acórdão do tribunal constitucional nº 472/89

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ACÓRDÃO N. o 472/89 [1] Processo: n.º 178/86. Plenário Relator: Conselheiro Martins da Fonseca. Acordam no Tribunal Constitucional: 1 — O Procurador-Geral da República ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, requereu ao Tribunal Constitucional a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade das normas dos artigos 86.º do Estatuto da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e 86.º do Regulamento Disciplinar da mesma Federação. Sustenta no seu pedido que as normas referidas negam aos desportistas federados e às demais entidades filiadas na FPF o acesso à via judiciária, abrangendo nesta «não só os tribunais judiciais, mas também os tribunais administrativos (estes chamados a apreciar o contencioso de anulação dos actos federativos praticados no exercício de prerrogativas de autoridade e no âmbito da execução de uma missão de serviço público, aqueles chamados a apreciar os demais casos a que se ligam consequências do foro civil, penal ou laboral, resultantes embora de actos sancionatórios das federações desportivas)». Resultam assim violados — conclui o requerente — o artigo 20.º, n.º 2, que consagra o princípio da tutela jurisdicional dos direitos, bem como o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, este concretização daquele primeiro princípio.

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Page 1: Acórdão do Tribunal Constitucional nº 472/89

ACÓRDÃO N.o 472/89 [1]

Processo: n.º 178/86.

Plenário

Relator: Conselheiro Martins da Fonseca.

Acordam no Tribunal Constitucional:

1 — O Procurador-Geral da República ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, requereu ao Tribunal Constitucional a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade das normas dos artigos 86.º do Estatuto da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e 86.º do Regulamento Disciplinar da mesma Federação.

Sustenta no seu pedido que as normas referidas negam aos desportistas federados e às demais entidades filiadas na FPF o acesso à via judiciária, abrangendo nesta «não só os tribunais judiciais, mas também os tribunais administrativos (estes chamados a apreciar o contencioso de anulação dos actos federativos praticados no exercício de prerrogativas de autoridade e no âmbito da execução de uma missão de serviço público, aqueles chamados a apreciar os demais casos a que se ligam consequências do foro civil, penal ou laboral, resultantes embora de actos sancionatórios das federações desportivas)».

Resultam assim violados — conclui o requerente — o artigo 20.º, n.º 2, que consagra o princípio da tutela jurisdicional dos direitos, bem como o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, este concretização daquele primeiro princípio.

Notificada para responder, a FPF, pelo presidente da sua direcção, fez entrega de um extenso documento no qual sustenta posição contrária àquela que fundamenta o pedido, acompanhando de perto, para as refutar, as considerações contidas no parecer da Procuradoria-Geral da República de 31 de Janeiro de 1986, processo n.º 114/85, publicado em Diário da República, II Série, de 30 de Julho de 1986.

A Federação não considera correcta a sua qualificação como associação pública, muito em especial depois da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 164/85, de 15 de Maio, que veio definir os princípios e as normas que devem orientar a intervenção dos poderes públicos na área do desporto e o relacionamento destes «com os vários agentes desportivos, estabelecendo, assim, as bases gerais do sistema desportivo» (transcrições do preâmbulo). Este diploma legal terá vindo repor a situação anterior ao Decreto-Lei

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n.º 32 241, de 5 de Setembro de 1942. Até então, argumenta a Federação, e tal como depois passou a ser de 1985 para cá, o desporto «autogovernava-se, sem interferência ou imposição do Estado, mais propriamente, do Governo. Criou a sua própria organização, com regulamentos e órgãos de disciplina, promovendo livremente os seus fins, sem interferências ou tutelas». Segundo a Federação, o próprio Estado reconhece «que a FPF é uma pessoa de direito privado e não uma instituição de direito público». Nem relevaria a circunstância de ter sido declarada de «utilidade pública», declaração essa que não modificaria a natureza puramente associativa da pessoa colectiva porque as vantagens resultantes da situação estariam apenas correlacionadas com a natureza dos fins prosseguidos. A FPF não se integrará na administração indirecta nem na administração autónoma do Estado porque não goza de prerrogativas de autoridade nem está estabelecida a obrigatoriedade de filiação por parte dos seus membros, sendo livre a constituição de outras associações ou federações. Caberá ao Estado a tutela do desporto, mas esta não deve confundir-se com a tutela das federações ou associações desportivas.

Em outra ordem de considerações, rejeita ainda a Federação que os actos por ela praticados possam ter o tratamento jurídico dos actos administrativos, novamente concluindo que tal hipótese é contrariada pela sua configuração como pessoa colectiva de direito privado.

Daqui — de que não é uma associação pública, nem uma pessoa colectiva equiparável a órgão da administração pública — retira a FPF, desde logo, a consequência de que os seus actos seriam insusceptíveis de recurso contencioso por não serem actos administrativos. Mas retira sobretudo — com directo relevo para o presente processo — que os preceitos cuja constitucionalidade é posta em causa não seriam «normas» para efeitos de fiscalização da sua conformidade à Constituição, já que esta incide unicamente sobre «actos do poder normativo do Estado (lato sensu) — e em especial do poder legislativo —, ou seja, daqueles actos que contêm uma regra de conduta ou um critério de decisão para os particulares, para a administração e para os tribunais». Conforta-se a resposta, nesta parte, no Acórdão n.º 26/85, deste Tribunal, dele reproduzindo os incisos acabados de assinalar. Assim — e é a primeira conclusão da FPF — estaria vedado ao Tribunal Constitucional pronunciar-e sobre a inconstituciona-lidade dos ditos preceitos, disso, pois, se devendo abster.

Mas, admitindo que assim não seja, sustenta a FPF, seguidamente, que não ocorre qualquer violação de princípios materiais da Constituição, nomeadamente do princípio do acesso aos tribunais. Este só está constitucionalmente assegurado para a tutela de direitos e interesses legalmente protegidos, tal como resulta do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição; exigir-se-á que as relações de onde emergem os direitos e interesses se insiram em plano jurídico, que pressupõe regras de conduta coactivamente impostas. Na óptica da resposta, «as chamadas questões desportivas — ou pelo menos um largo espectro dessas questões — escapam às malhas da ordem jurídica portuguesa». «Questões desportivas» seriam, entre outras, as que se prenderiam com as leis do jogo, as relativas à organização e regulamentação das provas, as que se prenderiam com a qualificação dos jogadores pelos clubes, as que estabeleceriam as condições em que os jogadores podem ser inscritos e participar em jogos, as que respeitariam ao poder disciplinar sobre clubes, dirigentes, jogadores e todos os outros agentes desportivos por infracções praticadas no decurso dos jogos e das provas ou por causa deles, «as relações contratuais entre os clubes e os jogadores, vistas de certo ângulo». Sobre este último

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ponto, diz-se na resposta que as decisões tomadas pela Federação relativamente aos termos em que os jogadores estão vinculados para com os clubes incidem somente na vertente disciplinar: «A decisão federativa só conta para específicos efeitos internos, de natureza disciplinar, não produzindo quaisquer outros». E noutro passo explicita-se, quanto às mesmas decisões, que elas não podem ser coactivamente impostas: apenas sucederá que da sua observância resultará a ineficácia, perante a Federação, dos actos e omissões contrários.

Tudo visto, cumpre decidir.

2 — Vem pedida a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 86.º do Estatuto da Federação Portuguesa de Futebol (na redacção que lhe foi dada por escritura de 26 de Julho de 1985, publicada no Diário da República, III Série, n.º 200, de 31 de Agosto de 1985) bem como do artigo 86.º do respectivo Regulamento Disciplinar aprovado em Assembleia Geral Extraordinária em 18 de Agosto de 1984.

Daquela primeira disposição consta:

Artigo 86.º

As associações, clubes, jogadores e dirigentes não são autorizados a submeter aos tribunais a apreciação de questões desportivas ou a recorrer de decisões que, de harmonia com a regulamentação desportiva, hajam sido tomadas por órgãos da FPF sem consentimento desta. Os clubes ou pessoas que violem esta norma serão punidos em conformidade com o regulamento de disciplina. Se a infracção for cometida por uma associação, a decisão competirá à assembleia geral.

E na disposição do Regulamento Disciplinar citado, com a mesma numeração, refere-se:

Artigo 86.º

(O recurso a tribunais comuns sem autorização da FPF)

1 — Os clubes, jogadores, dirigentes e elementos da arbitragem que, sem consentimento da FPF, submeterem aos tribunais comuns a apreciação de questões previstas na regulamentação desportiva, serão excluídos da respectiva Associação.

2 — No caso de o mesmo acto ser praticado por uma Associação, caberá à Assembleia Geral tomar a decisão que considere adequada em relação a essa Associação.

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Como se disse, porém, a Federação suscita logo a questão de os preceitos transcritos não deverem considerar-se «normas», para o efeito de fiscalização abstracta da constitucionalidade, carecendo o Tribunal Constitucional de competência, portanto, para conhecer do vício em que possam incorrer.

Há, assim, que começar por apreciar esta questão prévia.

3 — Arranca ela do facto de a Federação não considerar correcta a sua qualificação como associação pública, muito em especial após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 164/85, de 15 de Maio: segundo ela foi reposta a situação anterior ao Decreto-Lei n.º 32 241, de 5 de Setembro de 1942, pelo que deve ser considerada pessoa colectiva de direito privado.

Compreende-se, pois, que, para esclarecer a questão prévia suscitada, haja, antes de tudo o mais, que analisar, embora de forma sucinta, a evolução que se verificou na disciplina legal das actividades desportivas em geral e do futebol em particular.

O primeiro diploma específico a surgir sobre a matéria é o Decreto-Lei n.º 32 421, de 5 de Setembro de 1942. No respectivo preâmbulo diz-se:

Tem-se com este decreto-lei essencialmente em vista criar o órgão do Estado que há-de orientar e promover, fora da Mocidade Portuguesa, a educação física do povo português e introduzir disciplina nos desportos. Entendeu-se que esse órgão podia, ao menos por agora, ser uma direcção geral. Não se pretende substituir a organização existente que se formou espontaneamente ou sem intervenção directa do Estado; pretende-se assistir àquela organização, orientar-lhe a actividade e completá-la quando se mostre insuficiente nos elementos que a constituem. Nada se tira ao que existe; sobrepõe-se-lhe alguma cousa de que se espera muito. É a Direcção Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, em que se transforma a Direcção Geral da Saúde Escolar.

E no artigo 7.º preceituava-se:

É extinta a Direcção Geral da Saúde Escolar e criada a Direcção Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, que, além das atribuições fixadas àquela, terá as seguintes:

1.º Cuidar, fora das escolas, da organização nacional Mocidade Portuguesa e da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, da educação física do povo português, directamente e através das instituições públicas ou parti-

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culares constituídas com esse objectivo como fim principal ou acessório, dirigindo e vigiando a actividade;

2.º Promover junto dos elementos da organização corporativa e das organizações industriais e comerciais a prática sistemática dos exercícios ordenados à formação física dos trabalhadores e de suas famílias;

3.º Concertar com as câmaras municipais o modo mais adequado a, nas sedes dos concelhos e nas freguesias, desenvolver o gosto pelas práticas de educação física;

4.º Instituir, em colaboração com a Mocidade Portuguesa e sob a direcção do Instituto Nacional de Educação Física, escolas móveis para preparar os dirigentes locais da educação física;

5.º Superintender em todas as actividades desportivas que não estejam directamente subordinadas à Mocidade Portuguesa e à Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho ou que não tenham carácter estritamente escolar;

6.º Prestar às actividades desportivas existentes nas escolas a colaboração que lhe solicitarem;

7.º Sujeitar a exame médico os desportistas, pertencentes a qualquer organização desportiva, de cuja aptidão física suspeite e proibir-lhes a prática de quaisquer desportos;

8.º Intervir na selecção das pessoas que, nos exercícios ou competições desportivas, houverem de desempenhar funções de direcção ou técnicas, ou tiverem poderes de decisão;

9.º Conhecer, directamente ou em recurso, de todas as questões relativas à disciplina do desporto, ou elas surjam entre desportistas, ou entre organizações desportivas, ou entre uns e outras;

10.º Exercer autoridade disciplinar sobre os desportistas, sôbre as organizações desportivas, assim como sobre os técnicos e fiscais com poderes de consulta ou decisão;

11.º Velar pela formação do espírito desportivo, utilizando todos os meios que julgar adequados à disciplina do público;

12.º Cuidar da educação física dos desportistas, vigiando a que lhes é ministrada nas organizações a que pertencerem e impondo a estas que a instituam por forma regular quando não existir;

13.º Fazer tudo o que possa interessar ao revigoramento físico da gente portuguesa e à disciplina dos desportos.

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§ 1.º — Os poderes disciplinares atribuídos à Direcção Geral neste artigo não eliminam os que actualmente se exercem dentro da própria organização desportiva, mas, uma vez que aquele tome qualquer decisão e a comunique, cessa toda a actividade disciplinar desta.

§ 2.º — As decisões da Direcção Geral em matéria de disciplina são insusceptíveis de recurso.

Por sua vez nos artigos 8.º e 9.º diz-se:

Artigo 8.º — O Instituto Nacional de Educação Física será reorganizado e fica, desde já, dependente da Direcção Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar.

Artigo 9.º — O Comité Olímpico Português, para continuar a gozar do reconhecimento oficial que foi expresso na Portaria de 21 de Abril de 1937, deverá submeter a lista dos seus membros à aprovação do Ministério da Educação Nacional.

§ único — O subsídio atribuído ao Comité Olímpico Português pelo artigo 2.º da Lei n.º 1810, de 27 de Julho de 1925, passa a ser administrado pela Direcção Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar.

Até à entrada em vigor deste Decreto-Lei, bem pode dizer-se que o Estado tinha-se desinteressado de emitir uma regulamentação jurídica sobre o desporto em Portugal, deixando a respectiva disciplina e regulamentação dependentes por inteiro da iniciativa privada.

Entretanto, o Decreto-Lei n.º 32 241 veio a ser regulamentado pelo Decreto n.º 32 946, de 3 de Agosto de 1943. Consta de parte do preâmbulo deste outro diploma:

Entendeu-se não dever eliminar os elementos de organização desportiva existentes e até parece útil aproveitá-los, desde que se tornasse possível dirigir-lhes a actividade e orientá-los no sentido de sobreporem aos interesses clubistas o interesse geral, de substituírem a política da vitória do clube seja como for por uma política desportiva de sabor verdadeiramente nacional. A Direcção Geral foi investida dos poderes bastantes para tornar isto possível pelo Decreto-Lei n.º 32 241, dotada, desde logo, de alguns elementos de intervenção (inspectores e médicos dos desportos), e agora é dotada dos restantes já também previstos naquele decreto-lei: os conselhos-técnicos da educação física, dos desportos e da saúde escolar e medicina desportiva e os delegados regionais ou locais. São órgãos de estudo, informação e fiscalização, constituídos, por forma permanente ou eventual, de todos os elementos necessários para habilitarem a Direcção Geral a realizar no campo da cultura física a política que lhe foi ou vier a ser definida.

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Com os poderes e órgãos de actuação atribuídos à Direcção Geral entendeu-se dever manter a organização existente.

Consegue-se assim uma espécie de centralização descentralizada (se isto pode dizer-se), com as vantagens das duas formas de organização que aqueles termos exprimem: unidade de pensamento, representada pela Direcção Geral, e realização múltipla desse pensamento, conforme as modalidades desportivas ou a escala de gradação dentro da mesma modalidade, representada pelos órgãos directos de cada desporto.

Quando se diz que se mantém a organização existente, querem referir-se os elementos ou núcleos dessa organização e não o regime jurídico a que está subordinada, no seu desenvolvimento, a actividade desportiva que representam. Quanto a este, algumas normas gerais e especiais se estabelecem que integram e modificam as que vigoram e que ou indicam uma orientação que importa adoptar ou substituem directamente as existentes. Destacam-se as normas relativas à independência da hierarquia dos órgãos de julgamento em face da hierarquia dos órgãos de direcção e as referentes à transferência de desportistas de clube para clube. Querem-se os juízes e árbitros em condições de prestígio que os libertem de qualquer forma de pressão e deseja-se acabar com negócios que arruinam os clubes e diminuem o desporto e os desportistas. A beleza do desporto perde-se quando se converte num modo de vida.

Às organizações cabe assegurar aos seus desportistas o condicionamento indispensável ao pleno rendimento das suas faculdades físicas; mas deve-lhes ser vedado comprá-los e a estes vender-se. É o que pretende atingir-se com o regime de transferências que se institui.

A dependência do Estado ficou claramente estabelecida, tal como mostra o artigo 20.º, que reza assim:

A constituição de qualquer organismo destinado a cuidar, como fim principal ou acessório, da educação física do povo português, com excepção da Organização Nacional Mocidade Portuguesa, da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho e das associações desportivas de carácter estritamente escolar, depende da autorização prévia do Ministro da Educação Nacional.

E nos artigos 22.º e 23.º fixam-se as competências das federações e associações. Deles consta:

Artigo 22.º — Compete às federações:

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1.º Promover, regulamentar e dirigir no País, sob a orientação da Direcção Geral, as práticas das respectivas modalidades desportivas, tendo sempre em vista a saúde moral e física dos seus filiados;

2.º Representar perante o Estado o respectivo ramo de desporto;

3.º Assegurar as relações desportivas do País com o estrangeiro.

Artigo 23.º — Compete às associações:

1.º Promover, regulamentar e dirigir na área da sua jurisdição, e sob orientação da federação respectiva, as práticas da modalidade desportiva a que pertencem;

2.º Estabelecer e manter relações com as restantes associações do País da mesma natureza.

Os artigos 24.º, 25.º e 26.º estabelecem os órgãos dos organismos desportivos e respectivas competências e em vários outros preceitos criam-se deveres para com a Direcção Geral de Desportos.

O regime disciplinar é fixado pelos artigos 74.º e seguintes.

Merecem particular destaque os artigos 80.º, 81.º e 82.º que se transcrevem:

Artigo 80.º — A competência disciplinar sobre os desportistas, juízes, árbitros ou fiscais pertence à Direcção Geral e aos vários elementos das hierarquias desportistas, nos termos seguintes:

1.º A do n.º 1 pode ser aplicada por todos os que tiverem autoridade hierárquica sobre os infractores.

2.º As restantes podem ser aplicadas pelas direcções dos clubes, colégios ou comissões a que pertencerem os infractores ou pelas dos organismos de hierarquia superior.

§ 1.º — Da decisão que aplicar qualquer das normas dos n.os 3 e seguintes do artigo 76.º há sempre recurso para os órgãos superiores ou jurisdicionais da hierarquia desportiva, ou para a Direcção Geral.

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§ 2.º — A aplicação de uma pena pela Direcção Geral ou comunicação de que foi por ela mandado instaurar processo disciplinar faz cessar a competência disciplinar de todos os outros órgãos da hierarquia desportiva.

Artigo 81.º — A competência disciplinar sobre os organismos desportivos pertence à Direcção Geral e aos órgãos superiores da respectiva hierarquia.

§ único — É aplicável aos casos deste artigo o que se dispõe no § 2.º do artigo anterior.

Artigo 82.º — Das decisões que aplicam as penas dos n.os 5 e 6 há sempre recurso para o Ministro, só com efeito devolutivo.

§ único — Da decisão do Ministro não há recurso.

Diplomas posteriores vieram trazer alterações ao regime estatuído mas, no período que decorreu até 25 de Abril de 1974, nada de substancial foi introduzido pelo menos de forma a alterar o essencial do regime.

Assim, por ex., muito embora pelo Decreto-Lei n.º 82/73, de 3 de Março, tenha vindo a Direcção-Geral da Educação Física e Desportos (sua nova designação) a receber uma nova lei orgânica, no artigo 4.º desta continuou a dispor o seguinte:

1 — No âmbito do desporto federado compete à DGEFD:

a) orientar e regulamentar directamente ou através dos organismos da hierarquia desportiva, actividades do sector;

b) escolher ou homologar a escolha das pessoas que em relação às representações desportivas nacionais hajam de desempenhar funções técnicas ou de direcção;

c) conhecer directamente ou em recurso das questões que se suscitem no âmbito das actividades gimno-desportistas, quando não existam órgãos da hierarquia desportiva competentes ou, existindo, não estejam em condições de funcionar;

d) exercer acção disciplinar sobre os organismos desportivos e, bem assim, sobre os dirigentes, técnicos, praticantes e entidades que nas competições exerçam funções de direcção, consulta ou fiscalização;

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e) avocar a apreciação e decisão dos assuntos relativos à actividade gimno-desportiva quando o justifique o interesse do desporto nacional.

2 — Mediante autorização ministerial, a competência referida na alínea d) do número anterior poderá ser delegada nos organismos desportivos.

Depois daquela data (25 de Abril de 1974), porém, algumas modificações significativas vieram a ocorrer na disciplina legal do desporto federado, e das relações dos respectivos clubes e associações com a Administração.

Assim, com o Decreto-Lei n.º 553/77, de 31 de Dezembro, procedeu-se à reestruturação da Direcção-Geral dos Desportos — nome com que passou a ficar, a ela se havendo retirado as competências relativas ao desporto escolar — e logo no seu processo ratificativo vem a denunciar-se um novo espírito no tocante àquelas relações.

Com efeito, no artigo 7.º da versão inicial desse diploma, e definindo a competência da «Direcção do Desporto Federado e Recreação», ainda nessa competência se incluía a de:

a) Exercer a tutela dos organismos não governamentais de carácter desportivo, de harmonia com a legislação em vigor e nos termos de decreto regulamentar a publicar.

Mas, submetido o Decreto-Lei em causa a ratificação parlamentar, e introduzidas nele extensas alterações, na mesma alínea do artigo 7.º passou simplesmente a atribuir-se à agora denominada «Direcção da Actividade Gimnodesportiva» competência para:

Veicular o apoio estatal às actividades gimnodesportivas dos organismos não governamentais.

E no artigo 33.º — dessa versão ratificada do diploma — acrescentou-se:

Artigo 33.º — 1 — No prazo de noventa dias o Governo promoverá a apresentação à Assembleia da República de uma proposta de lei que redefina o regime jurídico das relações entre o Estado e os organismos não governamentais de carácter desportivo adequado ao disposto na Constituição da República.

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2 — Transitoriamente, até à entrada em vigor de nova legislação sobre o previsto no n.º 1, a Direcção-Geral dos Desportos exercerá, em relação às associações de clubes e em relação às federações, as competências previstas na legislação respectiva em tudo o que não contrarie a Constituição e a lei.

Também são significativas as Portarias n.os 39-A/78, de 4 de Agosto, e 17/79, que promoveram a integração dos organismos da arbitragem do futebol e das restantes modalidades, respectivamente, nas correspondentes federações — alterando assim a situação decorrente do Decreto n.º 32 946, segundo o qual tais organismos constituíam «corporações» ou «hierarquias autónomas», «directamente subordinadas a Direcção-Geral» (artigos 65.º e 66.º).

Por outro lado, pelo Decreto-Lei n.º 344/81, de 10 de Dezembro, veio dispensar-se expressamente a necessidade de homologação dos corpos gerentes dos clubes, associações e federações desportivas — assim se pondo o direito «legal» de harmonia com a prática que já vinha a ser observada.

Por fim e a culminar toda esta evolução no sentido de um novo entendimento «legal» das relações entre os clubes, as associações e as federações desportivas e o Estado, e em particular a Administração Pública, veio a ser publicado o Decreto-Lei n.º 164/85, de 15 de Maio, que claramente acentua a «independência» e aponta para uma completa «autonomia» daqueles organismos.

É certo que, entretanto, não deixou de ser emitido o Decreto Regulamentar n.º 92/84, de 24 de Dezembro, o qual, vindo alterar o disposto no Decreto n.º 46 476, de 9 de Agosto de 1965, sobre a duração do mandato dos dirigentes desportivos, parece pressupor, por seu turno, a vigência, ao tempo, do velho Regulamento da Direcção-Geral dos Desportos (supra citado Decreto n.º 32 946, com modificações ulteriores) — e isso na medida em que o dito Decreto de 1965 mais não foi do que um diploma modificador daquele Regulamento.

Simplesmente, não apenas o Decreto-Lei n.º 164/85 é posterior ao Decreto Regulamentar n.º 92/84, como, de todo modo, é inegável o seu propósito de «definir os princípios e as normas que devem orientar a intervenção dos poderes públicos nesta área [do desporto] e o seu relacionamento com os vários agentes desportivos, estabelecendo, assim, as bases gerais do sistema desportivo» (são palavras do respectivo preâmbulo, a que se acrescentaram os sublinhados).

Ora, desses princípios, normas e bases decorre todo um outro espírito, — muito diverso do versado no Decreto n.º 32 946, ou no Decreto-Lei n.º 82/73, ou mesmo ainda na versão inicial do Decreto-Lei n.º 553/77 — no tocante ao posicionamento do Estado face ao «sistema» desportivo, e ao seu relacionamento com ele. Esse outro espírito pode traduzir-se — numa palavra — pelo abandono de uma atitude dirigista e tutelar do Estado, perante aquele sistema, e pela adopção, em lugar dela, de uma atitude de cooperação e promoção. Isso se vê, nitidamente, nas disposições do diploma que a seguir se transcrevem:

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Artigo 2.º

(Da cooperação)

O Estado, através da Secretaria de Estado dos Desportos, promoverá a cooperação entre as várias pessoas colectivas de direito público e privado com atribuições no âmbito dos desportos.

Artigo 3.º

(Da autonomia das pessoas colectivas de direito privado)

O Estado reconhece o papel essencial e a autonomia das pessoas colectivas de direito privado com atribuições no âmbito dos desportos e cria condições ao livre exercício da sua actividade.

Artigo 4.º

(Do associativismo desportivo)

O Estado apoia e suscita a criação e generalização do associativismo desportivo, quer dirigido para a competição, quer orientado para a recreação, como meio fundamental de uma política que permita o acesso dos cidadãos à prática do desporto.

Artigo 7.º

(Do fomento do desporto)

Na sua função de fomento e enquadramento do desporto, o Estado promoverá:

a) A participação das pessoas colectivas de direito privado com atribuições no âmbito do desporto na definição da política do seu desenvolvimento.

............................................................................................

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Artigo 8.º

(Do plano de fomento desportivo

e do plano de desenvolvimento desportivo)

1 — ......................................................................................................

2 — As pessoas colectivas de direito privado referidas no número anterior elaboram os seus planos de desenvolvimento desportivo, de âmbito regional ou nacional, de acordo com as suas finalidades, características e níveis de prática.

Prevê o Decreto-Lei n.º 164/85 a ulterior emissão de decreto regulamentar destinada a regulamentá-lo. Um tal diploma não foi ainda publicado. Mas, em compensação, foi já dentro do espírito daquele Decreto-Lei, e dando-lhe confessada concretização, que o Governo, através da Portaria n.º 663/85, de 6 de Setembro, e de Portaria de 12 de Junho de 1986 (sem número, e publicada na II Série do Diário da República, de 21 do mesmo mês), deixou inteiramente a cargo da Federação Portuguesa de Futebol e das Federações das restantes modalidades desportistas, respectivamente, a regulamentação da matéria relativa às «transferências» de praticantes amadores dessas modalidades (quanto aos praticantes profissionais, e pelo que toca ao futebol, essa regulamentação consta, desde 1975, de Portaria de Regulamentação do Trabalho, emitida sob a alçada do correspondente Ministério, e publicada no Boletim do Ministério do Trabalho, 1975, n.º 26, de 15 de Julho de 1975).

Eis, no essencial, o panorama da evolução sofrida, até ao momento, pela legislação portuguesa em matéria de organização desportiva — e o ponto em que ela se encontra.

Resta, apenas, acrescentar duas notas.

A primeira para lembrar que, desde 1976, a Constituição portuguesa reconhece a importância social do desporto, e um direito fundamental à sua prática, em preceito que é do teor seguinte (na redacção da Lei Constitucional n.º 1/82):

Artigo 79.º

(Cultura física e desporto)

1 — Todos têm direito à cultura física e ao desporto.

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2 — Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto.

A segunda nota é para dizer que, se a evolução dos textos legais e regulamentares tem o sentido que se descreveu, não foi outro o sentido em que — de algum modo antecipando o espírito do Decreto-Lei n.º 164/85 — se orientou a prática da Administração. É, na verdade, notório, para qualquer observador do fenómeno desportivo português, que, pelo menos desde Abril de 1974, se não desde antes, aquela deixou de exercer qualquer função tutelar (correctiva ou substitutiva) relativamente à actividade desenvolvida pelas federações desportivas, seja no capítulo técnico, seja no capítulo disciplinar. [Entretanto, coisa diversa é, claro está, a intervenção legislativa, e a consequente intervenção administrativa, em matérias como as da violência nos recintos desportivos (Decreto-Lei n.º 339/80, de 30 de Agosto, ratificado pela Lei n.º 16/81, de 31 de Julho, depois substituído pelo Decreto-Lei n.º 61/85, de 12 de Março), da prática do «dopping» (Decreto-Lei n.º 374/79, de 8 de Setembro) ou da regulamentação da actividade de treinadores desportivos (Decreto-Lei n.º 163/85, de 15 de Maio): tais intervenções transcendem já, efectivamente, o puro domínio desportivo, para terem a ver com a prossecução de fins gerais de segurança e saúde pública, ou de regulamentação do exercício duma actividade profissional].

4 — Dito isto — e porque a questão prévia que estamos a examinar se prende antes de mais, como se começou por dizer, com a qualificação ou não da Federação Portuguesa de Futebol como uma «associação pública» — convirá deixar aqui algumas indicações sobre o modo como a doutrina (em especial, naturalmente, a doutrina portuguesa) caracteriza tais associações e, em geral, as «pessoas colectivas públicas» (ou de direito público).

Como se sabe, é uma vexata quaestio, longamente disputada na literatura, a do critério definidor destas últimas, por contraposição às «pessoas colectivas de direito privado». Por isso, o insigne mestre Manuel de Andrade optava, no seu ensino, por «desistir de qualquer investigação aprofundada sobre o ponto», investigação «cujos resultados seriam sempre muito aventurosos», e por propor um critério inicial que «sobre ser dos mais divulgados, e dos menos falíveis — talvez até o mais próximo da verdade», lhe parecia ser «o mais nítido de todos, e como tal o mais facilmente apreensível»: era, esse critério (sem dúvida muito corrente entre os civilistas) o de que «são pessoas de direito público as pessoas colectivas que disfrutam, em maior ou menor extensão, o chamado jus imperii, correspondendo-lhes portanto quaisquer funções próprias da autoridade estadual»; e tal imperium consiste «grosso modo, na possibilidade de, por via normativa ou através de determinações concretas, emitir comandos vinculativos (juridicamente eficazes), executáveis pela força, sendo caso disso, contra aqueles a quem são dirigidos» (v. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, Coimbra, 1969, p. 72).

Mas já Marcello Caetano — salientando a «tendência moderna para conferir poderes de autoridade a pessoas colectivas de direito privado» — se não bastava com o critério referido, e propunha que a esse elemento se juntassem dois outros: um, «material», era o da «prossecução necessária de um interesse público», e o outro, «formal», o da «criação por acto do Poder Público». E assim partindo da ideia de que «pessoa

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colectiva de direito público será aquela que nasça da necessidade de realização de fins públicos, isto é, interesses que sejam considerados fundamentais para a existência, conservação e desenvolvimento da sociedade política» — definia tais pessoas colectivas como «aquelas que, sendo criadas por acto do Poder Público, existem para a prossecução necessária de interesses públicos e exercem em nome próprio poderes de autoridade» (v. Manual de Direito Administrativo, Tomo I, 10.a ed., com a colaboração de Diogo Freitas do Amaral, Lisboa, 1973, pp. 182 e segs.).

Por último — e para nos atermos a três autores sem dúvida dos mais significativos — começa, por sua vez, Afonso Queiró, por fazer o elenco dos traços que, «em conjunto podem considerar-se os que definem o regime dos entes públicos», mas logo advertindo não ser indispensável que todos, sem excepção, ocorram num certo ente, para que deva considerar-se público. Esses traços são os seguintes: a) sujeição a tutela ou controlo do Estado; b) titularidade de poderes públicos (mas não, necessariamente, poderes de império); c) estatuto de direito público dos respectivos agentes; d) autonomia financeira; e) sujeição à competência da jurisdição administrativa; f) dever de existir. Ora, segundo este outro Autor, justamente na característica por último apontada — e não na criação estadual, nem na titularidade de jus imperii, nem tão pouco na prossecução de fins públicos — reside «a nota distintiva essencial das pessoas colectivas públicas»; tais pessoas são, pois, as que «têm a obrigação, em face da comunidade representada pelo Estado, de prosseguir o seu fim ou os seus fins». E de tal modo que, «em consequência desta obrigação», conserva o Estado «um poder de controlo especialmente intenso sobre elas, destinado a conseguir que os fins sejam prosseguidos de acordo com a lei e a oportunidade» (v. Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1959, pp. 261 e segs.).

Deste resumido apontamento sobre a qualificação doutrinal das pessoas colectivas públicas, já resulta que nem sempre será fácil decidir sobre a inclusão de determinado ente nessa categoria. Como quer que seja, é a partir dos critérios e notas que se deixam apontados que tal questão haverá de resolver-se. Isto, sem esquecer entretanto que, se a qualificação legal que a esse respeito se faça pode não ser decisiva, sempre haverá de tomar-se, pelo menos, como válida em princípio (assim, A. Queiró, cit., p. 260).

Quanto, por sua vez, às associações públicas, pode dizer-se, ao fim e ao cabo, que são associações que têm a natureza de pessoa colectiva pública.

No fundo, não é outra a ideia que resulta da noção que delas dá Jorge Miranda, no estudo que dedicou ao tema: associação pública é «a associação submetida a um regime específico de Direito Administrativo, ou então, a pessoa colectiva de tipo corporacional constituída para a prossecução de interesses públicos e dotada dos necessários poderes jurídico-administrativos» (v. As associações públicas no direito português, Lisboa, pp. 65 e 66).

E a noção de Freitas do Amaral, por sua vez, não está muito longe desta: «Associações públicas são as pessoas colectivas públicas, de tipo associativo, criadas para assegurar a prossecução de interesses públicos determinados pertencentes ao Estado ou a outra pessoa colectiva pública» (Curso de Direito Administrativo, Coimbra, 1986, p. 370).

Nesta realidade institucional — hoje expressamente contemplada pela Constituição [cfr. artigos 168.º, n.º 1, alínea f), e 267.º, n.os 1 e 3] — exprime-se um fenómeno de devolução de poderes por parte do Estado, ou de outra pessoa colectiva pública, para

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que certos específicos interesses a seu cargo (interesses públicos), em lugar de serem directamente prosseguidos por aquele ou aquela (através da sua administração directa), o sejam por um ente de substracto associativo (cfr. F. Amaral, ob. cit., p. 370) — sendo agora irrelevante indagar se, com isso, este outro ente passa a integrar a «administração indirecta» (como sustenta o Autor citado), ou a «administração autónoma» (como quer J. Miranda).

A tal respeito, lembram J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira que «as associações públicas [...] são constitucionalmente consideradas como formas de participação dos interessados na administração pública (n.º 1, in fine [do artigo 267.º]). Na verdade, elas são tradicionalmente formas através das quais o Estado confere aos interessados, propositadamente associados para o efeito, certos poderes públicos, submetendo para isso essas associações a um regime público quanto a certos aspectos (criação, organização, controlo da legalidade dos respectivos actos, etc.)» (v. Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., p. 424).

Um tal regime público das associações públicas — ou, por outras palavras, a sua natureza de pessoas colectivas públicas — é, entretanto, denunciado pela presença nele de determinadas características, ou índices, entre os quais, segundo a doutrina, estarão os seguintes: a) intervenção do Estado (ou outra pessoa colectiva pública) na «constituição» do ente (seja na sua criação, ex novo, seja na sua requalificação), bem como no seu reconhecimento, e na definição do estatuto; b) sujeição a formas de intervenção e tutela do Estado; c) impossibilidade de dissolução por mera deliberação social; d) dever de colaboração com o Estado; e) privilégio da unicidade; f) inscrição obrigatória dos membros e possibilidade de quotização obrigatória; g) poder disciplinar sobre os associados; h) subordinação aos princípios gerais do direito administrativo; i) a prática de actos administrativos sujeitos a recurso contencioso; j) responsabilidade civil regulada pelo Direito Administrativo, e perante os correspondentes tribunais; l) aplicabilidade do regime da função pública aos respectivos agentes; m) regime financeiro e contabilístico aproximável do da Administração central (sobre estas características, v., nem sempre coincidentemente, Jorge Miranda, ob. cit., pp. 59 e segs., e Freitas do Amaral, ob. cit., pp. 351 e segs.).

Decerto, porém, que também valerá aqui observação idêntica à que Afonso Queiró faz (e atrás se referiu) relativamente às pessoas colectivas públicas em geral — a saber, a de que não será necessária a presença sempre de todas estas características para que uma associação deva considerar-se «pública» (o que é dizer que a enumeração feita há-de tomar-se como simplesmente «típica»). Mas, por outro lado, salta também à vista que os índices apontados não terão todos o mesmo peso na qualificação do ente: basta atentar em que algumas das características enunciadas (p. ex., o poder disciplinar sobre os associados, ou o dever de colaboração com o Estado) também surgem nas associações privadas (ou em certas delas); e que outras (como, designadamente, a subordinação às regras do direito administrativo, ou a sujeição à jurisdição administrativa, quer para efeitos de recurso contencioso, quer para efeitos de responsabilidade) são já, verdadeiramente, «consequenciais». Assim, características como a da intervenção do Estado na constituição do ente e no seu reconhecimento (como pessoa jurídica), ou na definição do respectivo estatuto, a da sujeição a tutela pública, a da impossibilidade de dissolução, a da unicidade e obrigatoriedade de inscrição, acabarão por ser, separadamente ou em conjunto, as decisivas.

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5 — Estão, assim, reunidos os elementos — legais e doutrinários — à luz dos quais haverá de responder-se à pergunta atrás formulada, e suscitada pela questão prévia em apreço: será a Federação Portuguesa de Futebol uma associação pública, uma associação com a natureza de pessoa jurídica de direito público?

Segundo Jorge Miranda, as Federações desportivas seriam justamente um exemplo de associação pública (v. ob. cit., p. 20) — pelo que, de harmonia com tal entendimento, nessa categoria haveria assim de incluir-se a Federação Portuguesa de Futebol. Mas já Freitas do Amaral contradiz expressamente semelhante opinião (v. ob. cit., p. 372, nota 1); e também recentemente a Procuradoria-Geral da República, em parecer versando de maneira imediata o enquadramento legal da Federação Portuguesa de Atletismo, mas em termos que valerão para a generalidade desses organismos, sustentou o entendimento de que se está aí perante uma simples pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública (ainda que depois, e à primeira vista contraditoriamente, a considere integrada na «administração autónoma»): v. Parecer n.º 100/88, no Diário da República, II Série, de 8 de Junho do ano corrente (no Parecer n.º 114/85, no mesmo Diário e Série, de 30 de Julho de 1986, esse outro versando justamente a Federação Portuguesa de Futebol, não chegava a Procuradoria a tomar uma posição definitiva e inequívoca sobre o ponto).

Quanto à jurisprudência, poderá dizer-se que se tem dividido, embora pareça maioritariamente inclinar-se — se bem que muitas vezes apenas de modo implícito — para o segundo dos sentidos apontados (assim, cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Junho e de 16 de Junho de 1987, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 361, p. 433, e n.º 368, p. 499, respectivamente; contra, v. p. ex., várias decisões do 2.º Juízo Cível de Lisboa, como de 5 de Julho de 1984, 21 de Junho de 1985 e 21 de Março e 9 de Maio de 1986).

Tem o Tribunal por seguro que é o segundo destes pontos de vista — o de que as Federações desportivas, em geral, e a Federação Portuguesa de Futebol, em particular, não são associações públicas — o que decorre dos dados do direito positivo português, e aquele, por conseguinte, que cumpre acolher.

A conclusão da natureza puramente privada de tais entes, no período anterior à emissão da primeira legislação específica em matéria desportiva (supra mencionados Decreto-Lei n.º 32 241 e Decreto n.º 32 946) era, por assim dizer, evidente (no sentido dela pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 2.ª Secção, de 10 de Junho de 1937, na respectiva Colecção, vol. III, p. 226, recolhido também em Jurisprudência Administrativa, organizada por F. Amaral, J. Raposo e J. Caupers, ed. cicl. da A. A. Fac. Direito, Lisboa, 1984/85).

As coisas passaram a não ser tão claras, porém, com o surgimento dessa legislação, toda ela marcada, como se disse já, por um cunho inteiramente dirigista, reflectindo as concepções e ideias dominantes ao tempo em que surgiu. Uma tal preocupação e objectivo revelam-se claramente nos passos atrás transcritos dos preâmbulos do Decreto-Lei n.º 32 241 e do Decreto n.º 32 946, e encontraram concretização nas atribuições deferidas à nova Direcção-Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar pelo artigo 70.º do primeiro daqueles diplomas e nas normas regulamentares

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depois estabelecidas pelo segundo deles (em matéria de constituição de organismos desportivos, estrutura da organização desportiva e competência dos respectivos elementos componentes, poderes disciplinares, de tutela e outros da Direcção-Geral) — tudo preceitos que, no mais importante das suas determinações, já igualmente se transcreveram. Desse modo, bem se podia dizer — como se disse ainda no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 32 241 — que a Direcção-Geral detinha uma competência que lhe permitia «conhecer, intervindo directamente ou através de delegados seus nas organizações desportivas, tudo quanto se passa no seio destas, de modo a conduzi-las no sentido de não sacrificarem nunca o interesse geral ao que lhes parece ser o seu interesse particular» (sublinhados acrescentados).

Simplesmente, mesmo em tal quadro legislativo (considerado na sua versão original e na traça geral que manteve basicamente inalterada, não obstante as modificações que foi sofrendo, até 1974) nada obrigava, em bom rigor, a concluir por uma publicização (no sentido da sua «conversão» em pessoas colectivas públicas) das Federações desportivas.

Desde logo, e para quem entenda (cfr. supra, n.º 4) que a criação estadual é uma característica de tais pessoas colectivas (e, logo, das associações públicas), falecia esse elemento. Depois, se, quer a constituição das Federações quer os seus estatutos e regulamentos, quer os seus corpos gerentes, estavam sujeitos a autorização, aprovação ou homologação do poder público, e se impendia sobre a sua actividade uma apertada tutela, nada disso, afinal, era, ao tempo, exclusivo delas, pois também ocorria quanto a numerosas pessoas colectivas cuja natureza privada era inquestionável (como a generalidade das associações e, desde logo, os próprios clubes desportivos). E, por último, também não seria suficiente argumentar (à luz, designadamente, do artigo 22.º do Decreto n.º 32 945) com a ideia de que lhes estava legalmente cometida a prossecução de interesses gerais, e lhes era conferida uma competência «pública» correspondente — porquanto ainda admitindo que isso fosse assim (o que é ponto que não interessa agora dilucidar), também tais circunstâncias, como a doutrina põe em relevo (supra, n.º 4), não chegam (ou podem não chegar), por si sós, para caracterizar um ente como público: há pessoas privadas (como lembra Afonso Queiró, ob. cit., p. 266) que prosseguem interesses gerais (as pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública), e é conhecido também o fenómeno (que Marcello Caetano sublinha, em passo supra transcrito) da atribuição de poderes «públicos» a entes com aquela mesma natureza.

Por outro lado, é o próprio legislador do Decreto-Lei n.º 32 241, no respectivo preâmbulo, a dizer expressamente que não pretendeu, «substituir a organização existente que se formou espontaneamente ou sem intervenção directa do Estado», mas simplesmente «assistir àquela organização, orientar-lhe a actividade e completá-la» — o que depois se repetiu no preâmbulo do Decreto n.º 32 946, quando aí se afirma haver-se entendido «não dever eliminar os elementos da organização desportiva existente», mas antes ter parecido «útil aproveitá-los, desde que se tornasse possível dirigir-lhes a actividade».

Ora, se a isto se somar a circunstância de que as Federações desportivas nunca chegaram a integrar a «organização corporativa» existente ao tempo do quadro legislativo que estamos a considerar (a Corporação da Educação Física e Desportos, prevista pelo Decreto-Lei n.º 47 215, de 23 de Setembro de 1966, não foi nunca implementada), bem parece, na verdade, que, mesmo à luz desse quadro legal, a melhor

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conclusão seria a de que aquelas Federações mantiveram a sua natureza de pessoas colectivas «privadas» — embora submetidas a uma intensa tutela pública (externa e interna) e porventura, quando muito, cumprindo-lhe desempenhar certas tarefas ou funções públicas. Por outras palavras: bem parece que, mesmo a essa luz, seria excessivo afirmar que as Federações desportivas estavam adstritas perante o Estado à obrigação ou dever de existir — obrigação ou dever esse que, consoante se viu (supra, n.º 4), justamente constituirá a nota material decisiva para caracterizar um ente como público.

Pois bem: se as coisas já eram assim — mas ainda que assim não fossem — à luz do quadro legislativo que vem de considerar-se, com muito maior razão o serão hoje, em que tal quadro indiscutivelmente se rompeu, e prevalece, nos textos legais e na prática, um outro entendimento de base do posicionamento do Estado face aos organismos desportivos, com expressão clara, por último, no Decreto-Lei n.º 164/85 (de que oportunamente se transcreveram os pontos mais salientes: cfr. supra, n.º 4).

A evolução verificada, e a seu tempo descrita, importou, designada e seguramente, o desaparecimento de qualquer intervenção da Administração na constituição das federações desportivas e na definição dos respectivos estatutos, e a sujeição das mesmas a um regime de puro «reconhecimento normativo», tal como sucede com a generalidade das associações. Exemplo claro disso, de resto, dão-no justamente os Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol, ora questionados numa das suas normas, os quais foram pura e simplesmente adoptados e aprovados pelas respectivas associadas (as Associações de Futebol nela inscritas), e depois por elas alterados através de deliberação da assembleia geral da mesma Federação, e vieram a ser formalizados através de instrumentos típicos do exercício da autonomia privada, como foram as escrituras públicas de 4 de Dezembro de 1982 e 26 de Julho de 1985 — tudo sem dependência de nenhuma autorização prévia ou aprovação ulterior de qualquer órgão do poder público.

Ora, verificada semelhante evolução, bem pode dizer-se que volta a não haver hoje razão para duvidar da natureza privada das federações desportivas — e, em particular, da Federação Portuguesa de Futebol —, isto é, da sua natureza de pessoas colectivas de direito privado, ainda que de utilidade pública (a qual lhes pode, e aliás tem sido, expressamente reconhecida, para os correspondentes efeitos legais).

Mas que isto é assim, comprova-o — cumpre dizer por último — a própria lei, já que é ela mesma a atribuir-lhes tal qualificação. Assim resulta, inequivocamente, da conjugação dos artigos 2.º, 3.º, 7.º, alínea a), e 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 164/85 (supra transcritos): com efeito, entre as entidades às quais esse diploma reconhece (nas duas últimas disposições citadas) o interesse e a faculdade de participar na política do desenvolvimento do desporto e de elaborar os respectivos planos, de âmbito regional ou «nacional», não podem deixar de contar-se as federações; donde que, referindo-se aí o legislador unicamente «a pessoas colectivas de direito privado», forçosamente tem de concluir-se que nessa categoria — nessa categoria de pessoas colectivas com atribuições no âmbito do desporto, de que fala nos artigos 2.º e 3.º — engloba aquelas entidades de cúpula do sistema desportivo. Ora, como já se referiu, se a qualificação legal das pessoas colectivas não é decisiva para apurar a sua natureza, vale em princípio — e muito mais valerá — quando vai de acordo, como no caso se mostra, com a realidade jurídico-normativa correspondente.

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6 — Posto isto, dir-se-ia então estar encontrada, sem mais, a resposta a dar à questão prévia oportunamente enunciada. Não sendo a Federação Portuguesa de Futebol uma associação pública, teremos que nem os preceitos dos seus Estatutos, nem os dos seus regulamentos (mormente do seu Regulamento Disciplinar) serão normas «públicas» — normas editadas por um poder normativo público; donde que não possam ser objecto de apreciação por este Tribunal, consoante sempre se afirmou na sua jurisprudência anterior (v., além do Acórdão n.º 26/85, invocado pela requerida, o Acórdão n.º 157/88, no Diário da República, I Série, de 26 de Julho de 1988, e, sobretudo, o Acórdão n.º 156/88, no Diário da República, II Série, de 17 de Setembro de 1988, versando ex professo sobre o ponto da exclusão do poder de jurisdição do Tribunal Constitucional relativamente a normas provenientes da autonomia privada), e também a doutrina vem entendendo, convergentemente (v. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, II, 2.ª ed., 1983, n.º 87, e J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., 1984, parte IV, nota prévia, n.º 2.4). Assim, nada mais restaria do que concluir pelo não conhecimento do pedido.

O caso, porém, não é tão simples. E não o é, porque importa ter em atenção a possibilidade — a que já se aludiu — da atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas, para que estas prossigam, em lugar e como que em nome do Estado, certos fins de interesse geral, certos fins públicos. Ora, essa atribuição ou devolução de poderes pode incluir também a outorga de faculdades normativas — e, então, as correspondentes normas serão normas «públicas», porque justamente produzidas no exercício desse poder público devolvido ou delegado no ente privado. Sendo assim, claro que tais normas serão passíveis de controlo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.

Importa, por isso, ver se, sendo embora a Federação Portuguesa de Futebol uma associação privada, as normas dos seus Estatutos e do seu Regulamento Disciplinar não provirão do exercício de um poder normativo que à mesma Federação haja sido devolvido pelo Estado.

7 — A tal respeito, deve preliminarmente sublinhar-se que uma devolução de competência normativa pública a pessoas colectivas de direito privado só ocorrerá se existir um acto de poder público a operá-la directa e iniludivelmente. Semelhante devolução não pode simplesmente presumir-se, e na dúvida deverá concluir-se pela inexistência dela.

Pois bem: ocorre algum acto de poder público — v. g., de autorização, aprovação, homologação, ou de atribuição legal — que deva tomar-se como expressão da devolução dum poder normativo público à Federação Portuguesa da Futebol, e tal que deva afirmar-se decorrerem os respectivos Estatutos e Regulamento Disciplinar desse poder normativo, e terem aí o seu último fundamento de validade e eficácia?

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a) Quanto aos Estatutos, dir-se-á que a resposta negativa é evidente. É evidente, desde logo, porque tais Estatutos foram aprovados e adquiriram eficácia à revelia de qualquer intervenção do poder público (hoje não prevista no ordenamento para entes dessa natureza, e por isso não verificada no caso, como já se salientou: supra, n.º 5); mas é evidente, depois, porque seria obviamente contraditório da natureza «privada» da Federação Portuguesa de Futebol afirmar que os seus Estatutos provieram do exercício de um poder normativo «público». Se esta afirmação fosse verdadeira, então não poderia sê-lo a primeira, já que uma associação «privada» nasce necessariamente da autonomia «privada», do poder jurisgénico reconhecido aos seus associados no âmbito de tal autonomia, e não do poder do Estado: só àquele poder, e não a este, há-de reverter, portanto, a respectiva regra constituinte (os respectivos «estatutos»). (O que se diz — note-se — sem esquecer a possibilidade de o Estado criar ele próprio, de sua iniciativa, certos entes que vai configurar como pessoas colectivas de direito privado).

b) Já quanto ao Regulamento Disciplinar da FPF, porém, se não põe esta dificuldade de princípio — e então poderia pretender-se que a sua emissão tem por título, no fundo, uma devolução de competência disciplinar feita pelo Estado à Federação, nesse Regulamento devendo ver-se a primeira expressão do exercício de tal competência. Por outras palavras: a competência disciplinar da Federação decorreria essencialmente duma atribuição do Estado, atribuição que incluiu a outorga, à mesma entidade, de um poder normativo nessa área, o qual veio a traduzir-se no correspondente regulamento. Será assim?

Nesse sentido argumentar-se-ia com a circunstância de o Decreto n.º 32 946 — incorporando o antigo Regulamento da Direcção-Geral de Desportos e o enquadramento da organização desportiva — nunca haver sido expressamente revogado, e conter uma norma que comete às federações desportivas (e portanto também à Federação Portuguesa de Futebol) a promoção, regulamentação e direcção no País da prática das respectivas modalidades; e uma outra norma, depois, que atribui aos vários elementos das hierarquias desportivas (desde logo, por conseguinte, às federações) competência disciplinar sobre os diversos intervenientes nessas práticas. Trata-se, respectivamente, dos artigos 22.º, n.º 1, e 80.º, já atrás transcritos (cfr. supra, n.º 3). Dir-se-ia à luz deles que a «disciplina desportiva» é uma tarefa ou função pública (no sentido de assumida pelo Estado, como tal), mas que o Estado devolve ou delega, globalmente, nas federações. Nessa devolução legal radicaria, pois, a natureza necessariamente «pública» da competência disciplinar por aquelas exercida, e, no caso, do Regulamento Disciplinar da FPF, em apreço.

Só que, mesmo admitindo (sem discutir) que fosse esse o sentido original dos preceitos em causa do Decreto n.º 32 946, e mesmo reconhecendo que eles não foram objecto de revogação expressa, sempre haverá de concluir-se que revogado está, por razões de ordem sistemática, esse seu sentido originário. Se tais preceitos hoje subsistem, não podem deixar de ter um significado diferente: o simples significado de um enunciado (que não uma devolução pelo Estado) das atribuições próprias das federações desportivas, e da competência disciplinar que é conatural, por assim dizer, às mesmas atribuições.

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Não acontece, porém, isto — convém adverti-lo aqui e agora — necessariamente por força de uma exigência constitucional. Pois pode na verdade entender-se que não será incompatível, mesmo com a Constituição de 1976, um regime em que o legislador opere uma certa «publicização» da actividade desportiva, tal que o Estado assuma ou tutele o prosseguimento de fins dessa natureza, directamente ou mediante um específico reconhecimento como «pública» da actividade de determinados organismos desportivos, v. g., das federações, eventualmente «devolvendo-lhes», expressa ou implicitamente, certos poderes nessa matéria (um regime desse tipo é, registe-se, o concebido na Proposta de Lei n.º 82/V, sobre a Lei de Bases do Sistema Desportivo, ora em discussão na Assembleia da República: v. Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 13 de Janeiro de 1989). Um tal regime poderá, porventura, ver-se mesmo expressamente credenciado no preceito do artigo 79.º da Lei Fundamental, acima transcrito (de um preceito paralelo da actual Constituição espanhola, diz José Bermejo Vera que se trata de uma «fórmula aberta», que não impõe um sistema de ordenação e organização do desporto puramente privado, mas é compatível com outro modelo, e de todo o modo reclama que os poderes públicos se não demitam de assumir as suas obrigações nesse capitulo: v. El marco jurídico del deporte en España, in «Revista de Administración Pública», n.º 110, Maio-Agosto de 1986, pp. 15 e segs.).

O que acontece é antes que os preceitos do Decreto n.º 32 946 se inscreviam num todo ou sistema normativo — o delineado por esse diploma, no seguimento do Decreto-Lei n.º 32 241 — que se rompeu na sua globalidade ou, pelo menos, em pontos significativos e essenciais (como oportunamente se mostrou: supra, n.º 3). Pontos significativos eram, nomeadamente, os que faziam depender a constituição das federações e os respectivos estatutos e regulamentos de uma autorização ou aprovação dos poderes públicos (exigindo, assim, para essa constituição um «reconhecimento por concessão») e, depois, submetiam ainda a actividade desses organismos a outras modalidades de tutela administrativa. Nesse quadro, era realmente possível entender os preceitos dos artigos 22.º e 80.º do Decreto n.º 32 946 como operando uma «devolução legal» de poderes (inclusive poderes «normativos») do Estado para as federações; mas, destruído ele, não se vê, na verdade, como possam continuar a ter o mesmo alcance. Não se vê, em especial, como possa falar-se de uma «devolução legal» de poderes para entidades em cuja criação e modelação o Estado não intervém hoje minimamente (que adquirem personalidade jurídica, numa palavra, por simples «reconhecimento normativo») e sobre que não exerce qualquer controlo — seja no exercício desses poderes pretensamente «devolvidos», seja previamente, ao menos, nesse momento inicial da instituição do ente.

É por estas razões que não pode ver-se nos artigos 22.º e 80.º do Decreto n.º 32 946 título suficiente para afirmar que os poderes disciplinares das federações desportivas são (ou continuam a ser) hoje poderes «públicos», por devolução do Estado — e para afirmar, consequentemente, que os correspondentes regulamentos e, no caso, o Regulamento de Disciplina da FPF, promanam do exercício de um poder com essa natureza, sendo as respectivas normas, por isso, normas «públicas».

O fundamento desses poderes e dessas normas é outro: são os próprios estatutos (privados) de tais entidades — sendo certo que, como se sabe, o poder disciplinar é um daqueles que o direito e a lei reconhecem às associações de direito privado, no quadro da sua autonomia própria. É ao poder disciplinar e ao poder regulamentar previstos nos Estatutos da FPF [cfr. artigos 2.º, alínea a), 31.º, alínea b), e 46.º, n.º 1] que são poderes

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«privados» — que reverte, por conseguinte, o respectivo Regulamento Disciplinar, aqui em questão.

Resta uma advertência final.

Não se ignora que, no quadro de determinados diplomas legais — dos diplomas, v. g., sobre a violência nos recintos desportivos ou sobre «dopping»: cfr. supra, n.º 3, in fine — são as federações desportivas chamadas a exercer poderes disciplinares que o Estado especialmente lhes comete, em vista dos correspondentes e específicos fins de segurança ou saúde pública; de tal modo que aí — mas só aí, nesses específicos e limitados domínios — se poderá falar de uma «devolução de poderes públicos» às federações. Por outro lado, para o exercício de tais poderes devem ou podem as federações servir-se dos seus próprios regulamentos de disciplina.

É óbvio, porém, que este circunstancial e limitado aproveitamento dos mesmos regulamentos para o prosseguimento de tais tarefas disciplinares delegadas não é suficiente para mudar-lhes a natureza: não é por isso que eles deixam, quando são emitidos (e é o que importa), de provir de um poder normativo «privado», passando a ter a sua origem num poder «público». Tal só se verificaria se o poder disciplinar das federações, globalmente considerado, tivesse esta outra origem — mas isso é, justamente, e como se mostrou, o que não ocorre.

8 — Em resumo: nem os Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol, constantes de escritura pública outorgada em 4 de Dezembro de 1982, com as alterações constantes de escritura pública de 26 de Julho de 1985 (no Diário da República, III Série, de 29 de Janeiro de 1983 e de 31 de Agosto de 1985, respectivamente), nem o Regulamento Dis-ciplinar da mesma Federação, aprovado em Assembleia Geral Extraordinária de 18 de Agosto de 1984, provêm de qualquer «poder normativo público». E, assim sendo, nem o artigo 86.º dos mesmos Estatutos nem o artigo 86.º do mesmo Regulamento, neste processo questionados, são normas «públicas» — isto é, normas que ao Tribunal Constitucional caiba apreciar, sob o ponto de vista da sua arguida inconstitucionalidade.

Em conclusão, o eventual problema da ilegitimidade dos preceitos em causa não pode qualificar-se como questão de constitucionalidade para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional seja competente.

9 — Nestes termos, atenta a incompetência do Tribunal Constitucional, decide-se não tomar conhecimento do pedido.

Lisboa, 12 de Julho de 1989.

José Martins da Fonseca

Vital Moreira

Messias Bento

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José Manuel Cardoso da Costa

Mário de Brito

José Magalhães Godinho

Antero Alves Monteiro Diniz (vencido nos termos da declaração de voto que junto)

Raul Mateus (vencido, nos termos da declaração de voto junta)

Armando Manuel Marques Guedes (vencido, quanto à incompetência do Tribunal Constitucional decorrente do carácter das normas constantes do artigo 86.º do Estatuto

da Federação Portuguesa de Futebol e do artigo 86.º do Regulamento Disciplinar da mesma Federação; e isto pelas razões constantes dos votos dos Senhores Conselheiros

Monteiro Diniz e Raul Mateus).

DECLARAÇÃO DE VOTO

1 — No acórdão a que a presente declaração se reporta, entendeu-se, em juízo conclusivo que «nem os Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol, constantes de escritura pública outorgada em 4 de Dezembro de 1982, com as alterações constantes de escritura pública de 26 de Julho de 1985 (no Diário da República, III Série, de 29 de Janeiro de 1983 e de 31 de Agosto de 1985, respectivamente), nem o Regulamento Disciplinar da mesma Federação, aprovado em Assembleia Geral Extraordinária de 18 de Agosto de 1984, provêm de qualquer ‘poder normativo público’. E, assim sendo, nem o artigo 86.º dos mesmos Estatutos nem o artigo 86.º do mesmo Regulamento, neste processo questionados, são normas ‘públicas’ — isto é, normas que ao Tribunal Constitucional caiba apreciar, sob o ponto de vista da sua arguida inconstitucionalidade».

Dissentindo deste entendimento, votei em termos de reconhecer competência a este Tribunal para tomar conhecimento do objecto do pedido.

Pelas razões que, em síntese breve, de seguida se vão expor.

2 — Aceita-se inteiramente, e neste domínio se acompanha a fundamentação e a conclusão do acórdão, que a Federação Portuguesa de Futebol não seja uma associação pública mas, e ao contrário, deva ser qualificada como pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública.

Simplesmente, entende-se que os preceitos questionados no requerimento do Procurador-Geral da República foram editados ao abrigo de um poder normativo

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público, mais concretamente, a sua matriz dispositiva radica originariamente em poderes públicos cometidos à Organização Desportiva em causa, por acto normativo do Governo (cfr. artigos 21.º, 22.º, 74.º e 80.º do Decreto n.º 32 946, de 3 de Agosto de 1943, no qual se incorpora o antigo Regulamento da Direcção-Geral de Desportos e o enquadramento da organização desportiva).

Não foram estas disposições, como aliás o próprio acórdão reconhece, objecto de revogação expressa e entende-se, ao contrário do ali aduzido, não existirem quaisquer razões de incompatibilidade sistemática conducentes à sua supressão da ordem jurídica. Na verdade, o sistema ali instituído, mesmo quando se admita haver sido objecto de algumas rupturas significativas, pode ainda conciliar-se com a ordem jurídica actual, não sendo assim consentido falar-se a seu respeito, de uma qualquer forma de revo-gação.

3 — Admitida a vigência daqueles preceitos, pode afirmar-se, desde logo, a existência de um acto legislativo de suporte para a atribuição ou devolução de poderes ou funções públicas a uma entidade privada — a Federação Portuguesa de Futebol, que dispõe, em regime de monopólio e em sistema de unicidade, da organização e gestão futebolística nacional — poderes esses nos quais se deverá integrar a outorga de faculdades normativas, as quais, à luz da sua génese formativa, devem ter-se por produzidas no exercício de um poder público devolvido.

E assim sendo, nada impede que as normas questionadas no pedido — artigos 86.º do Estatuto da Federação Portuguesa de Futebol e 86.º do Regulamento Disciplinar — possam ser objecto de fiscalização de constitucionalidade por parte deste Tribunal. — Antero Alves Monteiro Diniz.

DECLARAÇÃO DE VOTO

1 — Ao contrário da conclusão decisória constante do acórdão a que esta declaração de voto se acha apendiculada, entendi, e nesse sentido votei, que o Tribunal Constitucional era competente para conhecer do pedido, isto é, para apreciar e decidir se eram ou não inconstitucionais as normas dos artigos 86.º dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol e 86.º do Regulamento Disciplinar da mesma Federação.

De seguida se explicará porquê.

2 — Antes de mais, importa assinalar que acompanhei o acórdão enquanto nele se demonstra que a Federação Portuguesa de Futebol é pessoa colectiva de direito privado, ainda que de utilidade pública; enquanto nele se admite a possibilidade de atribuição de

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poderes ou funções públicas a entidades privadas, designadamente a outorga de faculdades normativas, o que implicará que as normas em tal contexto emitidas, porque justamente produzidas no exercício de um poder público devolvido ou delegado, sejam normas públicas, e por isso passíveis de controlo de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional; e enquanto nele se sublinha que uma devolução de competência normativa pública a pessoas colectivas de direito privado só ocorrerá se existir um acto do poder público a operá-la directamente.

No entanto, já não o secundei nos passos em que sustenta que os dispositivos em causa foram editados pela Federação Portuguesa de Futebol à revelia de qualquer concessão de faculdades normativas por banda do poder público.

3 — O Decreto n.º 32 946, de 3 de Agosto de 1943 — que contém o regulamento geral da Direcção-Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, criada pelo Decreto-Lei n.º 32 241, de 5 de Setembro de 1942 —, veio dispor, a dado trecho, o seguinte:

Artigo 21.º

Os clubes desportivos podem agrupar-se em associações e estas em federações, constituindo hierarquias próprias em cada modalidade desportiva.

§ 1.º — Não poderão constituir-se em associação menos de três clubes, mas poderá haver federações de duas associações.

§ 2.º — As federações, cuja sede é obrigatoriamente em Lisboa, exercem a sua jurisdição em todo o território continental e nas ilhas adjacentes; a competência das associações exerce-se na área do distrito ou da província em cuja capital tem a sua sede.

§ 3.º — As federações e associações ou organismos equivalentes existentes à data da publicação deste regulamento que não satisfizerem ao mínimo fixado no § 1.º devem reorganizar-se dentro do prazo de doze meses; se o não fizerem, considerar-se-ão dissolvidas, revertendo os seus bens em favor de instituições desportivas indicadas em assembleia geral ou, na sua falta, das designadas pelo Ministro da Educação Nacional.

§ 4.º — Os clubes desportivos independentes regular-se-ão pelas normas técnicas estabelecidas pela associação respectiva ou, na sua falta, por organismo designado pela Direcção Geral, podendo, aquela ou este, ser encarregados de exercer a necessária vigilância sobre a forma como as normas são cumpridas.

Artigo 22.º

Compete às federações:

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1.º Promover, regulamentar e dirigir no País, sob a orientação da Direcção Geral, as práticas das respectivas modalidades desportivas, tendo sempre em vista a saúde moral e física dos seus filiados;

2.º Representar perante o Estado o respectivo ramo de desporto;

3.º Assegurar as relações desportivas do País com o estrangeiro.

Artigo 74.º

Considera-se infracção disciplinar o acto praticado voluntariamente pelos desportistas ou pelos organismos desportivos, com violação dos deveres regulamentares.

§ 1.º — Os clubes podem ser responsabilizados pelas infracções disciplinares cometidas nos recintos desportivos pelos seus adeptos.

§ 2.º — As penalidades aplicadas aos organismos podem abranger os seus filiados.

Artigo 80.º

A competência disciplinar sobre os desportistas, juízes, árbitros ou fiscais pertence à Direcção Geral e aos vários elementos das hierarquias desportivas, nos termos seguintes:

1.º A do n.º 1 pode ser aplicada por todos os que tiverem autoridade hierárquica sobre os infractores.

2.º As restantes podem ser aplicadas pelas direcções dos clubes, colégios ou comissões a que pertencerem os infractores ou pelas dos organismos de hierarquia superior.

§ 1.º — Da decisão que aplicar qualquer das penas dos n.os 3 e seguintes do artigo 76.º há sempre recurso para os órgãos superiores ou jurisdicionais da hierarquia desportiva, ou para a Direcção Geral.

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§ 2.º — A aplicação de uma pena pela Direcção Geral ou comunicação de que foi por ela mandado instaurar processo disciplinar faz cessar a competência disciplinar de todos os outros órgãos da hierarquia desportiva.

A Federação Portuguesa de Futebol — que se constituíra em 1914 sob a designação inicial de União Portuguesa de Futebol — era, ao tempo, uma das várias federações desportivas existentes, pelo que, por via do disposto nos artigos 21.º e 22.º do Decreto n.º 32 946, lhe foram imediatamente cometidas pelo Governo determinadas competências públicas, designadamente para regulamentar no País, ainda que sob a orientação da Direcção--Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, a prática do futebol.

Por outro lado, dos artigos 74.º e 80.º do Decreto n.º 32 946 decorria ainda que esse poder regulamentar abrangeria a própria definição do estatuto disciplinar de desportistas, clubes e associações.

4 — Acerca da validade actual dos artigos 22.º, n.º 1, e 80.º do Decreto n.º 32 946, escreveu-se no acórdão:

[…] mesmo reconhecendo que eles não foram objecto de revogação expressa, sempre haverá de concluir-se que revogado está, por razões de ordem sistemática, esse seu sentido originário [sentido significativo de que o Estado devolvera ou delegara globalmente nas federações determinada tarefa ou função pública]. Se tais preceitos hoje subsistem, não podem deixar de ter um significado diferente: o simples significado de um enunciado (que não uma devolução pelo Estado) das atribuições próprias das federações desportivas, e da competência disciplinar que é conatural, por assim dizer, às mesmas atribuições.

Não acontece, porém, isto — convém adverti-lo aqui e agora — por força propriamente de uma exigência constitucional. Pois pode, na verdade, entender-se que não será incompatível, mesmo com a Constituição de 1976, um regime em que o legislador opere uma certa «publicização» da actividade desportiva, tal que o Estado assuma ou tutele o prosseguimento de fins dessa natureza, directamente ou mediante um específico reconhecimento como «pública» da actividade de determinados organismos desportivos, v. g., das federações, eventualmente «devolvendo-lhes», expressa ou implicitamente, certos poderes nessa matéria.

[…]

Um tal regime poderá, porventura, ver-se mesmo expressamente credenciado no preceito do artigo 79.º da Lei Fundamental.

[…]

O que acontece é antes que os preceitos do Decreto n.º 32 946 se inscreviam num todo ou sistema normativo — o delineado por esse diploma, no seguimento do Decreto-Lei

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n.º 32 241 — que se rompeu na sua globalidade ou, pelo menos, em pontos significativos e essenciais […]. Pontos significativos eram, nomeadamente, os que faziam depender a constituição das federações e os respectivos estatutos e regulamentos de uma autorização ou aprovação dos poderes públicos (exigindo, assim, para essa constituição um «reconhecimento por concessão») e, depois, submetiam ainda a actividade desses organismos a outras modalidades de tutela administrativa.

Nesse quadro, era realmente possível entender os preceitos dos artigos 22.º e 80.º do Decreto n.º 32 946 como operando uma «devolução legal» de poderes (inclusive poderes «normativos») do Estado para as federações; mas, destruído ele, não se vê, na verdade, como possam continuar a ter o mesmo alcance. Não se vê, em especial, como possa falar-se de uma «devolução legal» de poderes para entidades em cuja criação e modelação o Estado não intervém hoje minimamente (que adquirem personalidade jurídica, numa palavra, por simples «reconhecimento normativo») e sobre que não exerce qualquer controlo — seja no exercício desses poderes pretensamente «devolvidos», seja previamente, ao menos, nesse momento inicial da instituição do ente.

Esta argumentação é, a meu ver, totalmente inconsistente.

5 — Dispõe o artigo 7.º, n.º 2, do Código Civil que a revogação de uma lei pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.

O acórdão reconhece que não houve revogação expressa das normas em questão do Decreto n.º 32 946. Também não alude a revogação originada pela publicação de qualquer lei que tivesse o objectivo de substituir o regime definidor das relações entre o Estado e os organismos desportivos, lei que, na realidade, e até agora, não foi publicada. Segue sim, uma terceira via: a da revogação por incompatibilidade.

Todavia, no acórdão, e a este propósito, não se logra demonstrar a existência de uma verdadeira incompatibilidade internormativa. Apenas se salienta que o sistema instituído pelo Decreto n.º 32 946 se rompeu em pontos significativos. Isto, porém, não chega para provar a existência de uma real incompatibilidade, e consequentemente para provar que as normas em causa daquele diploma legal foram revogadas.

6 — Estando, pois, em vigor os artigos 21.º, 22.º, 74.º e 80.º do Decreto n.º 32 946, de concluir é que à Federação Portuguesa de Futebol, pessoa colectiva de direito privado mas de utilidade pública, foram, de facto, devolvidos pelo Estado poderes públicos, ao abrigo dos quais vieram posteriormente a ser emitidas as normas dos artigos 86.º dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol e 86.º do Regulamento Disciplinar da mesma Federação, normas públicas, e por conseguinte susceptíveis de sujeição a juízo de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional.

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Note-se, aliás, e ainda a este propósito, que se têm como de todo inaceitáveis as observações que no acórdão se fazem àqueles Estatutos, no sentido de liminarmente se afastar a possibilidade de, aí, a Federação Portuguesa de Futebol haver exercido, de algum modo, poderes públicos nela porventura delegados pelo Estado.

Escreveu-se a esse respeito, no acórdão, o seguinte:

Pois bem: ocorre algum acto de poder público — v. g., de autorização, aprovação, homologação, ou de atribuição legal que deva tomar-se como expressão da devolução dum poder normativo público à Federação Portuguesa de Futebol, e tal que deva afirmar-se decorrerem os respectivos Estatutos e Regulamento Disciplinar desse poder normativo, e terem aí o seu último fundamento de validade e eficácia?

a) Quanto aos Estatutos, dir-se-á que a resposta negativa é evidente. É evidente, desde logo, porque tais Estatutos foram aprovados e adquiriram eficácia à revelia de qualquer intervenção do poder público (hoje não prevista no ordenamento para entes dessa natureza, e por isso não verificada no caso, como já se salientou: supra, n.º 5); mas é evidente, depois, porque seria obviamente contraditório da natureza «privada» da Federação Portuguesa de Futebol afirmar que os seus Estatutos provieram do exercício de um poder normativo «público». Se esta afirmação fosse verdadeira, então não poderia sê-lo a primeira, já que uma associação «privada» nasce necessariamente da autonomia «privada», do poder jurisgénico reconhecido aos seus associados no âmbito de tal autonomia, e não do poder do Estado: só àquele poder, e não a este, há-de reverter, portanto, a respectiva regra constituinte (os respectivos «estatutos»).

Estas considerações porém, só teriam cabimento se a norma do artigo 86.º dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol pertencesse aos estatutos originais da Federação, contemporâneos, pois, da sua criação, isto é, com referência a um momento em que era logicamente impossível o exercício, por delegação, de quaisquer poderes públicos. Contudo, não foi isso que aconteceu. Tal norma foi introduzida sim, em 26 de Julho de 1985, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Mangualde, ou seja, numa data em que a Federação Portuguesa de Futebol estava plenamente capacitada, à luz do disposto nos artigos 21.º, 22.º, 74.º e 80.º do Decreto n.º 32 946, e por delegação nela de poderes normativos estaduais, para editar uma norma como aquela.

7 — Assim, e em resumo, é o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281.º da Constituição, competente para conhecer da constitucionalidade, quer da norma do artigo 86.º dos Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol, quer da norma do artigo 86.º do Regulamento Disciplinar da mesma Federação, já que tanto uma como outra se hão-de haver como normas públicas. Daí que, e na minha perspectiva das coisas, devesse ter passado a conhecer do pedido. — Raul Mateus.

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