instruiu o processode Inquérito que teve lugar na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, constante de fls. 315a 366 e 583 a 852, que afirma “A causa da morte aparente do RN deverá estar relacionada com aaspiração de mecónio na altura do parto, com a consequente asfixia. Outra causas não parecemplausíveis com os elementos de que dispomos, dado que também não foi realizada autópsia nemestudo da placenta. (…) Dados os diagnósticos propostos pela Pediatria e pela Obstetríciaimpunha-se a realização de autópsia e também do estudo histológico da placenta, a fim de sepoder concluir, com segurança, qual a causa provável da morte.”, o teor do Parecer do Colégioda Especialidade e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, constante de fls. 905 a 910, onde se podeler “(…) a hipótese de um feto já parcialmente comprometido aquando do início do trabalho departo não é de excluir e para essa hipótese poderão ter concorrido: 1- a possibilidade, expressaem ecografia efectuada às 33 semanas e 4 dias, de se poder tratar de uma gravidez com maistempo e a referência na mesma a Fluxometria da artéria umbilical como “sinal premonitório defutura insuficiência placentar colocando a grávida em situação de gravidez considerada como derisco acrescido”; 2- a perda de liquido amniótico no domicílio, por rotura de membranasprolongada (> de 24 horas), desvalorizada pela grávida que não o referiu aqueles médicos ou àsparteiras durante o trabalho de parto, nem o transmitiu aos outros quando recorreu à urgência,quer no dia 10/05/2007, quer no dia 11/05/2007. (…). Disso terá resultado oligoâmniosprogressivo e comprometimento da circulação feto-placentar, por eventual compressão do fetoe/ou do cordão umbilical, ao longo do trabalho de parto a que se associou provável infecçãoamniótica, resultante da rotura prolongada de membranas, sem outra manifestação clínicaexcepto, leucocitose e PCR aumentada, os quais poderiam ser atribuídos a outra fonte deinfecção, nomeadamente urinária (…) Na ausência dos elementos adicionais que o exameanatomo-patológico da placenta e a autópsia fetal poderiam vir a esclarecer, nunca será possívelimputar com certeza absoluta, toda a responsabilidade do quadro de hipoxia fetal só à deficienteinterpretação do traçado cardiotocográfico.”, o teor do Parecer técnico subscrito pelo Srº Drº L,junto a fls. 555 a 558, “No caso em apreço não foi detectado, antes da expulsão da cabeça, apresença de qualquer sinal inequívoco de sofrimento fetal, que impusesse a imediata realizaçãoda cesariana. Impunha-se a imediata opção por cesariana caso as desacelerações detectadas noCTG fossem frequentes, de recuperação lenta, fosse detectado durante o TP mecónio ou agrávida apresentasse hemorragia. No que respeita ao mecónio, impunha-se a cesariana caso estefosse detectado aos 3 ou 4 cm de dilatação. Caso já só fosse detectado, por ex., com 9 cm dedilatação, o correcto seria acelerar o parto eutócico, por ex. com recurso a ventosa ou fórceps,por ser mais rápido do que ir nessa fase para cesariana. Com os elementos clínicos disponíveis,entende que o mais provável é existir um problema de placenta ou cordão umbilical quedeterminou a falência orgânica do bebé. Conclui que a realização da cesariana não garantiria umdesfecho final diferente. Mais refere este clínico que as medidas que os arguidos tomaram foramas indicadas ao quadro clínico e que estando perante um feto aparentemente sem sinais de máformação e que faleceu após o parto, impunha-se obrigatoriamente a realização da autópsia.”, odepoimento da Srª Drª O, assistente graduada em Ginecologia e Obstetrícia, em serviço noHospital do Espírito Santo de Évora que, inquirida em sede de instrução, como podemoscomprovar pela audição do respectivo suporte magnetofónico, afirma como constante da decisãorevidenda, “(…)Nada do que viu nos registos fazia prever que aquele feto não ia nascer bem e iamorrer, à luz dos conhecimentos médicos actuais. Não tendo sido o feto autopsiado nem aplacenta estudada, podemos colocar várias hipóteses de causa de morte, mas não fazer umdiagnóstico.”, o depoimento da Srª Drª Q, médica pediatra e neonatologista, que assistiu aoparto, inquirida em inquérito, a fls. 149 a 151, afirma “(…) o bebé nasceu impregnado em

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mecónio e sem sinais de vida aparente, o coração não batia, não respirava, não haviamovimentos. O bebé terá sofrido asfixia iniciada in útero mas pensa que não terá tido umaaspiração maciça de mecónio nas vias respiratórias, pois o raio-x não o indicou, a asfixia terásido provocada por qualquer outro factor (infecção/doença materna, ruptura prolongada dasmembranas, alterações placentares, entre outras), como muitas vezes acontece. (…) nos partospor cesariana também podem ocorrer asfixias dos recém-nascidos.”, e o depoimento da Srª DrªR, médica pediatra com a sub-especialidade em neonatologia e que ouvida em inquérito, a fls.151 a 155, diz “(…) tomou contacto com o bebé cerca das 20h.00m. depois de o mesmo ternascido. Era um bébé que estava ventilado, com convulsões, e que não urinava, tendo umprognóstico muito reservado. A causa de tal estado terá sido asfixia; aquando do nascimento foifeita uma avaliação ao bebé, revelando um índice de APGAR muito baixo, tudo indicando queterá havido a asfixia antes de o mesmo nascer ou eventualmente durante o trabalho de parto. Asprobabilidades de o bebé sobreviver eram baixas, nomeadamente porque a parte renal estavaafectada. Normalmente, quando há uma asfixia tenta-se saber se há algumas causas que tenhamtratamento, por exemplo uma infecção, seguindo-se depois a intervenção segundo as regrasnormais do caso. Em concreto, pensa que não se chegou a concluir sobre a causalidade daasfixia. Este tipo de problemas (asfixia) tanto podem surgir num parto eutócico como num partopor via alta (cesariana) ou com recurso a ventosas, tendo de haver uma avaliação anterior paraprecaver e planear qual o parto mais adequado. Por isso, não se pode estabelecer qualquer nexoentre o tipo de parto e eventual asfixia. O bebé tinha mecónio muito espesso, pelo que issosignificaria que estava em sofrimento, mas, com a aspiração, essa situação foi ultrapassada, peloque não terá sido a entrada desse líquido nos pulmões a contribuir para a asfixia. Na verdade, otermo asfixia não significa necessariamente que o bebé tenha deixado de respirar mas antes queo oxigénio não chegou aos órgãos essenciais e isso poderá ter acontecido antes da expulsão.”.--- Por outro, a prova recolhida também não consente a afirmação da suficiente indiciação deviolação das leges artis por banda dos arguidos. Em rigor, como bem salienta a decisãorevidenda, apenas o Parecer técnico-cientifico elaborado pelo Instituto de Medicina Legal, I.P., esubscrito pelo Srº Professor Doutor H, a afirma e, contudo, em termos que estão longe de sepoderem considerar conclusivos, seguros e, sobremaneira, conducentes à segura e inequívocaafirmação de que foi pela violação das leges artis pelos arguidos que o resultado verificadoocorreu e/ou foi potenciado. Recorde-se o que a tal propósito naquele parecer se consignou:“(…) não é possível afirmar em absoluto que os procedimentos não conformes às leges artisidentificados (uma vez que o CTG evidenciou características anormais - em alguns períodosclaramente patológicas, particularmente após as duas iniciativas de estimulação das contracçõesuterinas com occitocina - cerca das 10H20 e 12h15 - e não se verificou evolução significativa dadilatação do colo do útero entre o primeiro período de alterações mais graves do CTG - 10h45 e14H15 - e a existência de risco infeccioso sugerido pela rotura de membranas e resultados dasanálises laboratoriais, que imporiam, perante tal quadro, dever ter sido ponderada a necessidadede suspender definitivamente a administração de occitocina e abreviar o parto através daextracção fetal por cesariana), sejam causa necessária e suficiente para produzir os efeitosverificados no recém-nascido ou que, noutra perspectiva, tal desfecho fosse garantidamenteevitado por orientação diversa. Esta cautela é tanto mais de ponderar quanto existe um potencialfactor infeccioso de agressão/fragilização cujo tempo de actuação e gravidade não pode apreciarobjectivamente. Conclui-se, antes, que houve algumas condutas inadequadas e que é admissívelque actuação diferente pudesse ter evitado ou contribuído para minorar a situaçãoposteriormente verificada.” – (cfr. fls. 276 a 280). Contudo, todos os restantes pareceres eelementos periciais e técnico-científicos juntos aos autos e toda a de mais prova por declaraçõese depoimentos (repete-se, devidamente explanada e examinada na decisão revidenda) afirmaminequívoca e claramente o contrário, refutando também o que ali se afirma no tocante àsuspensão da administração de occitocina, à dilatação do colo do útero, à interpretação dasalterações do traçado cardiotocográfico (CTG) e à opção por cesareana. Outrossim concluem,como no Inquérito da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, já aludido, “(…) que oprocedimento Hospitalar em relação à Srª D foi no geral correcto.”, ou, como no acima citadoParecer do Colégio da Especialidade e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, foram tomadas “(…)as medidas e realizou os procedimentos com base nos elementos que dispunha, não sendopossível afirmar que outros pudessem alterar o mau desfecho perinatal.”.--- Aos arguidos é imputada a prática, em autoria material, de um crime de homicídio pornegligência p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal, que dispõe “Quem matar outrapessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.---Estamos perante um tipo de crime negligente e sabido é que este tipo de crimes tem comocaracterística o facto de a conduta típica não aparecer definida na lei. São tipos abertos, cabendo

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à jurisprudência completá-los.---A nossa lei penal giza um conceito de negligência ao estatuir no seu artigo 15º, que “Age comnegligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estáobrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preencheum tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer arepresentar a possibilidade de realização do facto.”.---Assim, de acordo com citado preceito legal, são elementos estruturantes da negligência, (i) aviolação do dever objectivo de cuidado (falta de cuidado), (ii) a previsão ou previsibilidade dofacto ilícito como possível consequência da conduta (representação ou representabilidade dofacto) e (iii) a não aceitação do resultado.--- Neste tipo de crimes, contrariamente ao que acontece nos tipos dolosos, continua a discutir-se sedeve distinguir-se entre um tipo objectivo e um tipo subjectivo de ilícito.---A este propósito Teresa Beleza, in “Direito Penal”, A.A.F.D.L., vol. II, pág. 573, citandoFragoso e Stratenwerth, refere, “O que é característico dos crimes negligentes, ao contrário doscrimes dolosos, é justamente a incongruência entre a situação objectiva e a situação subjectiva.Na negligência, a pessoa não representa uma situação objectiva, ou se a representa como umapossibilidade, não se convence dela, e, portanto, essa incongruência, essa oposição, essacontradição entre a realidade objectiva e a representação duma pessoa é justamente aquilo que écaracterístico dos crimes negligentes; e por isso talvez não se deva falar no elemento subjectivodo tipo de crime”.---Em termos dogmáticos a negligência tem sido tratada de diversas formas pelas diversas teoriasque foram sendo construídas, sempre dentro da concepção tripartida de crime enquanto acçãotípica, ilícita e culposa.---Para a escola clássica (Liszt-Beling) a negligência tal como o dolo, são apenas formas de culpa.Entendia-se a culpa como uma ligação psicológica entre o facto e o agente. Na negligênciaconsciente não é difícil admitir esta ligação, na medida em que pode não se ter pretendido umcerto resultado, mas não se teve o cuidado de o evitar, prevendo-o ou podendo-o prever. Estateoria, contudo, terá muita dificuldade em explicar a negligência inconsciente, uma vez quenesta faltará, inevitavelmente, a ligação psicológica entre o agente e o facto.---O sistema neo-clássico baseado nas ideias do neo-kantismo, introduz um conceito normativo deculpa, no sentido de que culpa é censurabilidade. Tenta ultrapassar a dificuldade da ligaçãopsicológica entre o agente e o facto, dizendo que a essência da culpa está na censurabilidade doacto. Ou seja, a ligação psicológica entre o agente e o facto e um resultado que se pretendeatingir, é apenas um juízo de culpa que pode nem existir no caso da negligência consciente.---Por último, o sistema finalista parte de um conceito de acção final dirigida para um fim, pré-ordenado mentalmente. Esta concepção afasta os elementos psicológicos da culpa que sãoabsorvidos na análise da tipicidade. Ou seja, a culpa é um juízo de censura, mas fundado apenasem elementos normativos. A valoração é apenas formal.---Hoje, é doutrina dominante, que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa. Istoé, como violação de um dever de cuidado objectivo, faz parte do tipo de ilícito, comocensurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Tal é,aliás, consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no mencionado artigo 15º,do Código Penal, ao estatuir, que “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidadoa que, segundo as circunstâncias, está obrigado (...)”, isto é, violação do cuidado objectivamentedevido, que corresponde ao tipo de ilícito e “(...) e de que é capaz”, ou seja, capacidadeinstrumental (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimentoe capacidades pessoais), que corresponde ao tipo de culpa – cfr. no mesmo sentido ProfessorFigueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 352.---Também Jorge Barreiro, em “La imprudencia punible”, citado por Tomás Garcia Hernandez, ob.cit. pág. 141, entende que “É necessário distinguir entre as características da conduta contrária ànorma de cuidado (problema do tipo de ilícito) e a capacidade individual de evitar essa conduta(questão da culpabilidade)”.--- Tem, assim, que haver sempre a violação de um dever de cuidado e capacidade instrumental.Esta capacidade instrumental é a capacidade que detém o “homem médio”. Em termos deprevisibilidade de um certo resultado, teremos de analisar não só aquilo que é previsível eevitável para a generalidade das pessoas, mas também se para aquela pessoa em concreto, eraprevisível e evitável que um certo acontecimento se desse.---Assim, seguindo de perto, o Professor Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 353 e 354, podemos dizerque, legalmente imposta pelo artigo 15º, do Código Penal, a opinião largamente maioritária dadogmática do crime negligente é a chamada doutrina do “duplo escalão”, que se exprime: a)Pelo tipo de ilícito do facto negligente: “(...) considera-se preenchido por um comportamento

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sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo parabens jurídico-penalmente relevantes, para desse modo se evitar uma violação juridicamenteindesejada. (...) Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por partedo agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produçãodo resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para ohomem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoriaintelectual e social do círculo de vida do agente; b) Pelo tipo de culpa do facto negligente: que seconsidera preenchido quando se conclui que “(...) o mandato geral de cuidado e previsão podiatambém ser cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades “individuais”,isto é, rigorosamente, da inteligência, da formação e da experiência de vida dos homens comoagente agindo na circunstância.”.----Do exposto flui que o elemento que confere especificidade ao tipo de ilícito é a “violaçãoobjectiva de um dever de cuidado” ou, no dizer de Claus Roxin, citado pelo ProfessorFigueiredo Dias, na ob. e loc. cit., pág. 355, a “criação pelo agente, de um perigo nãopermitido”.----Utilizando uma ou outra formulação, o que está em causa neste tipo de crime é o “desvalor daacção” ao qual acrescerá o “desvalor do resultado”, traduzido na produção, causação eprevisibilidade daquele.---O resultado é o efeito danoso para a vítima. Entre a conduta inicial, infractora do dever decuidado e o resultado produzido tem de haver um nexo causal.---Este nexo deve ser conforme aos critérios da teoria da causalidade adequada – “(...) para que sepossa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção não basta que arealização concreta daquele se não possa conceber sem esta: é necessário que, em abstracto, aacção seja idónea para causar o resultado. (...) O processo lógico deve ser o de uma prognosepóstuma, ou seja de um juízo de idoneidade, referido ao momento em que uma acção se realiza,como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, isto é, o de um juízo «ex ante»(...) segundo as leis, as regras gerais da experiência comum aplicado às circunstâncias concretasda situação.” – cfr. Professor Eduardo Correia, “Direito Criminal”, vol. I, Almedina, 2001,(reimpressão), pág. 258.---Como supra se deixou expendido, as diversas teorias sobre a negligência foram construídasdentro da concepção tripartida de crime enquanto acção típica, ilícita e culposa. No queconcerne à acção, comissiva ou por omissão, o fundamento de todo o facto punível é umcomportamento humano voluntário socialmente relevante, traduzido numa violação do deverobjectivo de cuidado, dever esse que pode ser de ordem legal, regulamentar, profissional ou demera experiência. Depois é necessário um nexo causal entre esse comportamento e o resultado e,finalmente, pressupõe-se ainda a ausência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.---Artilhados com estes critérios operativos gerais, no que se reporta à problemática da negligênciamédica, conforme ensina Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in “Responsabilidade Médica emDireito Penal – Estudos dos Pressupostos Sistemáticos”, Almedina, 2007, pág. 272 e 273, “(…)importa reter duas notas axiomáticas em matéria de responsabilidade penal médica pornegligência. Prima: Apenas existirá responsabilidade criminal do médico a título de negligência,se este realizar um tipo de ilícito penal. Isto significa, desde logo, que por maior que seja agravidade da imprudência ou da indolência do médico, da sua imperícia ou desconsideração, emsuma da sua negligência (violação do dever objectivo de cuidado) ele não responderácriminalmente pela sua acção ou omissão, se a sua conduta não estiver tipificada na lei. Como sesabe, inexiste entre nós um crimen culpae, havendo antes crimina culposa. Nas palavras deEnrique Bacigalupo, e no que concerne à lesão da integridade física ou da vida «no apuramentoda responsabilidade criminal do médico por negligência, a questão consiste na determinação dascondições, sob as quais, qualquer lesão ou o resultado morte, provenientes de um tratamentomédico, pode considerar-se subsumível na previsão do delito de ofensas à integridade física(lesiones) ou de homicídio». É por isso que, nem toda a violação das leges artis ou mesmo deerro médico se traduz na negligência médica penalmente relevante, pois terá de ser consequênciade violação do dever de cuidado objectivo (art.º 15º do Código Penal) ou, na discursividadejurídico-penal da moderna teoria da imputação objectiva, ter criado um risco não permitido(verboten Risiko), que se concretizou no resultado lesivo e que cabe no âmbito da tutela danorma que proíbe ou impõe a conduta. Secunda: Por outro lado, importará ter sempre emconsideração que, de acordo com o disposto no artigo 13.º do nosso compêndio legislativopenal, só é punível o facto praticado com negligência, nos casos especialmente previstos na lei,pelo que ainda que o comportamento do médico, se fosse doloso, se inscrevesse na previsão deum ilícito típico, tal não significa automaticamente que a mesma conduta, praticada comnegligência, seja criminosa.”.---

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Volvendo ao caso em apreço, vejamos em que se traduzirá a violação do dever objectivo decuidado, tendo em atenção que se trata de um domínio altamente especializado, que importaespeciais riscos para bens jurídicos de elevado valor, como sejam a vida e a integridade física.---O Código Deontológico da Ordem dos Médicos estabelece no seu artigo 1º que “A DeontologiaMédica é o conjunto de regras de natureza ética que, com carácter de permanência e a necessáriaadequação histórica na sua formulação, o Médico deve observar e em que se deve inspirar noexercício da sua actividade.”. Por outro lado, o artigo 26º, do mesmo Código Deontológicopreceitua que “O Médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-sepor esse facto à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance (...)”.---Quanto ao conceito de leges artis é definido por Tomás García Hernandez, in “Elementos DeDerecho Sanitario En La Responsabilida Civil y Penal De Los Méddicos Por Mala Praxis”,Edisofer SL. Madrid, 2002, pág. 24, como sendo “(...) a aplicação das regras gerais médicas acasos iguais ou equivalentes, ou a actuação conforme com o cuidado objectivamente devido. Aleges artis não compreende situações não estudadas, não conhecidas ou imprevistas da ciênciamédica. Uma das condições da leges artis é que qualquer médico actue de igual forma nasmesmas condições. Sempre com salvaguarda da sua liberdade profissional.”.---Na actividade médica, a questão que se coloca é saber como se determina esse “cuidadoobjectivamente devido”.---Para tanto, importa ter presente o que caracteriza qualquer actividade médica normal, seguindoaqui de perto a enunciação avançada por Maria de Fátima Galhardas, em Revista “Sub-Judice”,nº 11, Janeiro/Junho de 1996, pág. 163 a 166, no seu artigo denominado “Negligência Médicano Código Penal Revisto”, que analisa esta actividade em quatro fases essenciais e sucessivas, asaber: “- a fase da anamnese: reportada ao historial clínico do doente e que tem a ver com umdever de preparação e informação prévio; - a fase do diagnóstico: é o momento central daactividade típica do profissional médico, que pressupõe a recolha de todos os dadosanamnésticos, a interpretação de todos os sintomas clínicos manifestados pelo doente, o usooportuno dos chamados meios auxiliares de diagnóstico, a correcta valoração dos resultadosobtidos dessas investigações, o conhecimento dos diversos quadros nosográficos - quedescrevem, diferenciam e classificam as doenças - esquematizados pela patologia e suasmúltiplas variantes, de acordo com a experiência clínica; - a fase do prognóstico: a antevisão, namedida do possível, sobre o decurso e o desenlace futuro da doença; - a fase de execução dotratamento: traduzindo a aplicação concreta da terapia escolhida, com a perícia e o cuidadonecessários a alcançar, ou pelo menos potenciar, o fim médico visado; e, finalmente, - a fasepos-operatória: fase eventual especifica da actividade médico-cirúrgica, fase de controlo evigilância do processo subsequente ao acto cirúrgico.”.--- Na actividade médica recai sobre o médico uma “obrigação de meios”. O médico obriga-seexclusivamente a desempenhar a sua actividade com diligência e de acordo com a leges artis,sem que se garanta um resultado concreto, como seria a cura do doente, o que se garante é oemprego dos actos médicos necessários – cfr. Tomás Garcia Hernandez, ob. cit., pág. 21.---“A prática da medicina é muito complexa. O diagnóstico é o resultado de uma diligência lógicacerta, mas muitas vezes incerta, que pode chegar a uma situação de impasse. A terapêutica éconstituída, muitas vezes, por efeitos secundários dos medicamentos ou por técnicas queproduzem complicações inexplicáveis e que são, tantas vezes, ineficazes. Por tudo isso, aobrigação médica é, em regra geral, uma obrigação de meios e não uma obrigação deresultados.” – cfr. J.A. Espernça, ob. cit. pág. 116.---Esta “obrigação de meios”, atendendo aos especiais riscos para bens jurídicos de elevado valor,implica o esgotamento de todas as possibilidades oferecidas pelo conhecimento científico actual,ou seja, o médico tem a obrigação de utilizar todos os meios disponíveis, designadamente parafazer um diagnóstico correcto.---Postas estas considerações, retornando ao caso em apreço, afigura-se-nos manifesto, ressalvadoo devido respeito por melhor e diferente opinião, que criticamente analisada a prova indiciária,nada consente afirmar que os arguidos não só esgotaram os meios que tinham ao seu alcance,nomeadamente promovendo os exames (e interpretando os seus resultados), monitorizando eacompanhando a parturiente como imposto pelas leges artis, (não se olvidando o que a esterespeito nos ensina o Professor José Francisco de Faria e Costa, in “O Perigo em Direito Penal”,Coimbra Editora, 1992, pág. 529 e 530, de que “As regras do cuidado cristalizadas nas legesartis medicinae sem dúvida que são, primariamente regras de cuidado, na medida em que visamacautelar e defender os bens jurídicos que a ordem penal considera relevantes – sendo à luzdeste segmento de apreciação equivalentes às regras de cuidado mais simples do direitorodoviário ou ferroviário –, mas, para além disso, perfilam-se com uma densidade normativa quede modo algum pode ser ignorada, sob pena de, se assim se proceder, amputarmos uma parte

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substancial da realidade. Com efeito, as leges artis médicas visam, não só a manutenção ou anão diminuição dos bens jurídicos, como também prosseguem a finalidade de aumentarem essesmesmos bens jurídicos”), como, e assim não sendo entendido, a prova indiciária não consenteimputar aos arguidos o resultado verificado, a morte de C, posto que, nem indiciariamenteconsente o estabelecimento do nexo causal entre a conduta omissiva e o evento lesivo. Poroutras palavras, necessário seria que a prova recolhida quer em sede de inquérito, quer em sedede instrução, permitisse, e não o permite, a afirmação de que se mostra suficientementeindiciado que a conduta dos arguidos foi causa (ou potenciou) do evento lesivo, que as suascondutas se mostram aptas e adequadas a produzi-lo, directa ou indirectamente, e o próprioevento constitua o efeito daquela sua acção, não sendo aquele devido a factores excepcionais,e/ou imponderáveis e/ou imprevisíveis e/ou de ocorrência súbita e/ou inesperada mesmo paraum médico sábio e experiente e no estádio actual dos conhecimentos da medicina. Vale oexposto por se afirmar que, não só não seriam as leges artis alegadamente omitidas pelosarguidos que permitiriam obviar ao desfecho verificado, como o cumprimento das mesmas nãoobstaria à surpresa do resultado ocorrido.---Ora, como afirmado e decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 05.11.1997, inColectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano V, Tomo III,1997, pág. 227, “No homicídio por negligência, para que o resultado em que se materializa oilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica sendoindispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente; ouseja, a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta doagente e o evento ocorrido e serão relevantes não todas as condições, mas só aquelas quesegundo as máximas da experiência a normalidade do acontecer e portanto segundo o que é emgeral previsível são idóneas para produzir o resultado; consequências imprevisíveis ou deverificação rara serão juridicamente relevantes.”.---“Como é opinião dominante da generalidade da doutrina especializada, só se pode falar emilícito imprudente, quando a acção (conduta ou comportamento) se traduza na criação de umrisco não permitido (incremento ou potenciação de risco), previsível ou cognoscíve1 pelo agentee desde que se estabeleça a relevância jurídica penal de tal conduta, (que só existirá quando oresultado lhe for objectivamente imputável, isto é, quando se verifica um resultado danosomediante a actualização do risco. Em síntese: o risco será não permitido ou intolerado quandofor apto a causar lesão à vida ou integridade física do paciente e for exigível e possível ao agente(médico) a sua evitação. E, desta forma, só haverá negligência penal médica se a violação dodever geral objectivo de cuidado tiver criado um risco não permitido e se o resultado se plasmarna concretização ou actualização de tal risco cabendo no âmbito da protecção da norma” – cfr.Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, ob. e loc. citados, pág. 277 a 280.---Porque assim, em face de tudo o que se deixa exposto, a prova indiciária não consente aafirmação sobre a sua suficiência de tal sorte que crie a fundada convicção de que, no futuro, emjulgamento, é de considerar como altamente provável a formulação de um juízo de censurajurídico-penal dos arguidos, em razão de uma acção omissiva negligente dos factos/crime porque vêm acusados.---Outrossim, estamos certos, que “o debate amplo da prova em julgamento” redundaria naimpossibilidade de imputação dos elementos constitutivos do crime em que os arguidos semostram nos termos do libelo acusatório incursos.---Vale o exposto por se afirmar que, in casu, o Tribunal a quo motivou e objectivou o seuconvencimento expresso no relato dos factos que teve como suficiente e insuficientementeindiciados de forma inteiramente racionalizável, em que assumiu compreensível e inatacávelconjugação de indícios. E, não se vislumbra que o raciocínio desenvolvido e expresso na decisãorevidenda não seja objectivável e não haja respeitado o valor da prova quando vinculada, nemtenha observado as regras da lógica e princípios da experiência, enfim as regras da experiência,tudo de harmonia com o estatuído no artigo 127º, do Código de Processo Penal.---E, assim, impõe-se concluir que a decisão revidenda bem valorou todos os elementosprobatórios, em sintonia com as regras de experiência, ainda que indiciariamente, sem que sedetecte ter enveredado por convicção que não esteja devidamente fundamentada e, por isso,suficientemente objectivada e lógica, através de uma equilibrada ponderação.---Em suma, a decisão instrutória recorrida não merece, pois, qualquer censura, devendo sermantida nos seus precisos termos, com a consequente falta de provimento do recurso interpostopelo Digno Magistrado do Ministério Público.---

V

Decisão

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Nestes termos acordam em:---A) - Negar provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público e,consequentemente, manter a decisão recorrida de não pronúncia dos arguidos A e B pela prática,em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, doCódigo Penal.---B) – Não serem devidas custas.---

(Texto processado e integralmente revisto pela relatora)

Évora, 26 de Junho de 2012

Maria Filomena Valido Viegas de Paula SoaresAntónio Manuel Clemente Lima